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Atos concertados jurisdicionais: análise a partir da teoria procedimental de Jürgen Habermas

RC: 143557
257
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/concertados-jurisdicionais

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

AZEVEDO, Edgar Meira Pires de [1], D’ASSUNÇÃO, Maria Esther Alencar Advíncula [2], GÓES, Ricardo Tinoco de [3]

AZEVEDO, Edgar Meira Pires de. D’ASSUNÇÃO, Maria Esther Alencar Advíncula. GÓES, Ricardo Tinoco de. Atos concertados jurisdicionais: análise a partir da teoria procedimental de Jürgen Habermas. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 04, Vol. 05, pp. 69-81. Abril de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/atos-concertados-jurisdicionais, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/concertados-jurisdicionais

RESUMO

Tendo em vista a previsão expressa contida no art. 69, IV, do Código de Processo Civil – CPC, que possibilita a prática de atos concertados entres órgãos jurisdicionais, pesquisa-se sobre a importância e limites de referidos atos, a fim de verificar se os mesmos encontram assento constitucional e se configuram um instrumento cooperativo na forma da teoria de Jürgen Habermas. Para tanto, é necessário conceituar os atos concertados, bem como realizar a distinção entre cooperação processual e cooperação judicial, à luz das desjudicialização dos conflitos; examinar as principais bases teóricas do modelo democrático-procedimental de Jürgen Habermas, especificamente a posição adotada pelo autor em relação aos princípios da separação dos poderes. Para tanto, realiza-se uma pesquisa de finalidade básica estratégica, objetivo descritivo e exploratório em relação à natureza dos atos concertados e à teoria habermasiana, sob o método dedutivo, com abordagem qualitativa e realizada pelos procedimentos bibliográficos e documentais. Diante disso, verifica-se que os atos concertados previstos no art. 69, IV, do CPC, avultam como importante ferramenta para realização da cooperação judicial, configurando o cooperativismo dialógico defendido por Habermas; contudo, tais atos devem ser encarados de maneira excepcional, devendo sempre ser balizados pelos direitos fundamentais encartados na Constituição Federal, especialmente no que diz respeito ao Princípio da Separação dos Poderes.

Palavras-chave: Atos concertados, Cooperação judicial, Separação dos Poderes, Direitos Fundamentais, Jürgen Habermas. 

1. INTRODUÇÃO

Com o advento da Lei nº 13.105/2015 – Código de Processo Civil – buscou-se a modernização do processo civil brasileiro com bases em um vasto arcabouço de teorias dos mais variados matizes. No entanto, nada obstante essa grande gama teórica, a centralidade da Constituição Federal no ordenamento pátrio se fez mister, bastando observar que o art. 1º do CPC enfatiza que todas as suas normas deverão passar pelo filtro constitucional (BRASIL, 2015).

Do mesmo modo, muito embora o escopo precípuo do estatuto processual se volte à análise de direitos subjetivos individuais, diversas normas do referido diploma enaltecem o caráter dialógico e cooperativo que o processo civil contemporâneo deve observar no afã de alcançar uma prestação jurisdicional justa e efetiva, elencando, assim, diversas ferramentas capazes de dotar as partes como as protagonistas do processo.

Nesse sentido, o contraditório foi robustecido, do mesmo modo, instrumentos como o saneamento cooperativo do feito, a possibilidade de participação dos amicii curiae, a realização de audiências públicas nos casos passíveis de formação de precedentes, buscam gerar uma cultura cooperativa no sistema processual brasileiro.

Em relação a presente pesquisa, a mesma voltou-se ao exame da cooperação entre órgãos jurisdicionais (exoprocessual), a qual não se confunde com a cooperação princípio (cooperação endoprocessual) disposta no art. 6º do CPC e que se materializa, entre outras hipóteses, na prática de atos concertados entre os órgãos do Poder Judiciário, como expressamente disposto no art. 69, IV, do CPC, objeto específico do presente artigo (BRASIL, 2015).

Portanto, vislumbra-se, à primeira vista, que referidos atos concertados judiciais podem refletir a cooperação de cariz habermasiano no afã de possibilitar uma maior efetividade ao processo.

