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Histórias em quadrinhos: uma perspectiva tillichiana sobre religião e cultura

RC: 145171
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/perspectiva-tillichiana

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MORAES, Gerson Leite de [1], DOMINGUES, Rebecca [2]

MORAES, Gerson Leite de. DOMINGUES, Rebecca. Histórias em quadrinhos: uma perspectiva tillichiana sobre religião e cultura. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 05, Vol. 02, pp. 05-26. Maio de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/perspectiva-tillichiana, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/perspectiva-tillichiana

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo compreender de que maneira as Histórias em Quadrinhos, também chamadas por HQs, são capazes de manifestar a religiosidade, tomando como base de perspectiva a teologia da cultura de Paul Tillich. O principal delimitador do assunto proposto está na atitude de marginalização e infantilização das HQs, que as coloca em um lugar de irrelevância para o olhar teológico. Assim, interroga-se: o que são as histórias em quadrinhos? Elas são arte? Qual sua origem e desenvolvimento? Existe uma relação possível entre teologia e HQs? Como a perspectiva de Paul Tillich compreende isto? Para que esse entendimento fosse alcançado, utilizou-se a metodologia de revisão bibliográfica, a qual primeiramente procurou narrar a história das HQs; e, posteriormente, relacionou o entendimento tillichiano acerca de religião e cultura, na tentativa de demonstrar se este elemento é capaz de proporcionar um discurso religioso digno do olhar e da análise da teologia. Durante esta investigação, apurou-se, a partir de uma breve discussão sobre seus aspectos artísticos, que as HQs podem ser consideradas como arte, e, portanto, como parte da cultura. Em segundo lugar, apurou-se que para Tillich, a religião possui um significado profundo de relação com o direcionamento de nossa consciência ao que ele denomina por “Incondicional”, e o Incondicional, por sua vez, pode vir a ser manifesto tanto naquilo que chamamos de religiões concretas, como naquilo que chamamos de cultura. Dessa maneira, a cultura demonstrou-se como um palco de discursos religiosos que são manifestos, especialmente, por meio da preocupação última. Esta preocupação é aquilo que Tillich descreverá como ser tomado pelo que nos toca incondicionalmente, e revelou-se, nesta pesquisa, como uma realidade completamente possível às HQs, tornando-as aptas a serem alvo do olhar e dos estudos teológicos. Assim, tanto a cultura como um todo, quanto as HQs – enquanto um elemento cultural -, podem ser apontadas como entes propícios à teologia, e relevantes a este campo de estudo.

Palavras-chave: HQs, Arte, Religião, Cultura, Paul Tillich.

1. INTRODUÇÃO

É muito comum que escutemos, uma vez inseridos numa sociedade que lida com o diálogo religioso, discussões sobre a relação que a fé desempenha com a cultura. Seja por meio dos debates acalorados pautados em ser ou não pecado assistir tal desenho ou série, ou seja, pelos recorrentes discursos políticos nos quais as igrejas costumam envolver-se, o fato é que é comumente percebido, ainda que não racionalizado, a realidade de que a fé direciona seus pensares aos mais variados elementos culturais.

Apesar de muitos exemplos negativos dessa relação, também é possível contemplar frutos positivos de quando a teologia e especialmente a cristandade se propuseram a romper as barreiras que os “escondiam” da sociedade, fazendo, assim, com que dialogassem com os elementos culturais que os cercavam. Nisso estão incluídos nomes como os de Paul Tillich, que se fez notório no que diz respeito a uma teologia da cultura.

Apesar da presença teológica estar muito mais fortemente nas academias e Igrejas, ora discutindo dogmas ora discutindo mitos bíblicos, a realidade é que ela também pode estar nas culturas mais marginalizadas e nos elementos mais desprezados, como é o caso das Histórias em Quadrinhos. Assim, este trabalho objetiva mostrar como as HQs são elementos dignos do olhar teológico, especialmente a partir de uma ótica tillichiana, demonstrando que podemos absorver das mesmas uma infinitude de diálogos possíveis que nos possibilitam introduzir a Nova Realidade de Cristo Jesus aos corações angustiados.

2. DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO

A história das HQs é longa, e remonta épocas mais antigas do que a que costumamos analisar ao falarmos sobre este elemento cultural; mas para que essa discussão sequer possa acontecer, é necessário questionarmos: o que, afinal, são as histórias em quadrinhos? Um dos maiores nomes neste campo, Scott Mccloud (1960-), as define como “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador” (1995, p. 9). Em outras palavras, as histórias em quadrinhos são uma sequência de imagens, deliberadamente organizadas, de maneira a transmitir alguma mensagem àquele que as lê ou as enxerga. Luyten, por sua vez, também propõe uma breve definição a respeito dos quadrinhos, e ressalta que sua composição não os anula enquanto uma manifestação artística.

Eles são formados por dois códigos de signos gráficos: a imagem e a linguagem escrita. O fato de os quadrinhos terem nascido do conjunto de duas artes diferentes — a literatura e o desenho — não os desmerece. Ao contrário, essa função, esse caráter misto que deu início a uma nova forma de manifestação cultural, é o retrato fiel de nossa época, onde as fronteiras entre os meios artísticos se interligam. (LUYTEN, 1987, pp.11-12)

A primeira HQ que foi oficialmente reconhecida como tal chama-se “The Yellow Kid”, do norte-americano Richard Felton (1863-1928). Ela foi lançada entre 1895 e 1896, e marcou, para a maioria dos pesquisadores, o início da indústria dos quadrinhos; isso devido ao fato dessa história apresentar balões de fala, o que foi uma revolução na forma como as tirinhas passaram a ser apresentadas, impulsionando, desta maneira, a produção industrial das HQs.

Figura 1

Figura 1
OULTCALT, Richard Felton. The Yellow Kid. New York World, 1895-96.

​No entanto, podemos ver traços de histórias narradas pela imagem muito antes disso, não somente com as pinturas rupestres, por exemplo, mas, mais à frente no tempo, com a própria Igreja Católica e a Via Sacra. Além disso, apesar do sequencialismo não estar presente em alguns destes exemplos, os painéis miniaturas de Bruegel (1525/1530- 1569) e as próprias gravuras de Goya (1746-1828) também nos revelam imagens preocupadas em narrar eventos.

