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O princípio jurídico da fraternidade e sua efetivação na atividade empresarial

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANCHES, Najme Hadad [1], BENEDETTI, Carla Rahal [2]

SANCHES, Najme Hadad. BENEDETTI, Carla Rahal. O princípio jurídico da fraternidade e sua efetivação na atividade empresarial. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 05, pp. 81-101. Dezembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/atividade-empresarial

RESUMO 

O presente artigo tem como objetivo ponderar a prioridade da empresa em desenvolver estratégias para o seu crescimento no mercado e, consequentemente, nos lucros, objetivo precípuo da atividade empresarial, sob a perspectiva dos mandamentos constitucionais de que a ordem econômica deve assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social (arts. 1º, 3º e 170 da CF). A problemática trazida pela pesquisa é a proteção e a garantia dos direitos humanos no sistema capitalista globalizado. O questionamento surgiu a partir da previsão de que o sistema econômico brasileiro tem como princípio uma sociedade fraterna, o que exige conformidade entre o sistema capitalista e a prática de um capitalismo humanista, de modo a priorizar a dignidade da pessoa humana em toda a cadeia desenvolvimentista econômica. O objetivo geral do artigo foi demonstrar a preocupação do legislador constituinte na proteção dos direitos fundamentais individuais e sociais dentro de um sistema capitalista egoístico. O trabalho partiu da hipótese de que o valor material, em qualquer circunstância, está aquém do valor humano. Foi realizada uma pesquisa básica e estratégica, descritiva e exploratória, com método dedutivo para análise da legislação e da doutrina. Primeiro será apresentado ao leitor um breve histórico evolutivo da empresa no mundo e no Brasil, e os seus objetivos na sociedade de consumo do sistema capitalista, para, em seguida, verificar-se a real responsabilidade social da empresa, sob a perspectiva do princípio jurídico da fraternidade, constitucionalmente previsto. Após a análise acerca da importância da inclusão dos direitos humanos como princípio do capitalismo liberal, foi possível concluir a possibilidade/necessidade da construção de um sistema capitalista mais humanista, por meio de mudanças comportamentais empresariais importantes, com a inclusão de novos objetivos empresariais fundados no princípio da fraternidade, visando contribuir para a formação de uma sociedade mais justa e solidária.

Palavras-chave: Empresa, Atividade empresarial, Princípio da fraternidade, Capitalismo humanista.

1. INTRODUÇÃO

A ordem social capitalista é essencialmente contraditória, posto que expressa, de um lado, o cume, com abundância de riqueza e acumulação de capital, e, do outro, o fundo do abismo, onde pessoas são excluídas do sistema por sua completa desigualdade intelectual e financeira, e sem qualquer perspectiva de subida.

Para estes excluídos, só resta a esperança de uma reavaliação do sistema por aqueles que o comandam e aguardar, sem perspectiva, a criação de um novo modelo que emane contínuas oportunidades, redução das desigualdades e a participação social com dignidade.

O presente estudo visa analisar os efeitos da lógica do atual mercado capitalista no Brasil e se o comportamento fraterno dentro do sistema econômico, conforme previsto na Constituição federal, pode ser suscitado, com base na difusão e na prática do capitalismo humanista, a fim de que a atividade empresarial possa ser utilizada como um meio transformador e de melhoramento da sociedade para atendimento das expectativas daqueles que estão à margem do sistema.

Nesse diapasão, como dito anteriormente, a questão norteadora do presente trabalho é a possibilidade de efetivação dos direitos humanos no sistema capitalista globalizado.

Preliminarmente, far-se-á um breve histórico sobre o surgimento da empresa no Brasil e a sua evolução, com o apontamento de seus objetivos fundamentais no sistema capitalista. Em seguida, será demonstrada a importância dos valores materiais e humanos, a importância de ambos para o bem comum, e a real contribuição social da empresa no sistema capitalista atual. Após, será apontada a necessidade de efetivação do princípio da fraternidade como fundamento da atividade empresarial, que deve ter como objetivo primordial a dignidade da pessoa humana e a busca do bem comum, a fim de se efetivarem os direitos humanos no atual sistema capitalista globalizado perverso, selvagem e devorador.

Este artigo baseia-se, portanto, na teoria do capitalismo humanista desenvolvida por Sayeg e Balera (2011).

O método dedutivo utilizado no desenvolvimento do trabalho possibilitou amplas reflexões, porém, ao final, será exposta a efetiva conclusão, uma vez que a análise da fraternidade como fundamento da República e mandamento constitucional, bem como as diretrizes da teoria do capitalismo humanista, foi imprescindível para propor uma ressignificação do objeto do capitalismo, e a proposta de uma transformação de suas estruturas.

2. BREVE HISTÓRICO SOBRE A EMPRESA NO MUNDO E NO BRASIL E SEUS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS NA SOCIEDADE DE CONSUMO DO SISTEMA CAPITALISTA

O que se denomina atualmente como empresa surgiu nas sociedades primitivas com a prática da troca. A troca de produtos entre grupos era não só um meio de subsistência, mas também a oportunidade de valorização e maior conforto aos seus praticantes (MAUSS, 2003).

Essa atividade da troca influenciou, sobremaneira, a evolução das sociedades, tornando-a mais hermética e arrojada nas relações humanas, passando a ser denominada, posteriormente, como comércio. Esta atividade acabou por seduzir os indivíduos a possuírem bens que proporcionassem cada vez mais comodidade e status social, tornando-se uma prática social estrutural (MAUSS, 2003).

A resposta ao comércio, para que fosse possível incrementar as relações dos indivíduos com o suprimento alheio, adveio da identificação de um valor comum: a moeda.

É compreensível que devido ao desenvolvimento da civilização – ‘civilizar é multiplicar as necessidades’ – o mecanismo das trocas em espécie foi se complicando. Surge, todavia, uma mercadoria padrão que serve de intermediária no processo circulatório. Conchas, animais, sobretudo bois (pecus – pecúnia) e, posteriormente, metais preciosos, servindo como denominador comum do valor que facilitam as trocas. É a moeda (REQUIÃO, 2009, p. 4).

