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Tutela dos direitos humanos: a reafirmação da força coercitiva por meio do direito penal

RC: 152191
264
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/tutela-dos-direitos-humanos

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

LIMA, Vladimir Sampaio Soares de [1]

LIMA, Vladimir Sampaio Soares de. Tutela dos direitos humanos: a reafirmação da força coercitiva por meio do direito penal. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 03, Vol. 01, pp. 124-137. Março de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/tutela-dos-direitos-humanos, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/tutela-dos-direitos-humanos

RESUMO

O presente artigo utiliza os principais argumentos veiculados no livro “A Força do Direito” de Frederick Schauer, em especial a dúvida por ele suscitada se a força do direito está estritamente ligada à sua coerção (assim como Hobbes, Bentham e Austin tratavam), contrastando com as ideias de H. L. A. Hart, que propõe uma definição linguística e convencional do direito, onde a normatividade é determinada pelo impacto das regras jurídicas reconhecidas pelas autoridades na tomada de decisões. Para tanto, se realizará um percurso a partir da chamada Tutela Penal dos Direitos Humanos, passando pela criminologia crítica e pela chamada nova esquerda punitiva, para investigar se, a busca por novas punições penais por grupos vulnerabilizados não teriam o condão de demonstrar que a força coercitiva continua sendo a principal característica das normas e da estrutura jurídica, haja vista que mesmo com toda a crítica ao sistema penal como um todo, perdura a busca pela criminalização de novas condutas como forma de reconhecer a importância de tais direitos. Dessa forma, a busca por uma tutela penal de graves violações a direitos humanos poderia corroborar com a perspectiva de Schauer sobre a importância contínua da coerção no sistema jurídico.

Palavras-chaves: Tutela penal dos Direitos Humanos, Direitos Humanos, Direito Penal, Criminologia, Filosofia do Direito.

1. INTRODUÇÃO

O livro “A Força do Direito”, de Frederick Schauer, publicado em 2015 e traduzido para o português em 2022, traz questionamentos importantes no âmbito da filosofia do direito e da teoria do Direito[2], como explicitam Amato, Campilongo e Freire (2022), para que se analise se a força do direito está adstrita à sua força coercitiva[3], ou, por outro lado, partindo das construções elaboradas por H. L. Hart[4], na verdade, o direito teria sua definição calcada em uma análise linguística e convencional, na qual a normatividade do direito se daria quando o uso das regras jurídicas (estas reconhecidas pelas autoridades) pudessem ser verificadas quando estas influíssem na tomada de decisão [razões para agir (ou se omitir)] (Amato, Campilongo & Freire, 2022).

Schauer ainda traz à tona a posição de Ronald Dworkin[5] (1999), em “O Império do Direito”, que reconhece a força argumentativa de Hart, mas a critica por a enquadrar enquanto uma teoria vocalmente positivista, pois trataria o direito enquanto um conceito descritivo de fatos empíricos, e não como uma empreitada interpretativa (Schauer, 2022, p. 34).

Ao demarcar que a teoria jurídica formulada tanto por Hart (1986), quanto por Dworkin (1999), teria afastado do conceito de direito a sua característica de força coercitiva, de forma inovadora, reconheceram que havia elementos outros para além da coerção do direito; porém, focaram demais em uma análise puramente linguística, em detrimento da importância que a coerção sempre exerceu na maior parte das tradições jurídicas para a conceituação do que é direito. Inclusive, Schauer (2022) reconhece que a coerção perdeu sua força ao se discutir se há juridicidade ou não em uma norma, mas, muito pelo contrário, a juridicidade não se encontra ausente na coerção.

Guardadas as devidas proporções diante de tradições jurídicas tão diversas, é possível reconhecer que a força coercitiva do Direito pode também ser analisada a partir de fenômenos jurídicos brasileiros que retomam a busca pela mais coercitiva das áreas jurídicas, o Direito Penal, enquanto elemento central para a resolução de graves problemas sociais.

