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O critical legal studies na visão de Duncan Kennedy

RC: 151023
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/critical-legal-studies

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

LIRA, José Ricardo Pereira [1], YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato [2]

LIRA, José Ricardo Pereira. YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. O critical legal studies na visão de Duncan Kennedy. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 01, Vol. 01, pp. 47-70. Janeiro de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/critical-legal-studies, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/critical-legal-studies

RESUMO

O presente artigo trata da teoria da decisão judicial na ótica do movimento estadunidense de esquerda intitulado Critical Legal Studies, ou, em português, Estudos Jurídicos Críticos. O movimento é confrontado com correntes positivistas e pós-positivistas construídas a contar da doutrina de Hans Kelsen, voltada à segregação entre direito e moral. Conquanto as teses do Critical Legal Studies partam de diferentes ângulos de visada, ora emergindo da crítica ao liberalismo econômico e político, ora dos fundamentos estruturantes da luta feminista ou do enfrentamento ao racismo, entre outras frentes de combate à discriminação de pessoas, este estudo está inspirado na opinião de Duncan Kennedy, posta em Izquierda Y Derecho – Ensayos De Teoría Jurídica Crítica, compêndio com quatro artigos desse autor, que apresenta crítica ao direito fundada na premissa de que decisões judiciais resultam sempre da posição ideológica dos juízes, inexistindo neutralidade destes no momento da aplicação da lei. Direito é política. A neutralidade do direito é um mito.

Palavras-chave: Critical Legal Studies, Hermenêutica, Teoria da decisão judicial, Direito e moral, Duncan Kennedy.

1. INTRODUÇÃO

Duncan Kennedy, cujo pensamento na ótica da teoria da decisão judicial constitui o alvo do presente artigo, é jurista contemporâneo e professor emérito da universidade de Harvard. De acordo com as informações da instituição americana, Duncan Kennedy ocupa a posição de professor catedrático da jurisprudência geral[3], sendo um dos fundadores do movimento designado como “Estudos Jurídicos Críticos”, ou em inglês Critical Legal Studies, identificado pela sigla CLS (Freitas Filho, 2007).

Vale mencionar que o Critical Legal Studies não constitui, propriamente, uma teoria ou escola de direito, tratando-se, em classificação mais adequada, de um movimento, composto por um conjunto heterogêneo de autores, os quais, recorrendo a diferentes suportes teóricos, ocupam-se de uma vasta série de problemas, pertencentes a campos de estudo distintos.

Não raro oferecendo soluções díspares e até contraditórias, os integrantes do movimento possuem, em comum, a posição crítica de esquerda à doutrina jurídica liberal, questionando a neutralidade do direito, ao imputar viés político e ideológico aos juízes, quando da aplicação das leis aos conflitos que lhes são submetidos.

Cabe assinalar, destarte, que o propósito primordial e sine qua non do CLS reside no questionamento radical da neutralidade do direito. Para os componentes do movimento, são ilusórios os estudos produzidos por teóricos como Kelsen, Hart, Dworkin e outros, no intuito de legitimar decisões judiciais proferidas em ambiente de incerteza no momento da aplicação do direito.

No ver do CLS, positivistas e pós-positivistas, com suas sofisticadas teorias, olvidam a realidade da vida, no tocante à atividade judicial, que se revela pautada por incontornável parcialidade dos juízes, profissionais que, de forma consciente ou involuntária, agem sempre a serviço do liberalismo, produzindo decisões que, invariavelmente, acabam por acarretar a preservação de privilégios e a perenização de desigualdades e opressões.

Curial situar o Critical Legal Studies no tempo. O movimento teve origem no século 20, final dos anos 60, início dos 70, sob a efervescência social então vigente nos Estados Unidos, fruto dos protestos contra a Guerra do Vietnã e da Luta pelos Direitos Civis.

Outra influência importante para o florescimento do CLS relacionou-se à formação da nova esquerda ocidental, a partir dos anos 1960, com os movimentos contraculturais antirracistas, feministas e de liberação sexual. Eis um retrato da atmosfera da época:

O ano de 1968 foi particularmente complicado nos Estados Unidos, devido à proliferação de protestos, que promoveram o caos e a marca definitiva de uma geração, conceito cronológico formatado e repisado naquele tempo, quando era lugar comum falar-se de choque de gerações, tema caro à psicologia e à pedagogia. À bem-comportada moda musical dos anos 40 (The Andrew Sisters, por exemplo) contrapõe-se uma tendência de protestos embutidos em canções, para todos os gostos, que transitavam do folk music (Bob Dylan, Joan Baez), para a invasão britânica (Beatles, Rolling Stones, Kinks, The Who), para o folk rock (Donovan, Byrds), para a apologia do uso de drogas (Jimmi Hendrix, Janis Joplin, The Doors). Todos eles, de uma forma ou de outra, acabaram cooptados pela indústria cultural: venderam-se aos donos e patrocinadores do templo (Godoy, 2007a).

Com gênese acadêmica, alheia a iniciativas partidárias, sindicais e congêneres, o CLS teve aparição espontânea, com epicentro em Harvard, logo coadjuvada por Yale, para daí espraiar-se pela comunidade universitária norte-americana, organizando-se, de modo oficial, como grupo, em 1977, em conferência realizada em Wiscosin, Madison (Godoy, 2007b).

O caráter plural do movimento constitui outra de suas marcas distintivas, assim pronunciando-se Renata Possi Magane sobre o tema:

Vale ressaltar que o movimento identificado como Estudos Jurídicos Críticos é bastante plural, razão pela qual, entre eles, há aqueles que problematizam o liberalismo a partir de visões marxistas (tanto autores da crítica racial como da crítica feminista), apontando que todas as opressões são extensões decorrentes do problema central do modo produtivo do sistema capitalista; por outro lado, um número significativo de autores é antimarxista, pois defendem que nem todas as hierarquias de dominação são resultado do sistema de opressão capitalista, como algumas feministas que apontam que a teoria marxista desconsiderou por completo os problemas de gênero, não tratando, por exemplo, da exploração do trabalho doméstico, considerado como reprodutivo não remunerado (Magane, 2022).

