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A estrutura fiscal brasileira à luz da norma hipotética fundamental

RC: 140977
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/estrutura-fiscal-brasileira

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

TOSCHI,  Caio Calzado [1], NAGIB,  Luiza [2]

TOSCHI,  Caio Calzado. NAGIB,  Luiza. A estrutura fiscal brasileira à luz da norma hipotética fundamental. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 02, Vol. 03, pp. 130-141. Fevereiro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/estrutura-fiscal-brasileira, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/estrutura-fiscal-brasileira

RESUMO 

Esse estudo objetiva analisar a compatibilidade da estrutura fiscal brasileira, pela forma como ela interage com as bases tributáveis, da perspectiva da justiça fiscal, à luz do conceito da norma hipotética fundamental desenvolvido em “Teoria pura do direito”, de Hans Kelsen. A análise se vale de elementos conceituais positivistas tais como a norma jurídica, o direito, a justiça, a moral e os direitos objetivos e subjetivos. Traçando um paralelo entre a norma hipotética fundamental e a vontade do povo, enquanto fundamento de validade da constituição, será verificado se a estrutura fiscal brasileira, isto é, a forma como os entes federativos interagem com as bases tributáveis, condiz com os objetivos constitucionais de tributação, intimamente relacionados à ideia de capacidade contributiva e tributação progressiva, notadamente em um país com problemas históricos de distribuição e acúmulo de renda. Essa verificação também será feita a partir da comparação de dados que correlacionam a arrecadação com a tributação de cada base tributável do Produto Interno do Brasil e de outros países escolhidos aleatoriamente pelos autores. Localizados descompassos entre os objetivos constitucionais, a vontade do povo e as práticas de interação com as bases tributáveis em outros países, conclui-se que há falhas sensíveis na implementação da vontade popular expressa na Constituição Federal.           

Palavras-chave: Estrutura fiscal, Tributação, Justiça fiscal.

1. INTRODUÇÃO 

Kelsen (1999) talvez seja o maior expoente do positivismo jurídico, que constitui corrente de pensamento da filosofia do direito responsável por compreendê-lo como ciência descolada de aspectos morais, éticos, políticos ou religiosos.

Alguns afirmam que essa corrente seria vertente jurídica do positivismo de Comte, que, em sua obra “Curso de filosofia positiva”, descreve o desenvolvimento humano em três fases, das quais merece destaque a última, na qual fenômenos seriam percebidos por conclusões científicas obtidas por métodos experimentais (VILLEY, 1986).

Kelsen (1999) transbordou essas considerações para o Direito, inspirado pelo idealismo de Hegel (MASCARO, 2016) e formalismo de Kant (BOBBIO, 1995a), e inovou ao estruturar a ciência jurídica sem elementos metafísicos do direito natural, em razão da ausência de cientificidade.

O autor, então, escreveu “Teoria pura do direito”, e delineou o Direito como ciência, com o desenvolvimento de métodos e noções jurídicas, conferindo-lhe autonomia das demais ciências.

Uma das colaborações foi a estruturação do Direito baseado na norma posta, materializada pelo legislador em um sistema hierarquizado em que cada norma possui fundamento de validade na norma que lhe é imediatamente hierarquicamente superior.

No cume, haveria a Norma Hipotética Fundamental (“NHF”), que seria uma norma não escrita, da qual derivaria o fundamento de validade e o poder originador da constituição. Seria uma norma pressuposta, tida como berço da legitimação do ordenamento jurídico, e que possuiria correspondência semântica nas intenções daquela sociedade.

Já a estrutura fiscal pode ser traduzida nas regras de arrecadação, mediante interação e tributação dos fatos geradores, para realização do orçamento necessário aos entes federados.

Neste estudo será feita uma análise crítica da estrutura fiscal brasileira a fim de verificar se ela, da perspectiva kelseniana, guarda pertinência com seu fundamento maior de validade, isto é, com a NFH.

2. ELEMENTOS CONCEITUAIS POSITIVISTAS 

Para Kelsen (1999), o elemento estruturante da ciência jurídica é a norma jurídica. Por essa razão, ele dedicou uma parte de sua obra para definir o conceito de ato, fato e norma jurídica.

O ato e o fato seriam desdobramentos do ser, do estado físico das coisas. Já a norma seria um dever ser, ou seja, se observada determinada condição fenomênica, a ela seria atribuído um consequente e valor jurídico pela norma jurídica de uma dada cultura (KELSEN, 1999; DINIZ, 2009). A norma tributária segue lógica similar, como aponta Ataliba (2014).