Dessa forma, o que se buscará nestas breves linhas serão os delineamentos iniciais de uma crítica que tanto reconhece que a força do direito pode ser vista cada vez mais no seu caráter punitivo, pois até mesmo diante de tradições jurídicas críticas, tanto na área dos Direitos Humanos, quanto nas criminologias críticas, têm buscado a punição enquanto elemento central definidor daquilo que é necessário para a efetivação de direito de grupos vulneráveis, comumente chamado por Faleiros Júnior (2012) de fenômeno de Tutela Penal dos Direitos Humanos[6] e, dessa forma, se promover uma certa aproximação entre atualidade da necessidade da coerção para a efetivação de direitos dentro do Sistema Jurídico Brasileiro, corroborando com a visão de Schauer (2022).

2. A BUSCA DE UM DIREITO PENAL EFETIVADOR DE DIREITOS HUMANOS – A FORÇA COERCITIVA ENQUANTO TÔNICA DO CONCEITO DE DIREITO

É notório que as mais diversas áreas do direito, as quais têm a força coercitiva mais branda, mas por outro lado, tendo ações programáticas que visem uma real alteração do estado de coisas, quando não conseguem salvaguardar os direitos humanos dos grupos aos quais suas normas visam proteção, partem para a criminalização de condutas por meio do direito penal, segundo Baratta (1994), Campos (1999) e  Karam (2021). Deste modo, a força coercitiva salta aos olhos pois, apesar de termos outras estratégias de proteção e controle no sistema jurídico, é na expressão máxima da coerção que se busca guarida.

Apesar de o livro do professor Schauer (2022), partir de um argumento que revisita o questionamento sobre existir, ou não existir, perante o direito contemporâneo, enquanto característica, a força coercitiva do direito, elaboração esta lançada por H. L. Hart (1986), a qual, em países de tradição romano germânica, tais dúvidas nunca vingaram com tanta ênfase, haja vista a coercitividade ser elemento central e estruturador destes sistemas jurídicos, pode-se entender que o raciocínio de que a força do direito ainda reside de maneira muito vocal em sua força coercitiva tem como um exemplo deste fenômeno a busca por grupos que reconhecem que no direito penal reside a sua última esperança, tendo em vista que, apesar de criticarem sua utilização, compreendem que estarem à margem da criminalização, ou seja, a faceta mais coercitiva do Direito, estariam à margem do próprio Direito.

Apesar de as reflexões de Hart (Kozicki, 1991), terem começado a reverberar há pouco tempo[7] sobre os países que seguem o modelo jurídico Europeu continental, Bobbio (2007), demonstra que há também, há tempos, nas bandas do outro lado do Atlântico, questionamentos sobre qual seria a função mais importante do direito.

Os juristas europeus continentais sempre observaram a coerção enquanto papel principal como função do direito. Contudo, não só pela sociedade contemporânea estar a passos largos rumo à uma subjetividade neoliberal muito acentuada, na qual o indivíduo se torna o centro de atenção e de ações perante o Estado, a qual se inicia nos anos 70 do século passado, mudando o centro de análise sobre para que serve o Estado, orientando as ações da pessoa não somente sobre a coerção, mas, também, enquanto técnica de estímulo, percebe-se que, desde meados do fim do século XIX, há forças outras no direito que não somente a coerção, por exemplo, quando o Direito formula sanções premiais[8], as quais objetivam incentivar a tomada de uma determinada decisão pelo indivíduo de forma positiva, sem sanções punitivas ou coercitivas.