Figura 2

Figura 2
Estações da Via Sacra.

Figura 3

Figura 3
BRUEGEL, Pieter. O sermão de São João, o Batista. 1566. Pintura, óleo sobre madeira.

Figura 4

Figura 4
GOYA, Francisco de. The Sleep of Reason Produces Monsters. 1799. Gravura, Água-forte e Aquatint.

Em todas essas obras, o que temos em comum é a ausência de falas. Entretanto, graças a elas o caminho que levaria às HQs foi pavimentado. É, então, com a redescoberta da imprensa tipográfica de Gutenberg, que não somente a consolidação da palavra escrita, como a propagação das tirinhas como meio de comunicação de massa vai acontecer, apesar de ser só no final do século XIX que as técnicas de impressão e imprensa tenham se aprimorado, garantindo um caráter comercial às histórias em quadrinhos, como explica Melo (2009).

Desde então, podemos ver os rastros das HQs ao longo da história até que finalmente chegasse The Yellow Kid. Apesar disso, no período anterior à “primeira HQ” temos obras como a de Rodolphe Topffer (1799-1846), a quem Mccloud chama de “pai dos quadrinhos modernos”. Topffer produziu, em meados do século XIX, histórias com imagens satíricas e cheias de caricaturas, e apresentou, também, a primeira combinação interdependente de palavras e figuras na Europa.

Fora Topffer, temos nomes como o do italiano nacionalizado como brasileiro Angelo Agostini (1843-1910), que publicava quadrinhos em periódicos desde 1864. Suas obras eram cheias de críticas à monarquia no Brasil e às normas eclesiásticas. Já no Japão, lugar onde as histórias em quadrinhos são parte intrínseca à sociedade – e são chamadas pelo nome de “mangá” -, também temos aparições anteriores a Yellow Kid, principalmente por meio de Katsushika Hokusai (1760-1849), com os conhecidos “Hokusai Manga” (1814).

Figura 5

Figura 5
KATSUSHIKA, Hokusai. Hokusai Manga. PIE International, 2011.

Suas técnicas parecem ter sido inspiradas nas gravuras feitas em madeira, que eram algo muito comum no Japão. O artista, tendo sido influenciado por essa modalidade, é o primeiro a desenhar imagens em sequência, entre 1814 e 1849, publicando a coletânea de séries supracitadas. No final do século XVIII, essas coletâneas acabaram por se modificar e dar espaço aos Kibyoshi (capas amarelas), que retratavam a vida urbana com um toque bem-humorado, e foram considerados os antecedentes dos gibis, como elucida Santo (2011).

Desse modo, como Mccloud afirma, “dos vitrais, mostrando cenas bíblicas em ordem e a pintura em série de Monet, até os manuais de instrução, as histórias em quadrinhos surgem em todo lugar quando se usa a definição arte sequencial.” (1995, p. 20). É justamente neste ponto que, pelo menos em relação ao Ocidente, retornamos a The Yellow Kid. Afinal, como já brevemente citado, e como explica Melo:

Yellow Kid, de Outcault, tem seu pioneirismo reconhecido em virtude do uso de vários recursos que caracterizaram os quadrinhos, como a narração em sequência de imagens, a continuidade dos personagens e a inclusão do texto dentro da imagem. Além de ser a primeira obra amplamente difundida por um meio de comunicação de massa, alcançando assim um grande público, também inseriu uma característica única das HQs: o balão. (2009, p. 101)

Como o autor seguirá elucidando em seu trabalho, foi numa disputa entre os jornais New York World e New York Journal que essa HQ surge, revelando um grande interesse do público pelo formato, o que fez com que a busca por mais desenhistas fosse alta.

A supervalorização das HQ, devido à exigência dos leitores, mostrou aos empresários que os quadrinhos tinham o seu lugar assegurado, e eles “compreenderam” rapidamente o fenômeno, saindo à procura de autores cada vez melhores, criando uma efervescência no setor. Logo, desenhistas de primeira linha trabalhavam freneticamente na construção de uma linguagem que já estava explodindo em todas as direções. (LUYTEN, 1987, pp. 18-19)

Assim, nesse mesmo período tivemos outras obras como ​Little Nemo In Slumberland (1905) e Mutt & Jeff (1907), a qual foi, inclusive, a primeira tira de quadrinhos em jornal que deixara de ser um bloco isolado de conteúdo do jornal e ingressara nas páginas internas, tornando-se uma parte do cotidiano dos leitores, como explicam Luyten e Melo.

Já as famosas Comic Books, histórias em quadrinhos muito populares nos Estados Unidos, consolidaram-se por volta de 1930.

[…] Era o comic book, que chegava para aposentar em definitivo o tabloide, predominantemente entre as publicações do gênero. O comic book nasceu de uma ideia simples, porém revolucionária, pela praticidade de manuseio e também do ponto de vista comercial. Bastava dobrar o tabloide ao meio e grampeá-lo para ter uma revista com o dobro de páginas, mas com custo quase igual – somente algum tempo depois adotou-se uma capa impressa em papel de melhor qualidade. Os comics books traziam outra novidade: as aventuras completas em quadrinhos, em vez de episódios seriados semanais dos jornais, uma tradição de décadas. Como acontecia nos Estados Unidos, esse tipo de revista iria, a médio prazo, dominar o mercado brasileiro de quadrinhos e decretar a morte do tabloide durante a década de 40. (SILVA JUNIOR, 2004, pp. 66-67)

É nesse contexto que surgem, por exemplo, as superaventuras, e também aqui que elas ganham, efetivamente, o status de arte, já que suas características eram bastante questionadas, pois a arte por muito tempo esteve intrinsecamente relacionada ao conceito de Belas Artes. Para Andraus (2006, p. 183):

[…] a modernidade expôs a burguesia a uma forma de ser e pensar calcada essencialmente na escrita individual e silenciosa, tornando o racionalismo a prática mais aceita e legitimada, que era acessível apenas aos que desfrutavam de uma posição social que permitia a educação letrada, excluindo-se artesãos, camponeses, comerciantes e mulheres, que continuavam numa cultura oral e proletária, vivenciando as crenças, fábulas, lendas e demais narrativas ficcionais.

