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A responsabilidade social do estado na proteção da dignidade do superendividado

RC: 135702
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

SANCHES, Najme Hadad [1]

SANCHES, Najme Hadad. A responsabilidade social do estado na proteção da dignidade do superendividado. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 06, pp. 125-144. Dezembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/dignidade-do-superendividado

RESUMO

O presente artigo tem como propósito ponderar o fim precípuo da empresa-lucro, bem como do mercado-crescimento de consumo para o desenvolvimento econômico, e a necessidade de conscientização de que os consumidores também fazem parte do sistema econômico, porém, são vulneráveis em relação a todos os outros agentes que compõem a engrenagem da economia. A questão norteadora que se pretende responder com a pesquisa é se a atividade econômica pode ser desenvolvida com a concomitante proteção dos direitos fundamentais do ser humano, reconhecendo-o como parte vulnerável, de modo a priorizar a sua dignidade durante o processo desenvolvido na cadeia econômica. O questionamento surgiu a partir da observação de ausência de proteção do Estado ao consumidor superendividado, que não tem a garantia de resguardo do mínimo necessário para a sua sobrevivência (mínimo existencial), e acaba sendo marginalizado socialmente, sem qualquer perspectiva de reinserção social. O artigo pretende demonstrar a importância do consumidor para o Estado democrático de direito, que acabou por criar a Lei do Superendividamento visando a tutela do mínimo existencial e concretizando, desse modo, a garantia da dignidade da pessoa humana, prevista na Constituição Federal como direito fundamental. O trabalho partiu da hipótese de que o poder público deve implementar políticas públicas que estimulem o crédito responsável e coíbam atos atentatórios à dignidade dos consumidores. A pesquisa realizada foi descritiva e exploratória, com método dedutivo, sob a análise da legislação e da doutrina. Primeiro, apresentar-se-á ao leitor um breve histórico evolutivo da sociedade de consumo, os seus objetivos no sistema capitalista, a sua dimensão mercadológica, por ser um bem comum, e o surgimento do superendividamento a partir dela. Após, será analisada a Lei n.º 14.181/21 (Lei do Superendividamento), a qual incluiu os direitos humanos como princípio do capitalismo liberal, com a implementação de políticas públicas de estimulação do crédito responsável. Por fim, apresentar-se-á a conclusão acerca da possibilidade de construção legal de um sistema capitalista humanista no embate entre os objetivos do mercado no sistema capitalista e a garantia da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Mercado de consumo, Superendividamento, Capitalismo humanista, Lei n.º 14.181/21.

1. INTRODUÇÃO

Ao tratar do superendividado, duas direções demandam análise: a) o capitalismo denominado desleal e egoísta, destruidor de seres humanos que não estão financeiramente preparados para enfrentá-lo; b) o capitalismo desenvolvimentista, que contribui tanto para o crescimento econômico quanto para desenvolvimento social, gerando satisfação e realização pessoal.

Obviamente que o consumo é uma realidade/necessidade na vida de todas as pessoas, além de ser a máquina propulsora do desenvolvimento econômico. Ocorre que a prática do consumo também pode acarretar consequências negativas, as quais emergem para a primeira direção apontada no início desta explanação: o capitalismo destruidor.

Exatamente a partir desta análise, sobrevém os pontos negativos do consumo, mormente quando se trata de superendividados, os quais são verdadeiros óbices ao processo de desenvolvimento dos mercados turbocapitalistas (capitalismo acelerado), pois acabam sendo excluídos do sistema, e em nada colaboram com o progresso econômico. Diante desse quadro pragmático, que tendenciosa e comumente se agrava em períodos de crise financeira nacional, o legislador buscou uma solução jurídica para a proteção do sistema econômico capitalista e, também, humanista para as pessoas que perderam a sua dignidade e foram excluídas da sociedade consumidora: a Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021).

A Lei do Superendividamento (Lei n.º 14.181/21) reconhece os direitos fundamentais da pessoa humana no contexto da ordem econômica, traçando uma política de garantia de dignidade do Homem, em qualquer circunstância, dentro do sistema capitalista, revendo conceitos da lógica do mercado consumidor, único responsável pelo superendividamento, reconhecendo-o como instrumento de perda da dignidade por retirar a paz, cancelar projetos, gerar conflitos familiares e sociais, impedir a obtenção do mínimo necessário para a sobrevivência, além de fomentar o sofrimento pela falta de perspectiva de uma vida melhor e feliz (BRASIL, 2021).

O presente trabalho pretende responder se a gerência estatal da economia, em busca do crescimento e desenvolvimento social e do interesse coletivo, pode utilizar-se de medidas intervencionistas mais sensíveis para que os direitos subjetivos e fundamentais individuais do ser humano não entrem em rota de colisão com a atividade econômica.

A pesquisa tem como pano de fundo a busca da transformação do sistema capitalista atual em um capitalismo humanista[2], com a priorização da dignidade da pessoa humana, por meio do exercício da fraternidade econômica, e um dos instrumentos que priorizaram essa ruptura foi a Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021).

Preliminarmente, far-se-á um breve histórico sobre a sociedade de consumo no Brasil, a sua evolução no sistema capitalista e o surgimento do superendividamento. Em seguida, será apresentado o conceito de superendividamento e o protagonismo da responsabilidade social do Estado em proteger o consumidor superendividado na ordem econômica. Por fim, analisar-se-á a previsão constitucional do Brasil Republicano como sociedade fraterna e a importância da Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021) para a concretização de um capitalismo humanista.