Dessa forma, Norberto Bobbio, em um argumento que compreende as mudanças de complexidade social sobre a serventia do Estado perante a sociedade, articula a ideia de que há uma série de funções nas quais o Estado atua a partir do século XIX, e já não mais as realiza precipuamente. As juristas e os juristas começam a se indagar sobre quais seriam as estruturas fundamentais do direito que refugiam a precípua função coercitiva, a sanção penal e o uso da força como seu principal elemento, afinal, se há até mesmo normas que não contém em seu bojo qualquer sanção e mesmo assim as cidadãs e os cidadãos as concretizam, exsurgindo, dessa forma, questionamentos referentes às funções do direito que não sejam tão somente coercitivas.

Ou seja, se nas democracias ocidentais existem, por exemplo, as ditas sanções premiais, a sanção não como castigo, mas como técnicas de incentivo, seria cabível afirmarmos que o Direito estaria perdendo a sua característica fundadora e diferenciadora de outras estruturas sociais, tomando como referencial as construções originárias de Hobbes, Bentham e Austin, conforme explicitado por Schauer (2022).

Se o direito começa a exercitar técnicas de controle antecipado ou postergado, a sanção premial, e não penal, começa a adquirir contornos de primazia dentro da sistemática das funções do direito?

Como dito acima, o jurista inglês H. L Hart (1986) constrói sua teoria sobre o papel não essencial da coerção para a caracterização da normatividade jurídica. Estabelece, dessa forma, que as pessoas (jurisdicionados), nas sociedades contemporâneas, obedecem a condutas independentemente de punições.

E mais, tais indivíduos, diante de uma miríade de normas emanadas das mais iversas fontes, os quais podem ser tratados metonimicamente através da clássica imagem do homem perplexo, o famoso puzzled man[9],  tenderiam a fazer o que as normas exigem, desde que fossem direcionadas à tanto pela legislação, sem necessidade de ameaça de sanções.

Sociedades complexas demandam normas que organizem as normas, legislativas, normas de mudança ou de câmbio, ou seja, não há necessidade de que toda norma tenha em seu bojo, ou enquanto consequência secundária, uma sanção.

Contudo, apesar de existir relativo acerto na percepção de que o direito contemporâneo trabalha com a ideia de risco e de seu inerente controle, sobrepujando-se a compreensão de coerção e de uso da força, enquanto elementos centrais, subsiste a função coercitiva do direito, sendo que esta, apesar de aparentar ter perdido força, permanece de maneira não só latente, mas candente, ao menos em terras brasileiras.

Quando Bobbio debate as funções latentes e manifestas do direito, há uma metáfora ilustrativa que a representa, sendo muito utilizada por Schauer (2022), ganhando até mesmo um capítulo nominado “Das Cenouras e dos Porretes”, utilizando a seguinte imagem: como nas corridas de coelhos, o uso da cenoura pode servir enquanto um incentivo à realização de uma conduta, contudo, se necessário for, o direito sempre deixa o porrete ao lado se tal incentivo não for suficiente.

Importante mencionar que Schauer (2022), por mais que não utilize o argumento de Bobbio enquanto fundamento para suas análises, ambos se aproximam do diagnóstico de que, em que pese a percepção de que apesar de o direito, por muitas vezes, ter se afastado de seu caráter repressivo, ao menos enquanto discurso se mantém. E, em termos de democracia formal, modificando não só o papel repressivo do direito, mas a compreensão do próprio direito, de como o mesmo é produzido, com o foco no Estado de Bem Estar Social, o qual teria o papel de induzir as cidadãs e cidadãos a práticas que os instigassem a cumprir as normas sem a punição enquanto função manifesta, mas sub-reptícia, latente.

E aqui se iniciam as possibilidades de análise nas quais o Estado profere um discurso que aparentemente o distancia dos ditos porretes, mas que, na verdade, apesar de na metáfora utilizada, em uma mão oferta uma cenoura – enquanto incentivo -, na outra mão, atrás de suas costas, esconde um enorme porrete – enquanto reprimenda -.