Todavia, quando olhamos para a história da arte e para o real significado da mesma, contemplamos uma arte que, desde seus primórdios, foi utilizada como palco para discursos dos mais variados gêneros. Temos exemplos como os da já citada Igreja Católica, que usou da arte em sua pluralidade de manifestações para falar e narrar suas crenças e dogmas; podemos ainda citar exemplos mais antigos, como o do Egito, que também utilizava da arte de maneira a voltar-se para à sua crença na preservação do corpo do Faraó, aproveitando da arquitetura, da escultura e das pinturas como um meio de comunicar essa fé, de modo que a alma de seu governante continuasse a viver no além (GOMBRICH, 1985).

É possível citarmos ainda o exemplo de algumas aldeias indígenas, que por vezes utilizam a arte corporal como parte de seus ritos e até como parte de sua identificação (PUTIRA, 2019). Assim, com esses e muitos outros exemplos, podemos compreender que a arte, em sua origem e em seu significado real, vai ao encontro daquilo que afirma Bizzocchi, i,e, de que a arte “faz pensar, instiga a reflexão (…) Como a ciência, a arte também denuncia, também critica, também induz a uma tomada de decisão, a um querer (…)” (2003, p. 287). Sob esse olhar, então, as histórias em quadrinhos deixam de ser apenas entretenimentos infantis, os quais proporcionam pouca colaboração aos que os leem. Longe disso, as HQs passam a desempenhar um papel importante na representação do mundo em que vivemos, podendo, inclusive, alcançar a mesma importância de inúmeras outras manifestações artísticas.

É justamente essa defesa que Mccloud e outros quadrinistas farão, indo a favor de ideias como as de que:

[…] os quadrinhos podem constituir um corpo de obras digno de estudo, representando significativamente a vida, os tempos e a visão de mundo do autor. (…) A de que propriedades artísticas formais dos quadrinhos podiam ser capazes de alcançar as mesmas alturas que artes como a pintura ou a escultura. (…) A de que a percepção pública dos quadrinhos podia melhorar, para ao menos admitir o potencial dessa forma e estar pronta a reconhecer progressos quando estes ocorressem”. (MCCLOUD, 2006, pp. 10-11)​

Will Eisner (1917-2005), um dos maiores quadrinistas contemporâneos, ao falar sobre a arte que existe nas histórias em quadrinhos afirma:

A configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e esforço mental. (…) Em sua forma mais simples, os quadrinhos empregam uma série de imagens repetitivas e símbolos reconhecíveis. Quando são usados vezes e vezes para expressar ideias similares, forma-se uma linguagem – uma forma literária, se quiserem. E é essa aplicação disciplinada que cria a “gramática” da Arte Sequencial”. (EISNER, 2001, p. 8)

Portanto, podemos afirmar com convicção, que, sim, as Histórias em Quadrinhos são uma forma de arte. Ainda que o preconceito com essa manifestação artística ainda exista, de modo que, em muitos contextos, ela siga sendo marginalizada e infantilizada, é possível concebermos, até mesmo pela sua história, que ela nasce daquilo que é reconhecidamente arte, e desenvolve-se, dia após dia, para uma mesma realidade artística.

Exemplo disto é a dura repressão pela qual passou pouco tempo depois de ser reconhecida como um elemento artístico. Em fato, as HQs foram duramente perseguidas e culpadas pela delinquência juvenil pouco depois do início da Guerra Fria, em 1954, de maneira que acabaram por ser condenadas por nomes renomados como o do psiquiatra-chefe no maior hospital psiquiátrico de Nova York, i.e, Frederic Wertham (1895-1981); o que redundou em um código de ética para as artes sequenciais que perdurou até cerca de 1970 (Melo, 2009).

Após esse período de tantas repressões e problematizações, as HQs passaram a trabalhar com questões mais políticas, e a esse momento chamamos de “Era de Bronze”; nesse sentido, temas como os direitos LGBT, vidas negras, nazismo etc., começaram a ser discutidos. Temos, dentro desse contexto e dentro de uma realidade ocidental, obras como Lanterna Verde, O Espetacular Homem Aranha, Capitão-América, Pantera Negra, Luke Cage e outras.

No Japão, por outro lado, é por volta de 1946, no pós-Segunda Guerra, que os mangás adquirem elementos da linguagem cinematográfica, já que, até então, as HQs japonesas possuíam um enfoque teatral. Essa inovação vem com o chamado “Deus dos mangás”, Osamu Tezuka (1928-1989), autor de relevantes obras como Astro Boy (1952-1968), Dororo (1967), Kimba, o Leão Branco (1950-1954) e outras, e que é considerado o grande responsável pelos mangás como conhecemos hoje.

Já a respeito da consolidação da indústria e das características dos mangás, Santo explica que:

Os mangás foram um mercado consolidado aos poucos, junto a apropriação cotidiana do povo japonês a esse produto. Frente às inúmeras mudanças próprias de seu processo de especialização e industrialização há um grupo de características essenciais que foi mantido e é importante na compreensão das peculiaridades deste produto. São elas: o caráter transitório – ou seja, mangás são revistas produzidas para serem consumidas e descartadas rapidamente, ou trocadas e alugadas; a abertura temática de público e faixa etária – onde, diferente do que aconteceu com o ocidente que tendia a associar a produção de HQs com um público infantil, no Japão a produção de mangás sempre procurou atingir o maior número de público possível, diluindo uma associação bastante comum por aqui, de que a leitura de HQs é infantilizada e simples; e, ligada à característica anterior, a pouca preocupação governamental com uma normatização temática ou controle dos assuntos abordados nas revistas. (ESPÍRITO SANTO, 2011, p. 7)

Assim, até os dias de hoje as histórias em quadrinhos japonesas, chamadas por “mangás”, são um grande sucesso, movimentando bilhões de ienes no Japão; e tal como as HQs ocidentais, demonstraram-se ao longo de seu desenvolvimento – que culminou no que podemos ver atualmente -, como um palco para discursos dos mais variados gêneros. Ou seja, os mangás, assim como a arte sequencial que contemplamos no Ocidente, é arte. E como arte, faz parte daquilo que entendemos como um elemento cultural, também sendo parte dos inúmeros debates que instauraram-se na história do cristianismo e no pensamento teológico.