Dessa forma, indaga-se: Os atos concertados jurisdicionais podem configurar o modelo cooperativo idealizado por Jürgen Habermas? Quais os limites de referidos atos?

Então, o objetivo geral da presente pesquisa é verificar se o modelo de cooperação habermasiano pode ser verificado no âmbito dos atos concertados praticados por órgãos judiciais, bem como quais os limites aos quais esses atos estão submetidos.

Para isso, foram elencados os seguintes objetivos específicos: examinar a origem e o conceito dos atos concertados judiciais no processo civil brasileiro; analisar a principais premissas da obra de Habermas capazes de justificar o modelo de cooperação judicial propalado pelo CPC; investigar os limites na prática dos atos concertados judiciais de acordo com a ótica habermasiana relativa ao Princípio da Separação dos Poderes.

Parte-se da hipótese de que é possível reconhecer nos atos concertados judiciais uma expressão da cooperação idealizado por Jürgen Habermas, bem como que o princípio da separação dos poderes e os demais direitos fundamentais, na forma considerada pelo autor alemão, servem como balizas e limites para a prática de tais atos de cooperação jurisdicional.

Logo, para viabilizar o teste da hipótese, realiza-se uma pesquisa de finalidade básica estratégica, objetivo descritivo e exploratório, sob o método dedutivo, com abordagem qualitativa e realizada pelos procedimentos bibliográficos e documentais.

Na primeira seção é analisada a origem e o conceito dos atos concertados judiciais no processo civil brasileiro. Já na segunda seção são examinadas as premissas do teoria discursiva-procedimental defendida por Habermas, especificando-se, ainda, a concepção do filósofo alemão acerca do papel do Judiciário, além da importância do princípio da separação dos poderes para o regime de circulação do poder de matriz habermasiana.

Ao fim, conclui-se que os objetivos são atendidos e a pergunta central resta respondida com a confirmação da hipótese inicial, sendo, portanto, verificado que os atos concertados judiciais, além de serem capazes de traduzir, de fato, o modelo de cooperação defendido por Jürgen Habermas, contam com limites estabelecidos pelo próprio texto constitucional, consoante a postura adotada pelo mesmo autor.

2. ATOS CONCERTADOS JURISDICIONAIS

As garantias do devido processo legal, embora tenham se originado para o processo penal, a partir do art. 39 da Magna Carta de 1.215, tiveram reconhecidas suas aplicações ao processo civil (GRINOVER, 2009, p. 6), inclusive no Brasil, como se verifica nas Constituições de 1946 (art. 141, §4º) e mantido pelas de 1967, 1969 e sendo coroado em 1988, com o art. 5º, LVI e LV, que expressamente previu sua aplicação não só ao processo judicial, mas também ao administrativo (BRASIL, 1988).

É um desafio constante empregar as garantias processuais e entregar uma prestação judiciária eficiente em uma sociedade em que o Judiciário assume papel ativista. É inegável e antiga a hipertrofia do Judiciário brasileiro, consoante abalizada doutrina:

A sobrecarga dos tribunais, a morosidade dos processos, seu custo, a burocratização da justiça, certa complicação procedimental; a mentalidade do juiz, que deixa de fazer uso dos poderes que o código lhe atribui, a falta de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva à insuperável obstrução das vias de acesso à justiça, e ao distanciamento cada vez maior entre o judiciário e seus usuários (GRINOVER, 1988, p. 193)

As dificuldades do Judiciário brasileiro na década de 80 dão conta de uma “justiça lenta, cara, complicada, burocratizada e inacessível até para os conflitos tradicionais, a pincelada dramática da falta de resposta processual para os conflitos, próprios de uma sociedade de massa” (GRINOVER, 1988, p. 193) e ainda hoje a eficiência (ou sua ausência) do Judiciário brasileiro causa frisson, pois é apontado como o mais caro do mundo (REVISTA OESTE, 2022), consumindo 1,3% do PIB (BRASIL, 2021, p. 77). Pelos números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Justiça Estadual abrange 77% dos processos em tramitação e representa em torno de 58% da despesa total do Poder Judiciário; a Justiça Federal abrange 14% dos processos e 12% das despesas; a Justiça Trabalhista, 6% dos processos e 20% das despesas e a Justiça Militar “é onde está a maior relação entre despesas e processos, sendo proporcionalmente o segmento de maior custo” (BRASIL, 2021, p. 76).