Com essas noções introdutórias, passemos a uma breve exposição das principais teses que conformam as diferentes teorias da decisão judicial especialmente atingidas pela crítica veemente do movimento CLS.

2. O POSITIVISMO E O PÓS-POSITIVISMO SOB O CRIVO DO CLS

Como já afirmado, para o Critical Legal Studies, direito é política e, portanto, para o movimento, toda a atividade inerente à elaboração de decisões judiciais realiza-se sob influência da ideologia do aplicador do direito.

Segundo o CLS, a parcialidade da atividade jurídica prevalece não apenas por ocasião da prolação da decisão pelos magistrados, mas também no momento da elaboração de leis por parlamentares e da edição de regulamentos por governos.

No exercício de suas atribuições, todos – magistrados, parlamentares e agentes governamentais – estão atrelados a suas convicções político-ideológicas, que se revelam, no caso norte-americano, iniludivelmente, em defesa do liberalismo, circunstância que, no ver do CLS, implica, sempre, em regalias e benesses para as classes dominantes e em exploração e abusos contra os grupos vulneráveis.

Como o foco de atenção deste estudo dirige-se à atividade jurisdicional, sem perquirições quanto à produção normativa do Legislativo ou do Executivo – instituições que, por vocação, obram em função da política, a análise que se segue ocorrerá no campo da teoria da decisão judicial.

Assim, auxilia na compreensão do CLS ter presente, em breves linhas, os contornos das principais teorias que lidam com a neutralidade do direito, que vem de ser o objeto da crítica visceral do movimento intelectual de que aqui se cuida.

Inicie-se pelo pensamento de Hans Kelsen, o jurista mais importante do século 20, na prestigiada opinião de Roberto Mangabeira Unger (2017). Em sua obra magistral Teoria Pura do Direito (Kelsen, 2009), ainda na dicção do jurista brasileiro, o teórico alemão fixa o pressuposto de que “o direito é um sistema hierárquico de regras que conferem forma geral à vontade do poder soberano” (Op. cit., P. 61).

Perseguindo a racionalidade do direito, com a pretensa segregação entre este e a moral, admite Kelsen que, no seu sistema hierárquico de regras, ao aproximar-se do momento da aplicação do direito ao caso concreto, o juiz depara-se com uma moldura jurídica que compreende, dentro da legalidade, mais de uma solução para a demanda em julgamento.

Segundo Kelsen, a ausência de uma única resposta correta para cada conflito não compromete a legitimidade do direito, sendo da natureza mesma do sistema que o juiz, autorizado pela lei, proceda a uma escolha político-jurídica, dentro da moldura, dali colhendo a melhor solução para o caso sob sua jurisdição.

Assim pronunciou-se o jusfilósofo alemão sobre o delicado aspecto de seu projeto hermenêutico:

[…] dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral (Apud MAGANE, op. cit., p. 152).

Saliente-se que, segundo a teoria de Kelsen, a opção do juiz por uma das alternativas contidas na moldura – cujo formato deriva, ora da discricionariedade intencional da lei[4], ora da imprecisão semântica da norma aplicada no processo decisório[5] – não compromete a legitimidade da decisão judicial.

Com efeito, a necessidade de escolha entre várias possibilidades de decisão compatíveis com a lei constitui elemento estrutural do modelo kelseniano, atuando o juiz, ao escolher a solução que entende mais adequada ao caso concreto, investido de autoridade conferida pela lei.[6] Dir-se-ia, no jargão, que sua atividade se desenvolve “nos termos da lei” e, portanto, sem arbitrariedade (Soares, 2017).

O britânico Herbert Hart apresenta-se como o homólogo de Kelsen nos países anglófonos (Unger. Op. cit., p. 239). Sua obra, também monumental, O Conceito de Direito, (Hard, 2009), impactou, com vigor, a comunidade jurídica mundial.

Em releitura de Kelsen, a indeterminação do direito, que o germânico remete à moldura jurídica, passa a ser enfrentada por Hart na zona de penumbra que se forma em decorrência da flexibilidade ou imprecisão da linguagem adotada na formação do direito, ou, na terminologia do autor, em razão da textura aberta da(s) regra(s) atraída(s) para o julgamento dos chamados casos difíceis.

Na teoria hartiana, conflitos de menor complexidade, ou casos fáceis, posicionam o juiz, no instante da aplicação do direito, em uma zona de foco, onde a decisão a ser prolatada tende a possuir apenas uma única solução aderente ao direito, cumprindo ao juiz adotá-la, sob pena de violação da lei. [7]

Diversamente, nos casos difíceis, a textura aberta da regra submete o juiz ao dever de exercer o que Hart designa discricionariedade judicial, competindo ao magistrado – também aqui, “nos termos da lei” – optar por uma entre as alternativas de decisão insertas na zona de penumbra, todas em conformidade com o direito.[8]

Discípulo de Hart, o norte-americano Ronald Dworkin contraditou o mestre, arrogando caráter antidemocrático à discricionariedade judicial e questionando a premissa posta em sua obra de que o direito corresponderia a um conjunto de regras.[9]

Na visão de Dworkin (2014), ao limitar o conceito de direito a um conjunto de regras passíveis de um simplório juízo de “certo ou errado”, ignorando a existência e a relevância de princípios jurídicos, Hart teria sido arrastado, por força do equívoco de premissa, para a necessidade de recurso à discricionariedade judicial, relativamente aos casos difíceis.

