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Educação Especial Inclusiva: Análise do Decreto 10.502

RC: 70726
1.459
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/analise-do-decreto

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MARTINS, Geisse [1], OLIVEIRA, Maria Inês Vasconcelos Rodrigues de [2]

MARTINS, Geisse. OLIVEIRA, Maria Inês Vasconcelos Rodrigues de. Educação Especial Inclusiva: Análise do Decreto 10.502. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 12, Vol. 15, pp. 97-112. Dezembro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/analise-do-decreto, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/analise-do-decreto

RESUMO

Este artigo analisa a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”, instituída pelo Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020. O objetivo é entender como o decreto despertou a reflexão de determinados setores da sociedade, que se manifestaram sobre suas implicações, tanto no campo jurídico quanto no campo pedagógico. No afã de fazer uma reflexão científica e atual, traz à baila todo o constructo acerca da educação inclusiva no Brasil, por meio da perspectiva das leis e políticas públicas brasileiras e internacionais, bem como a análise sob um prisma social e antropológico, em que o fato social “inclusão das pessoas com deficiência” é o ponto fulcral da análise e reflexão.

Palavras-chave: educação, especial, inclusiva, equitativa, decreto.

1. INTRODUÇÃO

Na Grécia antiga, Platão, em sua busca pela verdade, propôs, em sua alegoria do mito da caverna, que é necessário não confiar plenamente na percepção humana, uma vez que essa é falha e que não representa efetivamente a realidade das coisas. Pode-se afirmar que percepção não é compreender, de fato, a realidade.

A partir da proposição do filósofo grego, cada vez mais, suas considerações memorativas se apresentam como uma reflexão, no mínimo, inquietante na atualidade, sobretudo para a educação. No tocante às políticas públicas brasileiras, perceber o que é bom ou mal, certo e errado, e emitir juízo de valor é uma tarefa complexa no campo da educação.

Recomenda-se analisar e investigar o quanto do intrincado arcabouço jurídico brasileiro interfere diretamente na educação e no modo de vida das pessoas – com ênfase para as pessoas com deficiência que, por meio da educação, podem ampliar as suas potencialidades, habilidades e competências.

Numa perspectiva realista, vislumbra-se a educação como uma forma não só de construção da cidadania, mas também como da própria formação do tecido social, entrelaçando cultura, conhecimento e a própria vida das pessoas.

Por conseguinte, a Constituição Federal, norma fundamental, afirma: “Educação como direito de todos”. Dessa expressão, derivam importantes consequências jurídicas, leis e políticas, que atuam como marco norteador para uma série de análises da dimensão democrática do direito à educação. Além disso, em face de sua posição cardeal, a expressão derrama seus efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e, a sociedade, de forma geral, tem que se conformar, em face da supremacia da norma constitucional.

O resultado desse esforço, de forma indelével, nos permite consumar que esse direito fundamental sela parâmetros não elásticos para a construção de toda e qualquer norma que trate de garantias, direitos e deveres de todos os envolvidos com a Educação Especial inclusiva no Brasil. Ou seja: a educação é para todos.

Em junho de 2007, um grupo de trabalho nomeado pela portaria ministerial de número 555, que foi prorrogada pela portaria de número 948 (outubro de 2007), elaborou o documento intitulado “Política Nacional de Educação na perspectiva da Educação Inclusiva”. Nesse documento do Ministério da Educação, pode ser destacado o seguinte trecho:

(…) a Constituição Federal de 1988 traz como um dos seus fundamentos “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso IV). Define, no artigo 205, a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. No seu artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” como um dos princípios para o ensino e garante, como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208).

É fato que, embora as leis e as suas variantes galopem a uma velocidade alucinante, o mesmo não acontece com a realidade da Educação Especial Inclusiva, nos ambientes escolares e não escolares espalhados pelo país, onde ainda há injustiças e isso permanece.