Nunes e Teixeira (2013, p. 109) apontam que além da preocupação com a modernização da administração judiciária e habilidades de seu corpo de servidores, há “nas entrelinhas das ações, metas e ameaças de correição permanente intocada uma contradição entre objetivos e métodos”. Para estes autores, do ponto de vista simbólico, “propugna-se por uma justiça mais protetora, democrática, acessível ‘enquanto a prática resta conduzida por uma razão instrumental que exige metas, números e estatísticas de julgamento’, não como um meio, mas como um fim”. Não há como se afastar dessas ponderações sem a necessária reflexão. É possível ao Judiciário entregar melhor prestação jurisdicional entregando mais quantidade e não necessariamente aprimorando a qualidade do que é decidido?

Em busca desse aprimoramento, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) trouxe diversas inovações. Em termos axiológicos trouxe expressamente previstos nos artigos iniciais os princípios ordenadores do processo, inclusive, repetindo os de matriz constitucional (BRASIL, 2015).

Aprigliano (2023, p. 2) pontua, abraçando as teses de Cândido Dinamarco e Ada Pellegrini Grinover, que o vigente estatuto processual realçou os aspectos de “participação como fator de legitimação do exercício do poder”, buscando-se um modelo processual ancorado no contraditório estabelecido a partir da equilibrada participação dos sujeitos do processo. Ancorado em doutrina nacional e estrangeira, afirmou ainda que as regras de esclarecimento, consulta, diálogo, prevenção e auxílio são “[…] todas dirigidas ao julgador, o que apenas reforça, mesmo na perspectiva de sistemas estrangeiros, que o verdadeiro conteúdo da cooperação – entendida como princípio autônomo ou como desdobramento do contraditório – tem o julgador como sujeito central”.

De cariz infraconstitucional, o CPC em vigor prevê expressamente o dever de cooperação endoprocessual (art. 6º), obrigando “todos os sujeitos do processo” para a obtenção de decisão de mérito justa, efetiva e em interregno processual adequado (BRASIL, 2015). Referida disposição é um reflexo da Política Judiciária Nacional instituída pela Res. CNJ 125 de 29.11.2020, que busca tornar o Judiciário (ou parte dele) um espaço “menos burocratizado e mais consensual” o que é criticado por Nunes e Teixeira (2013, p. 110), preocupados com a possibilidade de deformação do sistema processual, e que vêm na proposição uma manobra para contornar quantitativamente as críticas profundas e antigas a um acesso largamente insuficiente.

Nessa perspectiva, o CPC em vigor também inovou ao criar o instituto da cooperação nacional judiciária, que tem em foco o harmônico funcionamento dos órgãos Judiciários para uma efetiva prestação jurisdicional (instituto da cooperação judiciária) e que não deve ser confundida com o princípio norteador do processo relativo à colaboração entre partes de um processo específico (princípio endoprocessual).

De maneira geral, pode-se dizer que a cooperação judiciária nacional (CPC, art. 67 a 69) espelha, internamente, aquela cooperação antes expressamente prevista somente para o âmbito internacional. Por sua dicção, todos os órgãos do Judiciário, especializado ou comum, independente da instância e do grau, “incumbe o dever de recíproca cooperação” (art. 67) que deve ser prontamente atendido, prescindido de forma específica (art. 69) (BRASIL, 2015).

Como explica Didier Junior (2021, p. 62), ela pode ser estabelecida “[…] a partir de uma solicitação, de uma delegação ou de um concerto (cooperação simultânea, conforme art. 1º, I, da Resolução n. 350/20202 do CNJ)”. De natureza jurídica ainda pouco estudada (FERREIRA, 2021, p. 259), Gonçalves e Gouveia (2021, p. 137) destacam que a “aparente singeleza do dispositivo esconde a profundidade da revolução que o Código permite”, até para órgãos da função judicial com competências absolutas distintas.