Afinal, para Dworkin, o direito não se restringe a essa coletânea de regras simplórias, consistindo, ao revés, em uma universalidade composta por regras, princípios e precedentes judiciais de que resulta a integridade do direito (Pedron, 2013), a impedir o surgimento, no sistema jurídico, de lacunas cuja solução pudesse submeter-se à discricionariedade judicial.[10]

Outras teorias da decisão judicial, todas elaboradas por notáveis filósofos do direito, poderiam ser aqui sumariadas, com o propósito de demonstrar o processo histórico em curso, desde a chegada da Teoria Pura do Direito, com o objetivo de construir um modelo hermenêutico capaz de verdadeiramente segregar o direito da moral, ou que admita alguma intercessão entre estes, sem, porém, jamais aceitar uma decisão judicial maculada pela vontade individual do julgador, segundo seus valores pessoais e arbitrários, gerada nos meandros cerebrinos de seu universo psicológico particular.

Seria o caso de recorrer a Robert Alexy (2001), jurista alemão, pós-positivista que, acolhendo a essência das proposições dworkinianas e, perfilando-se ao pós-positivismo, propõe um método de ponderação de valores para solucionar hipóteses de colisão de princípios, apontando critérios inovadores para o uso de precedentes nessa hipótese (González, 2018).

De acordo com Heitor Moreira Lurine Guimarães (2021), poderíamos mencionar outros ainda, como o canadense Wilfrid Waluchow e seu positivismo inclusivo, que o jurista conjuga com a jurisdição constitucional e os direitos fundamentais, ou ainda o israelense Joseph Raz, adepto do positivismo exclusivo, teoria segundo a qual a autoridade é a fonte suprema do direito (Dimoulis, 2017; Coelho, 2016).

Para os efeitos deste estudo, entretanto, basta que se tenha em vista o extenuante e sincero esforço da filosofia do direito contemporânea para erigir um sistema de aplicação da norma ao fato com a menor interferência possível da opinião individual do julgador, quando verificada a indeterminação do direito.

Essa indeterminação, enfrentada nos regimes da moldura jurídica kelsiana, da zona de penumbra hartiana, da escolha entre princípios à luz da moral coletiva e objetiva de Dworking etc., é também estudada segundo o grau de formalismo e antiformalismo das diferentes teorias da decisão judicial, classificação que alcança o movimento CLS.

Pela singularidade do Critical Legal Studies em tal estruturação de correntes hermenêuticas, vale conhecer sua posição nessa gradação específica, antes de avançarmos para a doutrina de Duncan Kennedy, no que toca à indeterminação do direito.

3. TEORIAS DA DECISÃO JURÍDICA: DO FORMALISMO AO ANTIFORMALISMO

Sabe-se que o estudo da aplicação do direito, no que tange à determinação ou à indeterminação das normas jurídicas, foi objeto de diversas teorias, desde o século 19, como desdobramento das revoluções liberais, até a contemporaneidade.

Como assinala Renata Possi Magane (2022), forte em André Coelho, essas teorias, para fins didáticos, são classificadas em dois grandes grupos, os formalistas e os antiformalistas, nas seguintes bases: de um lado, como formalistas, postam-se os teóricos que acreditam que a decisão judicial se limita a interpretar o direito tal qual posto pelo Estado; de outro lado, estão os antiformalistas, para os quais a decisão judicial não apenas interpreta, mas também cria o direito.[11]

Ditos grupos são ainda divididos em quatro subgrupos, a saber: a) formalismo radical; b) antiformalismo radical; c) antiformalismo moderado; e d) formalismo moderado.

O propósito dessa classificação é o de permitir a compreensão do CSL como um movimento formado por antiformalistas críticos, ou seja, um quinto subgrupo, que se alinha com os que sustentam que o juiz cria direito. Vejamos, então, cada um desses subgrupos.

O formalismo radical é composto por teorias positivistas desenvolvidas a partir do século 19, também conhecidas como positivismo clássico. A Escola da Exegese francesa representa essa corrente, que surgiu no período das grandes codificações legislativas, como o Código Napoleão, de 1804, no período pós-revolucionário francês, sob inspiração de Savigny.

Outro exemplo de positivismo clássico encontramos na chamada Jurisprudência dos Conceitos ou Pandectismo Alemão, que despontou após a codificação civil germânica, cujo doutrinador mais conhecido é Rudolf von Ihering.

O positivismo clássico, cabe salientar, constitui corrente de especial relevância para o reconhecimento do alvo do CLS, na medida em que carrega, na sua gênese, a fonte do liberalismo no direito atacado pelo movimento.

Os formalistas radicais surgiram no século 19 como resultado das então recentes conquistas do Estado de Direito, em sua acepção liberal, aí despontando, sobretudo, a subordinação do poder político ao direito legislado.

Preocupação central do movimento é com a supremacia da vontade do legislador, no âmbito da doutrina da separação dos poderes. Para esses teóricos, ao juiz compete agir como “um servo da lei”, ou como “a boca da lei”, no dizer de Montesquieu.

Em caso de dúvida, resta ao juiz recorrer aos métodos clássicos de interpretação das leis, como o gramatical, sistemático, histórico e teleológico, estabelecendo essa corrente positivista premissas do tipo: as normas jurídicas não padecem de indeterminação; a interpretação só se justifica em raros casos de obscuridade, ambiguidade e vagueza; da correta interpretação da lei resulta uma única solução para cada caso.

