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Emergência da semiótica no pensamento de Félix Guattari

RC: 139476
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/emergencia-da-semiotica

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

SANTOS, Rogério da Costa[1]

SANTOS, Rogério da Costa. Emergência da semiótica no pensamento de Félix Guattari. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 02, Vol. 01, pp. 05-11. Fevereiro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/emergencia-da-semiotica, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/emergencia-da-semiotica

Vejo o inconsciente como algo que se derramaria um pouco em toda parte ao nosso redor, bem como nos gestos, nos objetos cotidianos, na TV, no clima do tempo e mesmo, e talvez principalmente, nos grandes problemas do momento (GUATTARI, 1988).

RESUMO 

Este breve artigo observa os primeiros movimentos de Félix Guattari, desde seu texto “O Anti-Édipo” (1972), em parceria com Gilles Deleuze, em direção à semiótica de Charles Sanders Peirce. Com a aparição das primeiras referências ao filósofo americano, no livro “O inconsciente maquínico”, de 1979, já é possível perceber que a semiótica, tal como Peirce a elaborou, exerceria um papel essencial no pensamento do filósofo francês a partir do final dos anos de 1970.

Palavras-chave: Félix Guattari, Charles Sanders Peirce, semiótica, território, desterritorialização.

INTRODUÇÃO

Félix Guattari, nascido em 1930 e falecido em 1992, foi filósofo, psicanalista, semioticista, ativista social e roteirista. Admirador de Peirce, as noções de “semiótica” e “diagrama” foram empregadas por ele pela primeira vez em seu livro “O inconsciente maquínico”, de 1979. O papel que Peirce desempenhou em seus trabalhos deveu-se, em larga medida, às disputas que travou com linguistas e semiólogos de sua época. Como ele mesmo afirma:

A linguística e a semiologia ocupam um lugar privilegiado no campo das ciências humanas e das ciências sociais. Numerosas dificuldades, que estas últimas são incapazes de resolver, são remetidas aos linguistas e aos semiólogos, que são considerados conhecedores da palavra mágica. Beneficiadas por um preconceito da moda, creditadas em grau elevado de “cientificidade”, as teorias linguísticas e semiológicas servem frequentemente de álibi a todas as espécies de falsas saídas. Referem-se a elas como a dogmas, como a santas Escrituras. Muitas gerações de psicanalistas debitavam, assim, uma quantidade inacreditável de “significante” saussuriano, sem nenhum distanciamento crítico, e mesmo, para a maior parte deles, sem saber muito bem do que falavam! Num ponto essencial, a atitude dos linguistas e dos semiólogos pareceu-me coincidir perfeitamente com a dos psicanalistas: todos estão de acordo em evitar qualquer transbordamento de sua respectiva problemática nos domínios políticos, sociais, econômicos, tecnológicos concretos que lhes dizem respeito (GUATTARI, 1988, p. 16).

Vê-se, pela citação acima, que Guattari buscava um horizonte novo para refletir sobre as relações entre desejo e linguagem. Esse esforço já estava desenhado no trabalho anterior, com Gilles Deleuze, em “O Anti-Édipo” (1976).

A POSIÇÃO DO SIGNO EM “O ANTI-ÉDIPO”

Foi durante suas pesquisas para a produção do livro “O Anti-Édipo”, realizado em parceria com Gilles Deleuze, que Guattari se viu na necessidade de confrontar a linguística, a partir de suas divergências com o pensamento psicanalítico da época. Pode-se dizer que “O Anti-Édipo” é um vasto empreendimento de “desterritorialização” da psicanálise freudiana e lacaniana, para usar os mesmos termos inventados por Deleuze e Guattari (1976).

Nesse esforço, os autores acabam por desenhar um campo reflexivo que se alimenta de conceitos inovadores, que visam deslocar o que consideram os pressupostos conceituais da psicanálise e, no mesmo passo, aqueles da linguística. Tais pressupostos estariam ligados às teorias da representação na filosofia, que repercutem nas teses linguísticas dos pares significante/significado, sujeito/objeto, enunciação/enunciado. A estratégia de Guattari e Deleuze (1976) é buscar um horizonte de reflexão que possa alcançar variáveis que estariam aquém ou além desses pares dicotômicos, mas sem, justamente, excluí-los. Não é o par significante/significado que explica a linguagem, mas é sua emergência que deve ser explicada a partir da linguagem e de elementos não-linguísticos.