A cooperação por concertação, por sua vez, é uma das diversas opções de cooperação listadas em rol não exaustivo pelo art. 69 do CPC/15 e que objetiva disciplinar atos indeterminados (nos moldes do caput), “[…] regulando uma relação permanente entre os juízos cooperantes; nesse sentido, funciona como um regramento geral, consensual e anterior à prática dos atos de cooperação” (BRASIL, 2015). É uma “cooperação negociada, decorre de um concerto entre juízes”, sendo, portanto, um “ato de direito público, celebrado por um órgão jurisdicional com outro órgão, com natureza de negócio jurídico processual cujo objeto é o regramento de uma relação jurídica permanente”, o que possibilita a “gestão da competência jurisdicional”, pelo que é “técnica voltada à concretização do direito fundamental a um processo efetivo” (FERREIRA, 2021, p. 257-258).

Inclusive, Campos (2021, p. 293) defende a pertinência dos reflexos da cooperação judiciária nacional sobre os sistemas de competências, à luz do princípio da competência adequada. Para esta autora, a cooperação por ato concertado permite a organização procedimental, o fracionamento do processo, escolha de um juízo par decidir questão comum ou semelhante em mais de um processo e até a conveniência das partes e dos advogados permitiria a escolha do juízo para uma audiência pública.

Começa-se, então, a perceber que o instituto da cooperação judiciária nacional toca em questões nucleares ao processo, como competência, juiz natural, tipicidade dos atos etc.

Percepção esta que leva a outro enfoque. Atualmente, no Brasil, existem processos específicos para áreas distintas, como a constitucional, a civil, a trabalhista, a tributária, a eleitoral, a administrativa etc., que são tão peculiares que há quem defenda não haver uma teoria geral do processo, mas sim uma teoria geral para cada uma dessas áreas. No que pertine ao presente estudo, o processo aqui considerado é aquele “visto e sentido naquela unidade fundamental que, sem significar a identidade de seus ramos distintos, autoriza a elaboração científica de princípios gerais, informativos de todas as disciplinas processuais” (GRINOVER, 1978, p. 1). Esse núcleo duro das garantias processuais está na Constituição e é decorrentes de um longo processo histórico.

Então, questiona-se: em face do princípio da separação dos poderes que entrega à União a capacidade para legislar sobre norma processual em geral, é possível haver cooperação nacional por concertação de atos entre juízos de competências distintas sem violar também o princípio da isonomia das regras processuais a todos os litigantes (devido processo legal previamente estabelecido em lei)?

3. A PRÁTICA DE ATOS CONCERTADOS ANALISADOS PELAS LENTES DO PROCEDIMENTALISMO HABERMASIANO

O filósofo alemão Jürgen Habermas, um dos maiores expoentes da teoria crítica da Escola de Frankfurt, concebeu uma vasta obra, na qual tratou de diversos matizes, mas que teve na linguagem seu ponto nevrálgico.

A obra de referência de Habermas é “A Teoria da Ação Comunicativa”, obra enciclopédica escrita em dois volumes, na qual o filósofo alemão desenvolve a tese da existência de uma ação comunicativa ao lado da ação estratégica e instrumental pré-concebidas por Max Weber e pelos seus antecessores em Frankfurt, Max Horkheimer e Theodor Adorno

A ação comunicativa desenvolvida por Habermas pauta-se, fundamentalmente, na ideia de intersubjetividade, de modo que os atores envolvidos no processo comunicacional devem ser capazes de erguer pretensões de validade criticáveis, as quais, quando não reconhecidas pelo destinatário, instalam o discurso, o qual só poderá ser resolvido a partir de consensos construídos com base na proeminência do melhor argumento. Assim, para Habermas (2022, p. 59) “o mundo somente ganha objetividade porque é considerado um e mesmo mundo para uma comunidade de sujeitos capazes de falar e agir”.