Assim, diante da pergunta: “juízes e tribunais criam normas jurídicas?”, os teóricos formalistas radicais, subscritores do positivismo clássico, responderiam negativamente, pois, nessa concepção teórica, “o juiz boca da lei” não tem autoridade para criar direito (Magane, op. cit., p. 145).[12]

Passando ao extremo oposto, vejamos o antiformalismo radical. Nesse subgrupo está o realismo jurídico, movimento que guarda semelhança com o CLS, mas que com este não se confunde, como logo se verá.

Segundo essa corrente, na escolha entre as múltiplas possibilidades de interpretação do direito, haverá sempre um juiz contaminado por preferências subjetivas.

Pois bem. O realismo jurídico é um movimento intelectual do início do século 20 que se propôs a contestar o formalismo positivista clássico, denunciando, com base em pesquisa empírica, as influências extrajurídicas no direito, que não poderiam ser ignoradas.

Os membros desse subgrupo adotam relevantes premissas, com destaque para aquela segundo a qual as normas jurídicas comportam, sempre, incontáveis sentidos. Dependendo da argumentação que se faça sobre seu conteúdo, um mesmo caso concreto terá soluções distintas, inexistindo uma única resposta correta para cada litígio. A indeterminação do direito é a regra (Magane, op. cit., p. 147.).

Outro pressuposto interessante é o de que, antes de ser excepcional, a interpretação do direito é uma atividade ordinária, sendo necessária, inclusive, para a seleção do sentido da norma que se deseja empregar no caso concreto.

Assim, em face da profunda indeterminação do direito, a discricionariedade é, não apenas ilimitada, como inevitável, sem que as normas jurídicas logrem estabelecer qualquer vinculação entre seus comandos e as decisões judiciais. O magistrado, em suma, não estaria sujeito a qualquer controle da legalidade de seus atos.

Nessas condições, diante da pergunta “juízes e tribunais criam normas jurídicas?”, os teóricos antiformalistas radicais responderiam afirmativamente, já que os juízes não se sentem vinculados ao direito posto pelo Estado, podendo livremente escolher a solução a ser conferida ao caso pendente de decisão.

Ingressando no antiformalismo moderado, sua compreensão passa pelas ponderações já feitas brevemente acerca das teorias de Kelsen e Hart, para os quais a aplicação do direito não prescinde, nem da escolha político-jurídica do jurista alemão, nem da discricionariedade judicial de jusfilósofo britânico.

Pelas razões já expostas no tópico anterior, diante da pergunta “juízes e tribunais criam normas jurídicas?”, a resposta dos antiformalistas moderados seria afirmativa, na medida em que o juiz, ao ver-se forçado a optar por uma entre decisões disponíveis, cria o direito aplicado ao caso concreto.

Finalmente, o formalismo moderado, que abriga pós-positivistas como Dworkin e Alexy, ao sustentarem que, em qualquer circunstância, existe a solução única do direito, encontrável pela aplicação da regra ou princípio jurídico adequado ao caso.

Logo, diante da pergunta “juízes e tribunais criam normas jurídicas?”, os formalistas moderados responderiam negativamente, não havendo, para esses estudiosos, no ambiente jurídico, lacunas ou indeterminações, já que as regras e os princípios, coadjuvados pelos precedentes judiciais, franquearão, sempre, ao julgador, o encontro com a resposta única para o caso concreto, sem recorrer a escolhas político-jurídicas, ou a discricionariedades judiciais.

4. O CLS COMO CORRENTE ANTIFORMALISTA CRÍTICA

Apesar de certa semelhança com o realismo jurídico, o CLS, como mencionado, com ele não se confunde (Magane, op. cit., p. 227.). A razão para tanto é: a maioria dos realistas, ainda que contrários ao positivismo clássico do século 19, era constituída por pessoas politicamente identificadas com a democracia liberal.

Os componentes do CLS, reversamente, distinguem-se pela oposição ao liberalismo, atribuindo a essa ideologia a responsabilidade pela dominação política imposta pela classe dominante aos grupos vulneráveis da sociedade.

Wayne Morrison, recorrendo a Alan Hun, em citação de Renata Possi Magane (Op. cit., p. 227.), oferece valiosa distinção entre o realismo jurídico e o CLS:

O desencanto realista com o formalismo jurídico era pragmático; a ortodoxia não oferecia respostas satisfatórias ao grupo social que os realistas procuravam representar. O formalismo não oferecia um rumo satisfatório aos profissionais do direito preocupados com o aumento de sua capacidade de prever o resultado dos litígios, nem uma estrutura que atendesse às preocupações políticas dos legisladores. Os acadêmicos ligados aos CLS não têm essas preocupações pragmáticas; não procuram articular as preocupações dos profissionais praticantes ou dos legisladores, ou, em termos gerais, dos que estão “inseridos” no processo legal. Esses acadêmicos são motivados por um objetivo político muito mais amplo, dentro do qual “o problema” propriamente dito é “o direito”; não se considera que o direito seja capaz de resolver os problemas dos quais parece tratar. Ao contrário, veem-no como uma parte importante do complexo conjunto de processos que reproduz a experiência e a realidade da subordinação e da dominação humanas; portanto, a preocupação mais ampla com as condições e possibilidades da emancipação humana constitui a perspectiva política dominante do movimento.

Dito isto, diante do fundamento adotado pelo CLS, ao concluir que o juiz cria direito, o movimento enquadra-se no subgrupo antiformalista, porém, nem radical, nem moderado, mas crítico, por isso que sustenta ser a ideologia a fonte da criação do direito, assim formando a quinta categoria de teóricos da decisão judicial.

5. O OBJETO DA CRÍTICA DO CLS

A crítica do CLS às posições dos hermeneutas em geral volta-se, em essência, contra o liberalismo e as teorias econômicas que lhe são correlatas. De fato, com ponderável preponderância, a partir da combinação entre realismo jurídico e marxismo, os membros do movimento se propõem a desmentir o pensamento liberal.