É nesse movimento que os autores recorrem à noção de signo, como forma de abrir seu pensamento para fora da representação. Isso pareceria, num primeiro momento, contraditório, já que signo é uma noção clássica, proveniente da filosofia grega, e atrelado, também, a toda reflexão linguística da filosofia medieval. Mas Guattari e Deleuze (1976) seguem outro caminho, a começar pela introdução do conceito de “território”.

É importante notar o que Guattari entende por “território” e seu aspecto duplo: como se referindo à dimensão existencial e, simultaneamente, aos regimes de signos. Há “territórios existenciais”, que são compostos por variáveis de ordens diversas, sejam econômicas, de classes sociais, políticas, afetivas, poéticas, semióticas e que atravessam permanentemente a existência dos indivíduos. É nesse sentido que “desterritorializar” seria, de modo bem simplificado, perder seu território, ser “empurrado” para fora de seu território, ser desalojado. Por outro lado, “reterritorializar” deve indicar o processo de se aferrar a outro território, ser lançado em outro território, ser realojado. Os migrantes e exilados, por exemplo, vivem a dupla dimensão desses processos. Tanto eles se veem desterritorializados de seu país, de sua terra natal, quanto, simultaneamente, encontram-se desterritorializados de suas referências existenciais e expressivas. Segue-se, então, um duro processo de reterritorialização em outro país, que é também de outra ordem existencial, cultural, de valores e linguística.

Dessa forma, quando Guattari faz referência a um “agenciamento coletivo de enunciação”, ele pretende indicar uma dimensão pragmática dos signos, que seja livre das categorias sujeito de enunciado/sujeito de enunciação, significante/significado etc. O migrante ou exilado pode até encontrar uma linguagem conhecida no país onde tiver que se instalar. Mas, não será o mesmo regime de signos, o mesmo regime semiótico, porque o agenciamento coletivo de enunciação é outro. Na mesma direção, Guattari deve se deslocar da noção de “inconsciente”, presa que está nas disputas entre linguistas e psicanalistas, para a noção de “processos de subjetivação”, que parecem dar conta de forma mais adequada aos movimentos reais de desterritorialização e reterritorialização dos indivíduos em suas vidas.

Mas, atrelada a essa percepção de que signo é sempre signo de um território existencial, e não exatamente signo “de alguma coisa”, Guattari e Deleuze (1976), afirmam o seguinte em “O Anti-Édipo”:

Pois o que é o significante em primeira instância? O que ele é em relação aos signos territoriais não significantes, quando ele salta para fora das suas cadeias e impõe, sobrepõe, um plano de subordinação ao seu plano de conotação imanente? O significante é o signo que deveio signo do signo, é o signo despótico que substituiu o signo territorial, que atravessou o limiar de desterritorialização; o significante é tão somente o próprio signo desterritorializado. O signo que deveio letra. O desejo já não ousa desejar, deveio desejo do desejo, desejo do desejo do déspota. A boca já não fala, ela bebe a letra. O olho já não vê, ele lê. O corpo não mais se deixa gravar como a terra, mas se prosterna diante das gravuras do déspota, o além-terra, o novo corpo pleno (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 273).