Dessa maneira, apesar da marginalização que ainda acontece para com as histórias em quadrinhos – e mais ainda com aquelas que tem sua origem em culturas não ocidentais -, elas não deixam de possuir um teor artístico que é digno de ser discutido. E não somente discutido enquanto arte, mas também enquanto um elemento capaz de sustentar os olhares da cristandade e, mais especificamente, da teologia.

2.1 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E A RELIGIÃO SOB A ÓTICA TILLICHIANA

Portanto, uma vez que as HQs demonstram-se aptas a análise teológica, há uma indagação a se fazer: como elas se relacionam com o discurso religioso, afinal? Será possível que estes elementos culturais, que por vezes foram tão infantilizados e marginalizados, sejam capazes de trazer reflexões a respeito de fé e religião? Aqui emerge Paul Tillich (1886 – 1965), um renomado teólogo e filósofo da religião do século XX nascido em Starzeddel, na Prússia Oriental, e que foi ordenado em 1912 como pastor na Igreja Luterana de Brandemburgo, sendo também um capelão no período da Primeira Guerra Mundial. Tillich teve diversas obras influentes, mas ganha destaque justamente na discussão proposta neste trabalho, i.e, na teologia da cultura.

Para o teórico, a relação entre teologia e cultura nasce do próprio conceito de religião e discurso religioso, afinal, o discurso religioso é mais do que um discurso sobre dogmas e doutrinas, ele envolve aspectos que estão presentes em todos os seres humanos. Na realidade, a discussão sobre a definição de um “discurso religioso” é ampla; em certo sentido, existem inúmeras delimitações que visam categorizar este gênero discursivo, concedendo características próprias que tendem a demonstrar-se envoltas em menções sobre o metafísico e o transcendente. No entanto, vale pontuar que para Tillich a religião, e consequentemente o discurso religioso, não se constroem assim. Para o teórico, afinal, a religião é o direcionamento de nossa consciência ao “Incondicional”.

O Incondicional é demonstrado pelo teórico em muitas de suas obras como sendo a qualidade do ser em si, i.e, não um ser entre os seres, pois se assim fosse ele seria condicionado ao espaço-tempo, mas, sim, o ser que é em si mesmo, que por nada é fundamentado ou conceituado, mas que a todas as coisas fundamenta.

O incondicional é uma qualidade, não um ser. Caracteriza aquilo que é nossa preocupação última e, consequentemente, incondicional, quer o chamemos de “Deus” ou “como tal”, ou o “Deus como tal” ou o “verdadeiro como tal”, ou se lhe demos qualquer outro nome. Seria um completo erro entender o incondicional como um ser cuja existência pode ser discutida. Aquele que fala da “existência do incondicional” entendeu mal o significado do termo. Incondicional é uma qualidade que experimentamos no encontro com a realidade, por exemplo, no caráter incondicional da voz da consciência, tanto a lógica quanto a moral. (TILLICH, 1948, p. 32)

James Luther Adams, principal intérprete da teologia de Tillich, e a quem o teórico considerava saber “mais sobre seu trabalho do que ele próprio”[3], também compreendia o Incondicional, na concepção tillichiana, enquanto a qualidade do ser em si. Quanto a isso, ele afirma:

Por isso, como profundidade ou infinitude das coisas, é ao mesmo tempo o fundamento e o abismo do ser. É essa qualidade em ser e verdade, em bondade e beleza, que suscita a preocupação última do homem; assim, é a qualidade absoluta de todo ser, significado e valor, o poder e vitalidade do real conforme ele se realiza em criatividade significativa. (1948, pp. 300, 301)

Entretanto, é importante esclarecer que, ainda que haja a relação do Incondicional com aquilo que é propriamente “o ser em si”, Tillich é enfático em demonstrar que sua compreensão desta “realidade” – em termos explicativos – acerca do Incondicional não deve ser erroneamente inserida num entendimento que coloca o Incondicional como um objeto e nem mesmo um ser que não aquele que é em si mesmo.

Seja como for, todavia, é perceptível que o Incondicional é entendido como a qualidade do ser em si. Em muitos momentos, inclusive, esse entendimento mescla-se com o entendimento a respeito de Deus. No entanto, este termo é evitado pelo teórico muitas vezes pois, ao tratarmos sobre o conceito de “Deus”, somos tendenciosos a explicá-lo por meio das experiências humanas limitadas, de modo que torna-se errado dizer que o Incondicional é Deus visto que a própria terminologia “Deus” é um fruto finito incapaz de explicar o Incondicional. Isso significa, entretanto, que aquilo que entendemos por Deus não possui qualquer relação com o Incondicional? Não, pelo contrário.

De maneira objetiva, a concepção tillichiana a respeito de Deus o entende justamente como aquele que é o ser em si. Deus não é um ser entre os seres, porque o “ser” é uma realidade que por si só está condicionada a algo. Ou seja, aquele que é alguma coisa, é alguma coisa sob alguma circunstância, i.e, sob um espaço ou tempo. O ser entre os seres é finito, teve um começo, meio e terá um fim; ele faz parte da existência, que por si só também carrega em si uma parte condicionada, visto que quem existe, existe em algum espaço-tempo. O que ocorre é que nossas próprias experiências e perspectivas moldam a forma como entendemos o que é Deus. Para Tillich, as próprias religiões concretas – crenças sistematizadas como o cristianismo, o islamismo, o judaísmo, o umbandismo etc. – são expressões simbólicas do que é Deus e do que tange a realidade divina. Essas religiões ‘captam’ aquilo que é divino e o expressam por meio de suas crenças e doutrinas, mas nada disso é Deus em si. Portanto, as religiões são o condicionado no qual o Incondicional se manifesta. Todavia, é necessário que se faça claramente essa distinção, visto que não fazê-la, tratando o simbolismo delas como se fosse Deus, poderia colocá-lo como um objeto condicionado, perdendo, assim, sua incondicionalidade. Nesse entendimento é que Tillich formula a expressão “Deus acima de Deus”, procurando estabelecer uma relação entre “Deus” e o ser em si. Trata-se da qualidade do que é Incondicional, e que portanto a nada se condiciona, nem mesmo às doutrinas e símbolos religiosos.