Ao estabelecer o uso de moeda para a aquisição de produtos e serviços, o indivíduo acabou por transformar o cenário econômico das sociedades, pois a produção deixou de ter como objetivo o escambo e passou a visar a acumulação de moeda (capital) (REQUIÃO, 2009.)

A combinação de diversos fatores como a exploração das colônias pelos países europeus, e o crescente desenvolvimento interno destes mesmos países ditos ‘desenvolvidos’, ganhou grande importância mundial ante o acúmulo de riquezas e o progresso social.

Pois bem, com o reconhecimento da prática do comércio como elemento essencial do desenvolvimento das sociedades, surgiu a necessidade de sua total regulação, passando os ofícios a obedecerem às rígidas regras do corporativismo, o que, muitas vezes, levou a um protecionismo redutor do desenvolvimento econômico, pois os comerciantes foram ganhando poder a ponto de passarem a exercer influência militar e política (REQUIÃO, 2009).

Na Idade Média, surge, então, a teoria subjetiva clássica que conceitua o comerciante como sendo o indivíduo que fazia parte da liga ou da corporação, ou seja, o foco era a pessoa, e não a atividade por ela exercida (MAUSS, 2003).

O descobrimento do continente americano ensejou a expansão do comércio, pois os países europeus visualizaram a necessidade de participar da exploração mercantilista extramuros. No entanto, a manutenção do poder nas mãos das corporações de comerciantes era uma barreira a ser transposta, cuja ruptura ocorreu na França, com a promulgação do Código Mercantil Napoleônico, em 1807, o qual tirou o comerciante do foco e passou a considerar como comércio a relação de atos comerciais praticados, surgindo, a partir daí, a chamada teoria objetiva ou teoria dos atos de comércio.

No século XX, a objetividade pouco clara da teoria dos atos de comércio quanto ao direito dos consumidores, os quais estavam sujeitos às normas elaboradas a partir dos atos mercantis, deu origem à teoria da empresa, segundo a qual a empresa é uma atividade organizada para a produção e circulação de bens e serviços e, por isso, não se confunde com o sujeito que a prática, tampouco com os atos previamente ordenados (MAUSS, 2003).

No Brasil, com a vinda da coroa portuguesa, em 1808, os colonizadores editaram regras que abririam o comércio brasileiro para as nações amigas, permitindo, assim, a quebra da exclusividade portuguesa e uma maior exploração mercantil no Brasil, o qual conviveu com a teoria dos atos de comércio por mais de 150 anos, adotando a teoria da empresa apenas em 2002, com a chegada do Código Civil, que conceituou empresa como uma atividade organizada para a produção ou disponibilização de bens e serviços ao mercado com o objetivo de obtenção de lucro (MAUSS, 2003).

A empresa pode ser conceituada como um organismo que desenvolve uma atividade empresarial, ou seja, aquela planejada e organizada pelo empresário que suporta todos os riscos do negócio, gere a empresa de forma administrativa para o melhor desenvolvimento da produção pretendida e planeja toda a distribuição de produtos aos diversos tipos de mercado em busca de um objetivo comum: o lucro (ARAÚJO, 2008).

O Código Civil, por sua vez, não definiu o que seria a empresa, mas apenas o empresário, ao dispor em seu art. 966: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (BRASIL, 2002).

Depreende-se da definição dos termos legais que “atividade” é um conjunto coordenado de atos voltados à obtenção de um resultado comum; “econômica” é a atividade cujo fim precípuo é a distribuição de lucro; “organizada” é a atividade habitual que conjuga fatores de produção; e “produção ou circulação de bens ou serviços” é a atividade que abrange a indústria, o comércio e a prestação de serviços.

Falar em atividade econômica leva a uma primeira conclusão de que o lucro é o seu pilar, ou seja, o principal objetivo do empresário é atingir um público-alvo (consumidores) com uma produção com poucos custos e a obtenção do maior rendimento possível (acumulação de riqueza). E no mundo globalizado, o objetivo, a despeito de ser muito mais amplo, não é diferente, pois o agente econômico permanece continuamente em busca do lucro e da rentabilidade, porém in casu, há uma extensão do público-alvo – os acionistas – que possuem outro enfoque, qual seja, o seu próprio enriquecimento (shareholder ou stockholders)[3].

Pois bem, a leitura do artigo até aqui faz o leitor perceber que desde a época do escambo até o surgimento da empresa permanece a incessante busca do homem pelo “ter”, seja conforto, poder financeiro que leva ao status social ou a satisfação de desejos.

É certo que a insatisfação humana, consequência da ambição, é uma característica natural do ser humano, e talvez este apetite em “possuir” é o motivo que o conduz a lutar, também, por mais conhecimento, pela felicidade, pela sua existência digna até a sua finitude, por auto orgulho financeiro e pelo poder, seja ele econômico, ideológico ou político.

E esta mesma avidez pelo “ter” é o que movimenta o mundo capitalista na busca do crescimento do lucro, impulsionando o consumo e, por consequência, servindo de mola propulsora do mercado e da economia mundial.

A partir desta análise surge uma indagação: isso é bom ou ruim?

Para responder a esta pergunta, retorna-se à afirmação da natureza ambiciosa do homem sob a análise da lição de Nietzsche sobre o individualismo, a “lei do mais forte” e a importância de “buscar para ter” (DURANT, 1963).

Para o filósofo, a civilização foi criada pelos fortes, pelos inteligentes, pelos homens competentes, os líderes que se destacaram da massa. Afirma o estudioso que moralistas como Sócrates e Jesus, porém, negaram essa realidade em nome dos fracos, propagando uma moral que protegia os fracos dos fortes, os mansos dos ousados, que valorizava a justiça em vez da força. Por isso, eles inverteram os processos pelos quais o homem se elevou acima dos animais e passaram a exaltar como virtudes a abnegação, o auto-sacrifício e a solidariedade.