O caminho pavimenta-se com o desmonte da ideia central dessa ideologia, no sentido de que os chamados materiais jurídicos oferecidos pelo direito – leia-se, a Constituição, as leis, as sentenças e afins –, assim como o saber construído ao redor desses materiais – especialmente, a dogmática jurídica – são produtos técnicos, apolíticos e neutros na regulação social, sob o ideário do império da lei.

A neutralidade do direito, na verdade, seria uma máscara. Ao exercer uma função – só supostamente – técnica, o direito contribui para o surgimento de um regime político e econômico liberal, com as injustiças daí oriundas.

As normas jurídicas e os precedentes judiciais, ao lado da ciência jurídica que os estrutura e sistematiza, constituem a superestrutura do capitalismo, gerando uma aparente institucionalidade inevitável na relação entre indivíduos e poder, ocupado este, invariavelmente, por servos da classe dominante.

Assim, o direito transforma-se em instrumento de dominação e alienação, assumindo funções de poderosa ferramenta a serviço do liberalismo, cuja compreensão, segundo Wayne Morrison, deve partir do questionamento dos seguintes pressupostos (Apud Magane, op. cit., p. 229.):

(i) O pressuposto da neutralidade do direito. Para o movimento CLS, porém, essa separação entre direito e política é teoricamente falsa e desorientadora para o povo. O liberalismo é tido como mistificador no sentido de presumir que o direito pode, de alguma forma, ser normalmente invocado pelos indivíduos contra o Estado, ainda que seja criação deste. (ii) O pressuposto de que a razão jurídica é, de alguma forma, uma questão não problemática. Os Estudos Jurídicos Críticos tomam o lugar da crítica da ideia de uma “lógica jurídica” politicamente neutra, isto é, da ideia de que pode haver uma análise jurídica que não seja, em algum sentido, politicamente orientada ou ligada a agendas políticas. (iii) O pressuposto de que as leis são dados positivos da vida social, isto é, que têm significados objetivamente determinados que não se pode, na verdade, contestar; que sua validade e importância são determinadas por métodos objetivamente inquestionáveis.

André Coelho indica os quatro principais temas atacados pelo CLS: as normas jurídicas vigentes; o modelo tradicional de interpretação e decisão jurídica; a dogmática jurídica tradicional; e o ensino jurídico tradicional (Apud Magane, Op. cit., pp. 228 a 230).

Centrado na premissa de que o liberalismo é o responsável pela produção e preservação de estruturas geradoras das desigualdades sociais e econômicas, André Coelho (2020) aponta o entendimento do CLS no sentido de que as normas jurídicas:

a) refletem os vieses conservadores e opressores da tradição política e jurídica do liberalismo; b) tendem à reprodução do status quo e dificultam seu questionamento e transformação; e c) escondem sob a linguagem neutra formas diversas de reprodução de opressão a grupos marginalizados.

A crítica do CLS ao modelo tradicional de interpretação e decisão jurídica é assim sumariada pelo mestre e jusfilósofo brasileiro:

a) parte do pressuposto de unidade e consenso valorativo do sistema jurídico, escondendo os conflitos e os potenciais de luta e resistência existentes no próprio direito; b) parte do pressuposto de separação entre direito e política, criando a falsa impressão de que são possíveis decisões técnicas e neutras, que na verdade possuem claro e indiscutível viés conservador (Coelho, 2020).

O questionamento à dogmática jurídica tradicional, a seu turno, baseia-se na tentativa de interpretar o sistema jurídico como unitário, consensual e racional, perpetuando, com a doutrina, visões conservadoras. Quanto ao ensino jurídico, o tema é versado pelo movimento em exame nas seguintes bases:

Quanto ao quarto foco, por fim, o ensino jurídico é responsável por estimular uma visão que, do ponto de vista explícito, é despolitizada e pseudotécnica, enquanto, do ponto de vista implícito, é liberal e conservador, bem como é excessivamente professoral, vertical, conteudista, abstrato, reprodutor da ideologia dominante e formador de técnicos burocratas, impedindo que os conflitos sejam percebidos e que os juristas sejam atores emancipatórios dentro de uma sociedade permeada por marcadores de desigualdade e opressão. Nesse sentido, favorece um comportamento hierárquico, de subserviência à autoridade dos que têm poder, reproduzindo no exercício da profissão a lógica da perpetuação da mentalidade arrogante e de superioridade que privilegia uma pequena parte dos abastados em suas respectivas áreas de atuação (Coelho, 2020).

6. O PENSAMENTO DE DUNCAN KENNEDY

Como um típico intelectual do movimento CLS, Duncan Kennedy declara, enfaticamente, que a interpretação das normas jurídicas constitui atividade que se desenvolve no campo das disputas políticas, premissa que, por si só, invalida qualquer teoria atributiva de neutralidade ao processo de aplicação do direito. Renata Possi Magane expõe o agudo pensamento do jurista, em síntese precisa:

O discurso tomado como neutro por um pretenso juiz imparcial esconde, em verdade, certa posição ideológica, normalmente identificada na prática jurídica com o liberalismo político, alicerçando a sociedade burguesa e a economia de mercado capitalista, assim perpetuando as desigualdades (Magane, Op. cit., p. 232.).

No âmbito de sua crítica ao direito, Duncan Kennedy (2010) apresenta, no artigo “Uma alternativa fenomenológica de esquerda à teoria da interpretação de Hart e Kelsen”[13], peculiar conceito de trabalho jurídico, dotado de especial significado para o desenvolvimento de sua doutrina, assim posto:

Trabalho jurídico, como eu estou usando o termo, seja dirigido a núcleos ou a molduras, ou a penumbras ou conflitos ou lacunas, é utilizado ‘estrategicamente’. O trabalhador pretende transformar uma apreensão inicial do que o sistema de normas requer, dados os fatos, de modo que uma nova apreensão do sistema, como ela se aplica ao caso, corresponderá às preferências extrajurídicas do trabalhador interpretativo (Kennedy, 2010).