Desse modo, é importante ressaltar o fato de que o termo “Deus”, como dito mais acima, por vezes é evitado pelo teórico – principalmente ao que concerne o “Incondicional” – justamente por estar muito vinculado às concepções finitas. No entanto, “Incondicional” parece ser a melhor terminologia para aquilo que entendemos por Deus, desde que não apliquemos nossas concepções divinas, construídas a partir de nossa própria vivência simbólica, como se o ser em si, i.e, como se o Incondicional, fosse o símbolo “Deus” determinado pelas religiões concretas. Assim, a noção sobre Deus – quando tirada das concepções finitas e humanas – acaba por demonstrar-se como o ser em si, e, dessa forma, vincula-se ao que é Incondicional.

Do ponto de vista conceitual e teórico, Deus é o ser-em-si. Não há outro conceito que pode ser aplicado a Deus, a não ser aquele que é o mais fundamental da filosofia, a saber: o ser-em-si. O ser-em-si não é um ser entre outros; também não é um símbolo que aponta para outro, é antes a verdade que está pressuposta em todo conhecimento, ou seja, é o fundamento da estrutura cognoscível do ser. No âmbito teológico, Deus é o fundamento absoluto de toda a existência, o criador de tudo o que existe, o símbolo de nossa preocupação mais fundamental. No âmbito filosófico, o ser-em-si desempenha o papel de fundamentar todo o conhecimento. Tudo o que é cognoscível só o pode ser porque há o ser-em-si, aquele que é por si mesmo. (EMILIO, 2012, p. 118)

E quanto à religião, todavia? Esta sendo o direcionamento de nossa consciência ao que é Incondicional, manifesta-se principalmente por meio da fé, que é definida por Tillich como “estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente” (Tillich, 1985, p. 5). Em outras palavras, manifesta-se por meio de uma preocupação suprema que, por sua vez, nos conduz a atos de devoção.

O que nos preocupa ultimamente, entretanto, pode ser tanto o que é verdadeiramente Incondicional como aquilo que, sendo condicionado, assume forma de Incondicional. Neste caso, teríamos o que Tillich chama de “fé idólatra”, que apesar de tudo ainda é fé. Assim, a religião manifesta a preocupação suprema existente em cada um de nós, e assim também acontecerá com o discurso religioso.

Quando dizemos que a religião é um dos aspectos do espírito humano, queremos dizer que quando olhamos o espírito humano a partir de certo ponto de vista, ele se apresenta a nós religioso (…) A religião, no sentido básico e mais abrangente da palavra, é “preocupação suprema” [ultimate concern], manifesta em todas as funções criativas do espírito bem como na esfera moral na qualidade de seriedade incondicional que essa esfera exige (…) a seriedade absoluta, ou o estado em que nos preocupamos de maneira suprema, já é religião. A religião é a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual dos seres humanos. (TILLICH, 2009, pp. 42, 44 e 45)

Visto que a religião é a preocupação suprema dos humanos, ela é capaz de emergir de formas abundantemente diferentes, não limitando-se às doutrinas e dogmas das crenças propriamente religiosas. É justamente por esse motivo que, para Tillich, é completamente possível existir uma relação religiosa com a cultura. Santos explica que:

Para ele, cultura é a produção da intelectualidade europeia ilustrada. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, a religião expressa o incondicionado, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. (2009, p. 13)

Nesse sentido, a cultura mescla-se com a religião pois a tem em sua substância, e a religião surge na cultura pois a tem como sua forma. Em outras palavras, há uma diferenciação posta por Tillich entre forma, conteúdo e substância. Enquanto a forma (form) trata-se do tipo de criação cultural, i.e, “o elemento que caracteriza a obra de arte em si, permitindo classificar uma determinada expressão como poema, música, escultura’, além de definir as manifestações culturais de um modo geral.” (SOUZA, 2013, p. 45), o conteúdo (Inhalt), é o que nos faz entender a realidade objetiva, i.e, “produz uma noção, finalidade, preocupação específica da manifestação cultural, dando-se de forma objetiva.” (Ibid), e, também, “é o objeto que se trata na arte ou nas manifestações culturais ou sociais. Inhalt, na elaboração de Tillich, é o elemento de menor significado, ao passo que só se compreende a partir da sua relação com a forma (form)” (Ibid). Já a substância – ou conteúdo substancial – (Gehalt), por sua vez, diz respeito ao que está no mais profundo, i.e, àquilo que aparece nas “entrelinhas”, que manifesta, implícita ou explicitamente, uma preocupação suprema. Assim, a união dessas dimensões é o que possibilitaria a cultura e a religião estarem tão acertadamente unidas, tendo nas mais variadas criações culturais (form e Inhalt) a realidade de uma substância (Gehalt) religiosa, i.e, a realidade de uma preocupação suprema. E essa preocupação não depende de um conteúdo objetivo diretamente religioso, mas pode ser presente mesmo no que é considerado “secular”. Assim, como Matheus (2014) bem pontua:

[…] um artista pode falar da religião tanto quanto um monge. Não pelos consagrados conteúdos conclusivamente religiosos, mas pela qualidade de sua arte, que desvela, por detrás das formas, uma potência religiosa. O sagrado não se limita às formas e aos conteúdos determinativos dos temas religiosos, mas se manifesta em toda forma cultural pela profundidade do Incondicional revelado em sua substância religiosa. (MATHEUS, 2014, p. 24)

