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Corrupção passiva como crime antecedente: a vantagem indevida recebida sempre configura crime de lavagem de dinheiro?

RC: 149969
318
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/corrupcao-passiva

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

AITH, Marcelo Gurjão Silveira [1], MARQUES, Oswaldo Henrique Duek [2]

AITH, Marcelo Gurjão Silveira. MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Corrupção passiva como crime antecedente: a vantagem indevida recebida sempre configura crime de lavagem de dinheiro?. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 11, Vol. 01, pp. 35-49. Novembro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/corrupcao-passiva, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/corrupcao-passiva

RESUMO

O escopo do presente trabalho é analisar a ocorrência ou não do crime de lavagem à luz de um caso concreto, tendo como crime de corrupção passiva como antecedente. para isso, será feita uma breve digressão ao caso concreto, expondo alguns elementos chaves para a compreensão da lide. Na sequência serão abordados aspectos gerais dos crimes de corrupção passiva e de lavagem. Por fim, enfrentar-se-á a questão central consistente na pergunta: exaurimento com obtenção de vantagem indevida sempre configura crime de lavagem?

Palavras-chave: Direito Penal Econômico, Corrupção Passiva, Lavagem de Dinheiro.

1. INTRODUÇÃO

Objetiva o presente artigo apontar o grave cenário jurídico consistente na inadequada utilização da Lei de Combate à Lavagem de Capitais pelas agências de repressão brasileiras, que acabam por imputar, inadvertidamente, a prática do crime de lavagem de direito, como se fosse mero apêndice dos crimes antecedentes. Tal fato decorreu da expansão do alcance do crime de lavagem, que inicialmente tinha como crimes antecedentes algumas condutas típicas específicas, mas, posteriormente, estendeu-se para toda e qualquer infração penal. Explica-se.

Com advento da Lei 9.613/98, tipificou-se como crime de lavagem, nos seguintes termos:

Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

II – de terrorismo (posteriormente, com a Lei 10.701/03, o inciso passou a ser: de terrorismo);

III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;

IV – de extorsão mediante sequestro;

V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; VI – contra o sistema financeiro nacional;

VII – praticado por organização criminosa.

Todavia, a Lei 12.683/2012, estendeu, substancial e excessivamente, os tipos antecedentes, conforme se extrai do caput do artigo 1º da Lei:

Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

No tocante ao crime de corrupção, há que se destacar que o Brasil é signatário da Convenção de Mérida, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e internalizada pelo Brasil pelo Decreto 5.687/2006:

DECRETA:

Art. 1º. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003 e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém.

Art. 2º. São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida Convenção ou que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição.

Art. 3º. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 31 de janeiro de 2006; 185o da Independência e 118o da República.

São esses instrumentos normativos que servirão de substrato para a análise do case a seguir abordado, para que ao final possamos responder a seguinte indagação: Todo produto do crime de corrupção passiva resulta na configuração do crime de lavagem de dinheiro?

O case trabalhado nesse artigo, consiste em uma denúncia formulada pelo Ministério Público de São Paulo contra um delegado de polícia, que teria, em tese, no exercício de seu mister, recebido vantagem indevida através de interposta pessoa, o que, na visão do parquet, perfectibilizaria a ocultação do produto do crime.

Com efeito, para uma análise, minimamente, adequada, sem desconsiderar a dificuldade do exame dos autos, uma vez que tramita em segredo de justiça, há necessidade do desdobramento do artigo em alguns capítulos. No primeiro capítulo farei um sobrevoo pelo caso, trazendo algumas informações importantes para a sua correta percepção. No segundo capítulo, tratei o conceito do crime de lavagem de direito e a análise do bem juridicamente tutelado pela norma, este ponto é de extrema relevância para verificação da ocorrência do crime de lavagem. O terceiro capítulo será dedicado ao estudo das fases que compõe o crime de lavagem de dinheiro e o exame da necessidade ou não da complementação de todas para a perfectibilização do delito. No quarto capítulo, será dedicado a enfrentar a questão: “O produto do crime antecedente sempre configura crime de lavagem?”. Por fim, na conclusão, procurarei apontar uma resposta a questão inicial.