A inteligência de Ranieri e Righetti (2009, p. 26) nos ajuda:

No contexto atual, não nos parece subsistir dúvidas quanto à inclusão do direito à educação no elenco dos direitos humanos fundamentais, amparado, portanto, por um quadro jurídico-constitucional que vem a lhe assegurar, também, um sistema de garantias. É direito fundamental porque, de uma banda, consubstancia-se em prerrogativa própria à qualidade humana, em razão da exigência de dignidade, e, de outra, porque é reconhecido e consagrado por instrumentos internacionais e pelas Constituição que o garantem.

Com aproximadamente 24% da população brasileira (cerca de 45 milhões de pessoas) que se autodeclara com algum tipo de deficiência, segundo dados do censo demográfico do IBGE, em 2010, o Brasil − no que se refere à pessoa com deficiência − precisa fazer com que a força da lei seja acompanhada de uma conscientização pública e de ações que promovam a efetivação da garantia do direito de todos à Educação, como condição fundamental para o pleno desenvolvimento dessas pessoas − em todas as suas dimensões −, o preparo para exercer a cidadania e para a sua inserção no mercado de trabalho, propiciando, assim, uma verdadeira inclusão −  não somente de direito, mas, sobretudo, de fato.

Sabe-se que, no contexto da educação de pessoas com deficiência, muitas conquistas já se fixaram, porém muito ainda há que se fazer, uma vez que o número de matrículas de pessoas com laudo médico atestando alguma deficiência cresce vertiginosamente. Cada vez mais, as escolas e os equipamentos sociais se veem diante de uma realidade latente e que, por vezes, as políticas públicas não se alinham com as demandas sociais da sociedade brasileira.

2. DESENVOLVIMENTO

Anualmente, é realizado o Censo Escolar/MEC/INEP nas escolas de educação básica, que permite a aferição e o acompanhamento dos indicadores da Educação Especial, tais como: acesso e matrícula, ingresso nas classes comuns, oferta do atendimento educacional especializado, acessibilidade nas escolas, municípios com matrícula de alunos com necessidades educacionais especiais, formação docente para o atendimento às necessidades educacionais especiais e outros.

Os dados de 2019 revelam que o número de matrículas de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, em salas de aula comuns, cresceu em todas as etapas de ensino.

De acordo com a Política Nacional de Educação Especial (PNEE): equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida, oriundo da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação, desde 2008, o número de matrículas na educação especial inclusiva apresentou um crescimento exponencial: em apenas 11 anos, houve um crescimento na ordem de 190% no número de matrículas na rede regular de ensino.

Quadro 1: Educação Especial no Brasil. Evolução das matrículas em classes comuns – Censo MEC (2008 a 2019).

Fonte: micro dados do Censo Escolar Inep/MEC (2008 a 2019).

Com um aumento real na ordem de 79,8% no período que compreende de 2008 a 2019, houve, nesse intervalo de tempo, um aumento de 696 mil matrículas para mais de 1,25 milhão em 2019. Sendo que, de acordo com o documento, em 2008, 320 mil matrículas foram referentes a classes exclusivas e 376 mil referiam-se a escolas comuns (convencionais ou regulares). Segundo o Censo Escolar de 2019, 87,2% dos estudantes do público-alvo da educação especial inclusiva estavam matriculados em classes comuns e 12,8% estavam em escolas especializadas.

Figura 1: Educação Especial no Brasil. Matrículas em classes comuns e exclusivas – Censo MEC/2019.

Fonte: PNEE MEC/2019 – matrículas em classes comuns e exclusivas.

Importante enfatizar que, diametralmente oposto, o censo apurou uma queda de 50% no número de matrículas de pessoas com deficiência em idade escolar em núcleos ou escolas com atendimento exclusivo. De acordo com esse relatório, em 2008, como já dito, foram registradas 320 mil matrículas em classes especiais; porém, em 2019, o número era de apenas 160 mil.

Quadro 2: total de matrículas da educação especial nos sistemas de ensino no período de 2008 a 2019, tanto nas classes especializadas quanto nas classes comuns.