Por outro lado, para o teórico, a cultura frequentemente parece visar uma independência da religião, percorrendo um caminho de autonomia. Todavia, ela não pode desvincular-se da mesma, pois como anteriormente dito, a religião é a substância da cultura, justamente por não estar no campo da definição dos dogmas e das doutrinas, mas, sim, da preocupação última. Em contrapartida, a religião por vezes procura sobressair a cultura, visando dominá-la, ocasionando, assim, no que chamamos de heteronomia (2014). Entretanto, o caminho proposto por Tillich é o da teonomia, uma realidade explicada por Ribeiro (2013) como:

[…] uma lei que encontra seu fundamento em Deus, mas isso não significa que ela não tenha forte fundamentação da racionalidade humana, pois sua profundidade está justamente no fato de que a razão em união com o incondicional gera maior profundidade. Vê-se, portanto, que a teonomia pode ser conceituada com a estrutura que é fundamentada em “Deus (théos) [que é] é a lei (nomos) tanto da estrutura quanto do fundamento da razão, ambos, estrutura e fundamento, estão unidos nele, e sua unidade se manifesta numa situação teônoma.” (2013, p. 201)

A teonomia, então, permite que ambas as esferas (cultural e religiosa) desfrutem-se e coexistam, sem que para isso uma apague a outra, como acontece na autonomia cultural e na heteronomia religiosa. Matheus (2014) explica que:

O Incondicional, portanto, produz uma realidade de sentido e não apenas uma realidade diante dos fatos da existência, um sentido último e mais profundo, que conduz aos fundamentos de todas as coisas. Pois ele põe por terra todas as coisas e torna a construí-las. Ele não dá espaço para se falar de uma esfera religiosa na cultura, ou de uma forma especial de conhecimento religioso ou, ainda, de um objeto religioso em especial. A autonomia da cultura é preservada, pois a religião, assim entendida, não se propõe a lhe fazer frente, a se colocar ao seu lado ou acima dela. O conflito entre as manifestações religiosas e a cultura em geral fica superado, posto que não há uma disputa de âmbitos, mas sim a manifestação na cultura da qualidade da consciência que aponta para um sentido último e que possui conteúdo de profundidade. A cultura não precisa se submeter ao governo de uma heteronomia da religião, pois esta não pretende isso. Resta, portanto, uma relação teônoma entre a religião e a cultura. Para Tillich, religião e cultura estão intrinsecamente relacionadas como forma e substância de sentido e não podem ser separadas, pois todo ato cultural carrega algo de religioso e todo ato religioso é, segundo a forma, um ato cultural. (2014, p. 36)

Dessa maneira, como afirma Matheus (2014), o sagrado e o secular nunca estão separados. Na verdade,

[…] tudo parte de uma necessidade humana universal de compreensão que exige que para se experimentar alguma coisa é necessário separá-la das demais coisas, sobretudo, daquelas que lhes são conflitantes, sendo que, na realidade, essas outras coisas estão unidas a ela. (MATHEUS, 2014, p. 27)

Justamente neste ponto que surge o conhecido “método de correlação” de Tillich, que consiste, basicamente, na necessidade de se pensar duas realidades de maneira correlacionada, ou seja, é necessário pensar toda realidade em conjunto de outra realidade; essa correlação apontaria para uma “dependência recíproca” entre realidades, muitas vezes opostas, e que, em algum sentido, sempre caminham lado a lado (2014).

Para ele, a realidade não é outra coisa senão um admirável e complicado entrelaçamento de correlações que se delineiam em todas as direções. Toda a realidade, portanto, precisa ser explorada e resolvida através desse princípio da correlação. (MATHEUS, 2014, p. 27)

De maneira objetiva, Matheus (2014) explica o método de correlação como um método aplicado à teologia da cultura propondo a compreensão de que:

[…] a priori, a experiência de um valor especificamente religioso na cultura fica subordinada à existência de uma cultura religiosa específica anterior. Ou seja, só admitimos uma experiência como sendo religiosa se ela se der dentro de um contexto tipicamente religioso. Ou ainda, é necessário que exista claramente um ambiente cultural religioso para que uma experiência religiosa seja declarada como tal. Isso acontece também com a teologia da cultura. Ela é sempre posterior à cultura religiosa em si. Pois é necessário que os elementos religiosos existam primeiro, para que depois possam ser identificados e etiquetados teologicamente. Na teologia da cultura, é necessário que primeiro haja o culto, para depois se desenvolver toda uma normatização do ponto de vista da arte; é necessário que haja a igreja, para que se possa desenvolver uma teoria do Estado como igreja; primeiro é necessária a fé para depois se conceber uma ciência sobre ela. Essa visão analítica do sagrado, portanto, só é possível partindo dos elementos seculares. O profano, contrapondo ao sagrado, possibilita seu conhecimento. Não há como entender a luz sem antes possuir uma definição sobre o que é trevas. Não se pode descrever o dia sem antes conhecer a noite. Embora sejam opostos, estes elementos só existem na relação com o outro. Um não existe sem o outro. São polos de uma mesma realidade. E é assim que Tillich propõe a sua teologia da cultura. (MATHEUS, 2014, pp. 27-28)

Assim, o método de correlação, buscando enxergar as realidades como mutuamente dependentes, visa aplicar-se na cultura por meio do enriquecimento da Igreja para que esta possa proclamar o kerygma (ou querigma), conduzindo as situações e os indivíduos ao encontro com a realidade última. Em outras palavras, tudo que ocorre na existência humana deve ser tocada pela mensagem cristã, o polo humano e o polo divino, ainda que sejam distintos e, em muitíssimos aspectos, opostos, precisam correlacionar-se para que as pessoas possam, então, conduzirem-se à realidade última, i.e, ao encontro do ser com Deus. Em suma, para Tillich, a teologia precisa ser desenvolvida em uma dinâmica, que flui e passeia entre a existência humana e a realidade divina. Para isso, entretanto, é necessário evitar três outros métodos que, para o teórico, são inadequados: o supranaturalista, que tem seu foco numa pregação transcendental que não propõe respostas à realidade humana; o naturalista – ou humanista – que procura fundamentar a Deus e o absoluto na natureza e nos próprios seres humanos; e o dualista, que, percebendo os extremos dos métodos anteriores, procura relacionar o transcendente ao humano, mas peca em “derivar uma resposta da forma da pergunta”, como o teórico pontua (2005).