2. SÍNTESE DO CASE

O case foi extraído da obra “Direito e Prática: Análises De Casos no Âmbito Penal Econômico”, especificamente do capítulo Corrupção passiva como crime antecedente: Exaurimento com obtenção de vantagem indevida sempre configura crime de lavagem? (Aith, 2022)

Aith aponta que a denúncia atribuiu a um agente público a prática do crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, consistente este delito no “pagamento da suposta propina ao delegado pela corruptora se efetivou por intermédio de financiamento de um veículo em nome de interposta pessoa, o que, na visão da acusação, configuraria o crime de lavagem de capitais” (Aith, 2022). Ou seja, o agente público teria recebido a vantagem indevida através de outra pessoa, o que, na visão do órgão acusatório, implicaria na tentativa de dissimular a propina recebida.

Cumpre destacar que tanto naquela obra como nesse artigo, não há o escopo de enfrentar a ocorrência do crime antecedente, mesmo porque o referido processo foi anulado pelo Superior Tribunal de Justiça, oportunidade em que a Corte reconheceu o flagrante cerceamento de defesa dos réus.

O objetivo do artigo é sim enfrentar o seguinte questionamento: Todo produto do crime de corrupção passiva resulta, incontinente, na configuração do crime de lavagem de dinheiro?

3. CONCEITO DO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO. A IMORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO TUTELADO

O crime de lavagem de dinheiro pressupõe, inequivocamente, a prática de uma infração penal antecedente, da qual resulte em bens ou valores que, para ocultar ou dissimular a sua origem ilícita, são praticados atos com escopo de mascarar a sua natureza, origem, localização, propriedade etc. O objetivo final é converter o ativo ilícito em lícito, reinserindo-o no mercado financeiro.

Portanto, são requisitos fundamentais para a configuração do crime de lavagem de dinheiro: i) bens, valores ou direitos patrimoniais resultantes de um crime antecedente; ii) a conduta de ocultar ou dissimular os bens, valores ou direitos patrimoniais resultantes de um crime antecedente; iii) necessidade de um nexo de causalidade entre o crime antecedente e os bens, valores ou direitos patrimoniais objetos da ação de ocultar ou dissimular e; iv) e o elemento subjetivo, consistente no dolo de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, do crime antecedente.

Pierpaolo Cruz Bottini define a lavagem de dinheiro, nos seguintes termos:

Lavagem de dinheiro é o ato ou a sequência de atos praticados para mascarar a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, valores e direitos de origem delitiva ou contravencional, com o escopo último de reinseri-los na economia formal com aparência de licitude (Badaró e Bottini, 2019).

O conceito trazido por Bottini se subsome, perfeitamente, ao estabelecido pela norma de regência e está em consonância com a doutrina nacional e estrangeira. No entanto, o ponto nodal a ser enfrentado nesse capítulo não é o conceito de lavagem de dinheiro, uma vez que a lei se incumbiu, minimamente, de fazer, mas sim o enfrentamento da questão atinente ao bem jurídico protegido pela Lei 9.613/96 e suas alterações.

Juarez Tavares assevera que a “violação do bem jurídico, pela produção de dano ou perigo, constituiu pressuposto de qualquer delito” (Tavares, 2022). Portanto, pode-se concluir que para a tipificação de uma conduta com crime – na lavagem não pode ser diferente –, há que ser, por primeiro, estabelecido qual o bem jurídico protegido e, na sequência, estabelecer as condutas ensejadoras da produção de dano ou perigo de dano. Assim, o crime somente irá se conformar quando o bem jurídico eleito for concretamente atingindo, quer pela geração do dano ou a sua exposição ao perigo.

Luiz Regis Prado, analisando a questão do bem jurídico no crime de lavagem de dinheiro, destaca que:

Sem dúvida alguma, uma das questões mais tortuosas da matéria veiculada é exatamente a do bem jurídico protegido. Inúmeras são as posturas doutrinárias a respeito, sendo prevalentes as que o consideram como sendo a Administração da Justiça e a ordem socioeconômica.