Nietzsche consigna, porém, que somos livres para negar tais virtudes e escolher os nossos próprios valores em busca da felicidade, e é exatamente a vontade de “poder” e de “ter” que permite ao indivíduo desenvolver o seu potencial ao máximo, de modo a tornar-se um ser além-do-homem (übermensch), isto é, que se coloca acima da massa.

Conclui o filósofo que querer abolir a competição, a derrota, o sofrimento e impedir a busca pelo “ter” é impossível, porque a finalidade das experiências buscadas pelo ser humano faz parte de seu aperfeiçoamento individual.

Dito isso, é possível compreender por que o termo “sociedade de consumo” é utilizado para representar os avanços do desenvolvimento humano, bem como da atividade empresarial no sistema capitalista, ou seja, o desenvolvimento econômico e social é pautado pelo aumento do consumo, e, aqui, depara-se, novamente, com a busca pelo “ter”, tornar-se alguém além-do-homem comum.

Chega-se a outra conclusão: é exatamente a busca pelo “ter” que o desenvolvimento da atividade empresarial e, por consequência, o lucro do comércio e das grandes empresas, o crescimento econômico, a geração de empregos, o aumento da renda dos consumidores, o que acarreta um círculo vicioso e progressivo de mais e mais consumo, e isso é bom.

Nesse contexto, é possível afirmar que o Brasil adotou exatamente esse sistema econômico, qual seja, o capitalista, com vistas ao desenvolvimento social e ao crescimento econômico, garantindo aos seus cidadãos a sua inclusão na participação do crescimento econômico nacional e no seu completo desenvolvimento humano individual.

Por outro lado, curiosamente, Nietzsche faz uma crítica direta a este sistema capitalista que está sendo tratado:

Observem a loucura atual das nações que desejam produzir o mais possível e ser tão ricas quanto possível. No fim, o homem torna-se um animal de rapina: atacam-se de emboscada; obtêm coisas uns dos outros colocando-se de espreita. Chamam isso de boa vizinhança. Atualmente a moralidade comercial não é senão um refinamento da moralidade pirata — comprar no mercado mais barato e vender no mais caro. E todos esses homens clamam pelo Laissez-faire[4], mas são exatamente esses homens que mais deveriam ser supervisionados e controlados. Talvez até mesmo um certo socialismo, por perigoso que seja, fosse justificado aqui (DURANT, 1963, p. 91).

Em busca da resposta à pergunta inicial, chega-se a outra vertente no mesmo mundo empresarial, qual seja, às pessoas que estão à sua margem. Os excluídos deste encantador “mundo capitalista” do consumo acabam sendo esquecidos pelo público dominante e por aqueles que lideram o mercado. São os chamados invisíveis, e esta invisibilidade provoca o seu contínuo enfraquecimento e afastamento da cultura empresarial, que se preocupa apenas com o “público-alvo” – consumidor – desprendendo-se até mesmo de valores frágeis, mas importantes, como o respeito à ética e à cidadania, além de um estreitamento da visão de busca do bem comum da coletividade, e isso é ruim.

Aqui está o ponto de partida do presente trabalho: extirpar o lado perverso do sistema capitalista – a ganância, o individualismo, a busca pelo lucro desmedido a qualquer preço, a exploração da mão de obra sem garantir a dignidade humana, a degradação do meio ambiente, e o estímulo ao consumismo desenfreado sob o aspecto da obsolescência programada ou planejada[5] – através de uma postura solidária dos agentes econômicos que reconheça a sua responsabilidade social e a necessidade de um capitalismo consciente[6].

A problemática está em como alcançar esse duplo desafio de garantir o crescimento econômico e social almejado pelo capitalismo, mas com a consciência de que a prioridade do sistema é a valorização do ser humano e seu desenvolvimento completo e individual, o que demanda inserção da fraternidade jurídica, prevista como fundamento da República, como princípio da atividade empresarial.

3. A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO BRASIL REPUBLICANO COMO SOCIEDADE FRATERNA E O PROTAGONISMO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA

Historicamente, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, como consequência da Revolução Francesa, a fraternidade ficou evidenciada ao lado dos ideais de liberdade e de igualdade, que ultrapassaram as barreiras da harmonia social e do cristianismo para constituírem elementos de uma sociedade política capaz de interferir na forma de governo a ponto de integrar textos constitucionais como no Brasil (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789).

Consta no preâmbulo da nossa Constituição Federal:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).

O art. 3º, I, da Constituição Federal dispõe que a construção de uma sociedade solidária é objetivo fundamental da República, e de tal preceito se depreende o liame entre a fraternidade e o direito, devendo aquela ser considerada o verdadeiro princípio constitucional que serve de base para uma sociedade democrática (BRASIL, 1988).

Tendo a fraternidade grande valor constitucional por ser uma virtude política de grande dimensão humanística, um princípio a orientar tanto a interpretação infraconstitucional como a conduta estatal e humana, sem sombra de dúvidas, é um dos objetivos perseguidos pela República do Brasil. Por isso, o Estado, o governo e toda a sociedade civil passam a ser, a partir do texto constitucional, individual e conjuntamente responsáveis pela construção de uma sociedade fraterna.

A fraternidade, além de ser um objetivo, também é um dos pilares do Estado democrático de direito quando orienta todo o ordenamento jurídico e integra a terceira geração[7] de direitos fundamentais, norteada pelo ideal de solidariedade, exigindo o desenvolvimento da capacidade de ver o outro como irmão, amando-o como a si mesmo, para a concretização não só dos direitos individuais, mas também sociais.

Assim, é possível afirmar que o descumprimento desta ordem constitucional de “agir com fraternidade” afronta o Estado democrático de direito por ser um princípio jurídico, como afirma Aquini (2008, p. 138-139):

A fraternidade compromete o homem a agir de forma que não haja cisão entre os seus direitos e os seus deveres, capacitando-o a promover soluções de efetivação de Direitos Fundamentais de forma que, não, necessariamente, dependam, todas, da ação da autoridade pública, seja ela local, nacional ou internacional.