A corrente do capitalismo humanista é a base deste artigo (SAYEG e BALERA, 2011), pois, a partir da busca da concretização da fraternidade como fundamento da República e mandamento constitucional, surgiu a Lei Protetora dos Superendividados.

2. BREVE HISTÓRICO SOBRE A SOCIEDADE DE CONSUMO DO SISTEMA CAPITALISTA E O SUPERENDIVIDAMENTO

O que se denomina atualmente como economia de mercado surgiu nas sociedades primitivas com a prática da troca de produtos (escambo), que era, além de um meio de subsistência, uma oportunidade de valorização e bem-estar de seus praticantes (SILVA, 2022).

A evolução das sociedades influenciou no desenvolvimento das atividades de troca, tornando-a mais complexa, dinâmica e presente em todas as relações humanas, a qual foi, posteriormente, denominada de comércio.

O comércio evoluiu para um sistema financeiro ainda mais complexo com o intercâmbio de moedas, e fez despertar na sociedade o desejo do consumo, que acabou por se traduzir em “degrau para o status social”, passando a se tornar uma prática estrutural nas sociedades (NOGUEIRA, 2015).

Aliás, a moeda trouxe mobilidade para o empreendimento das transações comerciais, e passou a servir de medida não só do valor do produto comercializado, mas também da própria pessoa como membro social, tornando-se, inclusive, fator determinante da classe social dos indivíduos. A partir daqui, é possível observar o surgimento das agruras do sistema capitalista em cada fase de seu desenvolvimento.

A primeira fase do sistema capitalista é o capitalismo comercial (do século XV ao XVIII), chamada, também, de pré-capitalista. O sistema baseava-se em troca comercial sob o modelo mercantilista (ZEITLIN, 1989).

Nessa primeira fase, o Brasil, ainda colônia de Portugal, e mesmo depois de sua independência, apesar de seu enorme potencial produtor e exportador, não conseguiu acumular riqueza, ao contrário da colônia Americana, mas apenas alimentava os interesses da classe dominante que se beneficiava com a estagnação econômica brasileira e acumulava fortuna com a exploração nacional. (ZEITLIN, 1989)

A segunda fase do sistema capitalista é o capitalismo industrial (do século XVIII até o século XIX), que se inicia com a Revolução Industrial, em 1760, em que o poder passa para as mãos da burguesia submetida ao liberalismo econômico (ZEITLIN, 1989).

O capitalismo industrial se estabeleceu no Brasil no século XIX, manifestando-se primeiro no Estado de São Paulo, quando a crise do café forçou os produtores a investirem fortemente na indústria. Posteriormente, com o avanço da acumulação de capital oriundo do ciclo cafeeiro, o Brasil contou com o crescimento das indústrias, especialmente na região Sudeste, que, em 1881, registrou 29 fábricas têxteis das 46 existentes em todo o país (SZMRECSÁNYI e LAPA, 2002; GRAÇA FILHO e LIBBY, 2004).

Por fim, a terceira fase do sistema capitalista é denominada capitalismo financeiro (século XX), que se inicia após a Segunda Guerra Mundial. Aqui está o auge da moeda. Bancos e empresas se unem para acumulação de riqueza, e a terceira fase caracteriza-se pela elevada concorrência, monopólio, tecnologia e globalização (ZEITLIN, 1989).

Após a crise mundial de 1929, na Era Vargas (1930-1945), o Brasil foi empurrado a reagir para a sua adequação a esta nova ordem econômica do capitalismo financeiro com a indústria multinacional, democratização da tecnologia dos meios de produção, ampliação dos meios de transporte e comunicação, possibilitando a ampliação da oferta com a participação no mercado globalizado, e “encantamento do consumidor” (SZMRECSÁNYI e LAPA, 2002; GRAÇA FILHO e LIBBY, 2004).

A partir daí, no Brasil, passa a vigorar um sistema econômico elaborado no seio do desenvolvimento do capitalismo, e tem como premissa básica a centralidade do mercado na economia, que se denomina economia de mercado, onde este se autorregula com base nos princípios da livre concorrência[3] e da lei da oferta e da procura[4], surgindo a produção em larga escala, avolumando-se os negócios pluripessoais e difusos, período conhecido como movimento consumerista. (SZMRECSÁNYI e LAPA, 2002; GRAÇA FILHO e LIBBY, 2004)

Com o advento da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), o Brasil percebeu a necessidade da criação de institutos capazes de regular os conflitos surgidos com os atos negociais entre consumidores e fornecedores, resguardando os interesses das pessoas mais vulneráveis na transação comercial e, simultaneamente, defendendo os direitos da parte inversa.

Reconhecida a existência de uma verdadeira sociedade de consumo[5], triunfou o mercado consumidor representado pelos consumidores (segmento ou a própria população economicamente ativa de um país), que compram ou se utilizam dos produtos de empresas específicas, ou seja, todas as pessoas que tenham poder de compra[6].

Nesse diapasão, Rodrigues (2009, p. 1-2) ensina que:

O desenvolvimento da sociedade faz aprimorar o comércio, transformando uma sociedade em que o comércio era realizado para subsistência para um comércio de consumidores. A atividade econômica mantém profunda ligação com a estrutura jurídica do sistema, vez que compete à Lei situar o homem, a empresa e a sociedade diante do poder político e da natureza, definindo seus direitos e suas responsabilidades, e também fixando as balizas dentro das quais poderá ser exercida a liberdade de ação de cada um dos agentes da atividade econômica.