(…)

Acolhe-se a última posição; vale dizer, os bens jurídicos protegidos – de caráter transindividual – são a ordem econômico-financeira, o sistema econômico e suas instituições ou a ordem socioeconômica em seu conjunto (bem jurídico categorial), em especial a licitude do ciclo ou tráfego econômico-financeiro (estabilidade, regularidade e credibilidade do mercado econômico), que propicia a circulação e a concorrência de forma livre e legal de bens, valores ou capitais (bens jurídicos em sentido técnico) (Prado, 2018).

Bottini asseverou que “a ordem econômica não parece ser o bem jurídico diretamente protegido pela norma penal em comento” (Badaró e Bottini, 2019). Destacou, ainda:

Imagine-se um roubo a banco em consequência do qual seu autor adquira dinheiro suficiente para comprar um barco. Caso ele o compre diretamente, em seu nome, não haverá lavagem de dinheiro, mas mero exaurimento do crime. Por outro lado, se o valor for depositado em conta de terceiro, que efetua a compra em nome de empresa laranja, existirá lavagem de dinheiro.

Note-se que, se o barco for comprado pelo preço de mercado, em condições idênticas à aquisição do mesmo bem com recursos lícitos, a ordem econômica não será afetada por qualquer das condutas assinaladas. Ainda assim, no segundo caso haverá lavagem de dinheiro. Assim, a nota diferencial entre o primeiro e o segundo comportamento não é a turbação da ordem econômica, mas o escoamento do produto do crime. No primeiro caso não houve ocultação, blindagem do bem contra possíveis rastreamentos. Já no segundo, percebe-se o escamoteamento do dinheiro, que dificulta sua identificação. A única diferença entre as duas situações, capaz de justificar a punição pela lavagem de dinheiro na segunda, é sua distinta capacidade de afetar o funcionamento da Justiça. A ocultação no segundo caso subtrai o bem das vistas, prejudicou seu rastreamento, em suma, colocou em risco a administração da Justiça, embora não tenha afetado a ordem econômica. E isso justiça a punição pela lavagem de dinheiro, ainda que a conduta não tenha maculado o funcionamento da economia. Por isso, parece ser a administração da Justiça o bem protegido pela norma penal (Badaró e Bottini, 2019).

Não há dúvida que o entendimento esposado por Bottini está em consonância o espírito da norma de combate ao crime de lavagem de dinheiro brasileira.

De toda a sorte, o magistrado, ao analisar o caso posto a deslinde, deve mensurar o grau de perigo ou de dano que a conduta perpetrada pelo agente pode resultar à administração da justiça. Na hipótese trazida, o delegado de polícia teria recebido para si, vantagem indevida, consistente em um veículo financiado em nome da esposa, para atrasar o andamento de inquéritos policiais, com escopo de alcançar a prescrição.

A dúvida seria: o bem recebido pelo agente público, através de interposta pessoa, é exaurimento da corrupção passiva ou configura lavagem de dinheiro por ter recebido por interposta pessoal? O bem jurídico protegido pela Lei 9.613/96 sofreu dano ou perigo de dano? Para responder a essas indagações há que ser analisada as fases que compõe o crime de lavagem de capitais. No entanto, não se pode olvidar que o bem jurídico protegido pela Lei 9.613/96 é o sistema econômico e suas instituições ou a ordem socioeconômica.

4. AS TRÊS FASES DA LAVAGEM DE DINHEIRO

O ciclo completo da lavagem de dinheiro se distribui tem três fases: ocultação, dissimulação e a integração dos bens à economia formal. Aith destaca que “Não se pode olvidar que o objetivo final do processo de lavagem é a reinserção do capital à economia lícita” (Aith, 2022).

A primeira fase é a ocultação, sendo o movimento inicial para distanciar o valor de sua origem criminosa, com a alteração qualitativa dos bens, seu afastamento do local da prática da infração antecedente, ou outras condutas similares (Cordero, 2012). A doutrina nacional e estrangeira é farta em exemplos da primeira fase: pequenos depósitos de dinheiro em espécie, de forma fracionada, em várias contas, de diversas titularidades.