Utilizando-se da expressão Estado-Centauro, articulada por Wacquant (2012), quando da análise do avanço neoliberal sobre os escombros do Estado de Bem-Estar Social, o autor demonstra que não há um esvaziamento das funções de incentivo propugnadas por este último modelo de Estado, mas, na verdade, a nova ordem econômica reestruturou a forma como o Estado se apresenta sobre a sociedade:

Como resultado dessa inclinação “direitizante, o Leviatã neoliberal não se parece nem com o Estado minimalista do liberalismo do século XIX, nem com o Estado evanescente igualmente lamentado pelos críticos econômicos e da governamentalidade do neoliberalismo, mas sim com um Estado-centauro, que exibe rostos opostos nos dois extremos da estrutura de classes: ele é edificante e ‘libertador’ no topo, onde atua para alavancar os recursos e expandir as opções de vida dos detentores de capital econômico e cultural; mas é penalizador e restritivo na base, quando se trata de administrar as populações desestabilizadas pelo aprofundamento da desigualdade e pela difusão da insegurança do trabalho e da inquietação étnica (Wacquant, 2012, p.512).

Ou seja, o mesmo Estado que se apresenta como facilitador das relações humanas, pouco intervencionista, é o mesmo que redunda em uma máxima utilização do Direito Penal para suas múltiplas gestões da sociedade.

E aqui residem os esboços iniciais sobre o enfrentamento que se pretende fazer neste texto.

Como poderíamos dizer que a função coercitiva do direito tem pouca expressão no Direito Moderno, tal qual a crítica elaborada por H. L Hart (1986), e demonstrada por Schauer (2022) – a ideia de que a norma jurídica não seria aquela que tem a capacidade de impor a força -, se a todo instante, em especial a partir das explosões carcerárias dos anos 80 em diante, percebe-se uma máxima utilização do direito penal, que é a expressão máxima da coerção no sistema jurídico?

E mais, quando se percebe que as pautas dos direitos humanos, quando suas reivindicações não estão sendo contempladas nas áreas menos coercitivas do direito, como a administrativa e a civil, recorre-se ao direito penal?

O sistema penal, (instituições policiais, judiciais e carcerárias), segundo Flauzina (2009), se sabe, age de forma seletiva – como explica Baratta (2011, p.113), mirando as suas armas para certas parcelas da população e punindo certos crimes, produzindo e reproduzindo violências de diversos matizes.

Assim os movimentos sociais que pleiteiam uma maior presença do Estado para proteção dos direitos humanos, para redução das opressões e das desigualdades, são os mesmos que pleiteiam que o Direito Penal tenha maior protagonismo.

Ou seja, movimentos sociais que reconhecem o sistema penal enquanto um instrumento de reprodução de violências e realizam diuturnamente a denúncia de quão responsável pelos massacres das populações vulneráveis o sistema penal o é, buscam, paradoxalmente o seu uso enquanto instrumento legítimo.

Por exemplo, a militância contra a tortura e os parlamentares que se alinham ao campo da esquerda[10], quando dos debates parlamentares no contexto do Projeto de Lei que tipificou a tortura (Lei nº 9.455, de 7 de ABRIL de 1997), ambos, militância e parlamentares de esquerda, denunciantes contumazes das práticas de tortura ocorridas dentro dos presídios e das delegacias de polícia, são aqueles que recorrem à expressão máxima da força coercitiva do direito, o direito penal, para a consecução de seus objetivos, como o aumento de pena do crime de tortura, quando os direitos não são preservados ou efetivados, e a passagem a seguir, de Possas (2015, p.491), explicita tal argumento:

No caso em questão, o perfil e a motivação são coerentes entre si (progressistas), mas quando se passa às soluções, a coerência desaparece: os progressistas terminam por defender uma solução considerada (por eles mesmos) em geral como conservadora. Da mesma maneira, se retomarmos a percepção da posição dos conservadores em relação à punição do crime de tortura, estaremos diante de outra situação de paradoxo. Se para os crimes comuns, os conservadores se encaixam em uma situação de coerência total – perfil conservador; motivação conservadora; solução conservadora –, quando se trata do crime de tortura, ingressamos em uma situação paradoxal: perfil e motivação conservadores e solução progressista (considerando que a demanda por menos prisão é vista como uma posição progressista no tocante às penas).