Fonte: micro dados do Censo Escolar Inep/MEC (2008 a 2019).

De certo que os números estatísticos relacionados a educação especial e inclusiva no Brasil não são capazes de refletir uma realidade consistente. Os números apresentados pelo censo escolar são, por vezes, esquálidos em detrimento aos seguintes pontos:

  • Grande parte dos pais ou responsáveis não querem admitir que seus filhos sejam pessoas com deficiência e não autorizam incluir no censo escolar;
  • Algumas pessoas com deficiência em idade escolar ainda estão em busca de um laudo médico que possa identificar suas condições, características e singularidades e, portanto, não figuram no censo escolar;
  • Como os equipamentos sociais (hospitais, clínicas, centros de apoio etc.) não estão interligados com as escolas, o tempo médio para uma família conseguir laudos, diagnósticos e acompanhamento adequado e especializado é, em média, de 24 meses no Brasil, o que também afasta essas pessoas de figurarem nos dados estatísticos escolares sobre a educação especial e inclusiva.

O diagnóstico, com base em dados tão abrangentes e precisos como esses, é o primeiro passo para as políticas públicas eficazes, que se traduzam em serviços de qualidade, desenvolvimento e combate às desigualdades sociais, impedindo que as pessoas com necessidades educacionais especiais fiquem invisíveis, relegadas à própria sorte, como bem salientou a professora Mantoan (2003, p. 14): “Educação inclusiva é uma educação voltada para a cidadania global, plena, livre de preconceitos e que reconhece e valoriza as diferenças”.

Quadro 3: Matrículas por tipos de deficiência, TGD ou AH/SD – Censo MEC/2019.

Fonte: micro dados do Censo Escolar Inep/MEC (2019).

Em virtude desse aumento significativo de pessoas com deficiência ingressantes na escola comum da rede regular de ensino, um conjunto de transformações vem ocorrendo na sociedade brasileira; por conseguinte, o tema suscita discussões e alguns questionamentos emergem, tais como: qual a diferença entre Educação Especial e Educação Inclusiva? Será que as escolas especiais vão acabar? O que de fato é uma escola inclusiva no Brasil? Quais são os desafios da educação inclusiva? O que é melhor para a sociedade: escolas especiais ou escolas inclusivas? Integração, segregação ou inclusão?

Esse conjunto de questionamentos não são raros: têm se tornado frequentes nos ambientes escolares e, também, junto às famílias e à sociedade, mais atenta e com reduzida “indiferença ao texto constitucional”, na expressão do Ministro Luis Roberto Barroso (2006), do Supremo Tribunal Federal, que, ao analisar os 20 anos após a redemocratização, com a Constituição de 1988, afirmou que “um sentimento constitucional, ainda tímido, mas já suficiente para ser celebrado, porque começa a afastar dos brasileiros a histórica indiferença ao texto constitucional”. Pode-se afirmar que o povo brasileiro tem pleno acesso ao real significado do direito subjetivo e universal à educação: é diretamente exigível e acessível pelo particular, inclusive na via judicial.

Não obstante, pode-se afirmar com clareza que as pessoas que integram a sociedade brasileira percebem que é uma sociedade que tem plena compreensão das verdadeiras dimensões do direito subjetivo público à educação.

Temos aqui um fato inquestionável: a escola é um extrato da sociedade. Seu papel hoje vai muito além da mera transmissão de conteúdos e reflete diretamente na cultura e nas ações, razão pela qual precisa se transformar em uma escola inclusiva, que acolhe, não discrimina e que se compromete com a integralidade do ser humano, combatendo os principais problemas identificados, com a finalidade de propiciar o pleno desenvolvimento de crianças,  jovens e adultos em sua trajetória escolar.

A instituição que educa deve deixar de ser “um lugar” exclusivo em que se aprende apenas o básico (as quatro operações, socialização, uma profissão) e se reproduz o conhecimento dominante, para assumir que precisa ser também uma manifestação de vida em toda a sua complexidade, em toda sua rede de relações e dispositivos com uma comunidade, para revelar um modo institucional de conhecer e, portanto, de ensinar o mundo e todas as suas manifestações. (IMBERNÓN, 2002, p. 8).