A segunda etapa é o mascaramento do capital. Após a ocultação dos bens e valores recebidos, o indivíduo utiliza de mecanismos para dissimular a origem fraudulenta, para tanto realiza diversas transações comerciais ou financeiras, posteriores à ocultação, que contribuem para afastar os valores de sua origem ilícita. São exemplos dessa fase as transferências de valores ilícitos recebidos, por exemplo, a título de propina, para contas em paraísos fiscais, por intermédio de trocas de posições, que consiste, em síntese, na entrega do recurso em espécie aqui no Brasil para alguém que detém recurso no exterior e esse se encarrega de transferir para a conta indicada pelo “criminoso”.

Por fim, temos a fase a integração. É a introdução, com aparência de licitude, dos valores na economia formal.

Aith destaca que:

Embora o processo de lavagem de dinheiro se conforme com a reinserção do capital na economia lícita, a legislação brasileira não exige a completude do ciclo exposto para a tipicidade do crime em tela. Não é necessária a integração do capital “sujo” à economia lícita para a tipicidade penal. Basta a consumação da primeira etapa – a ocultação – para a materialidade delitiva, incidindo sobre ela mesma pena aplicável a dissimulação ou integração.

Portanto, o crime de lavagem de dinheiro é a ocultação de bens, valores e direitos obtidos por conta do delito antecedente, desde que o agente tenha inequivocamente a vontade branquear e reinserir o produto do crime antecedente na economia lícita.

Assevere-se que a constatação da existência de uma infração penal antecedente não é suficiente para a lavagem de dinheiro. Conforme destacado por Pierpaolo Bottini “é necessário que este ilícito anterior gere um produto, o objeto material do delito em discussão”. Como é de conhecimento comezinho o objeto material do delito de branqueamento de capitais são bens, direitos e valores provenientes de infração penal antecedente. Dessarte, seja qual for a infração antecedente, ela só poderá gerar lavagem de dinheiro se produzir resultado ou frutos.

O mestre Isidoro Blanco Cordero destaca com brilhantismo, que para a “lavagem de dinheiro, não basta a mera constatação de um crime antecedente que gera produto. É necessário demonstrar que esse produto é justamente aquele que foi oculto ou dissimulado posteriormente. Deve existir e ser comprovado um elo objetivo entre o fruto do delito antecedente e o ato de lavagem de dinheiro posterior, que pode ser reconhecido através de alguns critérios”.

Dentro essa perspectiva há que se avançar, mais detidamente sobre do crime de corrupção passiva como antecedente lógico do crime de lavagem de capital e, especialmente, quando o fruto do exaurimento do crime contra a administração configuração o delito de branqueamento (Aith, 2022).

Examinado o conceito do crime de lavagem de capitais e o bem jurídico tutelado, bem como as fases que compõe o complexo crime de branqueamento, resta responder as seguintes indagações: o bem recebido pelo agente público a título de vantagem indevida, através de interposta pessoa, é exaurimento do crime de corrupção passiva ou configura lavagem de dinheiro por ter recebido por interposta pessoal?

5. O PRUDUTO DO CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA. CRIME ANTECEDENTE. PRODUTO DO CRIME SEMPRE CONFIGURA CRIME DE LAVAGEM?

Conforme destacado alhures, a mera existência de crime antecedente não é um pressuposto suficiente para configurar o crime de branqueamento de capitais, sendo necessário que o ilícito antecedente resulte em bens ou valores (objeto material), os quais o autor pretende ocultar, dissimular e, ao final, reinserir no mercado despido de impurezas da ilicitude original. Marcelo Aith, examinando a questão do objeto material, destaca:

Como é cediço, o objeto material é aquele sobre o qual recai o comportamento ilícito, que nem sempre se confunde com o bem jurídico tutelado pela norma penal. Aquele é, no mais das vezes, elemento do tipo penal, enquanto esse orienta a interpretação normativa, mesmo que não figure expressamente na descrição do comportamento vedado. O objeto material do delito de lavagem de dinheiro são bens, direitos e valores provenientes de infrações penais.