No entanto, Habermas tratou da concepção de direito e democracia em obra posterior (Facticidade e Validade), onde desenvolveu o conceito de democracia procedimental, a qual se valeria do medium do direito.

Com a ideia de democracia procedimental, Habermas buscou superar tanto o modelo democrático-liberal, expressado na supremacia dos direitos humanos e a partir da reconstrução da razão prática kantiana, quanto o modelo republicano idealizado por Rousseau, cuja expressão última seria a soberania popular. Nesse sentido, Habermas concebeu a ideia de equiprimordialidade, isto é, tanto o modelo liberal, quanto o republicano gozavam de prestígio mútuo (primordialidade) para a legitimação da ordem jurídico-política.

Em que pese a complexidade do desenvolvimento do conceito de democracia procedimental por Habermas, sua ideia não é de difícil entendimento. O paradigma procedimental impõe apenas o aspecto formal nas deliberações acerca dos temas afetos à formação da ordem jurídica, de modo que a deliberação pública não exclui, a priori, nenhuma ideologia ou forma de vida. Portanto, o modelo procedimental democrático de cariz habermasiano consiste em procedimentos racionais-discursivos que permitem aos cidadãos, com base na argumentação, construir consensos sobre as temáticas sociais em ebulição na esfera pública de modo a influir sobre sistema político a ponto de a demanda objeto da deliberação ser institucionalizada através do direito, como ressaltado pelo próprio autor alemão:

O fluxo comunicativo entre formação pública da opinião, eleições institucionalizadas e resoluções legislativas deve garantir que a influência produzida publicamente e o poder desencadeado comunicativamente sejam transformados pela legislação em poder empregado de maneira administrativa. Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso a fronteira entre “Estado” e “sociedade” é respeitada; mas aqui a sociedade civil, na qualidade de fundamento social de esferas públicas autônomas, diferencia-se tanto do sistema econômico de ação quanto da administração pública. Dessa compreensão da democracia resulta normativamente a exigência de um deslocamento de peso na relação daqueles três recursos (dinheiro, poder administrativo e solidariedade), a partir dos quais as sociedades modernas satisfazem sua necessidade de integração e de controle. As implicações normativas são claras: a força sociointegradora da solidariedade, que não pode mais ser extraída unicamente das fontes da ação comunicativa, deve poder ser desenvolvida mediante esferas públicas autônomas amplamente diversificadas e procedimentos de formação democrática da opinião e da vontade institucionalizados segundo o Estado de direito, além de ser firmada pelo medium direito ante os outros dois mecanismos de integração social, o dinheiro e o poder administrativo (HABERMAS, 2020, p. 382-383).

Apenas a título de ilustração, e sem qualquer consideração ideológica, foi o que ocorreu no caso da ação afirmativa relacionada ao regime de cotas para negros[4], que foi institucionalizada a partir da pressão exercida pela esfera pública negra na busca da igualdade substancial propalada pelo art. 5º, caput, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Feita essa breve referência ao modelo procedimental democrático de Habermas, urge destacar que o filósofo alemão entende que tais deliberações públicas devem ocorrer no cerne do Legislativo e não do Judiciário – notadamente da Jurisdição Constitucional – porquanto ao proceder de forma ativista o Judiciário se imiscuiria indevidamente em atividade que cumpre, precipuamente, ao Legislativo, mal versando o princípio da separação dos poderes, sobretudo porque, em última instância, estar-se-ia possibilitando a substituição da opção democrática pela decisão de um julgador monológico que, por vezes, oculta interesses expressos na razão teleológica, em evidente invocação à jurisprudência dos valores.

Urge destacar que a posição adotada por Habermas se justifica pelo próprio contexto no qual estava inserido o autor quando manifestou o pensamento reportado acima, ou seja, a jurisdição alemã e o momento de reunificação da Alemanha após o fracasso socialista da experiência soviética.