Diante da fragilidade do consumidor frente a magnitude do mercado, o Estado foi obrigado a intervir para corrigir distorções e promover o equilíbrio nas relações comerciais e a proteção das relações de consumo, cuja concretização se deu com o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8078/90) (BRASIL, 1990).

Com a legislação específica, a proteção ao consumidor atinge posição primordial nos fundamentos da República, como lecionam Pinheiro e Cordeiro (2014, p. 41):

O direito do consumidor está ligado a uma situação de subordinação estrutural, segundo Norbert Reich, quando afirma que tal direito possui escopo constitucional na cláusula do Estado social, justificando que o Estado deve intervir quando as situações de desigualdade e desequilibro social não podem ser corrigidas utilizando-se simplesmente de medidas econômicas. Desta forma, faz-se necessária a edição de uma série de normas que possibilitem assegurar a defesa dos hipossuficientes no que tange às relações de consumo e garantir a ordem econômica. Assim, se afirma que a proteção jurídica ao consumidor é um direito fundamental, moldado nos ideais sociais dos direitos de segunda geração sendo primordial a importância a ser dada ao Código de Defesa do Consumidor neste contexto. […] Neste contexto, a Constituição da República Federativa do Brasil, dentre os direitos fundamentais positivados, consagrou a defesa do consumidor como um dever do Estado. Ademais, revelando a importância e a publicização da matéria, outros dispositivos constitucionais também foram direcionados ao Direito do Consumidor, o qual, diferentemente do direito privado clássico pautado na igualdade formal e na extensa liberdade individual, passou a acolher normas de ordem pública e de interesse social. Foi nesse cenário que, reconhecendo os riscos e o desequilíbrio em que está inserida a figura do consumidor, o Estado passou a intervir em uma relação essencialmente protagonizada por particulares para exigir, entre eles, a obediência aos direitos fundamentais. Assim, houve uma relativização da autonomia da vontade viabilizando a coexistência de outros valores essenciais como a dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, o mercado interno também é protegido ante a sua grande importância, revelada pelo art. 219 da Constituição Federal, ao afirmar que “o mercado interno integra o patrimônio nacional”, ou seja, o mercado é um bem comum do povo, é propriedade do consumidor, e o gozo e fruição deste bem devem ser garantidos pelo Estado (BRASIL, 1988).

Depreende-se da relação de consumo, que de um lado está o mercado, sempre ávido por lucro e competitivo, cuja missão primordial é atrair e influenciar o consumidor a comprar para a realização da intenção da busca incessante pelo lucro, e do outro está o consumidor que se submete às regras impostas pelo mercado e se caracteriza, na relação, como sujeito informacional, fática, técnica e juridicamente vulnerável.

O mercado, no exercício de sua atividade, utiliza de estratégias sedutoras e estimuladoras de compra como a inovação constante no produto, a publicidade sedutora e a concessão de crédito fácil para promover o acesso indiscriminado ao produto ou serviço, e o consumidor, por sua vez, é empurrado ou arrastado a encontrar a sua suposta felicidade nesse maravilhoso mundo do consumo.

Nessa relação, localiza-se a problemática do superendividamento.

Obviamente que o endividamento é uma consequência inevitável, podendo ser equiparado a um “fato inerente à vida na atual sociedade de consumo”, pois a economia de mercado é “(…) uma economia do endividamento” (MARQUES; LIMA e BERTONCELLO, 2010, p. 17). Desse modo, o problema não está no endividamento, que é inevitável e necessário, mas no superendividamento.

Marques et al. (2000, p. 2) definem superendividamento como aquelas situações “(…) em que o devedor se vê impossibilitado, de forma durável ou estrutural, de pagar o conjunto das suas dívidas, ou mesmo quando existe uma ameaça séria de que o não possa fazer no momento em que elas se tornem exigíveis”.

O que se pretende com o presente trabalho é extirpar este lado perverso do sistema capitalista de mercado, a ganância, o individualismo, a busca pelo lucro desmedido a qualquer preço, e o estímulo ao consumismo desenfreado sob o aspecto da obsolescência programada ou planejada[7], fatores que levam os consumidores ao superendividamento, retirando-lhes o mínimo existencial, excluindo-os da sociedade consumerista de modo a fazê-los perder a sua própria dignidade.

Evidencia-se, aqui, a necessidade de uma postura solidária do mercado, que precisa reconhecer a sua responsabilidade social com o desenvolvimento de uma nova sistemática estrutural para um capitalismo consciente[8].

A questão, aqui, é como alcançar o duplo desafio de garantir o crescimento econômico e social do mercado, objetivo almejado pelo capitalismo, mas com a consciência de que a prioridade do sistema deve ser a valorização do ser humano consumidor, desafio este que demanda a prática da fraternidade jurídica, que deve ser considerada um princípio da economia de mercado.

3. O PROCESSO DE SUPERENDIVIDAMENTO E O PROTAGONISMO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DO ESTADO EM PROTEGER O CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO

Há vários conceitos doutrinários sobre o superendividamento.

É importante salientar que a doutrina brasileira sofreu forte influência do direito francês quanto ao denominado superendividamento do consumidor. No artigo L. 330-1 do Código do Consumidor francês, Code de la Consommation, consta que o superendividamento se dá quando a pessoa física, devedora de boa-fé, não possui possibilidade de honrar com a integralidade de suas dívidas exigíveis, não profissionais e vincendas (COSTA, 2002).