Partindo desse entendimento, é possível afirmar que fomentar uma sociedade fraterna é fazer com que todos atuem para a construção e aperfeiçoamento permanente do Estado democrático de direito, a fim de se atingir os objetivos fundamentais da República (art. 3º da Constituição Federal) (BRASIL, 1988).

Cada membro desta sociedade fraterna prevista na Constituição Federal, portanto, deve se auto responsabilizar pelos problemas sociais, reconhecer as fragilidades comuns e preocupar-se com a concretização dos direitos humanos sem prévios julgamentos na tentativa de valorizar as diferentes possibilidades, de modo a contribuir com a inclusão de todos, por meio do estímulo e prática da solidariedade.

Porém, apesar de a fraternidade estar sedimentada no Brasil como categoria jurídica constitucional, a solidariedade mútua (práticas fraternas) é, por vezes, esquecida no mundo capitalista, cujas posturas individualistas e egoístas são comuns e naturalmente aceitas como se os membros do corpo social fossem totalmente independentes, autônomos e autossuficientes, devendo cada um preocupar-se única e exclusivamente com seus próprios interesses em busca do “ter” para “ser” reconhecido como membro da sociedade.

Baggio (2008, p. 54) afirma que “A fraternidade é uma condição humana, ao mesmo tempo dada – e por isso constitui um ponto de partida – mas também a ser conquistada, com o compromisso e colaboração de todos”. E, aqui, quando se fala em todos, incluem-se os agentes econômicos, mormente a empresa, que deve exercer o seu papel social a partir da premissa de que está inserida em um Estado democrático de direito.

Ora, o Estado não consegue garantir a efetivação de todos os direitos previstos em lei para oferecer bem-estar à integralidade de sua população, cabendo, desse modo, àqueles a quem cabe a estimulação das relações sociais, como no caso da empresa, uma contrapartida para ajudá-lo a consagrar os ideais da República. Ademais, o direito empresarial deve ser interpretado e aplicado de modo que se subordine à Constituição federal, não podendo desta se desvirtuar.

Da análise do conceito de Rudolf Steiner (1861 – 1925, filósofo alemão fundador da antroposofia[8]), acerca da “trimembração do organismo social”, dimensiona-se o alcance do encadeamento e independência entre Estado e Mercado, levando-se em consideração a urgência na implementação de novos valores, formas de produção e gerenciamento das organizações (STEINER, 1961).

Steiner (1961) usou a palavra dreigliederung, que transliterada é ‘trimembração’, para indicar que a sociedade e os organismos sociais deveriam ser organizados em três membros, do mesmo modo que a constituição física humana, com funções independentes, mas que interagem entre si.

Da trimembração social” emerge a chance de o indivíduo rastrear a sua autorrealização com a ajuda do outro, de modo fraterno, para que ambos cresçam e se desenvolvam juntos. O prefixo “tri” faz despertar a compreensão de que a liberdade se arraiga ao contexto cultural e espiritual, enquanto a igualdade faz surgir os caracteres jurídicos e políticos, como equalização de tratamento entre todas as pessoas.

Desse modo, a fraternidade, ou solidariedade, liga-se à liberdade econômica, desprovida de um incentivo ao liberalismo radical, que enseja desigualdades, mas, ao contrário, o espírito básico deve ser o da igualdade de condições entre todos, para a robustez do conjunto.

Seria possível argumentar que o art. 1º, IV da Constituição Federal, ao exaltar a livre iniciativa também como fundamento da República, autorizaria comportamentos desmedidos do empresário, porém, esta liberdade concedida pelo legislador constituinte encontra limites no interesse público, ou seja, o princípio da autonomia privada é relativizado para atender às necessidades do corpo social (BRASIL, 1988).

Esta mesma linha de raciocínio é corroborada pelo art. 170 da Constituição Federal ao rezar que, além de maximizar o lucro, nos anseios da empresa, deve estar presente o atendimento à sua função social, devendo maximizar a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego (BRASIL, 1988).

Diante desse quadro, está demonstrado que é possível a adoção de um capitalismo consciente que tenha como princípio a “troca voluntária para benefício mútuo” como forma de produção de riqueza e bem-estar. Também é possível encontrar, nas organizações empresariais, um espaço potencial para o desenvolvimento humano, aprendizagem, exercício da cidadania, colaboração e autorrealização.

Aqui está a importância da abordagem sistêmica dos processos de geração de valor[9], capaz de integrar as necessidades e contribuições dos diversos públicos envolvidos, como forma de pensar no vínculo entre fraternidade e o “core business” (núcleo do negócio) como alavanca do próprio sucesso da empresa, em que todos os participantes podem ter expectativas e confiança mútua de que ninguém será preterido.

É imprescindível, nesse processo, a transformação da empresa em buscar os seus interesses internos baseando-se na valorização e bem-estar do ser humano, tendo como fundamento a lição de Kant de que o homem não tem preço, logo, é um fim em si mesmo. (KANT, 2019).

Segundo Cantarini e Guerra Filho (2012, p. 176), sem a participação do ser humano, protagonista da história, não há que se falar em processo capitalista bem-sucedido:

O problema é quem faz as escolhas e do que se pode entender por prioritário ou não, que é um critério subjetivo, até certo ponto, já que pelo critério do respeito à dignidade da pessoa humana, o critério será sempre objetivo, não sendo suporte legítimo suficiente apenas sustentar do outro lado a necessidade da segurança jurídica ou da questão do mínimo legal para a manutenção do status quo.

No capitalismo atual, prevalece, infelizmente, os valores materiais que preterem os humanos[10], e isso exige o sobrepujamento do mito de neutralidade entre os direitos humanos e o sistema econômico devorador regido pelo jargão “salve-se quem puder”, como se verá a seguir.

4. CAPITALISMO HUMANISTA: A INCLUSÃO DOS DIREITOS HUMANOS COMO PRINCÍPIO DO CAPITALISMO LIBERAL

Os princípios básicos do capitalismo liberal versam sobre a defesa do livre mercado, o direito de propriedade privada, a liberdade da ação individual, a não intervenção demasiada do Estado sobre o mercado, a competitividade econômica e a geração de riqueza.