A sociedade, através do governo e seus equipamentos sociais (escolas, hospitais, judiciário, Ministério Público e até mesmo organizações não governamentais), em grande medida, se articula no afã de tentar não somente responder às questões anteriormente levantadas, mas também de atender aos anseios e necessidades relacionados às pessoas com deficiência e suas principais demandas, sendo a escolar a vertente que mais envida esforços nos processos de acolhimento e inclusão social, de fato e de direito.

Nessa direção e sentido que o direito, em sintonia com a educação, se apresenta como guardião de garantias e não há nenhuma extravagância nisso. O direito, como ciência, se aproxima do fenômeno humano, das relações sociais, do fato social − isso ocorre em uma sociedade de inspiração democrática, em que seu arcabouço jurídico consolida os anseios de sua comunidade. Mas é imperativo ressaltar que pode haver interpretações equivocadas dessa realidade e que, esses equívocos, suscitados por paixões ou mesmo desconhecimento da realidade, podem se refletir em leis, decretos e outros instrumentos jurídicos, colocando em dúvida, ou até em última análise, confrontando a Constituição ou outras leis que já asseguram direitos e deveres, oriundos de uma longa conquista pautada por lutas das famílias das pessoas com deficiência no Brasil. As leis são fruto da realidade social e nesse aspecto são a expressão dos anseios, das dores e existem para proteger em especial os mais frágeis.

Nesse contexto, a Política de Educação Especial do Ministério da Educação − na perspectiva da Educação Inclusiva − se propõe a criar condições e disponibilizar recursos para que os sistemas de ensino estaduais e municipais garantam a todas as crianças o acesso ao ensino regular, a participação, a aprendizagem e a continuidade em todos os níveis de ensino. Os principais instrumentos para a efetivação dessa política são:

  • O atendimento educacional especializado, que se realiza por meio das salas de recursos multifuncionais;
  • A formação inicial e continuada dos professores, para o atendimento educacional especializado, e demais profissionais da educação para uma visão de escola inclusiva;
  • A participação da família e da comunidade na construção e no acompanhamento do projeto político-pedagógico da escola e;
  • A utilização dos recursos de acessibilidade na arquitetura dos prédios, nos meios de transporte e locomoção, no mobiliário, na comunicação, na informação e na aprendizagem.

Outro aspecto relevante a ser mencionado é o fato de, atualmente, no Brasil, há mais de um milhão de profissionais envolvidos com a Educação Especial Inclusiva (de acordo com dados do censo escolar – INEP, 2019) e, nesse quadro, o papel do professor é fundamental. Não obstante, há também, dentro do contingente de docentes no Brasil, um número expressivo de pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades ou superdotação, e isso é importante, pois reafirma as afirmações que a escola é, sim, de fato um extrato da sociedade e apresenta em suas estruturas as dimensões estatísticas de suas populações em suas respectivas comunidades.

Cabe aqui ressaltar que são muitas as competências que envolvem a profissão docente. Além do domínio do conteúdo que ensina, o professor necessita ter participação no projeto pedagógico da escola, seus métodos e didática. Por outro lado, precisa também de condições de trabalho, infraestrutura e acesso às tecnologias, ser bem remunerado e bem formado, além de ter autonomia para trabalhar.

Na perspectiva da educação inclusiva, os professores, juntamente com a escola, precisam estar preparados para o desafio contínuo de acolher alunos com necessidades especiais, reconhecer suas premências educacionais e oferecer a eles as melhores condições de aprendizagem.

É certo que entre os anseios e a realidade há um hiato notável, mas fato é que, desde 2008, com o início da implementação da Política Nacional de Educação Especial, mudanças e avanços significativos estão acontecendo e estes permitem prosseguir na consolidação de uma escola para todos, com oportunidades de aprendizagem e de convivência entre os diferentes.