Claudia Lima Marques, uma das pioneiras na pesquisa do referido instituto no Brasil, inclusive no estudo do direito comparado, define o superendividamento como “a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos).” (MARQUES e CAVALLAZZI, 2006, p. 97).

Mas apenas o art. 54-A, §1º, do CDC (BRASIL, 1990), acrescentado pela Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021), traz a preocupação explícita com a dignidade do superendividado quando assevera que o superendividamento é a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer o seu mínimo existencial.

Como se observa, o superendividamento é a grave desproporção entre os rendimentos da pessoa física e seus débitos, a ponto de comprometer o mínimo necessário à sua sobrevivência.

A partir dessa conceituação, surge a hipótese retro mencionada da real, necessária e justa proteção do Estado ao consumidor considerado, erroneamente, como um “irresponsável ou incompetente gerente econômico” ao permitir superendividar-se conscientemente (superendividamento ativo), ou em razão de fatores externos (superendividamento passivo).

Seja qual for a motivação, a solução para a agrura do superendividamento demanda reflexão sobre a complexidade das decisões econômicas deste consumidor, levando-se em conta que o processo decisório de gastar é formatado por muitas variáveis (SCHMIDT NETO, 2009). Diante dessa reflexão, emerge a conclusão de que o superendividamento não é um ato isolado, mas um processo que deve ser interrompido, inclusive com políticas públicas, a fim de se evitar a perda da dignidade do consumidor.

Pois bem, o superendividamento deve ser analisado a partir da perspectiva do ato de gastar, que pode envolver uma perda real material (pagamento à vista) ou uma satisfação imediata sob a falsa sensação de que não houve perda monetária (pagamento à crédito).

O primeiro ato refere-se ao pagamento em dinheiro pela compra realizada, em que o consumidor perde dinheiro simultaneamente à aquisição de um bem. Nesse caso, a sensação do consumidor é de equilíbrio entre o “ter dinheiro” e o “estar satisfeito”, pois perdeu (dinheiro), mas ganhou (bem de consumo).

Já na segunda forma do ato de gastar, a compra à crédito, o consumidor não sente a dor do pagar, do dar o dinheiro, mas apenas a alegria na realização do seu desejo de aquisição, porque o pagamento foi postergado, mesmo com altos juros, gerando total desequilíbrio entre o “ter dinheiro” e o “estar satisfeito”, pois não há a dor do pagamento (pois não gastou dinheiro), mas apenas a satisfação imediata do adquirir (“estar feliz”).

Vê-se, portanto, que este processo decisório de compra é extremamente complexo e de cunho subjetivo.

Na verdade, o equilíbrio entre a perda material e o prazer da aquisição devem sempre estar presentes, porém, o que se observa é uma vulnerabilidade cognitiva do consumidor que superestima a sua capacidade de controle da vida econômica (redução de custos futuros, adimplência integral permanente etc.), controle este geralmente postergado pelo sentimento de esperança de uma melhor oportunidade para pagamento.

Conclui-se, portanto, que o gerenciamento econômico da vida humana não se refere única e exclusivamente a consciência da necessidade de aquisição de bens materiais, tendo intrínseco envolvimento com várias áreas do conhecimento, como a da economia, psicologia, filosofia e antropologia cultural, ou seja, são múltiplos os motivos que fazem parte e interagem no processo decisório do gasto em consumo.

Partindo-se dessa premissa, o satisfatório gerenciamento da vida econômica é parte do desenvolvimento integral do Homem, por isso a Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021) acrescentou os incisos IX e X no art. 4º do CDC (BRASIL, 1990), que dispõem que “A Política Nacional das Relações de Consumo tem como princípio o fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores, e a prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor” (BRASIL, 1990).

Os incisos acrescentados ao mencionado artigo têm como fundamento o capitalismo humanista, o qual estatui como base do sistema a célebre pirâmide Kelseniana, em que a Constituição Federal é vista como a norma maior, com a prevalência dos direitos humanos, e estes devem ser protegidos e garantidos em qualquer circunstância.

O inciso X do art. 4º do CPC (acrescentado pela Lei n.º 14.181/21) evidencia que o consumidor superendividado é excluído socialmente, colocado à margem da ordem econômica, o que, sem sombra de dúvidas, fere o seu direito humano ao consumo e, por consequência, a sua dignidade, o que exige a intervenção estatal, qual seja, o Estado, garantidor dos direitos individuais, deve resgatar o superendividado balizado, trazendo-o novamente para vida em sociedade, de modo preservar seus direitos fundamentais, garantir a sua dignidade e contribuir para o seu desenvolvimento integral (BRASIL, 1990).

Este, aliás, é o escopo do sistema capitalista humanista, em que a garantia da dignidade humana deve ser sempre preservada e, sob o ponto de vista econômico e humanista, toda pessoa com dignidade é um consumidor.

Partindo-se do fato de que o direito de consumir é um direito humano, tirar do Homem este direito, em razão do superendividamento, certamente acarreta um Estado de coisas inconstitucional[9].

Ao se colocar o superendividado à margem da sociedade, obviamente se está, também, ferindo a sua dignidade e restringindo o seu direito de propriedade ao mercado interno (art. 219 da CF) (BRASIL, 1988). Esta violação aos direitos humanos exige autuação do Estado, que deve, continuamente, preocupar-se com a instituição de um capitalismo humanista, criando mecanismos de inclusão e participação de todos no sistema econômico.