Nessa perspectiva, aquele que se liga inexoravelmente à lógica de autovalorização do capital obviamente não terá como prioridade ou objetivo a busca do bem comum, a diminuição da desigualdade social e a proteção dos direitos humanos, pois parte do princípio de que tais objetivos não são prioridades para o desenvolvimento econômico.

A verdade é que o capitalismo mundial está enraizado em nosso tempo e modo de viver, mas o ser humano não pode ser o seu escravo, apesar de ser compelido a submeter-se aos ditames morais do mercado. E como afirma Comte-Sponville (apud CAVALCANTI, 2015, p. 32), acerca do capitalismo: “não temos nada melhor para pôr em seu lugar, mas não é esse o motivo para nos pormos de joelho diante dele”.

Campello e Santiago (2012, p. 129) alertam que “a tendência no capitalismo é a luta de uns contra os outros, numa incessante busca patrimonial e consumista, enquanto propósito final”, e nesse diapasão, resta preterido o respeito à dignidade humana como bem maior, porém, é necessário enxergar o direito humano dentro do capital com a humanização do capitalismo, seja no trabalho, no mercado de consumo ou na administração empresarial.

No trabalho, ao mesmo tempo em que este é a fonte de humanização e o precursor do ser social (produção para a satisfação das necessidades humanas), sob a lógica do capital, ele perde essa dimensão para fomentar o capitalismo, fazendo com que o vendedor de sua força de trabalho passe a ser um sujeito sem escolhas, que não pode se apropriar do resultado de sua atividade vital, e submeta-se ao capital que desumanamente se sobrepõe à sua essência humana.

Quanto às mercadorias, Coggiola (1998, p. 74) ressalta o fetichismo mercantil:

Quando se diz ‘esta mercadoria vale tanto’, ou ‘esta mercadoria tem grande possibilidade de ser vendida’, não se faz mais do que refletir na linguagem essa mistificação própria do capitalismo; os produtos do trabalho, ao terem que passar pelo mercado, dá a impressão que assumem personalidade própria; as mercadorias parecem se vender sozinhas, ou trocarem-se entre si. Marx chamou esse fenômeno de fetichismo mercantil.

Em relação ao consumo, esta volatilização e a sua voracidade com seus lucros e rendimentos direcionados à satisfação dos consumidores são fatores que dão o tom das regras do capitalismo, com a promessa de satisfação, segurança e felicidade mediante o consumo.

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são incitados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A sociedade de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer a felicidade na vida terrena, aqui e agora, e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua. Também é a única sociedade que evita justificar e/ou legitimar qualquer espécie de infelicidade (…), também na sociedade de consumidores a infelicidade é crime passível de punição, ou no mínimo um desvio pecaminoso que desqualifica seu portador como membro autêntico da sociedade (BAUMAN, 2008, p. 61).

A extrema individualidade, pela qual se expressa o consumismo, leva o ser humano, por outro lado, ao desinteresse das mais variadas formas de relacionamento sólido, gerando a modernidade líquida evidenciada por Bauman (2010).

Por fim, no mundo da gestão empresarial, a globalização trouxe o medo. Beck (2011) afirma que, muito embora a globalização contribua com o rompimento das fronteiras, a quebra dos limites, a empresa torna-se cada vez mais solitária no mundo empresarial, gerando o medo do “estranho”, “do novo” e do “sufocamento”, tendo que enfrentar riscos contínua e cotidianamente, o que gera insegurança, pois o empresário tem sempre um pé no chão e outro no abismo diante do aparecimento de múltiplas necessidades.

Bauman (2010), por sua vez, corrobora essa reflexão afirmando que o medo do empresário se revela no seu próprio vizinho, que passou a ser um desconhecido, pronto para atropelá-lo ante a ausência de freios na disputa competitiva.

Sob esta perspectiva, surge a vertente humanista do capitalismo.

O capitalismo humanista é uma teoria desenvolvida por Sayeg e Balera (2011), em que se propõe um novo vetor do capitalismo, enquanto regime econômico, de modo a garantir a concretização de direitos humanos de primeira, segunda e terceira dimensões, relativizando o direito à propriedade e à livre iniciativa.

O capitalismo humanista é um novo olhar sobre o regime econômico prevalecente na pós-modernidade, a fim de consagrar a dignidade da pessoa humana.

Trata-se, aqui, do humanismo antropofílico[11], que é fraterno, inclusivo, evolucionista e emancipador, que proclama a concretização multidimensional dos direitos humanos, diversamente do capitalismo tradicional, onde está presente o humanismo antropocêntrico, que aprofunda os interesses egoístas e individuais dos homens.

O capitalismo liberal, embora seja teoricamente fundado na dimensão da liberdade econômica, se posiciona equivocadamente como se ela fosse dissociável da fraternidade, o que, sob a perspectiva dos direitos humanos, é inaceitável, pois o que importa são os Homens, e não o sistema.

São relevantes, neste contexto, as palavras de Machado (2013, p. 79):

A fraternidade (…) deve ser compreendida, por certo, não exclusivamente como um elemento de fé ou mesmo de crença – apesar de entender que é exatamente no cristianismo que encontra seus fundamentos –, mas como uma virtude da cidadania, que supera as fronteiras da pátria ou da nação (cidadania interna), numa perspectiva (…) universal da pessoa humana (cidadania global).

(…) outra não pode ser a conclusão: a Constituição Federal, efetivamente, consagrou a fraternidade como princípio-valor-categoria jurídica.

A tríade das três dimensões dos direitos humanos, quais sejam, a igualdade, liberdade e fraternidade, é o valor consubstancial de todos os homens, bem como o núcleo da dignidade humana, ou seja, que atribui objetivamente à pessoa humana o seu valor. No entanto, deve-se advertir que estas dimensões não se sucedem ou se sobrepõem, mas se adensam, pois os direitos humanos devem ser executados como uma universalidade jurídica, não sendo admissível a sua ruptura (BALERA; SAYEG, 2011).