Temos aqui vários aspectos que apontam para o esforço de Guattari e Deleuze (1976) em apresentar uma gênese do significante. Na concepção dos autores, há um processo que se dá sobre os signos territoriais não significantes e que faz com que a emergência do significante seja como uma operação de violência, de expropriação (confisco), resultado de uma ação despótica (o significante é tão somente o próprio signo desterritorializado). Simultaneamente, Guattari e Deleuze (1976), introduzem uma relação do desejo com o signo, que se desenha ao longo de todo o livro, e que se caracteriza pela distinção entre desejo como “produção” (desejo maquínico) e desejo como falta (psicanálise). Nesse último caso, trata-se do momento em que o signo se torna “letra” e, ao mesmo tempo, que o olha, passa a ler (NIETZSCHE, 2009), que o desejo atrelado ao signo passa a ser desejo de ser “desejado por outro” (o déspota): “Assim que se reintroduz a falta no desejo, toda a produção desejante é esmagada, é reduzida a ser tão somente produção de fantasma; mas o signo não produz fantasmas, ele é produção de real e posição de desejo na realidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 152).

Essa correlação entre desejo e signo é explorada ao longo de todo o texto de “O Anti-Édipo”: (…) “em vão buscaríamos algo que se pudesse chamar o Significante, e que não para de compor e de decompor as cadeias em signos que não têm vocação alguma para serem significantes”. E concluem: “Produzir desejo é a única vocação do signo, em todos os sentidos em que isto se máquina” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 59).

A PRESENÇA DE PEIRCE EM “O INCONSCIENTE MAQUÍNICO” E “MIL PLATÔS”

Logo na primeira citação de Peirce, em “O Inconsciente Maquínico”, Guattari, faz o seguinte comentário: “a semiótica é uma disciplina que propõe o estudo dos sistemas de signos segundo um método que não depende da linguística” (GUATTARI, 1988, p. 20). Pode-se dizer que esse livro de Guattari é uma grande obra sobre semiótica e desejo no capitalismo contemporâneo. Ele estrutura, com seus conceitos de máquina abstrata, diagrama, ritornelo, rosticidade, agenciamentos de enunciação, molar e molecular, por exemplo, as linhas essenciais de “Mil Platôs”. Guattari fez uso desses conceitos para demonstrar como o desejo cria universos complexos heterogêneos para se comunicar com o campo social. Tais conceitos não estavam ainda presentes em “O Anti-Édipo”. Eles marcam um claro esforço em construir um campo de reflexão cada vez mais aprimorado com ferramentas conceituais que deem conta dessa dimensão não linguística, a significante que envolve a produção do desejo.

Guattari recupera Peirce dentro dessa disputa com a linguística e a psicanálise, que desfrutavam então de grande presença no mundo intelectual, para fazer com seus conceitos uma espécie de máquina de resistência e criação. Deve-se entender que, naquele momento, tanto Guattari quanto Deleuze buscavam em Peirce um aliado em seu projeto de renovação da filosofia, e isso se deu na medida em que Peirce construiu uma teoria semiótica de forma independente dos teóricos da linguagem.

Quando Deleuze e Guattari publicam, em 1980, o texto de “Mil Platôs”, encontra-se a seguinte questão: “O que é uma semiótica, isto é, um regime de signos ou uma formalização de expressão?” Lembremos que não há nenhuma ocorrência do conceito de “semiótica” em “O Anti-Édipo”. Deleuze e Guattari (1980) entendem que os regimes de signos são:

agenciamentos de enunciação dos quais nenhuma categoria linguística consegue dar conta. O que faz de uma proposição ou mesmo de uma simples palavra um “enunciado” remete a pressupostos implícitos, não explicitáveis, que mobilizam variáveis pragmáticas próprias à enunciação (transformações incorpóreas). Exclui-se, então, a ideia de o agenciamento poder ser explicado pelo significante, ou antes pelo sujeito, já que esses remetem, ao contrário, às variáveis de enunciação no agenciamento. É a significância ou a subjetivação que supõem um agenciamento, não o inverso (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 174).