Diante do crescente, ininterrupto e dinâmico mercado de consumo, é imprescindível a atenção do legislador a estas inevitáveis mudanças, implementando estratégias reguladoras a fim de proteger o consumidor na aquisição de bens e serviços e prevenir o superendividamento (art. 5º, VI do CDC, acrescentado pela Lei n.º 14.181/21), garantindo-lhe a sua dignidade com a manutenção do seu poder de compra (BRASIL, 1990).

Daí a importância da Lei n.º 14.181/21, criada especificamente para a proteção do superendividado, instituindo mecanismos de prevenção e tratamento, ante a necessidade de reabilitação patrimonial da pessoa, visto que o instituto da insolvência civil (art. 748 do CPC) não se faz eficaz na proteção destes consumidores[10], porquanto o insolvente tem uma situação patrimonial real negativa, levando-se em conta todas as suas obrigações vencidas. Já para o superendividado, são consideradas, também, as obrigações a vencer (BRASIL, 2021; BRASIL, 1990).

Consigne-se, portanto, que a proteção estatal do superendividado se faz imprescindível, pois o superendividamento não é apenas um problema pessoal de prodigalidade, irresponsabilidade ou incompetência na administração do patrimônio, mas um problema social ante a sua reverberação na economia e desenvolvimento do país.

4. A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO BRASIL REPUBLICANO COMO SOCIEDADE FRATERNA E A LEI 14.181/21 COMO MEIO PARA A EFETIVAÇÃO DE UM CAPITALISMO HUMANISTA.

Historicamente, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa, restou evidenciado que a fraternidade, conjuntamente com os gritos de liberdade e de igualdade, ultrapassou os limites da religião e harmonia social, para constituir um elemento político-jurídico-social, intervindo na forma de governar e legislar, a ponto de integrar o nosso texto constitucional.

O preâmbulo da nossa Constituição Federal dispõe que:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil (grifado) (BRASIL, 1988).

Também, o art. 3º, I, da Constituição Federal prevê como objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade solidária, o que demonstra a conexão entre o direito e a fraternidade, e este reconhecimento jurídico da fraternidade, enquanto princípio constitucional, é fundamental para construção de uma sociedade democrática (BRASIL, 1988).

Infere-se que a fraternidade tem grande valor constitucional por ser uma virtude política de grande dimensão humanística, um princípio a orientar tanto a interpretação infraconstitucional como a conduta estatal e humana. É certo que a fraternidade é realmente um dos objetivos perseguidos pela República do Brasil, por isso, o Estado, o governo e toda a sociedade civil passam a ser, a partir do texto constitucional, individual e conjuntamente responsáveis pela construção de uma sociedade fraterna.

A fraternidade, além de ser um objetivo da República, também deve ser considerado um dos pilares do Estado democrático de direito, ao orientar todo o ordenamento jurídico e integrar a terceira geração de direitos fundamentais[11], norteada pelo ideal de solidariedade, exigindo o desenvolvimento da capacidade de ver o outro não só como sujeito de direitos, mas como irmão que espera apoio, ajuda e proteção.

Assim, é possível afirmar que o descumprimento desta ordem constitucional, qual seja, agir de modo fraterno, afronta o Estado democrático de direito por ser um princípio jurídico, como afirma Aquini (2008, p. 138-139):

A fraternidade compromete o homem a agir de forma que não haja cisão entre os seus direitos e os seus deveres, capacitando-o a promover soluções de efetivação de Direitos Fundamentais de forma que, não, necessariamente, dependam, todas, da ação da autoridade pública, seja ela local, nacional ou internacional.

Partindo-se desse entendimento, é possível afirmar que fomentar uma sociedade fraterna é fazer com que todos atuem na construção e aperfeiçoamento permanente do Estado democrático de direito com vistas a atingir os objetivos fundamentais da República (art. 3º da Constituição Federal) (BRASIL, 1988).

E cada membro desta sociedade fraterna deve se auto responsabilizar pelos problemas sociais, reconhecer as fragilidades comuns e preocupar-se com a concretização dos direitos humanos sem prévios julgamentos, na tentativa de valorizar as diferentes possibilidades, garantindo a todos o gozo de seus direitos fundamentais, dentre eles, o direito ao consumo.

Porém, apesar de a fraternidade estar sedimentada no Brasil como categoria jurídica constitucional, a solidariedade mútua (práticas fraternas) é, por vezes, esquecida no mundo capitalista, cujas posturas individualistas e egoístas são comuns e naturalmente aceitas como se os membros do corpo social fossem totalmente independentes, autônomos e autossuficientes, preocupando-se, cada um, única e exclusivamente com seus próprios interesses.

Baggio (2008, p. 54) afirma que “A fraternidade é uma condição humana, ao mesmo tempo dada – e por isso constitui um ponto de partida – mas também a ser conquistada, com o compromisso e colaboração de todos.”.

A partir do conceito da trimembração do organismo social, de Rudolf Steiner (1861 – 1925, filósofo alemão fundador da Antroposofia[12]), é possível refletir sobre o alcance da relação entre fraternidade e a dimensão econômica considerando a emergência de novos valores, novas formas de produzir e encarar a gestão das organizações (STEINER, 1961, p. 269).