Diante dos aspectos pontuados, desvelar e aprofundar conhecimentos sobre um tema tão em voga e abrangente faz-se mais que necessário, sobretudo para se posicionar frente a uma realidade viva e pulsante nos ambientes escolares e na sociedade contemporânea.

Nessa perspectiva que, em setembro de 2020, com o advento do Decreto 10.502, existiu uma imediata convulsão por parte de pesquisadores, professores, profissionais da educação, do direito e entidades de representação das pessoas com deficiência (e suas respectivas famílias), que se pronunciaram de forma veemente contra o decreto, por acreditarem que há pontos que se apresentam de forma ambígua, sujeitos a diferentes interpretações.

Neste instante, antes de entrar no cerne desta celeuma, se faz imperativo uma certa digressão para compor rapidamente uma linha do tempo, em que figuram os principais marcos legais brasileiros e internacionais, em que o Brasil, além de signatário, apoiou-se para determinar políticas públicas e leis no tocante a educação especial inclusiva.

Figura 2: Principais Marcos Legais Nacionais e Internacionais.

Fonte: elaborado pelo autor.

De forma geral, os marcos legais objetivam estabelecer diretrizes para políticas públicas pedagógicas voltadas à inclusão escolar e garantir, às pessoas com deficiência, o acesso e o percurso educacional, chegando aos cursos superiores e de pós-graduação, que ainda estão longe do ideal, mas são direitos que já saíram do texto da Legislação para a realidade nos sistemas de ensino, que, hoje, buscam as adequações necessárias para efetivação desses direitos.

Na inteligência de Pedott (2018, p. 79),

Os marcos legais atuais emergem como expressão dessas contradições, explicitando tanto a inspiração no ideário que condiciona a participação social das pessoas com deficiência à sua normalização, quanto as tentativas de deslindar a construção histórica em que se justificou a segregação das pessoas com deficiência, buscando superá-la, acompanhando as concepções sociais sobre a temática.

Nas últimas décadas, em especial a partir de 1980, observa-se um aprofundamento no debate a respeito de um Sistema Educacional Inclusivo, além da garantia dos direitos da pessoa com deficiência serem assegurados por meios legais.

Nos anos subsequentes, o Brasil tem se alinhando aos movimentos internacionais, a exemplo da Declaração de Salamanca (na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006), ratificada no Brasil e tornada constitucional por meio de Decretos (Ex.: Decreto legislativo n. 186/2008 e do Decreto Executivo n. 6.949/2009), e da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, lançada em 2008 pelo Ministério da Educação (MEC), que definiu diretrizes para os sistemas de ensino, visando o estabelecimento de políticas de educação inclusiva.

Além das orientações que tangem às questões relacionadas ao acesso, participação e aprendizagens, tanto a convenção da ONU quanto o documento do MEC fundamentam o direito das pessoas com deficiência à educação, por meio de sistemas educacionais inclusivos, em todos os níveis, em que todos possam desfrutar dos mesmos direitos, sem discriminação.

Nessa linha e direção, surgiu a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que dialoga com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), com o Estatuto da Criança e do Adolescente e que coaduna com a Constituição Federal de 1998, no que se refere aos direitos fundamentais. A LBI também se harmoniza com as convenções internacionais, cujas intenções e ações têm o Brasil como signatário. A Lei de Inclusão (2015) trouxe, de certa forma, inúmeros avanços aos direitos da pessoa com deficiência e, na mesma medida, estabeleceu os deveres de todos os envolvidos nessa temática. Sucintamente, a LBI está alicerçada por três grandes pilares, sendo:

  1. Direitos fundamentais das pessoas com deficiência nos eixos educação, transporte e saúde.
  2. Garantias fundamentais para as pessoas com deficiência no que tange ao acesso à informação e à comunicação.
  3. Garantia de acesso à justiça e ao que, porventura, possa ocorrer aos que venham a infringir as demais exigências.