O autor também estabeleceu um método para a elaboração da norma e para delinear aspectos da sua validade no tempo-espaço, em relação aos sujeitos e à matéria disciplinada (ATALIBA, 2014). Ainda, explicitou sua eficácia, traduzida no vínculo necessário para observância do seu conteúdo.

Kelsen (1999) demonstrou que a norma é regulamentação positiva ou negativa, a partir dos modais deônticos, que valora condutas para definir comportamentos aceitáveis, exigidos ou terminantemente proibidos (ATALIBA, 2014; CARVALHO, 2012).

A ordem social decide fixando sanções, que são prêmios ou castigos. É o fenômeno da retributividade da norma, necessidade de ela ser coercitiva e repressiva, a fim de garantir a existência do interesse e da necessidade do seu cumprimento. Deve haver o monopólio da coerção na figura do estado, responsável por analisar o cumprimento das normas – função jurisdicional concentrada -, para garantir segurança coletiva, pois haveria um entendimento único do conteúdo da norma.

Um aspecto relevante da obra de Kelsen (1999) é que ela associa a materialização da justiça, enquanto preocupação do objeto de estudo da filosofia jurídica, ao cumprimento da norma jurídica positivada vigente, objeto de análise da ciência jurídica.

Auxilia na compreensão dessa proposição o caso de Santo Agostinho, dos salteadores (ladrões) que possuem um código de condutas verbal que institui uma espécie de estado paralelo, que admite ações não toleradas pela nação em que se inserem, como o roubo de transeuntes. Agostinho advogava que não haveria justiça nessa circunstância, pois as normas dos salteadores feririam preceitos cristãos (CARVALHO, 2012).

Kelsen (1999) rechaça esse entendimento, pois o que diferenciava as normas dos salteadores seria mera ausência de positivação, e se eles registrassem sua constituição, poderiam, inclusive, confrontar a ordem jurídica vigente com uma “tomada do poder”. Logo, justiça seria cumprimento da norma positivada derivada de qualquer circunstância.

O autor também fez comparação entre direito e moral. Ambos possuem preocupação com a intenção do sujeito, mas não necessariamente coincidirão, o que nem seria relevante, pois a ciência jurídica independeria da moral para existir. A moral seria preocupação da ética, e o direito, da ciência jurídica (CARVALHO, 2012). Inobstante regulamentem condutas, a moral não é coercitiva, tal como o direito, ainda que ele se ocupe de positivar normas morais. Logo, normas morais só serão exigíveis se positivadas.

Exemplo da independência dos conceitos é a diretiva nº. 227, de Stalin, que determinava que nenhum soldado russo recuaria em combate, sob pena capital de execução sumaríssima (MERRIDALE, 1945). Os russos que enviaram entes às trincheiras não aprovavam moralmente essa medida que ignorava condições casuísticas de combate, mas a norma era válida e exigível.

Kelsen (1999) delimita que a norma jurídica só admitiria questionamento quanto à sua validade formal, requisitos de validade, hierarquia, eficácia e exigibilidade, mas não quanto ao conteúdo, da perspectiva moral, até porque é intercambiável com o tempo (MERRIDALE, 1945).

O autor sinaliza que o cientista do direito deve ultrapassar o dualismo entre o direito objetivo e subjetivo. Por objetivo, compreende-se a norma introduzida no ordenamento jurídico. Já o subjetivo tratar-se-ia de uma faculdade de o sujeito requerer a aplicação da norma jurídica ao seu caso e agir conforme seu comando.

O método da ciência jurídica determina justamente que o cientista aplique o complexo de normas aplicáveis ao caso, ou seja, as normas que prescrevem consequentes para determinados atos e fatos. Não lhe seria facultado escolher quais normas aplicar, pois tal expediente abriria margem para soluções jurídicas diferentes e em descompasso com as normas jurídicas aplicáveis ao caso (MERRIDALE, 1945).

Kelsen (1999) ainda colabora com a descrição do escalonamento das normas jurídicas, que seriam divididas em três categorias de forma hierárquica, de modo que a norma hierarquicamente inferior sempre busca seu fundamento de validade na norma imediatamente superior (MERRIDALE, 1945). As categorias seriam: normas individuais (sentenças e licenças); normas gerais (leis ordinárias e regulamentos); e a constituição. Bobbio (1995b) denominou essa proposição de pirâmide de Kelsen.