A trimembração social é um tripé arquetípico em que a liberdade está ligada ao aspecto espiritual e cultural, e representa a oportunidade de cada indivíduo buscar a sua autorrealização. A igualdade se refere aos aspectos políticos e jurídicos como princípio de equalização de tratamento a todos os cidadãos. Já a fraternidade, ou solidariedade, está associada ao aspecto da liberdade econômica, mas sem a estimulação de um liberalismo radical, produtor de desigualdades.

Cantarini e Guerra Filho (2012) afirmam que o Homem é o protagonista principal da história, e sem a sua participação não há que se falar em processo capitalista que caminhe com sucesso no mundo:

O problema é quem faz as escolhas e do que se pode entender por prioritário ou não, que é um critério subjetivo, até certo ponto, já que pelo critério do respeito à dignidade da pessoa humana, o critério será sempre objetivo, não sendo suporte legítimo suficiente apenas sustentar do outro lado a necessidade da segurança jurídica ou da questão do mínimo legal para a manutenção do status quo (CANTARINI e GUERRA FILHO, 2012, p. 176).

O que se observa é um impasse quanto à preponderância de valores materiais aos valores humanos no capitalismo[13], por isso, é necessária a superação deste mito de neutralidade entre este sistema e os direitos humanos, tarefa esta que prescinde da intervenção estatal para proteção dos mais vulneráveis. É exatamente aqui que se encontra a grande importância da Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021).

O Banco Mundial trouxe à tona a necessidade de todos os países, especialmente aqueles com menor educação financeira e com menor empreendedorismo da população (CARVALHO, 2016), estarem atentos à necessidade de uma legislação específica acerca da problemática do superendividamento das pessoas físicas consumidoras, a fim de evitar o risco sistêmico de uma “falência” em massa de consumidores em seus mercados.

O Estado Brasileiro é o grande responsável pela consecução dos fins sociais que levam ao bem-estar da sociedade e às melhores condições de vida de seus habitantes, daí a necessidade emergencial da Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021), que promoveu a atualização e o avanço do Código de Defesa do Consumidor, com o tratamento e prevenção do superendividamento, preocupando-se com o mínimo existencial e a preservação da existência digna do devedor (arts. 54-A a 54-G da Lei 14.181/21) (BRASIL, 1990; BRASIL, 2021).

Este entendimento é ratificado pelo art. 6º, XI, XII do CDC, que passou a prever como direito do consumidor, após o advento da Lei n.º 14.181/21,

a garantia de práticas de crédito responsável de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial por meio da revisão e da repactuação da dívida, nos termos da regulamentação, e na concessão de crédito (BRASIL, 1990).

Grosso modo, a lei trouxe métodos de prevenção e tratamento do superendividamento.

Quanto à prevenção do superendividamento, as principais técnicas têm respaldo na legislação europeia que regula o crédito ao consumidor com deveres de informação de todos os valores embutidos na contratação e fornecimento de crédito responsável, denominada oferta prévia, além daquelas previstas no art. 52 do CDC (BRASIL, 1990).

O art. 54-A do Código de Defesa do Consumidor, incluído pela Lei n.º 14.181/21, trata da prevenção, visto que a Lei privilegiou o superendividado passivo, ou seja, aquele que ocorre por fatores externos, como, por exemplo, o desemprego (BRASIL, 1990). De qualquer modo, o superendividamento ativo, em que o consumidor contrai voluntariamente as dívidas de forma consciente (sabe que não tem condição de honrar) ou inconsciente (compras impulsivas e má gestão do orçamento) também é protegido, mas com ressalvas.[14]

A Lei n.º 14.181/2021 (BRASIL, 2021) exige, de modo preventivo, que

no fornecimento de crédito e na venda a prazo seja o consumidor informado expressamente sobre o custo efetivo total, a taxa efetiva mensal de juros, encargos atinentes ao atraso no pagamento, o prazo de validade da oferta, que deve ser, no mínimo, de dois dias, dados completos do fornecedor e a hipótese de liquidação antecipada e não onerosa do débito (art. 54-B, CDC) (BRASIL, 1990).

Como se não bastasse, previu a lei protetora que, na oferta de crédito, é proibida a indicação de que a operação de crédito poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor (art. 54-D, CDC), o assédio ou pressão ao consumidor para contratar, mormente consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio (art. 54-C, CDC) (BRASIL, 1990).

Não sendo possível evitar o superendividamento, a lei prevê, então, o tratamento, que seria a recuperação judicial da pessoa física (Lei n.º 11.101/05) com um procedimento bifásico: a) fase de conciliação em bloco, que se inicia a pedido do consumidor, para pagar o maior número de dívidas (cultura do pagamento); b) fase de instauração de processo judicial de superendividamento com todos os credores que não conciliaram na primeira fase (BRASIL, 2005).

O procedimento de tratamento se resume em um processo a ser instaurado pelo consumidor, em que será realizada audiência conciliatória com todos os credores das dívidas previstas na legislação, tanto judicial como extrajudicialmente (PROCON), oportunidade em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, desde que preservado o seu mínimo existencial (art. 104-A, CDC) (BRASIL, 1990).

Prevê a lei, ainda, que serão excluídas do procedimento conciliatório às dívidas contraídas dolosamente sem intenção de realizar o pagamento, os contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural (art. 104-A, §1º, CDC) (BRASIL, 1990).