Diante do exposto e frente às celeumas que se apresentaram, até mesmo o Ministério Público do Trabalho, por meio da Coordenadoria de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho, se manifestou por meio de nota pública em outubro de 2020. No entendimento do Ministério Público, o Decreto 10.502 ofende frontalmente tratados internacionais, normas constitucionais e direitos fundamentais da pessoa com deficiência. Outras organizações, profissionais e pessoas ligadas à luta pelos direitos das pessoas com deficiência também se manifestaram na internet com o mesmo entendimento.

No entanto, o Ministério da Educação, em sua publicação acerca do tema, procura evidenciar seus argumentos no tocante a possibilidade de escolha das famílias que podem agora ter o direito de matricular seus filhos em escolas exclusivas ou em classes comuns. Sucintamente, no entendimento do MEC, o Decreto 10.502 amplia essas possibilidades de escolha para a família:

A abordagem educacional inclusiva que subjaz à PNEE 2020 reafirma o direito não apenas de matrícula, mas de permanência e de aprendizagem exitosa para todos os educandos nas escolas regulares, caso seja esta a escolha. Isso quer dizer que a garantia da matrícula nas escolas regulares continua sendo direito irrevogável dos educandos e das famílias que por ela optarem e que esse direito deve ser atendido com qualidade. (PNEE/MEC, 2020, p. 41)

Por conseguinte, o decreto retoma termos e expressões muito utilizados na década de 1990, momento em que o foco era na integração e cuja dinâmica estava centrada nos esforços em socializar as pessoas com deficiência nos ambientes escolares regulares.

É inegável o papel da educação especial através dos seus centros de atendimento especializados ao longo do tempo, já que esse atendimento possuía três eixos axiais: assistência social, cultural e educacional. Muito embora todos os objetivos centrais eram voltados para apoiar ações que pudessem melhorar as condições de vida das pessoas com deficiência e, mais enfaticamente, assegurar-lhes o desenvolvimento e os direitos de cidadãos, a questão de segregar essas pessoas é também um fato que ocorreu ao longo de toda essa construção histórica de lutas dentro do tecido social brasileiro.

Nessa direção e sentido, em outubro de 2020, ocorreram reverberações tonitruantes acerca do decreto assinado, incitadas pelas entidades de classe das pessoas com deficiência e da ala que defende, de forma veemente, que há um retrocesso de, aproximadamente, 50 anos com as determinantes deste decreto.

Uma outra ala da sociedade, que se alinha com o posicionamento do MEC no tocante a um novo entendimento sobre educação especial, também tem se manifestado e a principal justificativa é que, nesse novo plano, as tratativas de incentivos e investimentos, que não estavam tão claros na LBI, foram esmiuçadas neste novo decreto. Além disso, há também o incentivo e a promoção a parcerias com a iniciativa privada.

Deste modo, pode-se afirmar que a Educação é o fator imprescindível para o desenvolvimento de qualquer país. Os países que mais se desenvolveram nos últimos tempos foram justamente aqueles que mais investiram numa Educação de qualidade para o seu povo.

No contexto mundial, a Educação caminha rumo a um modelo de escola que se fundamenta no acolhimento e na inclusão, no reconhecimento e na valorização da diversidade. Essa nova escola entende que não pode ser negada a nenhuma pessoa, seja criança, jovem ou adulto, o direito ao acesso e à efetiva educação de qualidade, que prepare, de fato, o cidadão para a questão da inclusão social com uma perspectiva holística sobre os egressos da comunidade escolar.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Educação Especial Inclusiva – como modalidade transversal a todos os níveis, etapas e modalidades de ensino – é parte integrante da educação regular no Brasil, devendo ser prevista e aplicada para todas as pessoas e em conformidade com a legislação em vigor, que versa e traz as diretrizes para, não somente estabelecer o acesso, mas, também, garantir a permanência e o percurso das pessoas com deficiência, de tal modo que sejam instituídos mecanismos de convivência e envolvimento nas relações interpessoais, fomentando, assim, a autonomia e o fortalecimento dos laços sociais.