O tipo penal previsto no artigo 1º da Lei 9613/1998 ainda indica que os bens passíveis de lavagem são aqueles provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Ou seja, apenas o produto ou o proveito do crime pode ser objeto de lavagem, seja na forma de proveniência direta, seja indireta. Com efeito, os bens diretamente provenientes da infração são aqueles com ligação imediata com o ilícito anterior, como o dinheiro furtado, o carro roubado, enquanto os indiretamente provenientes são resultantes da transformação ou substituição dos originais, decorrência mediata da prática delitiva como o imóvel adquirido com o dinheiro de corrupção.

(…)

É necessário demonstrar que esse produto é justamente aquele que foi oculto ou dissimulado posteriormente. Portanto, deve existir e ser comprovado um elo objetivo entre o fruto do delito antecedente e o ato de lavagem de dinheiro posterior. Dessa forma, deve ser demonstrado que os bens não existiriam, ou não estariam à disposição do agente do branqueamento, se suprimido mentalmente o ilícito anterior (causalidade) (Aith, 2022).

O crime de corrupção passiva, descrito no artigo 317 do Código Penal, tem a seguinte descrição legal: “Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”. São núcleos do tipo as condutas de solicitar, receber ou aceitar promessa, no entanto, para efeitos de lavagem de dinheiro, apenas a segunda importa.

Com efeito, conforme se depreende do tipo penal, o ato de receber a propina pode se dar direta ou indiretamente. Ou seja, o agente pode receber, de per si, a vantagem indevida ou, por interposta pessoa, em seu nome. Dessa forma, se um agente público, por exemplo, recebe vantagens indevidas através de sua filha, há corrupção passiva consumada, mas há, incontinente, a configuração do crime de lavagem de dinheiro?

Entretanto, para a caracterização da lavagem, o ato de ocultação ou dissimulação deve ser, necessariamente, distinto, autônomo e posterior ao crime de corrupção passiva. Analisando a questão, Marcelo Aith destaca:

Destarte, nos casos de lavagem de dinheiro, sempre que a ocultação estiver contida dentre os elementos do crime antecedente, o delito restará absorvido por este, pela consunção, tal como ocorre quando o funcionário público recebe vantagem indevida oriunda de corrupção passiva em nome de sua esposa.

Cumpre ressaltar que o Colendo Supremo Tribunal Federal discutiu esse específico tema nos autos da Ação Penal nº 470 (Mensalão), no caso de um servidor público que recebeu valores em razão do exercício de suas funções através de sua esposa, que buscou o dinheiro em espécie na agência bancária. Na hipótese, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia pela prática – em concurso de delitos – de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

A Corte Suprema afastou a incidência do segundo delito por entender que o uso de interposta pessoa para o recebimento de valores integra expressamente o tipo penal de corrupção passiva. Essa forma de ocultação, portanto, está contida no artigo 317 do Estatuto Repressivo, de forma que o delito de lavagem de dinheiro é absorvido pelo crime antecedente.

Na oportunidade, a Ministra Rosa Weber, apontou, de forma precisa, que: “Nessa linha, a utilização de um terceiro para receber a propina – com vista a ocultar ou dissimular o ato, seu objeto e real beneficiário – integra a própria fase consumativa do crime de corrupção passiva, núcleo receber, e qualifica-se como exaurimento do crime de corrupção ativa. Por isso, a meu juízo, esse ocultar e esse dissimular não dizem necessariamente com o delito de lavagem de dinheiro, embora, ao surgirem como iceberg, como a ponta de esquema de proporções mais amplas, propiciem maior reflexão sobre a matéria”. (voto Min. Rosa Weber, fls. 1086 do acórdão da Apn 470)

Na mesma linha, o saudoso Ministro Teori Zavasck, assevera que: “Bem se vê, portanto, que a imputação que recai sobre o embargante é o ato de receber os valores referentes ao crime de corrupção passiva, que, pela circunstância de ter sido realizado de forma clandestina, não pode produzir a consequência de incorporar um crime autônomo, até porque o recebimento direto ou indireto da vantagem indevida integra o próprio tipo penal do Código Penal (solicitar ou receber (…) direta ou indiretamente (…) vantagem indevida)”. (Apn. 470)

Por fim, há que colacionar a decisão do Ministro Roberto Barroso que, no julgamento da Ação Penal nº 470 (Mensalão), pontuou que: “O recebimento, por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma de lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida”.