No procedimento de tratamento, todos os credores deverão comparecer, podendo estar representados por procurador com poderes especiais e plenos para transigir, sob pena de, não o fazendo de forma injustificada, ter suspensa a exigibilidade do débito e interrupção dos encargos de mora. O credor ausente também ficará compulsoriamente sujeito ao plano de pagamento, e receberá apenas após o pagamento dos credores presentes (art. 104-A, §2º, CDC) (BRASIL, 1990).

Não havendo êxito na tentativa de conciliação com alguns ou todos os credores, será instaurado processo por superendividamento para integração dos contratos, revisão e repactuação das dívidas remanescentes (art. 104-B, CDC) (BRASIL, 1990). Nesse caso, o procedimento contará com um plano judicial compulsório, em que todos os credores que não integraram o acordo serão citados, devendo apresentar documentos e motivação para a negativa de adesão do plano voluntário ou de renegociação (art. 104-B, §4º, CDC) (BRASIL, 1990).

Com o objetivo de evitar que o procedimento seja utilizado de forma reiterada, o §5.º do art. 104-A do CDC autoriza que o consumidor realize novo pedido somente decorridos dois anos da liquidação das obrigações contraídas no plano de pagamento homologado (BRASIL, 1990).

Assim, resta evidenciado que a Lei n.º 14.181/21 trouxe significativa evolução para os mercados de consumo e financeiro, servindo como paradigma do crédito responsável, reforçando a boa-fé que deve existir nas relações de consumo, valorizando e protegendo a dignidade do consumidor, cuja proteção é um direito fundamental, além de haver se baseado na teoria do capitalismo humanista como um agente transformador da lógica de mercado (BRASIL, 2021).

5. CONCLUSÃO

Restou demonstrado que o endividamento é uma situação inevitável, porém, saudável, pois integra o processo do desenvolvimento econômico social e pessoal, porém, o superendividamento é um problema que afeta tanto o indivíduo quanto à sociedade, e é exatamente ele a problemática deste artigo.

Partindo-se da premissa de que o Estado tem a fraternidade como fundamento da República, e a defesa dos direitos fundamentais como base da democracia, é certo que ele sempre interveio nas relações consumeristas, e mais incisivamente com a implementação do Código de Defesa do Consumidor, a fim de amenizar o desequilíbrio natural entre fornecedor e consumidor.

Porém, a velocidade da evolução do mercado ante o ritmo frenético de mudança do mundo globalizado, o que acarreta contínua e célere transformação na sociedade movida pelo consumo, acabou por gerar desequilíbrios no mercado de consumo mesmo com a referida regulação.

A globalização exige, de um lado, um sistema capitalista composto de um mercado flexível e progressivamente mais voraz, ávido e competitivo, com o emprego de estratégias que atraiam e influenciem o consumidor a comprar de forma irracional e desenfreada, e do outro lado, consumidores que buscam incessantemente o bem-estar, a felicidade, status ou aceitação/valorização social por meio da aquisição de produtos.

Como se não bastasse, dentro desse labirinto econômico onde se encontra o mercado consumidor, está o mercado financeiro que, aproveitando-se da estratégia mercadológica de consumo, acabou por implementar um método de concessão de crédito fácil com acesso indiscriminado, incontrolado e superestimulado sob a promessa de propiciar a venda da “completa realização”, aproveitando-se da vulnerabilidade do consumidor e imprimindo um desequilíbrio ampliador de desigualdades.

Diante desta fugaz mudança no sistema econômico, o Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990), mesmo diante de sua excelência na proteção, de sua contínua e extrema importância social, exigiu alterações que ampliassem a defesa dos direitos fundamentais do consumidor, os quais acabaram sendo atropelados pela velocidade do mercado na busca pelo capital.

A verdade é que, diante do mundo mágico, fantástico e iluminado do consumo, a voracidade do mercado fez surgir um horizonte sombrio e perverso do sistema capitalista: o superendividamento.

O superendividamento atinge não só o consumidor, mas toda a sociedade, pois o superendividado perde o seu direito fundamental de ser um consumidor, bem como perde a sua propriedade do mercado (bem de todos), além de ser excluído do grupo social a que pertence e rotulado como “desonesto” no meio em que vive.

Diante desse quadro caótico que se instalou na sociedade de consumo com o superendividamento, o Estado foi chamado a enfrentar o desafio de garantir o crescimento econômico e social do mercado – escopo do capitalismo – e, ao mesmo tempo, priorizar a valorização do ser humano consumidor – fundamento da República -, buscando a criação de um sistema capitalista humanista com a inserção da fraternidade jurídica, prevista constitucionalmente como princípio da economia de mercado, o que se deu por meio da Lei do Superendividamento (Lei n.º 14.181/21) (BRASIL, 2021).

O superendividamento passou a ser um problema enfrentado pelo Estado desde 2012[15], entendido como a grave desproporção entre os rendimentos da pessoa física e seus débitos, ensejando a sua exclusão do mercado e a perda de sua dignidade pela impossibilidade de garantir o mínimo existencial necessário à sua sobrevivência.

A despeito da necessidade vital de consumir, o legislador evidenciou que o gerenciamento econômico da vida humana não se refere única e exclusivamente a bens materiais, tendo intrínseco envolvimento com várias áreas do conhecimento humano, e estes múltiplos vetores que integram o processo decisório do gasto em consumo acabam por gerar uma falha gerencial devastadora da vida econômica, trazendo sérias, e até mesmo graves e irreversíveis, consequências para o consumidor, sociedade,  economia e desenvolvimento do país.