Kelsen (1999) observou que não haveria norma jurídica positivada para dar lastro à constituição, o que causaria uma inconsistência sistêmica. Ele, então, desenvolveu a figura da NHF, que não seria positivada, mas pressuposta, enquanto ato de inauguração da ordem jurídica e fundamento de validade da constituição (BOBBIO, 1995b). A NHF parece ser a representação da vontade do povo, ou seja, materializaria a subjetividade do conteúdo da norma na objetividade da norma posta na constituição.

Um ponto sensível reside no fato de que Kelsen teria se escorado (MATOS, 2011) nas lições de Vaihinger, na obra “Die philosophie des als-ob” (“A filosofia do como-se”) para dizer que ela teria natureza de ficção jurídica, o que violaria a lógica da sua existência dentro do sistema jurídico desenvolvido.

Alguns que não viam nisso uma limitação (SALIBA, 2004), pois essa ficção não demandaria comprovação e seria simples descrição da realidade, mas outros viam incompatibilidade na fundamentação. Assim, apesar dessa natureza ficcional constar na primeira edição da “Teoria geral de normas”, a obra foi reeditada em 1979, e registrou essa mudança de entendimento do autor relativamente à natureza da NHF como hipótese lógico-transcendental.

A alteração foi explicada em 1987, após a publicação de uma carta de Kelsen de 1933, ou seja, de antes da “Teoria Pura do Direito”, em que o autor explica ter pensado em construir a NHF escorada na ficção de Vaihinger, mas abandonou essa ideia para acolher o pensamento de Kant e baseá-la na hipótese lógico-transcendental (KELSEN, 2007).

O reparo é relevante, pois explicita que a NHF não partiria da hipótese à ficção, mas o contrário, o que reforça a ideia do caráter hipotético da norma fundamental ser assumido, mas não demonstrado, que é fundamento de oposição à lógica metafísica jusnaturalista. Esse reparo auxilia a lastrear a ideia de que a NHF poderia ser traduzida na vontade popular.

Feitas essas reflexões, este estudo verificará se a estrutura fiscal brasileira encontraria respaldo na NHF, que serviria de fundamento de validade da Constituição.

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESTRUTURA FISCAL BRASILEIRA 

A organização político-administrativa brasileira da Constituição criou entes federativos distribuídos nos seguintes níveis: União, estados e municípios, responsáveis, dentre outras atribuições, por exercer competências e gerir receitas tributárias (MACHADO, 2012). O legislador desses entes ficou responsável por explorar fatos geradores da tributação, ou seja, o momento e a grandeza em que devido o tributo (CARVALHO, 2012).

A interação dos entes com fatos tributáveis é o que aqui se convenciona definir como estrutura fiscal, isto é, as normas dos entes para a determinação da arrecadação de seu orçamento. Os fatos tributáveis são, usualmente, renda, patrimônio e consumo.

Na experiência brasileira, não houve distribuição crítica das competências dos entes, mas mera descentralização. A título de exemplo, veja-se que a tributação da renda ficou com a União (IR e CSLL), ao passo que a do patrimônio ficou parte com a União (ITR), parte com estados (IPVA) e com municípios (IPTU), e a do consumo se dividiu entre União (IPI), estados (ICMS) e municípios (ISSQN).

Os entes passaram a versar sobre as bases tributáveis sem enxergar como os demais interagiam com elas, desembocando em cenário em que inexiste coesão nas diretrizes da estrutura fiscal; de complexidade do sistema tributário; aumento do custo de manutenção de fiscalização; e aumento da carga tributária total (SOUZA, 2004).

Convém recordar que a tributação não objetiva empobrecer a população, mas tirar fração pecuniária, respeitada sua disponibilidade, para manutenção das atividades do estado (RIBEIRO, 2008). Essa premissa de orientação de estrutura fiscal opera com a ideia de escolher, considerando aspectos econômicos, fatos geradores mais convenientes e intensidade da tributação.

Disponibilidade de renda é expressão de riqueza que viabiliza acúmulo de patrimônio e consumo. Logo, da perspectiva da justiça fiscal, seria razoável tributar mais riqueza em maior disponibilidade e menos a mais escassa (CARRAZZA, 2009). Essa abordagem de progressividade conforme disponibilidade (BERLIRI apud OLIVEIRA, 1998) se denomina de orientação para a tributação direta da riqueza, e parece ser elemento da vontade popular da Constituição.

Incautos alegariam violação constitucional à igualdade, mas não parece o caso, pois, no Direito Tributário, a igualdade é compreendida pela capacidade de arcar com ônus tributário que cada contribuinte tem (ÁVILA, 2010), o que, inclusive, consta do princípio da capacidade contributiva (BRASIL, 1988), calcado na justiça distributiva (BECKER, 2010).