Dessarte, o método teológico adequado seria aquele capaz de resolver “(…) o enigma histórico e sistemático, reduzindo a teologia natural a uma análise da existência e reduzindo a teologia supranaturalista a respostas dadas às perguntas implícitas na existência.” (TILLICH, 2005, p. 79), e este é o método de correlação, que torna a tarefa teológica em uma tarefa de um caráter mesclado entre a teologia apologética e a querigmática, não somente refletindo sobre as questões humanas, mas também respondendo-as. Dessa forma:

Ao usar o método de correlação, a teologia sistemática procede da seguinte maneira: faz uma análise da situação humana a partir da qual surgem as perguntas existenciais e demonstra que os símbolos usados na mensagem cristã são as respostas a estas perguntas. (TILLICH, 2005, p. 76).

Portanto:

A mensagem cristã fornece as respostas às perguntas implícitas na existência humana. Estas respostas estão contidas nos eventos revelatórios sobre os quais se fundamenta o cristianismo, e a teologia sistemática as toma das fontes, através do meio, sob a norma. Seu conteúdo não pode ser derivado das perguntas, isto é, de uma análise da existência humana. Elas são “ditas” à existência humana desde mais além dela. Do contrário, não seriam respostas, pois a pergunta é a própria existência humana. Mas a relação é mais profunda do que isso, porque é correlação. Há uma dependência mútua entre pergunta e resposta. Quanto ao conteúdo, as respostas cristãs são dependentes dos eventos revelatórios nos quais elas aparecem. Quanto à forma, são dependentes da estrutura das perguntas às quais respondem. Deus é a resposta implícita na questão da finitude humana. Esta resposta não pode ser derivada da análise da existência. Mas se a noção de Deus aparece na teologia sistemática em correlação com a ameaça do não-ser implícita na existência, Deus deve ser chamado de poder infinito de ser que resiste à ameaça do não-ser. Na teologia clássica, é o ser-em-si. Se definimos angústia como a consciência de ser finito, Deus deve ser chamado de fundamento infinito da coragem. Na teologia clássica, é a providência universal. Se a noção de Reino de Deus aparece em correlação com o enigma de nossa existência histórica, ele deve ser chamado de sentido, plenitude e unidade da história. Desta forma, obtém-se uma interpretação dos símbolos tradicionais do cristianismo que preserva o poder destes símbolos e os abre às perguntas elaboradas pela nossa presente análise da existência humana. (TILLICH, 2005, p. 78)

E como bem discorre Takatsu (1936):

Para fazer justiça ao método da correlação, temos de ter em mente que Tillich não considera a situação como tal em si, antes articula a situação do ponto de vista do Kerygma, porque a pergunta do homem encontra a verdadeira resposta na revelação final. Contudo, a resposta é articulada, formulada e apresentada com vistas à situação e à luz da pergunta. Pois é sua convicção de que a resposta não terá sentido se não estiver correlacionada com a situação. Correlacionar a resposta com a situação quer dizer, em certo sentido realçar certos elementos da mensagem cristã. Diz Tillich que no período da confrontação da Igreja com o mundo helénico, o que condicionava a mensagem era o problema da morte e da imortalidade. Na Idade Média e na Reforma, o Evangelho, principalmente as Epístolas paulinas, foi interpretado sob o prisma da culpa e do perdão. E hoje, realça ele o que nos preocupa não é o problema da cristianização da sociedade, nem tampouco a salvação pessoal, mas os graves problemas do conflito do homem, da autodestruição, do desespero, isto é, a vida com muitas possibilidades, mas apoderada pelo ceticismo na mente e cinismo na atitude, porque não percebe o sentido e a orientação para suas possibilidades. Esses problemas são expressos na arte, na literatura e conceituados na filosofia existencialista. Por isso, a norma que deve orientar a resposta cristã é a formulação do evento de Cristo com a realidade, em quem o homem possa encontrar a reconciliação e re-orientação da criatividade humana com sentido e esperança. (TAKATSU, 1936, pp. 64-65)

Consequentemente, a teologia torna-se capaz de difundir respostas às variadas questões e inquietações humanas que são manifestas e expressas por meio dos elementos culturais. Podemos dizer que, por trás de cada manifestação cultural é possível ver um anseio religioso, este anseio nada mais é do que a preocupação suprema que atormenta a mente e os corações de cada humano; o tormento do qual tanto fala ao expressar o conceito de religião que defende é, para o teólogo, manifesto nos processos contextuais que os indivíduos estão inseridos. Assim, ele entende que em cada contexto e época existirão angústias, ora universais ora pontuais, que exigirão da mensagem cristã um olhar contemporâneo e capaz de se contextualizar apropriadamente.

Afirmamos que o método da correlação parte do pressuposto do «simul justus et peccator» e do seu desejo de interpretar o Kerygma a cada geração, principalmente aos intelectuais que procuram, em última análise, o Evangelho, mas que não podem aceitar a mensagem cristã na forma tradicional e, por isso, sofrem. (TAKATSU, 1963, p. 63)

Por conseguinte, se a religião é presente na cultura dessa maneira, e como parte dos elementos culturais estão as Histórias em Quadrinhos, compreendemos que elas são plenamente capazes de ser, de acordo com a perspectiva tillichiana, a manifestação de uma religiosidade, ou como podemos falar, de um discurso religioso; visto que, enquanto elementos culturais, discutem e trazem à tona pautas e assuntos diversos que abrangem as mais variadas questões humanas e os mais variados anseios que os corações possuem. Em fato, vimos com a história das HQs uma clara demonstração de que maneira, ao longo de todo seu período existencial, a arte sequencial manifestou suas próprias preocupações supremas, a exemplo da maneira como levantaram pautas sociais tais como o racismo, a desigualdade de gênero, a violência, o Estado e muitas outras.