Diante de tais esclarecimentos acerca do humanismo antropofílico e da Lei Universal da Fraternidade[12], enquanto bases do capitalismo humanista, urge relacionar estas lições com o domínio econômico, concretizando os direitos humanos e a fraternidade com o devido respeito aos princípios e ao regime econômico que domina o mundo, impedindo a existência de um capitalismo predatório[13].

O bem-estar social é de competência e responsabilidade do Estado Brasileiro, sendo este assegurado pela Constituição Federal, que tem o dever de zelar pela garantia da dignidade humana, impedindo qualquer retrocesso social (BRASIL, 1988).

Aí está a vinculação entre capitalismo e direitos humanos, a estruturação do sistema econômico deve ter como premissa a valorização do ser humano e o desenvolvimento social. É certo que o capital, em boa parte, flui por intermédio das empresas, porque o foco não deve ser apenas este, como assevera Nalini (2011, p. 120):

A empresa não pode ser uma fábrica de lucros. Ela tem compromissos com um grande projeto de tornar a humanidade menos infeliz. Paradoxalmente, ao deixar o egoísmo do capitalismo sem freios, o empresário obteve aquilo que parecia haver preterido: lucro maior. Pois quando o ser humano se propõe a um desafio maior, mais ousado e pleno de significância, ele se torna mais ousado, corajoso, empreendedor e autoconfiante.

Sem sombra de dúvidas, o capitalismo é o sistema econômico que provou ser capaz de satisfazer as necessidades e desejos materiais da sociedade, mas é necessária uma reflexão filosófica sobre o seu funcionamento e o lugar em que o ser humano está nele inserido.

O funcionamento do capitalismo baseia-se no extrativismo das fontes naturais e da sociedade, sem qualquer contrapartida a estes dois entes. Daí a necessidade de a fraternidade integrar o sistema capitalista como um elemento limitador de egoísmo e individualismo gerado pelo valor econômico.

A economia deve ser sustentável, ou seja, deve funcionar de acordo com os princípios regenerativos de tudo o que é utilizado, seja na natureza, seja na sociedade, e a sua atividade deve estar, também, baseada na confiança entre todos, e não apenas nas leis ou contratos, devendo refletir um sentimento de preocupação com a dignidade da pessoa humana.

Diante dessa reflexão, é necessária uma revisão acerca do mundo capitalista neoliberal, de modo a recolocar o ser humano como centro e fim da destinação de todos os recursos existentes no planeta, e não apenas como meio do poder econômico.

5. MUDANÇAS COMPORTAMENTAIS EMPRESARIAIS NO CAPITALISMO HUMANISTA PARA A CRIAÇÃO DE UMA SOCIEDADE FRATERNA

Na relação entre empresa e pessoa, obviamente predomina a desigualdade de patamares, seja entre grandes e pequenas empresas, empresa e empregado, empresa e consumidor ou empresa e sociedade, decorrente do desnivelamento de poder e recursos, e essa desigualdade no mundo capitalista passa cruelmente a autorizar ações desrespeitosas e egoístas em relação aos mais vulneráveis, e tal comportamento, resguardado pelo poder econômico, é aceito sem qualquer sanção.

O que se pretende com este trabalho é demonstrar que os objetivos social e humano da empresa possuem valor inestimável frente ao organizacional e ao financeiro. A empresa deve compartilhar com seus clientes, investidores, funcionários, comunidades e sociedade todo o seu potencial de desenvolvimento, tornando-se uma empresa humanizada[14], com a mudança do antigo paradigma da política empresarial egoística, que possui apenas a obtenção do lucro como foco.

O interesse da empresa não pode ser ganhar acerca da desvantagem do outro, mas a busca pela prosperidade mútua, agregando aos seus valores as responsabilidades humana e social, sendo intermediadora de uma relação fraterna com a sociedade.

Essa busca foi analisada por Pedro Paro, que estipulou quatro pilares baseados no livro Capitalismo consciente: como libertar o espírito heroico dos negócios (MACKEY; SISODIA, 2018): a) propósito maior; b) orientação para stakeholders; c) liderança; e d) cultura consciente, como caminho para a empresa alcançar a humanização.

Passar-se-á à análise de cada um deles (Figura 1):

Figura 1 – Quatro pilares

Quatro pilares
Fonte: Sisodia; Henry e Eckschmidt (2016).

Propósito maior: o propósito é a intersecção entre os talentos de uma empresa e as necessidades do mundo, e esse conceito se aplica tanto aos indivíduos quanto às organizações. O propósito maior representa a vocação organizacional, o ponto exato no qual as pessoas podem encontrar o verdadeiro significado e a realização no trabalho. O propósito é a razão de ser, define o motivo de existir e o impacto que um grupo de pessoas tem na sociedade, e ele deve ser suficiente, convincente e inspirador para revigorar todos os membros da comunidade de uma empresa, preocupando-se e atendendo as necessidades mais profundas de seus stakeholders.

Gerar valor compartilhado: stakeholders, como dito anteriormente, são todas as entidades, grupos de pessoas, ligadas e/ou impactadas pelo negócio. Ter uma orientação para atender as necessidades dos stakeholders é uma forma de explorar o potencial, de basear a criação de valor em uma abordagem sistêmica diferente da abordagem tradicional exclusiva de geração e valor, exclusiva dos acionistas (stockholders), focada apenas na maximização do lucro. Gerenciar uma empresa pensando nos stakeholders é extinguir o sistema tradeoff, em que alguém precisa perder para o outro ganhar. Possuir uma diretriz para responder às necessidades dos stakeholders significa inovar e utilizar-se do empreendedorismo para melhorar a situação de todos os principais envolvidos com o negócio, colocando todos os seus interesses na mesma direção e gerando valor para todos, ou seja, um valor compartilhado.