Outro caminho é a tributação indireta da renda, a partir da gravação do consumo, opção que demanda cautela, pois não necessariamente há riqueza por trás do consumo, pois quem detém pouca renda também consome para atendimento às necessidades básicas.

Tratar os contribuintes da mesma forma, pela gravação do consumo, representa oneração proporcional maior de quem não acumula riqueza, fenômeno conhecido por tributação regressiva. Oportunas são as conclusões de Engel (HOUTHAKKER, 1957), que observa que quanto mais se ganha, menor é o gasto proporcional com comida, racional aplicável ao consumo em geral.

Neste estudo é relevante identificar as diretrizes da estrutura fiscal brasileira, ou seja, a intensidade da tributação das respectivas bases, questão sensível, pois há problema crônico de má distribuição de renda (PNUD, 2019).

A riqueza pode ser avaliada, por exemplo, pelo Produto Interno Bruto (“PIB”) per capita, que, em 2018, no Brasil, foi de US$ 8.785 (UNITED NATIONS, c2023), mas mascara distribuição da renda, limitação que pode ser vencida mediante análise do coeficiente de Gini, que avalia concentração da renda na sociedade (WOLFFFENBÜTTEl, 2004). Tal índice varia de zero, em que todos possuem os mesmos rendimentos, até um, em que um cidadão detém toda a riqueza, e os demais, nada.

O último levantamento realizado pelo IBGE indica que o Brasil possui coeficiente de 0,545, e que o rendimento médio mensal de 1% da população totalizava R$ 27.744,00, que significa 33,8 vezes mais do que o rendimento de 50% da população com os menores rendimentos, no valor de R$ 820,00 (AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS, 2019).

Com esse panorama, e para se entender as diretrizes de estrutura fiscal brasileira, encontra-se abaixo a tabela comparativa do percentual que a arrecadação com a tributação das bases tributáveis mencionadas nas colunas representa do PIB, o PIB per capita e o coeficiente de Gini de países avaliados aleatoriamente.

Tabela 1 – Comparação entre os percentuais que a arrecadação de cada base tributável representa do PIB, PIB per capita e coeficiente de Gini entre países

País Renda das empresas Renda das pessoas físicas Propriedade Consumo e serviços PIB per capita

(US$)

em 2018

Coeficiente de Gini em 2019
Noruega 16,4 9,8 1,2 11,1 84.805 0,264
Suíça 12,3 8,4 1,8 6,1 82.933 0,330
Alemanha 11,4 9,6 1,0 10,1 48.843 0,315
Dinamarca 32,2 26,8 1,9 15,0 62.659 0,288
Países baixos 9,6 7,0 1,4 11,1 54.115 0,284
Irlanda 11,6 9,2 2,2 9,7 62.295 0,328
Islândia 18,1 13,6 2,5 12,1 77.343 0,287
Estados Unidos 12,3 10,2 2,8 4,5 63.704 0,411
Brasil 6,6 2,4 1,8 13,3 8.785 0,529
Média sem Brasil 15,4 11,8 1,8 9,9 67.087 0,313
Brasil 6,6 (43%) 2,4 (20%) 1,8 (97%) 13,3 (134%) 8.785 (13%) 0,529

Fonte: elaborada pelos autores com dados da OECD (c2023), da United Nations (c2023) e do The World Bank (c2023).

Vê-se que o PIB per capita brasileiro representa 13% da média dos países, e que o coeficiente de Gini é 1,7 vezes maior que os demais, isto é, há menos renda distribuída mais desigualmente.

A arrecadação com a tributação da renda das pessoas jurídicas e físicas é, respectivamente, 57% e 80% menor que a média dos outros países. A arrecadação com tributação da propriedade é alinhada aos parâmetros internacionais e na arrecadação com a tributação do consumo. A brasileira representa 1,4 vezes mais que as demais.

Logo, a estrutura fiscal brasileira foca na tributação do consumo; a tributação da renda está muito abaixo do praticado pelos demais avaliados; e a tributação do patrimônio é similar à prática internacional.

4. CONCLUSÕES 

Feita essa avaliação das diretrizes da estrutura fiscal brasileira, cabe concluir, a partir dos conceitos vistos, se a estrutura em voga teria respaldo da NHF, isto é, se possuiria fundamento de validade e, pois, suporte na vontade popular.

Parece que não, pois, considerada a má distribuição crônica de riqueza, prescindiria de lógica a aceitação, por parte da vontade popular, majoritariamente composta por população de baixa renda, de uma estrutura fiscal baseada na tributação regressiva do consumo e branda da renda concentrada.