Aqui se revela a preocupação dos autores em contornar os limites impostos pelos teóricos da linguagem de sua época, dentre eles Saussure e Chomsky. Para Deleuze e Guattari, é preciso pensar para além das relações significante/significado, sujeito/objeto, enunciado/enunciação, é necessário chegar aos “pressupostos implícitos, não-explicitáveis, que mobilizam variáveis pragmáticas próprias à enunciação”. É exatamente nesse caminho que os autores fazem uso da semiótica de Peirce. A partir de um artigo de Roman Jakobson (1965), onde as teorias do signo de Saussure e Peirce são comparadas e, ao mesmo tempo, a semiologia e a semiótica são analisadas em suas diferenças e semelhanças, Deleuze e Guattari recuperam as discussões ali presentes sobre o conceito de diagrama e o redefinem segundo seus próprios critérios: “É nesse sentido que os diagramas devem ser distinguidos dos índices, que são signos territoriais, mas igualmente dos ícones, que são de reterritorialização, e dos símbolos, que são de desterritorialização relativa ou negativa”. Deleuze e Guattari (1980) acrescentam a seguinte nota de referência:

A distinção de índices, ícones e símbolos vem de Peirce (…). Mas ele os distingue por relações entre significante e significado (contiguidade para o índice, similitude para o ícone, regra convencional para o símbolo); o que o leva a fazer do “diagrama” um caso especial de ícone (ícone de relação). Peirce é verdadeiramente o inventor da semiótica. Razão pela qual podemos lhe tomar de empréstimo alguns termos, mesmo modificando sua acepção. Por um lado, índices, ícones e símbolos, nos parecem se distinguir por relações de territorialidade-desterritorialização, e não por relações significante-significado. Por outro lado, o diagrama nos parece desde então ter um papel distinto, irredutível ao ícone e ao símbolo (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 177).

Os autores sustentam, então, que os signos não são signos de alguma coisa, mas são signos de “processos” de desterritorialização e reterritorialização, e marcam um certo limiar transposto nesse movimento. A semiótica ou regime de signos deve abarcar uma extensão dos signos mais ampla do que aquela dos linguistas, restritos às categorias subsumidas ao par significante/significado.

CONCLUSÃO

O que se pode reter da brevidade dessas reflexões? Desde a pesquisa e publicação de “O Anti-Édipo”, Guattari buscava alternativas teóricas para confrontar o domínio intelectual da psicanálise e da linguística nos anos de 1960. Em “O Anti-Édipo”, Guattari, juntamente com Deleuze, busca reposicionar a noção de “signo”, não mais como signo “de alguma coisa”, mas como signo de processos de desterritorialização e reterritorialização. Tal esforço visava, em última análise, desmontar o par significante/significado, essencial aos raciocínios da linguística e da psicanálise de então.

No período entre a publicação de “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”, Guattari se aproximou da filosofia de Peirce, de sua semiótica, na intenção clara de buscar ferramentas conceituais que lhe permitissem avançar nas reflexões de “O Anti-Édipo”. E é isso que ele afirma em “O Inconsciente Maquínico”, quando diz que a semiótica de Peirce é um estudo dos sistemas de signos que não depende da linguística. Contudo, as etapas conquistadas em “O Anti-Édipo”, tais como essa correlação intrínseca entre signos e territórios, deveriam ser preservadas. E é isso que ocorre quando os autores de “Mil Platôs” observam que irão utilizar os conceitos de índice, ícone e símbolo de Peirce, mas segundo sua própria organização. Além disso, o conceito de “diagrama”, tal como emerge em Peirce, também será apropriado pelos autores, mas de modo distinto e com enorme repercussão em sua obra futura.

REFERÊNCIAS

COSTA, Rogério. A presença da semiótica de C. S. Peirce nas reflexões de Gilles Deleuze sobre os signos. Cognitio, v. 20, n. 02, p. 286-303, 2019. Disponível em: DOI: 10.23925/2316-5278.2019v20i2p286-303. Acesso em: 27 jan. 2022.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Ed. Minuit, 1980.

GUATTARI, Félix. O Inconsciente Maquínico. Campinas: Ed. Papirus, 1988.

JAKOBSON, Roman. A la Recherche de l’Essence du Langage. In: Problèmes du langage. Paris: Gallimard, col. Diogène, 1965.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

[1] Doutor Filosofia, mestre Filosofia, graduação Engenharia. ORCID: 0000-0002-6807-4263. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/4983570722211746.

Enviado: Janeiro, 2023.

Aprovado: Fevereiro, 2023.

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Rogério da Costa Santos

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