A construção histórica dos direitos e deveres dos protagonistas da educação especial inclusiva é marcada por lutas homéricas, com personagens ilustres, e também por anônimos que sempre atuam na contramão das injustiças, da insistência na separação e de preconceitos inerentes à pessoa humana. Destaca-se nesse contexto histórico o trabalho primoroso dos profissionais da educação especial inclusiva, pessoas abnegadas e com um altruísmo em seu labor diário. Como Atlas, sustentam em suas costas o peso de trabalhar muitas vezes com extrema escassez de recursos, ambientes inadequados, ausência ou ingerência de supervisores e gestores e, em graus mais extremos, com total ausência efetiva do poder público em fiscalizar e fazer valer direitos e deveres.

Em sintonia com os movimentos internacionais de afirmação do direito de todos à educação, as conquistas, ao longo de mais de cinquenta anos, vêm se firmando não somente no mundo, mas sobretudo no Brasil, constituindo políticas públicas promotoras de uma educação de qualidade para todos os alunos e propondo uma sociedade mais justa, mais humana e mais fraterna, na qual as diferenças sejam tratadas como naturais e parte integrante da condição de humanidade, presente em qualquer sociedade. Com o advento da Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida, prevista no Decreto n. 10.502, publicado em 30 de setembro de 2020, uma série de questionamentos surgiram por parte da sociedade civil organizada.

Para uma ala da sociedade, esse novo plano representa um retrocesso nos direitos e deveres no que se refere a inclusão escolar. Inúmeras entidades de classe apresentaram nota de repúdio ao Decreto 10.502.

No entendimento de quem se pronuncia contrário, esse decreto possui em sua estrutura dispositivos que ferem frontalmente a convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e vai de encontro à meta de alcance de quatro dos dezessete objetivos sustentáveis sugeridos pela Assembleia Geral da ONU (ODS). Também fere artigos da Constituição Federal de 1998, com ênfase no artigo 5º, e há os que possuem a percepção que esse decreto também se contrapõe ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990, artigo 55).

Em síntese, para quem se contrapõe ao decreto, a sua proposta dilacera com políticas já amplamente discutidas com a sociedade e pactuadas com as principais diretrizes, sejam nacionais e internacionais, cujo Brasil é signatário inclusive. Também há o entendimento para uma tendência neoliberal acerca de serviços educacionais que, em tese, poderiam ser ofertados sem a participação de ONGs e OSCIPs, privilegiando, de certa forma, entidades privadas que nada tem a ver com a educação especial inclusiva.

Já o Ministério da Educação afirma que o documento foi elaborado a partir de 2018 e foi constituído a partir de observações, constatações, diálogos com especialistas e consultores e com a sociedade civil organizada.

De forma incisiva, o MEC expressa nesse documento que a preocupação maior é a de acrescentar o respeito à pessoa e à sua família, oferecendo a flexibilidade decorrente da oportunidade de escolha. Também enfatiza que o PNEE apenas modifica a ênfase que vinha sendo dada na inclusão total, pois, na realidade, os sistemas de ensino no Brasil sempre se organizaram por meio de escolas comuns do sistema regular, escolas especializadas e escolas bilíngues de surdos. Essa argumentação se arrima em dados do município do Rio de Janeiro e o Distrito Federal.

Imperioso ressaltar que, em muitas notas de repúdio e manifestações abertas na internet, especialistas, professores e representantes de entidades de classe que representam pessoas com deficiência são enfáticos em afirmar que não foram ouvidos para colaborar na construção do decreto. Outro aspecto que chama a atenção é fundamentar um plano nacional de educação ancorado apenas em dados relativos de um único munícipio da federação e experiências e configurações da capital federal do Brasil.

Pode-se concluir então que:

Com o advento do Decreto 10.502, o fato social relativo ao constructo da educação especial inclusiva no Brasil foi desconsiderado.