Liderança consciente: os líderes devem estar a serviço de uma causa maior que ultrapasse os próprios interesses. A liderança deve ser baseada em propósito, inspiração, cuidado, compaixão e solidariedade. A liderança consciente é totalmente humana, integra o masculino e o feminino, o coração e a mente, o espírito e a alma. Combina os sistemas e a eficiência ocidental com a sabedoria e a eficácia oriental. Os verdadeiros líderes servidores aspiram à liderança para ajudar a moldar uma visão inspiradora do futuro e ajudar as pessoas a chegarem lá juntas, sem deixar ninguém para trás. Eles despertam os pontos fortes das outras pessoas e constroem uma cultura na qual mais pessoas desejam se tornar líderes, isto é, caminham ao lado, e não à frente.

Cultura consciente: cultura são os valores incorporados, os princípios e as práticas subjacentes ao tecido social de um negócio que permeiam suas ações e conectam os stakeholders uns aos outros e ao propósito do negócio. Uma cultura responsável representa o comprometimento dos colaboradores com o propósito do negócio proporcionando uma cultura com alto nível de confiança, efetividade, sinceridade e cuidados genuínos. Existem muitas maneiras pelas quais uma organização pode estimular uma cultura responsável, e uma delas passa pelo desenvolvimento de relacionamentos que valorizam sete qualidades, representadas pelo acrônimo TACTILE: T de trust (confiança); A de authenticity (autenticidade); C de caring (cuidado); T de transparency (transparência); I de integrity (integridade); L de learning (aprendizado); E de empowerment (empoderamento).

Em suma, a empresa que direciona o seu foco ao desenvolvimento humano e social serve como ponte para uma sociedade fraterna, solidária, além de criar um significado acerca da sua função na sociedade, no sistema econômico e no mundo.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como objetivo ponderar a viabilidade do capitalismo humanista, interligar a empresa e a sociedade por meio de comportamentos fraternos, como uma alternativa de mudança necessária da lógica do capitalismo liberal, e, sobretudo, responder o questionamento acerca da possibilidade de efetivação dos direitos humanos no sistema capitalista globalizado.

Após a breve exposição acerca da evolução histórica da empresa no Brasil, submetida a um capitalismo devorador da dignidade do ser humano, mormente dos mais vulneráveis, passou-se à apresentação da teoria do capitalismo humanista, cujo foco é a demonstração de amor ao próximo para a busca do bem comum, chegando-se à conclusão de que a fraternidade pode ser uma ferramenta para uma nova perspectiva do sistema capitalista, como instrumento de efetivação dos direitos humanos.

A economia brasileira é estruturada por regras delimitadas por normas e princípios, ou seja, há fundamentos constitucionais sobre o direito econômico que são encontrados no preâmbulo da Constituição Federal, bem como nos arts. 1º, 3º, e especificamente 170 e seguintes, e últimos compõem o Título Sétimo da Carta Magna, que trata do direito econômico (BRASIL, 1988).

No preâmbulo da Constituição federal, o povo indica as razões pelas quais cria o Estado Brasileiro, e dentre elas estão: assegurar o exercício dos direitos sociais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento integral, a igualdade e a justiça, os quais impactam diretamente no sistema econômico fundado na harmonia social.

O art. 1º da Constituição Federal estabelece os fundamentos, a base do Estado democrático brasileiro, e, do mesmo modo, há alguns que influenciam diretamente no sistema econômico, como a soberania (mormente a proteção da empresa nacional), a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (BRASIL, 1988).

O art. 3º da Magna Carta, por sua vez, elenca os objetivos fundamentais da República e do Estado, os quais, igualmente, fornecem diretrizes à economia, porquanto pregam que o país deve buscar a construção de uma sociedade livre, justa e solidária tanto no âmbito dos direitos pessoais quanto econômicos, com a construção de uma economia que prima pelo cooperativismo, solidariedade, diminuição das desigualdades,  justiça e  liberdade, que garanta o desenvolvimento nacional a ponto de equiparar a nossa economia àquelas maiores do mundo e erradicar a pobreza e a marginalização que segrega os mais pobres (BRASIL, 1988).

Como se não bastasse, todos estes objetivos e fundamentos estão relacionados ao desenvolvimento humano integral.

Nesse contexto, é possível concluir que, a despeito do art. 170 da Lei Maior, não haverá uma economia ideal integralmente planejada pelo Estado, mas, sombra de dúvidas, é essencial que haja um posicionamento estatal para a garantia de todos os direitos constitucionalmente considerados para a concretização dos objetivos da República, mormente quanto à dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988).

A partir da vertente humanista ora suscitada, observa-se que, dentro do sistema econômico, é imprescindível que o sujeito seja considerado em sua singularidade e como peça principal da coletividade, isto é, como meio e fim da economia, entendendo-se como desenvolvimento integral da economia não a mera acumulação de riquezas, mas a prosperidade conjunta de todos os que integram a sociedade.

Esta visão humanista do capitalismo, com a empresa servindo de elo entre o desenvolvimento econômico e social, evidencia-se quatro pilares necessários à atividade empresarial para a busca de sua humanização, quais sejam, um propósito maior, a geração de valor compartilhado, a liderança consciente e a cultura consciente, de modo que a empresa, por intermédio da fraternidade, seja um instrumento de diminuição das desigualdades sociais e da marginalização. O legislador constituinte atribui à empresa a responsabilidade de se importar com a dignidade da pessoa humana, cuidar do meio ambiente e seus recursos naturais, enfim, que este agente econômico tenha como princípio a proteção do mundo e das pessoas que nele estão inseridas.

Essa mudança somente será possível com um sistema capitalista que busca o crescimento econômico sem desconsiderar valores sociais em qualquer aspecto.

A fraternidade deve ser encarada pelo capitalismo como uma ação empresarial de consciência e responsabilidade planetária, afinal, todos os habitantes da Terra são pessoalmente responsáveis pelo bem-estar da vida humana.

É possível concluir, enfim, que o capital está efetivamente a serviço do homem, e não o contrário. Por isso, a empresa no sistema capitalista humanista terá como meta direta proporcionar uma vida digna e plena a todos, ante o ideal de exercício da fraternidade, cooperando para um desenvolvimento integral e coletivo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Presidência da República, 2002. Disponível em: planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 22 dez. 2022.