Estratégia, então, torna-se a palavra-chave. Para Duncan Kennedy, com a tática engendrada para fazer valer sua preferência extrajurídica, por meio da interpretação do material jurídico, o magistrado arvora-se na oportunidade de optar, discricionariamente, por determinada decisão jurídica, tanto em casos fáceis como difíceis, quer na penumbra, quer na zona de foco hartiana, seja dentro ou fora da moldura de Kelsen.

Efetivamente, mesmo que um caso se adéque à zona de foco da regra, ou situe-se fora da moldura, não prevalecerá a premissa positivista de que, em tais condições, as normas são determinadas, porquanto, a depender do trabalho jurídico desenvolvido pelo intérprete, um mesmo caso pode, ou não, figurar na zona de penumbra, ou da moldura.

Provirá do viés ideológico do julgador, enfim, o Norte para a interpretação da norma, de modo que a estratégia empregada para que o fim almejado seja alcançado constituirá, em última ratio, a virtual fonte do direito.

É fato que, no dizer do autor, “a escola dos estudos críticos jurídicos, como eu a entendo, aceita por completo a ideia positivista de que o direito é algumas vezes determinado e outras indeterminado”. Há, porém, uma ressalva fundamental nessa assertiva:

O CLS rejeita tanto a ideia de indeterminação global como a ideia de que sempre há uma interpretação correta, não importa quão obscura ou difícil de alcançar. Porém, também rejeita a ideia de que a determinação e a indeterminação são ‘qualidades’ ou ‘atributos’ inerentes à norma, independentemente do trabalho do intérprete (Duncan, 2013).

Significa dizer que o trabalho do intérprete não consiste em descobrir e revelar a “essência da norma”, já que esta não possui uma essência objetiva e impessoal. As “qualidades” ou os “atributos” da norma são, necessariamente, determinados pelo olhar do intérprete, sempre impregnado de preferências extrajurídicas.

Em realidade, para Duncan Kennedy, a indeterminação (como a determinação) do direito não é um atributo derivado da essência da norma, observando-se que a dificuldade em sua aplicação pode não resultar de sua deficiência, mas da forma como o fato é submetido ao julgador, ou advir de características peculiares à pessoa do intérprete (Barroso, 2022).

Para Duncan Kennedy, uma vez que não existe um direito neutro, não há ilegitimidade em seu uso estratégico, procedimento que, justo pela ausência da neutralidade, é logicamente necessário e inevitável.

Não por outro motivo, para o CLS, ao tentar dar ao direito ares de neutralidade, o intérprete dissimula a realidade, escondendo, ainda que sem consciência, seu desejo de resolver o caso segundo as expectativas do liberalismo.

Uma estratégia comumente adotada por juízes, com esse anseio, manifesta-se na invocação solene – mas vazia – à separação dos poderes, como se a ideologia pudesse confinar-se em um espaço reservado ao legislador, democraticamente eleito para criar o direito, limitando-se o julgador a aplicá-lo, com servilismo, sem inclinações subjetivas.

Salienta Duncan Kennedy que, sem jamais despir-se do parti pris em prol do liberalismo, a magistratura norte-americana tem por prática a manutenção de postura estratégica em relação às duas principais correntes políticas do país: os conservadores do Partido Republicano e os liberais do Partido Democrata; respectivamente, a direita e a esquerda locais.

Com essa perspectiva, os juízes são classificados em três modelos, o juiz ativista, o juiz mediador e o juiz bipolar, com características distintas, mas entregas de resultados semelhantes: a garantia da prevalência dos ideais liberais e a preservação de privilégios e desigualdades.

Pois bem. O juiz ativista é aquele que conhece a regra aplicável ao caso e sua interpretação adequada, com respeito aos respectivos precedentes. Todavia, acredita que, naquele caso, fosse o legislador, conceberia solução diferente e, então, procura uma regra de exceção.

A rigor, o juiz ativista não tem intenção de contrariar a lei, mas constrói uma justificativa plausível e ideologicamente conservadora, ainda que diferente de sua efetiva opinião técnica sobre a solução jurídica do caso.

Significa dizer que sua sentença tem fundamento, porém extrajurídico, divorciado dos materiais jurídicos atraídos pelo caso. A preferência do juiz é por uma norma em lugar de outra, sem relação com a hipótese sob julgamento.

Vale dizer que a aplicação do direito nada tem de neutra. Seu propósito é o de substituir uma norma injusta por uma justa. O resultado desse julgamento será diferente, conforme o juiz seja conservador ou liberal. Em qualquer cenário, contudo, a decisão será política e jogará por terra o mito da neutralidade idealizado por positivistas e pós-positivistas.

Agora, o juiz mediador. Este procura sempre uma solução entre a posição dos liberais e a dos conservadores. Posiciona-se como um moderado. Há uma ideologia, de rejeição às posições polarizadas. O juiz mediador não deixa de estar manietado pela ideologia.

Por fim, surge o juiz bipolar, que adota tanto posições conservadoras quanto liberais, alternando ideologias ao longo do tempo. Não pertence a um dos campos ideológicos, sendo, não obstante, pautado, caso a caso, por um dos lados do espectro político. Mais uma vez, a aplicação do direito passa ao largo da neutralidade.