Até os dias de hoje, inclusive, podemos notar as angústias humanas manifestando-se por meio deste elemento cultural, seja aqui, seja no Oriente ou em qualquer lugar do mundo. A realidade é que estamos diante de histórias que trazem à discussão assuntos como moralidade, o anseio por liberdade, o valor da amizade, bullying, o desejo por ser aceito e tantos outros que não teríamos espaço suficiente para pontuar. Exemplos não faltariam: Super-homem, Pantera Negra, Capitão América, Mulher-Maravilha, Naruto, Attack On Titan, Dororo, Orange, A Voz do Silêncio etc. Em toda história podemos encontrar uma narrativa que nos mostre uma angústia, e em todas elas, somos capazes de enxergar preocupações que ou tomam os personagens, ou tomam a sociedade ou nos tomam individualmente.

Todas elas, em algum nível e em algum sentido, revelam o fato de que, enquanto seres humanos, lidamos com preocupações e angústias, e somos tomados incondicionalmente por muitas delas. Buscamos um propósito de vida que por si só denuncia a existência de uma preocupação suprema; aliás, toda questão existencial que recorrentemente discutimos – inclusive nas Histórias em Quadrinhos – é também uma questão de preocupação última, e portanto, é uma questão digna do olhar teológico e de sua resposta sobre Cristo e a Nova Realidade que está nele e que é capaz de responder às nossas inquietações, segundo Tillich.

3. CONCLUSÃO

Desse modo, levando em consideração que as Histórias em Quadrinhos apresentaram-se, ao longo de todo seu desenvolvimento característico e industrial, como arte, elas também são entendidas como parte dos elementos culturais. Ainda que marginalizadas, e tidas como um tipo “inferior” de manifestação artística em muitos nichos, as HQs fazem parte da história da humanidade, e tratam sobre temáticas extremamente pertinentes às sociedades; ora criticando o que se vê comumente entre os humanos, ora expondo angústias e anseios individuais.

Independentemente de qualquer coisa, no entanto, elas são palcos importantes para os discursos que dizem respeito às diversas questões existenciais que lidamos diariamente. E, segundo a teologia tillichiana e seu entendimento a respeito de religião, são elementos propícios à manifestação de uma religiosidade. Ou seja, elas são plenamente capazes de suscitar preocupações referentes ao Incondicional, seja este o verdadeiro Incondicional – enquanto o ser em si – ou seja este enquanto um ente condicionado que assume forma de Incondicional – status sociais, Estado, salvação individual, religiões concretas etc.

Assim, as HQs demonstram-se como um objeto de estudo válido ao olhar teológico. Até porque, uma vez que a teologia (especialmente cristã) preocupa-se diretamente com aquilo que é “Incondicional”, ela naturalmente deveria lançar seu olhar atento à cultura, que recorrentemente manifesta preocupações referentes ao incondicionado, respondendo, dessa forma, suas angústias e inquietações; trazendo esclarecimento às suas preocupações supremas enquanto propõe uma realidade antítese daquela ansiedade, i.e, a Nova Realidade em Cristo Jesus, que é capaz de trazer alívio ao que mais ultimamente nos perturba e inquieta.

Portanto, “a primeira coisa que devemos fazer é comunicar o evangelho como mensagem aos que entendem sua própria situação. O que podemos fazer, e com êxito, é demonstrar a estrutura da ansiedade, dos conflitos e da culpa.” (Tillich, 2009, p. 262). Se assim fizermos, Tillich acredita que construiremos uma ponte que permitirá uma comunicação mais efetiva entre Igreja, teologia e sociedade, pois no fim das contas “podemos falar aos outros somente quando participamos de suas preocupações, não por condescendência, mas nos envolvendo em seus problemas.” (Tillich, 2009, p. 265).

O evangelho, nesse aspecto, carrega a mensagem capaz de conceder alívio aos angustiados, no sentido de que possibilita “assumir” a angústia e o desespero. A mensagem cristã comunica o Cristo que manifesta uma Nova Realidade, e, dessa maneira, “a angústia da finitude e os conflitos existenciais são superados” (Tillich, 2009, p. 270). Pois, “Cristo é poder curador que supera a alienação porque nunca foi alienado” (Ibidem). Portanto, “a Igreja significa somente isso. É o lugar onde o poder da Nova Realidade que é Cristo, preparado ao longo da história e, principalmente do Antigo Testamento, vem a nós e é continuado por nós” (2009, p. 271).

Dessa forma, diante de tudo que fora exposto nesta pesquisa, podemos dizer que religião e cultura não caminham com mãos separadas, mas juntamente trilham seu caminho e constroem símbolos que apontam para o incondicionado. Essa realidade cultural-religiosa é possível porque a religião é o direcionamento de nossas consciências ao Incondicional, que entendemos como o ser em si, i.e, Deus, se nos aprofundarmos no conceito ontológico de Tillich. Dessa forma, a religião é o cordão que sustenta as pérolas que são as manifestações culturais – como exemplifica Matheus (2014). A cultura, nesse sentido, tem em sua pluralidade de manifestações as angústias da preocupação última (ou suprema). E justamente por este motivo é que a Igreja e a teologia podem relacionar-se com ela; a conduzindo a uma mensagem que nos proporciona uma Nova Realidade em Cristo Jesus.

Em vista disso, devemos delegar à teologia e à Igreja a imensa missão de propagação das boas novas que garantem o sentimento de bem-aventurança, i.e, a possibilidade de assumir nossas angústias e preocupações. Essas boas novas não devem estar presas às paredes eclesiásticas, como se teologia fosse uma função da Igreja para a Igreja somente; elas devem ultrapassar os templos e os símbolos das religiões concretas, direcionando-se aos diferentes elementos culturais, como por exemplos as HQs, e isso sem quaisquer preconceitos ou dualismos.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. BEACH, 2000.

[1] Doutor em Filosofia pela UNICAMP, Doutor em Ciências da Religião pela PUCSP. Mestre em Filosofia pela PUCCAMP. Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Bacharel e Licenciado  em Filosofia pela USP; Licenciado em História pela UNAR. ORCID: 0000-0002-8464-983X. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5010089030033594.

[2] Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORCID: 0009-0009-0524-3582. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9142412616787660.

Enviado: 01 de maio, 2023.

Aprovado: 24 de maio, 2023.

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Gerson Leite de Moraes

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