Todavia, mesmo no contexto brasileiro deve ser considerada a perspectiva habermasiana, mormente pela robustez do argumento sustentado pelo filósofo alemão, devendo sempre ser enfatizado que o ativismo judicial, muito embora importante em determinadas ocasiões, deve ser adotado com bastante parcimônia e em irrestrita observância ao princípio da separação dos poderes e aos demais direitos fundamentais.

Nessa trilha merece realce a proposta idealizada pelo magistrado norte-rio-grandense Ricardo Tinoco de Góes, confessadamente tomada a partir do procedimentalismo de cariz habermasiano, que defende que a teoria discursiva desenvolvida pelo filósofo tedesco deve ser, com esteio em determinadas premissas, transposta para o âmbito jurisdicional em razão da “clara vinculação entre a atividade de interpretação/aplicação jurisdicional de princípios jurídicos e o sentido conteudístico do potencial de deliberação que advém da interlocução mantida entre a cidadania ativa e a Jurisdição do Estado” (GÓES, 2013, p. 224).

Entretanto, o mesmo autor defende que embora a interlocução entre Jurisdição e cidadania ativa seja imprescindível para a resolução de determinados casos limítrofes (hard cases), que possam implicar anomia ou insuficiência da norma existente para resolução do conflito, não se está a falar em substituição da decisão judicial pela deliberação da cidadania ativa, mas sim de uma forma de argumentação pública capaz de possibilitar a adoção da decisão mais correta para o caso posto ao crivo judicial (GÓES, 2013, p. 225), com base, principalmente, nos direitos fundamentais dos concernidos.

No que atine à cooperação judicial exoprocessual, ou seja, àquela referida na seção anterior e disposta, expressamente, no art. 67 do CPC e, especificamente, aos atos concertados entre órgãos jurisdicionais, cujo assento legal encontra previsão no art. 69, IV, do Estatuto de Ritos, não há, a uma primeira vista que, se falar em qualquer ilicitude de referido ato cooperativo (BRASIL, 2015).

Em verdade, vertendo os olhos para as premissas habermasianas, o diálogo entre órgãos jurisdicionais se mostra deveras salutar para propiciar a melhor prestação jurisdicional aos cidadãos o que, inclusive, consubstancia, em forma mais estreitada, a proposta defendida por Góes, o qual defende a deliberação entre jurisdição e cidadania ativa diante de hard cases.

No entanto, os atos concertados jurisdicionais, bem como todas as medidas adotadas a pretexto de cooperação judicial, devem ser realizados cum grano salis, sobretudo em respeito ao princípio da separação de poderes e demais direitos fundamentais de mesma envergadura.

Como defendido por Ronald Dworkin, os direitos fundamentais devem ser encarados como trunfos do cidadão sempre quando se estiver diante do arbítrio estatal, sobretudo quando “esse direito for necessário para proteger sua dignidade ou sua posição enquanto detentor da mesma consideração e do mesmo respeito, ou de qualquer outro valor pessoal da mesma importância” (DWORKIN, 2010, p. 305).

Portanto, com aporte na concepção dworkiana, que não rechaça o procedimentalismo habermasino, ao revés, fortalece-o; muito embora a cooperação jurisdicional (cooperação exoprocessual), se mostre salutar, a mesma, além de tomada como medida excepcional, deve contar com limitações de cunho deontológico, mormente quando diante de exacerbações teleológicas capazes de subverter o verdadeiro intento de sua adoção.

Referidos limites residem, indubitavelmente, no princípio da separação dos poderes e nos direitos fundamentais existentes na tessitura constitucional e impedem que a prática de atos concertados por órgãos jurisdicionais inove a ordem jurídica de forma indevida, mormente quando tais atos, a partir de um ativismo judicial desmedido, implicarem a criação de norma legal (tertium genius) ao arrepio do dever legiferante do Legislativo.

Portanto, em que pese se reconhecer relevância e importância à prática de atos concertados por órgãos jurisdicionais, consoante disposto no art. 69, IV, do CPC (BRASIL, 2015); referida medida não pode adotada como regra, devendo sempre ser tomada de forma excepcional e com bastante parcimônia pelos órgãos envolvidos e, principalmente, com o olhar atento ao princípio da separação dos poderes e aos direitos fundamentais de todos os envolvidos, sob pena do ato praticado fora dessas balizas ser reputado inconstitucional e expurgado do processo e do ordenamento jurídico como um todo.