O direito de consumir é um direito humano, e tirar do Homem este direito, em razão do superendividamento, acarreta um Estado de coisas inconstitucionais, pois acarreta constrição de sua própria dignidade, direito fundamental que deve ser protegido pelo Estado.

Dito isso, resta claro que a Lei n.º 14.181/21 (BRASIL, 2021) veio fomentar a concretização de uma sociedade fraterna, fazendo com que todos os agentes econômicos (Estado, mercado e consumidor) atuem de forma convergente para a construção e aperfeiçoamento contínuo de um verdadeiro Estado democrático de direito, onde todos os membros são responsáveis pelos problemas sociais e devem, mutuamente, buscar o bem comum, de modo a se alcançar os objetivos fundamentais da República.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Presidência da República, 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 26 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Presidência da República, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14181.htm. Acesso em: 26 dez. 2022.

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ZEITLIN, Maurice. The large corporation and contemporary classes. New Brunswick: Rutgers University Press, 1989.

APÊNDICE-REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. A expressão capitalismo humanista foi trazida por Ricardo Sayeg e Wagner Balera em obra de mesmo título, que insere conceitos da filosofia humanista no Direito Econômico (SAYEG e BALERA, 2011).

3. Livre concorrência é a ideia de que, quando existem várias empresas no mercado em um mesmo setor, produzindo ou vendendo um mesmo produto, os preços deverão ser os menores possíveis.

4. Lei da oferta e da procura: preconiza a ideia de que um produto em grande quantidade no mercado e com baixa procura tende a diminuir os seus preços e vice-versa.

5. A sociedade de consumo pode ser entendida como a sociedade da era contemporânea do capitalismo em que o crescimento econômico e a geração de lucro e riqueza encontram-se predominantemente pautados no crescimento da atividade comercial e, consequentemente, do consumo.

6. Existem mercados consumidores diferentes: B2C (Business to Consumer): mercado para consumidores, isto é, a empresa atende os consumidores finais; B2B (Business to Business): empresas que consomem produtos ou serviços de outras empresas.

7. Obsolescência programada ou planejada é a produção de mercadorias previamente elaboradas para serem rapidamente descartadas, fazendo com que o consumidor compre um novo produto em breve. Assim, aumenta-se o consumo e a demanda por recursos naturais, com a maximização da produção de lixo, elevando-se ainda mais a problemática ambiental decorrente desse processo.

8. Capitalismo consciente é uma filosofia de negócios desenvolvida por John Mackey, cofundador e CEO da Whole Foods Market, e Raj Sisodia, especialista em gestão e professor da Babson College. Em breve síntese, o professor conceitua capitalismo consciente como “uma maneira de pensar sobre o capitalismo e os negócios que reflita sobre onde estamos na jornada humana, o estado de nosso mundo hoje e o potencial inato dos negócios para causar um impacto positivo no mundo.” (MACKEY e SISODIA, 2018, p. 197).

9. Estado de coisas inconstitucional: existe quando um quadro insuportável de violações de direitos fundamentais começa a ocorrer de forma massiva/generalizada, decorrente da omissão ou comissão de diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia reiterada dessas mesmas autoridades, ou seja, a estrutura da ação estatal está com sérios problemas e não consegue modificar a situação tida como inconstitucional (CAMPOS, 2015).

10. O procedimento de declaração de insolvência civil é desinteressante para o superendividado ante a sua complexidade: haverá a arrecadação de todos os bens do devedor, que perderá o poder de administrá-los, em seguida, ocorrerá um concurso de credores para recebimento pro rata de seus créditos. Somente após cinco anos do fim da liquidação, ele poderá se ver desonerado das dívidas que porventura não houverem sido quitadas, e todos os bens que adquirir na vigência desses cinco anos serão imediatamente arrecadados para satisfação dos credores (arts. 748 a 750 do Código Civil).

11. A teoria das gerações foi desenvolvida por Karel Vasak por meio de um texto publicado em 1977, bem como uma palestra proferida em 1979, fruto de uma conferência no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo (França). A primeira geração seria os direitos de liberdade, individuais, civis e políticos. A segunda geração consiste nos direitos voltados à igualdade (econômicos, sociais e culturais, próprios de um vigoroso papel ativo do Estado). A terceira geração trata dos direitos de titularidade da comunidade (direitos de solidariedade/fraternidade) (MARMELSTEIN, 2008).

12. A antroposofia, do grego “conhecimento do ser humano”, introduzida no início do século XX pelo austríaco Rudolf Steiner, é uma ciência espiritual moderna e prática que propõe uma forma livre e responsável de pensar, de perceber a realidade e de atuar, observando e respeitando o ser humano e a realidade na qual está inserido. (STEINER, 1997).

13. No capitalismo clássico, os bens materiais são o que definem o valor do ser humano, pois os valores são propriedade do indivíduo, e não da sociedade (GHOSH, 2018).

14. Art. 54-A, §3º do CDC: o disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento ou decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.

15. Projeto 283/12 de autoria do senador José Sarney, que ensejou a Lei n.º 14.181/21.

[1] Doutoranda em Direito, Mestre em Direito, Especialista em Direito Processual Penal, Especialista em Direito Processual Civil, Graduada em Direito.

Enviado: Outubro, 2021.

Aprovado: Dezembro, 2022.

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