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CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio; SANTIAGO, Mariana Ribeiro. Anatomia do capitalismo humanista. In: CAMPELLO, Livia Gaigher Bósio; SANTIAGO, Mariana Ribeiro (org.). Capitalismo humanista e direitos humanos: estudos em homenagem aos Professores Ricardo Sayeg e Wagner Balela. Florianópolis: Editora Conceito, 2012.

CANTARINI, Paola; GUERRA FILHO, Willis Santiago. O superendividamento e o lucro bancário em face da dignidade humana, do princípio constitucional da proporcionalidade e da doutrina do capitalismo humanista. In: CAMPELLO, Livia Gaigher Bósio; SANTIAGO, Mariana Ribeiro (org.). Capitalismo humanista e direitos humanos: estudos em homenagem aos Professores Ricardo Sayeg e Wagner Balela. Florianópolis: Editora Conceito, 2012.

COGGIOLA, Osvaldo. Introdução à teoria econômica Marxista. São Paulo: Editora Viramundo, 1998.

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GHOSH, Peter. Max Weber em contexto: ensaios sobre a história das ideias alemãs. Heidelberg: Editora Harrassowtz Velag, 2016.

IKERD, John. O capitalismo sustentável: nossa melhor esperança para o futuro. Stylourbano, 2016. Disponível em: stylourbano.com.br/o-capitalismo-sustentavel-nossa-melhor-esperanca-para-o-futuro/. Acesso em: 3 maio 2022.

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MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

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NALINI, José Renato. Sustentabilidade e ética empresarial. In: SILVEIRA, Vladmir Oliveira da. et al. (coord.) Empresa, Sustentabilidade e Funcionalização do Direito. São Paulo: Editora RT, 2011.

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REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

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SISODIA, Raj; WOLFE, David B.; SHETH, Jag. Empresas humanizadas: pessoas. propósito. performance. Rio de Janeiro: Editora Alta Books, 2020.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Shareholders e stockholders: a empresa é apenas vista como uma entidade que gera benefícios econômicos (lucros) aos seus proprietários e acionistas.

4. Laissez-faire: conceito do liberalismo clássico de Adam Smith e do capitalismo, que prega o Estado mínimo e a livre concorrência como forma reguladora de preços.

5. Obsolescência programada ou planejada é a produção de mercadorias previamente elaboradas para serem rapidamente descartadas, fazendo com que o consumidor compre um novo produto em breve. Assim, aumenta-se o consumo, mas também aumenta a demanda por recursos naturais e maximiza a produção de lixo, elevando ainda mais a problemática ambiental decorrente desse processo.

6. Capitalismo consciente é uma filosofia de negócios desenvolvida por John Mackey, cofundador e CEO da Whole Foods Market, e Raj Sisodia, especialista em gestão e professor da Babson College. Em breve síntese, capitalismo consciente é uma “maneira de pensar sobre o capitalismo e os negócios que reflita sobre onde estamos na jornada humana, o estado de nosso mundo hoje e o potencial inato dos negócios para causar um impacto positivo no mundo” (MACKEY; SISODIA, 2018, p. 197).

7. A teoria das gerações foi desenvolvida por Karel Vasak por meio de um texto publicado em 1977, bem como uma palestra proferida em 1979, fruto de uma conferência no Instituto Internacional de Direitos Humanos de Estrasburgo (França). A primeira geração seria os direitos de liberdade, individuais, civis e políticos. A segunda geração consiste nos direitos voltados à igualdade (econômicos, sociais e culturais, próprios de um vigoroso papel ativo do Estado). A terceira geração trata dos direitos de titularidade da comunidade (direitos de solidariedade/fraternidade) (MARMELSTEIN, 2008).

8. A antroposofia, do grego “conhecimento do ser humano”, introduzida no início do século XX pelo austríaco Rudolf Steiner, é uma ciência espiritual moderna e prática que propõe uma forma livre e responsável de pensar, de perceber a realidade e de atuar, observando e respeitando o ser humano e a realidade na qual está inserido (STEINER, 1997).

9. Processo de geração de valor ou cocriação de valor é o processo por meio do qual os conhecimentos, experiências e visões de um grupo de pessoas tornam-se explícitos e são organizados de forma estruturada, no contexto de um negócio ou processo específico, orientado para estabelecer uma proposta de valor sólida e abrangente.

10. No capitalismo clássico, os bens materiais são o que definem o valor do ser humano, pois os valores são propriedade do indivíduo e não da sociedade (GHOSH, 2016).

11. Humanismo antropofílico é aquele em que os direitos humanos são respeitados, já que existe uma visão fraterna entre os homens e destes com o planeta. (NOBRE, 2021,)

12. A Lei Universal da Fraternidade impõe que não existe solução de direito que contrarie o direito objetivo da dignidade da pessoa humana, de acordo com o realismo jurídico. (BALERA; SAYEG, 2011).

13. O capitalismo predatório não considera a natureza um bem comum de todos, mas apenas uma fonte de recursos inesgotável a ser explorada. No capitalismo predatório, o que importa é o capital, produzir e vender de forma incessante, acumular recursos e o desenvolvimento econômico a qualquer custo. (IKERD, 2016)

14. Empresa humanizada é uma instituição que se empenham através de suas palavras e ações para serem bem-vistas por todos os seus principais clientes, funcionários, fornecedores, comunidade e acionistas, aderindo os interesses de todos de tal modo que nenhum grupo ganhe acerca da desvantagem do outro; de preferência, todos prosperam juntos. (SISODIA; WOLFE; SHETH, 2020).

[1] Doutoranda em Direito, Mestre em Direito, Especialista em Direito Processual Penal, Especialista em Direito Processual Civil, Especialista em Direito Civil, Graduada em Direito.

[2] Mestre e doutora em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Crimes Eletrônicos e Crimes Econômicos pela UCLM (Toledo, Espanha), em white collor crimes, Compliance e Governança Corporativa e Chief Legal Officer.

Enviado: Outubro, 2021.

Aprovado: Dezembro, 2022.

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Najme Hadad Sanches

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