4. CONCLUSÃO

A presente pesquisa foi iniciada com base na previsão contida no art. 69, IV, do Código de Processo Civil – Lei nº 13.105/2015 (BRASIL, 2015), que, expressamente, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de realização de atos concertados entre órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Outrossim, o trabalho lançou luz sobre a teoria discursiva do filósofo alemão Jürgen Habermas, uma vez que o modelo cooperativo propalado pelo Código de Processo Civil invoca, ao menos de forma retórica, a proposta desse filósofo alemão.

Com base na teoria haberamasiana, que defende a radicalização democrática com base em procedimentos discursivos de formação pública da opinião, cuja gênese advém da esfera pública politizada, verifica-se que Habermas defende com veemência o Princípio da Separação dos Poderes, de modo a afastar que as decisões de cunho monológico substituam o desiderato dos concernidos ao possibilitar a substituição do dever legiferante do Parlamento pela decisão judicial.

Dessa forma, defende-se que, não obstante a importância da prática de atos concertados em determinados casos, os mesmos não podem ser adotados de forma que conglobem regras expressas no ordenamento jurídico a ponto de inovar no sistema, subvertendo o mencionado Princípio da Separação dos Poderes.

Conclui-se, portanto, que os atos concertados judiciais, em que pese prestigiar o modelo cooperativo e dialógico idealizado por Habermas e possibilitar uma maior efetividade à prestação jurisdicional, devem ser adotados de forma excepcional e com bastante parcimônia, de sorte a evitar ativismos judiciais solipsistas, o que denota inconstitucionalidade flagrante e manifesta.

Portanto, o problema central do artigo restou respondido, sobretudo diante da indiscutível constatação que os atos concertados judiciais refletem o modelo de cooperativo-dialógico idealizado por Jürgen Habermas. Outrossim, verificou-se que os limites para a prática de referidos atos são, justamente, aqueles que o filósofo alemão reconhece a todo o Poder Judiciário.

Quanto à metodologia desenvolvida na pesquisa, também se observa que a mesma foi atendida, tendo em vista que o trabalho partiu das premissas teóricas gerais relacionadas ao conceito basilares acerca dos atos concertados, consubstanciando o método dedutivo, cuja abordagem qualitativa visou analisar o modelo cooperativo adotado por Habermas, bem como a percepção desse autor em relação ao Princípio da Separação de Poderes.

Um obstáculo encontrado na presente pesquisa foi a existência incipiente de atos concertados judiciais praticados pelos tribunais pátrios, notadamente, por razões espaciais, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.

Por fim, recomenda-se que novas pesquisas busquem se debruçar cada vez mais sobre a natureza e importância dos atos concertados judiciais para uma melhor prestação jurisdicional e, sobretudo, acerca dos limites que tais atos devem observar para que, quando praticados, não incorram em arbitrariedades capazes de eivá-los de inconstitucionalidade.

REFERÊNCIAS

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REVISTA OESTE. O Judiciário brasileiro é o mais caro do mundo. Revista Oeste, 2022. Disponível em: https://revistaoeste.com/brasil/o-judiciario-brasileiro-e-o-mais-caro-do-mundo/. Acesso em: 30 mar. 2023.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

4. EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (STF, ADPF nº 186, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJ 26/04/2012, DJe 20/10/2014).

[1] Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UNP); Graduado em Direito pela Universidade Potiguar (UNP); Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Servidor Público estadual – Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN). ORCID: 0000-0001-6131-1687. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3014247516589115.

[2] Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UNP); Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). ORCID: 0000-0001-5338-0543. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5160892082241213.

[3] Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Juiz de Direito em exercício no 2º Grau de Jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN). ORCID: 0000-0001-5192-7250. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7090788895861365.

Enviado: 17 de abril, 2023.

Aprovado: 19 de abril, 2023.

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Edgar Meira Pires de Azevedo

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