Outro exemplo de grande força, segundo Freitas (2020), reside nas reivindicações do movimento negro, que, ao passo em que reconhece o genocídio de sua juventude diuturnamente, vê no sistema penal o já citado argumento de estigmatização e dessa área enquanto um âmbito de negatividade, buscando nessa mesma área a efetivação de seus direitos, paradoxalmente, também no mesmo Direito Penal, como disserta Flauzina (2008, p.92), em sua obra:

Num plano mais geral, entendemos que o Estado acolhe as pressões do movimento negro a partir do direito penal pelo simples fato de que os efeitos de tais postulações serão necessariamente inócuos. São inócuos porque o direito penal, ao contrário dos demais ramos do direito, é um campo da negatividade e da repressão, não se constituindo como espaço para promover interesses de caráter emancipatório. Além disso, e mais importante, o direito penal se materializa pelo sistema penal. Como engrenagem que toma o racismo como pressuposto de sua atuação, esse sistema é um espaço comprometido, inadequado e incapaz de gerir as demandas a partir de uma perspectiva de igualdade, a exemplo do que ocorre com as demandas femininas. Esse é o campo por excelência de vulnerabilização, e não de resguardo, dos interesses da população negra.

Não se está aqui a desconhecer, como dito linhas acima, que as normas de organização do estado, processo legislativo, normas que conferem poderes, autorizações, são legítimas e estão até mesmo hipertrofiadas, mas sim que a imposição de penalidades permanece sendo, como nunca deixou de ser, um dos vetores de maior força e importância enquanto função do direito.

Como tratado na introdução, é notório que o Direito Penal é a área na qual o Direito exerce de forma mais contundente o seu papel coercitivo. E é notória a crítica, em especial a partir da Criminologia Crítica, que as funções declaradas do Direito Penal em nada convergem com relação às suas funções latentes, não declaradas, mas efetivamente exercidas. Ou seja, apesar de ser a área na qual a coerção tem um braço brutal, sabe-se que o seu uso não serve para o que o direito tem declarado, como se pode sugerir ler em Batista (2011), para uma maior compreensão sobre o tema.

Dessa forma, o braço mais coercitivo do Estado, que é o Direito Penal, também é o seu braço mais inefetivo para o que se declara, e, apesar disso, não deixa de ser utilizado, na verdade, como já demonstrado, é largamente manipulado apesar de ter um caráter muito mais simbólico do que efetivo e modificador da realidade.

O mesmo Estado que não acolhe demandas educacionais, de saúde e demais relacionadas aos direitos humanos, promove com extrema facilidade os pleitos por criminalizações.  Ora há um acolhimento por parte do Estado para inserir essas demandas punitivas do movimento negro dado que o próprio Estado reconhece, de forma explicitada ou não, e compreende o quanto é ineficaz ou ineficiente para uma real modificação no estado de coisas. Há reconhecimento notório, como já exposto pela fala de Flauzina (2008), que do direito penal não se espera demandas positivas ou modificadoras da realidade, senão para perpetuação das desigualdades históricas diuturnamente replicadas pelo Direito Penal.

Ainda, na mesma linha de Flauzina (2008), insta ressaltar que o racismo é pedra de toque da própria estrutura do direito penal, e, com isso, paradoxalmente, não haveria possibilidade, para além da simbólica – em que pese a repetição e perpetuação dos estigmas próprias do sistema penal -, de os interesses da população negra esperarem mudança do sistema racista que estrutura a sociedade por meio daquele que é um dos seus maiores perpetuadores de desigualdades.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hipótese que se está a demonstra, é a de que não só a força coercitiva do Direito permanece sendo uma de suas mais importantes características, mas que, mesmo com a totalidade das críticas acerca de sua inefetividade, seletividade, simbolismo destituído de elementos ensejadores de positividade, ela permanece sendo uma boia de salvação para a falência das outras áreas do direito, talvez por sua característica de máxima coercitividade.