Merece rápido comentário a interpretação do comportamento estratégico da magistratura. Segundo consta, pesquisas dedicadas a identificar qual teria sido a decisão de cada um dos três juízes, não fosse o viés político, revelaram-se estéreis, uma vez que a atitude engajada de cada julgador influencia até a configuração da moldura ou da zona de penumbra, como aponta Duncan Kennedy, in verbis:

Assim, o trabalho faz mais do que preencher dinamicamente a moldura ou a penumbra com escolhas estrategicamente determinadas de normas. A ideologia influencia o trabalho, que influencia as molduras e núcleos, os quais, por sua vez, proporcionam, de uma visão coerente, meios para futuras desestabilizações de outros núcleos e molduras (Duncan, 2013).

Digno de registro, ainda sobre a inevitabilidade da indeterminação do direito, a ocorrência do chamado filtro fenomenológico. Para Duncan Kennedy, a maneira como interpretamos uma norma – e o caso pertinente – “depende de uma série de convicções e valorações que carregamos conosco sobre os indivíduos, a sociedade, o Estado e o papel do Direito e da coerção.” (Idem supra).

Ou seja, além da ambiguidade da norma, ou da perversão de fatos por quem submete um caso a julgamento, entre outros embaraços, a angústia da incerteza do direito pode advir, também, do filtro fenomenológico do julgador, indivíduo que carrega consigo convicções e valorações acerca de tudo que o cerca, em uma sociedade entupida de preconceitos.

Em suma, pelo quanto exposto até aqui, resta evidente que, sob o prisma do CLS, se para atender o aspecto ideológico de uma demanda o juiz necessitar que um caso difícil seja transformado em caso fácil, assim será feito. No mesmo sentido, se em determinado processo hermenêutico o intérprete se encontrar na zona de penumbra, mas precise caminhar para a zona de foco, visando a atender reclamo de sua posição ideológica, assim será feito.

Na verdade, para o Critical Legal Studies, os casos de modo geral estão todos adrede decididos, segundo a posição político-ideológica do julgador, que, atado a sua decisão prévia, procura, depois, os fundamentos para que se lhe conceda a possível aparência de legitimidade.

Cabe, ainda, breve menção à alegação de que o CLS adotaria uma posição excessivamente radical em relação à indeterminação do direito, mediante transcrição de interessante argumentação de Duncan Kennedy, trazida à baila por Renata Possi Magane:

Em defesa das críticas de que os Estudos Jurídicos Críticos adotam uma visão radical da indeterminação, deixando de reconhecer que na maioria dos casos os juízes agem de certo modo convergente, inexistindo conflito de razões entre eles e o que a norma determina (a maioria dos casos, segundo Hart), Kennedy afirma que o fato disso acontecer não está no elemento cognoscível, cuja essência torna a determinação não problemática, mas porque, nessas hipóteses, é possível antecipar que nenhum trabalho será feito para desestabilizar a apreensão inicial, pois, em geral, o Judiciário é ideologicamente orientado pela mesma ideologia dominante na qual as normas são criadas, sendo despiciendo trabalha-las para alterar o seu sentido, numa direção oposta (Magane, op. cit., pp. 235 e 236).

7. CONCLUSÃO

Direito é política. Logo, a neutralidade do direito é um mito. Eis, em apertada síntese, o fiel retrato do pensamento do Critical Legal Studies, incluindo o de seu ilustre membro Duncan Kennedy, estando descartadas, para esses intelectuais, sem exceção ou condescendência, todas as teorias da decisão judicial positivistas e pós-positivistas sumariamente descritas em tópicos anteriores. É a conclusão que se extrai do estudo do movimento CLS e de seu fundador aqui nomeado, s.m.j.

Ressalte-se, por derradeiro, que o Critical Legal Studies, com sua crítica radical ao liberalismo, pretende exercer um papel emancipatório, ao denunciar as formas de opressão a grupos minoritários, assim como o uso estratégico do direito, em desfavor dos marginalizados, ocultando assimetrias sob a falácia de sua neutralidade.

REFERÊNCIAS

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DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: significado e correntes. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/autor/274/dimitri-dimoulis>. Acesso em: 04 jan. 2024.

DUNCAN, Kennedy. Uma alternativa fenomenológica de esquerda à teoria da interpretação de Hart e Kelsen. In: FARO, Julio Pinheiro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo (org.) A diversidade do pensamento de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

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GUIMARÃES, H. M. L. Positivismo inclusive e árvore viva: um casamento teórico. Revista Jurídica do Cesupa, v. 2, p. 1-15, 2021. Disponível em: <http://periodicos.cesupa.br/index.php/RJCESUPA/article/view/10>. Acesso em: 04 jan. 2024.

HARD, H. L. A. O conceito de direito. 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2009.

KENNEDY, Duncan. Izquierda Y Derecho – Ensayos De Teoría Jurídica Crítica. 1ª ed. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. Coletânea de artigos dirigida por GARGARELHA, Roberto e BERGALLO, Paola. Tradução: Guillermo Moro.

MAGANE, Renata Possi. Hermenêutica jurídica feminista: decisão judicial na perspectiva da teoria crítica. 2022. P. 231. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo – SP, 2022. Disponível em: <https://repositorio.pucsp.br/bitstream/handle/30983/1/Renata%20Possi%20Magane.pdf>. Acesso em: 04 jan. 2024.

PEDRON, Flávio Quinaud. A proposta de integridade para o direito de Ronald Dworkin.: Como casos podem ser decididos à luz de uma “resposta correta”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23808. Acesso em: 4 jan. 2024.

SOARES, Marcos Antônio Striquer. A decisão judicial em Hans Kelsen e a tradição do cartesianismo. Rev. Bras. De Est. Poli., v. 114, 2017. Disponível em: <file:///C:/Users/jlira/Downloads/298-Texto%20do%20Artigo-1470-1-10-20170217.pdf>. Acesso em: 04 jan. 2024.