O mesmo ocorre quando o pagamento da propina é por meio de financiamento de um veículo para o agente público corrupto. Não há que se falar em ocultação na espécie, mas sim de exaurimento do crime de corrupção ativa.

O Supremo Tribunal Federal discutiu esse específico tema nos autos da Ação Penal nº 470 (Mensalão). Neste caso, um servidor público que recebeu valores em razão do exercício de suas funções através de sua esposa, que buscou o dinheiro em espécie na agência bancária. A Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia pela prática – em concurso de delitos – de corrupção passiva e lavagem de dinheiro (Aith,2022).

Cezar Roberto Bitencourt e Luciana Monteiro destacaram:

Quem não transforma, nem dissimula capitais ilegais, limitando-se a consumir e disfrutar diretamente do proveito do crime precedente, ou restringindo-se a ajudar outros a fazê-lo, não estaria propriamente lavando capitais, mas realizando um comportamento atípico, constitutivo no máximo de mero exaurimento da infração penal antecedente, ou no máximo, praticando receptação ou favorecimento, respectivamente (Bitencourt e Monteiro, 2013).

Dessa forma, o fato de o agente público ter recebido o bem por intermédio de interposta pessoa não configura, incontinente, a conduta de ocultar produto/fruto do crime. Em verdade, o bem recebido para, em tese, deixar de dar o correto prosseguimento, por exemplo, as investigações contra as empresas da corruptora, são mero exaurimento do crime de corrupção passiva. Portanto, em situações como a trazida como objeto-problema desse artigo, é estreme de dúvida que houve a absorção do delito de lavagem na espécie.

6. CONCLUSÃO

Com efeito, conforme apresentado por Marcelo Aith, “Direito e Prática: Análises De Casos No Âmbito Penal Econômico”, no capítulo que aborda a “Corrupção passiva como crime antecedente: Exaurimento com obtenção de vantagem indevida sempre configura crime de lavagem?”:

o pagamento da suposta propina ao delegado pela corruptora consistiu no financiamento de um veículo em nome de interposta pessoa, razão pela qual a ocultação da vantagem ilícita é elemento do crime de corrupção passiva na espécie. Ou seja, para que deixasse de praticar ato de ofício o delegado recebeu da empresária corruptora um veículo, cujo pagamento do financiamento estava a cargo dela.

Não há que se falar, na hipótese vertente, em ocultação de bens, valores ou direitos, decorrentes de infração penal antecedente, uma vez que não há atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida.

(…)

Assim, se a ocultação ou dissimulação típica da lavagem de dinheiro se limitar ao recebimento indireto de valores frutos da corrupção passiva, há continência entre os tipos penais, aplicando-se a consunção, absorvendo-se o delito de branqueamento de capitais, tal como ocorreu na hipótese dos autos.

Dessa forma, nem sempre ocorrerá o crime de lavagem decorrente dos valores obtidos com a corrupção, ou melhor explicando, nem sempre a propina quando ingressar na esfera de disponibilidade do corrupto incidirá as penas da lei de lavagem. Um exemplo claríssimo ocorre quando o agente público recebe a propina por intermédio do financiamento de um veículo, uma vez que haverá, inexoravelmente, sempre que a ocultação estiver contida dentre os elementos do crime antecedente, o delito restará absorvido por este, pela consunção (Aith, 2022).

Com efeito, conforme destacado anteriormente, o Supremo Tribunal Federal (APn 470), em situação semelhante a trazida neste artigo, reconheceu que houve a absorção do crime de lavagem de capitais, uma vez que o recebimento de valores por interposta pessoa, integra expressamente o tipo penal da corrupção passiva (art. 317 do CP). Nesse sentido, é oportuno colacionar excerto dos votos exarados, respectivamente, pelos ministros Ricardo Lewandowski, Teori Zavascki e Roberto Barroso:

Como afirmei, o elemento do tipo ‘ocultar’ não é exclusivo do tipo de lavagem de dinheiro. Ao contrário, consta do tipo penal caracterizador da corrupção passiva, que pune a solicitação ou o recebimento indireto da vantagem. Segundo consignei, à guisa de premissa do meu voto, admito a coexistência da prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro por um mesmo agente, mas desde que se comprove a realização de atos distintos para cada crime, de maneira a evitar-se uma dupla punição advinda de um único fato criminoso, em razão do princípio do ne bis in idem.” (Ricardo Lewandowski, 2013)

“Bem se vê, portanto, que a imputação que recai sobre o embargante é o ato de receber os valores referentes ao crime de corrupção passiva, que, pela circunstância de ter sido realizado de forma clandestina, não pode produzir a consequência de incorporar um crime autônomo, até porque o recebimento direto ou indireto da vantagem indevida integra o próprio tipo penal do Código Penal (solicitar ou receber (…) direta ou indiretamente (…) vantagem indevida)”. (Teori Zavascki, 2013)

O recebimento, por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma de lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida (Roberto Barroso, 2013)

Na hipótese trazida, a ocultação do veículo, consistente no financiamento em nome da esposa do agente público, não é um ato distinto, autônomo e posterior ao ato de corrupção, mas sim a forma utilizada pela corruptora para, em tese, pagar a propina. O que afasta o concurso de crimes na espécie.

Assim, alguns pontos devem ser ultrapassados para a configuração do crime de lavagem de dinheiro, quando a infração penal antecedente é o crime de corrupção passiva. São esses os pontos:

  1. a) sempre que a ocultação estiver contida dentre os elementos do crime antecedente, o delito restará absorvido por este, pela consunção, tal como ocorre quando o funcionário público recebe vantagem indevida oriunda de corrupção passiva em nome de interposta pessoa;
  2. b) o pagamento da suposta propina ao delegado pela corruptora se deu por intermédio do financiamento de um veículo em nome de interposta pessoa, razão pela qual a ocultação da vantagem ilícita é elemento do crime de corrupção passiva na espécie. (omissão dos nomes) e;
  3. c) o Supremo Tribunal Federal discutiu esse específico tema nos autos da Ação Penal nº 470 (Mensalão), no caso de um servidor público que recebeu valores em razão do exercício de suas funções através de sua esposa, que buscou o dinheiro em espécie na agência bancária. O STF afastou a incidência do segundo delito por entender que o uso de interposta pessoa para o recebimento de valores integra expressamente o tipo penal de corrupção passiva. Essa forma de ocultação, portanto, está contida no artigo 317 do Estatuto Repressivo, de forma que o delito de lavagem de dinheiro é absorvido pelo crime antecedente (Aith, 2022).

Portanto, respondendo a indagação inicial, nem sempre a ocultação do produto do crime anterior irá configurar o crime de lavagem de capitais.

REFERÊNCIAS

AITH, Marcelo Gurjão Silveira. Direito e Prática: Análises De Casos No Âmbito Penal Econômico. Organizadores: Débora Motta Cardoso; Ricardo Andrade Saadi; Ana Cecília de Oliveira Bitarães; Géssica Priscila Arcanjo da Silva. – Brasília: Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP, 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470/MG. Julgamento do “Mensalão”. Autor: Ministério Público Federal. Réus: José Dirceu de Oliveira e Silva e outros. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em 13 de abril de 2013. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6556315.

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei12.683/2012. 4ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 102. São Paulo: Revista dos Tribunais, maio-jun, 2013.

CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales. 3. ed. Navarra: Editorial Aranzadi S.A., 2012.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico: Ordem Econômica e Tributária, Sistemas Financeiro e Previdenciário, Consumo, Licitação, Lavagem de Capitais, Crime Organizado. 8. ed. São Paulo: Editora Forense, 2018.

TAVARES, Juarez. Fundamentos de Teoria do Delito. 4. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022.

[1] Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP. Especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca. Mestrando em Direito Penal pela PUC-SP. Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-8180-7582.

[2] Orientador. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9016-4257.

Enviado: 15 de agosto, 2023.

Aprovado: 13 de setembro, 2023.

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Marcelo Gurjão Silveira Aith

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