Encampando a tese de Schauer (2022), de que a força do direito também reside em sua coerção, tentamos expandir o argumento com a finalidade de demonstrar que não só a coerção permanece vigente enquanto vetor essencial do Direito, mas que, também, permanece sendo a sua principal característica., e não haveria razão de ser de outra forma.

Quando movimentos sociais que têm em seu cerne reivindicações de pleitos de direitos humanos de primeira, segunda e até terceiras gerações, e sempre que outras áreas do direito não tem o condão de servir aos propósitos protetivos esperados, recorre-se, por conta de sua força coercitiva, ao Direito Penal, para que esse, com o seu braço forte, apesar de frágil em suas finalidades declaradas, reforce a importância da utilização da coerção enquanto reafirmação do Direito, reforçando o argumento de Schauer de que a coerção é característica essencial e determinante para caracterização do fenômeno jurídico.

REFERÊNCIAS

Amato, L. F., Campilongo, F, C. & Freire, A. L. (2022). Apresentação: Coerção e Teoria do Direito. (XXIII-XLIX pp). In Schauer, F. (2022). A força do Direito. (Tradutor A. L. Freire, 366pp). São Paulo, SP: Martins Fontes.

Baratta, A. (1994). Funções instrumentais e simbólicas do direito penal – lineamentos de uma teoria do bem jurídico. São Paulo, SP: Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2(5), 5-24.

Baratta, A. (2011). Criminologia Crítica e Crítica ao Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. (Tradução Juarez Cirino dos Santos, 6a ed). Rio de Janeiro, RJ: Revan, Instituto Carioca de Criminologia

Batista, N. (2011). Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. (12a ed., 111pp.). Rio de Janeiro, RJ: Revan.

Bobbio, N. (2007). Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri, SP: Manole.

Campos, C. H., et al. (1999). Criminologia e feminismo. (117p.). Porto Alegre: Sulina.

Dworkin, R. M., Camargo, J. L., & Rios, G. (1999). O império do direito. Martins Fontes.

Faleiros Júnior, R. G. (2012). Tutela penal e teoria crítica de direitos humanos: uma interseção crítico-dialética marginal. (Dissertação de Mestrado). UNESP.

Flauzina, A. L. P. (2008). Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. (92pp.). Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.

Freitas, F. D. S. (2020). Polícia e Racismo: uma discussão sobre mandato policial. 2020. 264 f., il (Doctoral dissertation, Tese (Doutorado em Direito) Universidade de Brasília, Brasília).

Hart, H. L., Raz, J., Bulloch, P. A., & Mendes, A. R. (1986). O conceito de direito.

Karam, M. L. (2021).  A Esquerda Punitiva: 25 anos depois. (149pp)

Kozicki, K. (1991). Uma abordagem do conceito de direito em H. L. A. Hart. Revista Sequência, Florianópolis, v. 23.

Brasil. Lei n. 9.455 de 07 de abril de 1997. (2023, 17 DE AGOSTO). Lei de Tortura. Recuperado em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9455.htm.

Possas, M. T. (2015). Produção de leis criminais e racionalidade penal moderna: Uma análise da distinção ‘conservador’x ‘progressista’no caso da criação da lei contra a tortura no Brasil. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, 8 (3), 473-499.

Schauer, F. (2022). A força do Direito. (Tradutor A. L. Freire, 366pp). São Paulo, SP: Martins Fontes.

Wacquant, L. (2012). Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, 505-518.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Segundo os professores Amato, Campilongo e Freire, a obra do professor Schauer está enquadrada naquilo que é denominado como jurisprudência pelos anglo-saxões, mais especificamente jurisprudência analítica.