Com efeito, as entidades de classe que representam as pessoas com deficiência em suas análises e percepções consideram esse decreto um retrocesso e se manifestaram publicamente quanto a isso.

Ainda nessa direção e sentido, o Ministério da Educação, embora possa apoiar seus argumentos sobre os dados estatísticos para fundamentar a decisão acerca do decreto, desconsiderou o fato social da luta por direitos das famílias e das pessoas com deficiência – que, inclusive, encontra respaldo em tratados internacionais em que o Brasil é signatário.

Existem, sim, pontos no decreto que suscitam certa dubiedade e também interpretações diversas. No decreto, há um explícito discurso que procura inclinar a sociedade para o caminho da escolha entre núcleos de atendimento especializado para as pessoas com deficiência, mas sem excluir a inclusão escolar e suas respectivas dinâmicas, além de estabelecer os papéis dos respectivos atores que atuam nesse setor (como a proposta de implementar e monitorar as ações e suas estratégias) e, ao mesmo tempo, explicitar sobre os investimentos que irão fomentar e estruturar tudo. Essa inclinação caminha na contramão do arcabouço jurídico constituído, desloca direitos e garantias, não resguarda o coletivo e transfere para a vida privada uma possibilidade de escolha que, de certa forma, configura uma ausência do Estado, que se recolhe intencionalmente, deixando à deriva uma grande minoria que precisa do amparo e da cobertura de políticas de estado em todas as suas dimensões como cidadãs e cidadãos.

Evocando Platão e sua alegoria, podemos sintetizar que a percepção é falha e não pode representar a verdade. Somente o tempo e as ações das pessoas envolvidas com a inclusão escolar, vivendo e construindo o fato social, serão capazes de responder a todas as questões, paixões e questionamentos acerca do Plano Nacional da Educação Especial instituído em 2020.

4. REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, SP, 26 abr. 2006. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2006-abr-6/triunfo_tardio_direito_constitucional_brasil?pagina=3. Acesso em: out. 2020.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação. PNEE: Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida/Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação – Brasília: MEC, SEMESP, 2020.

BRASIL. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF, jan. 2008a. [Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela portaria n. 555/2007, prorrogada pela portaria n. 948/2007, entregue ao ministro da Educação em 7 de janeiro de 2008]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em: mar. 2011.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Inovações e impactos nos sistemas de informações estatísticas e geográficas do Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.

IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? São Paulo: Moderna, 2003. Coleção cotidiano escolar.

RANIERI, Nina Beatriz Stocco & ALVES, Angela Limongi Alvarenga (Orgs.). Direito à educação e direitos na educação em perspectiva interdisciplinar. São Paulo: Cátedra UNESCO de Direto à Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2018.

[1] Mestrando em Tecnologias Emergentes em Educação pela Miami University of Science and Technology (MUST). Especialista em Neurociências e Aprendizagem, Psicopedagogia, Coordenação/Supervisão Escolar, Inspeção escolar com ênfase em Educação Especial Inclusiva, Pedagogia Empresarial, MBA em Gestão Estratégica. Graduado em Pedagogia e Telecomunicações.

[2] Graduada em Direito pela UFMG e Pós-graduada em Direito Empresarial pela PUC MINAS. Mestranda em Tecnologias Emergentes em Educação pela Miami University of Science and Technology (Must).

Enviado: Dezembro, 2020.

Aprovado: Dezembro, 2020.

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Geisse Martins

2 respostas

  1. Excelente produção, Professor Geisse Martins. À luz dos fatos e ameaças a essa politica pública que vai além de sua natureza educacional e social, mas que promove dignidade e cidadania, se faz mister, que nos instrumentalizemos de informações, tais como as produzidas em seu artigo.
    Obrigado e sucesso!

  2. Excelente produção, Professor Geisse Martins. À luz dos fatos e ameaças a essa politica pública que vai além de sua natureza educacional e social, mas que promove dignidade e cidadania, se faz mister, que nos instrumentalizemos de informações, tais como as produzidas em seu artigo.
    Obrigado e sucesso!

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