E a origem desse descompasso deriva da própria Constituição, que, ao mesmo tempo que materializa o princípio da capacidade contributiva para proteger excessos na tributação pelos entes federados, federaliza o sistema tributário com uma organização de competência tributárias acrítica sem disposições contundentes para evitar a tributação regressiva. Além disso, não impediu a consolidação da estrutura fiscal com foco na tributação indireta, que evidentemente onera de forma mais relevante a população majoritária, que não acumula riqueza.

Também não trouxe balizas efetivas com parâmetros de coerência e coesão da tributação, isto é, a compreensão da tributação como um sistema em que deve haver racionalidade nas interações dos exercícios individuais das competências tributárias dos entes com as demais bases tributáveis, de modo a impedir que cada tributo opere como se fosse autônomo e independente e não estivesse inserido no contexto de um sistema tributário de uma única população, ainda que econômica e socialmente desigual.

As evidências numéricas desses desajustes foram trazidas na análise dos percentuais que a arrecadação com a tributação das bases tributáveis mencionadas nas colunas representa do PIB, em cotejo com o PIB per capita e o coeficiente de Gini dos países avaliados.

Observou-se que há menos renda média anual por indivíduo, distribuída de forma mais desigual, com ênfase na arrecadação com a tributação do consumo e serviços, o que parece operar na contramão do que o próprio princípio da capacidade contributiva efetivamente propõe.

Desse modo, valendo-se do conceito visto da NHF, a estrutura fiscal brasileira seria inválida, pois não possui respaldo popular, pelo que seria necessário reformulá-la de modo a prestigiar a vontade do povo, o que não significa que o sistema tributário todo seja inválido.

A federalização trouxe características que permitiram o desajuste da estrutura fiscal, mas ela pode ser corrigida com rearranjo parcial do texto constitucional e infra para impedir tributação regressiva do consumo e focar na renda acumulada, tal como praticado em outros países, como visto nos dados numéricos avaliados neste trabalho. Essas medidas desenvolveriam uma estrutura alinhada com a vontade e a capacidade contributiva popular, tal como desenhada por Kelsen (1999), de modo a legitimar a NHF.

A despeito da utilização das bases conceituais positivistas para a elaboração deste trabalho, para fins de debate acadêmico, compreende-se que há limitações na proposição de soluções escoradas unicamente nessa escola de pensamento.

Uma abordagem contemporânea, integrativa, da perspectiva da ética e do direito, e eficiente demanda beber da fonte pós-positivista, cuja estrutura enfatiza o caráter normativo dos princípios jurídicos enquanto normas jurídicas vinculantes, interage com fluidez com a Constituição, amplamente escorada nas ideias de valores, princípios, regras, e, inclusive, em maior conformidade com o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, o que, contudo, não impediu a proposição deste exercício de análise baseado nos escólios kelsenianos.

REFERÊNCIAS 

AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. PNAD Contínua 2018: 10% da população concentram 43,1% da massa de rendimentos do país. Agência IBGE Notícias, 2019. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25700-pnad-continua-2018-10-da-populacao-concentram-43-1-da-massa-de-rendimentos-do-pais. Acesso em: 20 fev. 2021.

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2014.

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BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2010. 

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995a. 

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CARVALHO, Paulo de Barro. Curso de direito tributário. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

CARRAZZA, Roque Antônio. Imposto sobre a renda: (perfil constitucional e temas específicos). 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 

HOUTHAKKER, Hendrik Samuel. An international comparison of household expenditure patterns, Commemorating the centenary of Engle’s Law. Econometrica, v. 25, n. 4, p. 532-551, out. 1957. Disponível em: http://dx.doi.org/10.2307/1905382. Acesso em: 20 fev. 2021. 

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 

KELSEN, Hans. The pure theory of law, “labandism”, and neo-kantianism. A letter to Renato Treves. In: PAULSON, Stanley L.; PAULSON, Bonnie Litschewski (orgs.). Normativity and norms: critical perspectives on kelsenian themes. Tradutores: Bonnie Litschewski, Stanley L. Paulson and Michael Sherberg. New York: Oxford;Clarendon Press, 2007. 

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[1] Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP em 2017. Graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2015. ORCID: 0000-0001-7389-9238. CURRÍCULO LATTES: https://lattes.cnpq.br/7555778753832165.

[2] Orientadora. Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2010. Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1998. Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo em 1988. ORCID: 0000-0003-1050-757X. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/7394664201310266.

Enviado: Fevereiro, 2023.

Aprovado: Fevereiro, 2023.

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Caio Calzado Toschi

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