3. Esta tradição pode ser vinculada às obras de Thomas Hobbes, Jeremy Bentham e John Austin, as quais podem ser mais bem verificadas em consulta aos originais desses autores, ou mesmo ao longo de toda a exposição realizada pelo professor Schauer na obra que suporta este artigo.

4. Em “O conceito de Direito”, Herbert Lionel Adolphus Hart (1986) examina de maneira detalhada as tradições que o precederam, reconhecendo que, para além do elemento coerção, o Direito teria de ser analisado pela forma na qual ele produza regras comportamentais que contribuam nas “razões para agir” dos indivíduos (Amato, Campilongo, Freire, 2022 in Schauer, 2022).

5. A crítica ao “aguilhão semântico” da teoria de H.L.A. Hart formulada pelo professor Dworkin, em sua obra “O império do direito” (Dworkin, 1999) pode ser mais bem verificada em consulta ao original deste autor, ou mesmo ao longo de toda a exposição realizada pelo professor Schauer na obra que suporta este artigo, ou mesmo na apresentação de Amato, Campilongo e Freire na mesma obra do professor Schauer.

6. Para Faleiros (2012, p.181) a Tutela Penal dos Direitos humanos é uma possibilidade, desde que atendidos certos critérios: Nesse sentido, pode-se aventar, ante a realidade jurídica nacional, ser viável, subsidiariamente, uma tutela penal constitucional-democrática, como meio, para reconhecimento, proteção e expansão de direitos humanos — até mesmo, para demonstrar as insuficiências e limites do direito penal —, desde que compreendidos sócio-historicamente e reconhecidos de forma abrangente, pluridimensional e incondicional os processos de libertação humana.; Já para Beltrame (2015, p.245-246): Somente caberia a utilização desse dupla composição direito penal e direitos humanos preservando as garantias inerentes às pessoas sob o jugo do direito e processo penal. (Beltrame, P. A. (2015). A Tutela Penal Dos Direitos Humanos E O Expansionismo Punitivo).

7. O texto de H.L.A. Hart é do início da década de 60 do século passado, mas passa a ser estudado e criticado a partir dos anos 90, ao menos dentro do Brasil.

8. A importância de tal comando jurídico analisada pode ser mais bem verificada em consulta aos originais de Austin, ou mesmo ao longo de toda a exposição realizada pelo professor Schauer na obra que suporta este artigo, ou mesmo na apresentação de Amato, Campilongo e Freire à obra que suporta este artigo, bem como em artigo do ministro do Superior Tribunal de Justiça, Marco Bellizze (pode ser encontrado em: Bellizze, M, Mazzola, M., Sobre as características das sanções premiais na indução de comportamentos. Recuperado de https://www.conjur.com.br/2022-jun-17/bellizze-mazzola-sancoes-premiais-inducao-comportamento/ – acessado em 2023, 12 de outubro).

9. Schauer (2022), diante de inúmeras pesquisas empíricas, compreende que na verdade o dito homem perplexo não decide acatar ao direito tão somente por ser uma norma emanada por uma autoridade, mas sim por uma miríade de razões independentes, em especial pelas ameaças, por vezes sub-reptícias, mas existentes nas normas jurídicas.

10. Para tanto, sugere-se a leitura do artigo de Possas (2015), o qual sumariza os achados de sua tese de Doutorado (Possas, M. T. (2009). Système d’idées et création de lois criminelles: Le cas de la loi contre la torture au Brésil. (Tese de Doutorado), Université d’Ottawa).

[1] Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). ORCID: 0000-0001-7712-0826. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6559901663888512.

Material recebido: 19 de janeiro de 2024.

Material aprovado pelos pares: 5 de fevereiro de 2024.

Material editado aprovado pelos autores: 08 de março de 2024.

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Vladimir Sampaio Soares de Lima

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