UNGER, Roberto Mangabeira. O Movimento de Estudos Críticos do Direito: Outro Tempo, Tarefa Maior. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5468069/mod_resource/content/2/O%20Movimento%20de%20Estudos%20Cr%C3%ADticos%20do%20Direito.pdf>. Acesso em: 04 jan. 2024.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

3. Conferir https://hls.harvard.edu/faculty/duncan-m-kennedy/

4. Verbi gratia, a configuração de crime “infamante” – qualificação que não existe no direito penal – para efeito de admissão, ou não, de inscrição de advogado nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Cf. § 4º do art.  8º do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906, de 04.07.1994): “Art. 8º. Para inscrição como advogado é necessário: (…) VI – idoneidade moral; (…) § 4º. Não atende o requisito da idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial.”

5. Eventual norma que proíba o ingresso que animais domésticos em recintos comerciais não se aplicaria ao cão-guia, que conduz pessoas com deficiência visual, por incompatibilidade com o princípio constitucional da proteção da dignidade da pessoa humana, entre outros direitos fundamentais aplicáveis.

6. Na concepção de Kelsen, mesmo que o juiz decida à margem da moldura jurídica, a decisão, se não for desafiada por recurso, prevalecerá, extraindo sua legitimidade da autoridade que a lei confere ao juiz para solucionar conflitos. Conferir SOARES, Marcos Antônio Striquer. A decisão judicial em “Hans Kelsen e a tradição do cartesianismo. Disponível em: file:///C:/Users/jlira/Downloads/298-Texto%20do%20Artigo-1470-1-10-20170217.pdf”.

7. Como decidir sobre a tempestividade de um recuso, cujo prazo é expresso na lei.

8. Na teoria de Hart, o direito é um conjunto de regras composto por regras primárias e regras secundárias. As primárias são as “regras de obrigação”, que impõem condutas e abstenções às pessoas. As secundárias são as que, entre outras funções, determinam como as primárias podem ser criadas, eliminadas ou alteradas, prestando-se, assim, a legitimar a discricionariedade judicial, “nos termos da lei”. KOZICKI, Katya e PUGLIESE, Willian. O conceito de direito em Hart. Enciclopédia Jurídica da PUCSP, 2017. Disponível em: <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/137/edicao-1/o-conceito-de-direito-em-hart>.

9. Emblemático e sobremodo popular nos meios jurídicos tornou-se o embate travado entre Hart e Dworkin acerca do tema, a gerar um Pós-Escrito inserto em novas tiragens de O conceito de direito, publicadas após a morte de Hart, com o propósito específico de impugnar a crítica do Dworkin à discricionariedade judicial, esta divulgada na clássica obra Levando o direito a sério (3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, selo Martins – 2010. 7ª tiragem – 2021). Reagindo ao Pós-Escrito, Dworkin escreveu, em O império do direito (3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, selo Martins – 2014), um Apêndice denominado “Resposta aos críticos”. Esse outro livro do pós-positivista, também consagrado, aprimora, em diferentes aspectos, a teoria do autor.

10. Dworkin constrói duas importantes alegorias para explicar, em sua teoria da decisão judicial, o significado de integridade do direito, concebidas para afastar a discricionariedade judicial de Hart: a do juiz Hércules e a do romance em cadeira (cf. MAGANE, op. cit., p. 177). O modelo teórico do acadêmico estadunidense é complexo, pressupondo, entre outros elementos, a existência de uma moral coletiva e objetiva que a comunidade submetida ao direito, e não apenas o aplicador do direito, isoladamente, reconhece e admite como válida, em virtual consenso, atraindo para a decisão judicial a incidência dos correspondentes princípios jurídicos (cf. JEFFERSON, Luiz Alves Marinho. Teoria da integridade de Rolnald Dworkin: um olhar matemático para a tese da resposta correta. Disponível em: <file:///C:/Users/jlira/Downloads/14242-9098-1-PB.pdf>.

11. O tópico 3 deste artigo tem origem em MAGANE, op. cit., p. 219 e seguintes. Conferir, também, aulas do curso telepresencial de Introdução aos Estudos Jurídicos Críticos, organizado pelo Grupo de Pesquisa Pura Teoria do Direito, ministradas pelo professor André Luiz Souza Coelho. Disponíveis em: <https://www.google.com/search?q=andr%C3%A9+estudos+jur%C3%ADdicos+cr%C3%ADticos&oq=andr%C3%A9+estudos+jur%C3%ADdicos+cr%C3%ADticos&aqs=chrome..69i57j33i160.314411967j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:e03f71f5,vid:qGVHrjz-UyI> e <https://www.youtube.com/watch?v=7VdRuRPUQm8&t=2s>.

12. A classificação das teorias a partir da pergunta aqui formulada, que se repetirá ao longo deste tópico, foi extraída da tese de doutorado de Renata Possi Magane. Conferir, v.g., MAGANE, op. cit., p. 145.

13. Trata-se do segundo artigo da coletânea Izquierda Y Derecho – Ensayos De Teoría Jurídica Crítica. 1ª ed. – Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010. Dirigida por GARGARELHA, Roberto e BERGALLO, Paola. Tradução: Guillermo Moro. Os demais artigos são: o primeiro: El comportamiento estratégico en la interpretación jurídica; o terceiro: La distinción entre decisión judicial y legislacion; e o quarto: El constitucionalismo norteamericano como religión civil: notas de un ateo.

[1] Advogado, inscrito na OAB-RJ sob o nº 54.128, formado em Direito pela PUC-RJ em 1984, mestrando na PUC-SP (início em 2022.2). ORCID: https://orcid.org/0009-0002-1949-6520. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2120166492581612.

[2] Orientadora. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3049-8420.

Enviado: 14 de novembro de 2023.

Aprovado: 02 de janeiro de 2024.

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José Ricardo Pereira Lira

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