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Um sonho de assistência estudantil sonhado sozinho é apenas mais um sonho

RC: 143036
283
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/sonho-de-assistencia

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

MACHADO, Suélen Pontes [1], ANGNES, Juliane Sachser [2]

MACHADO, Suélen Pontes, ANGNES, Juliane Sachser. Um sonho de assistência estudantil sonhado sozinho é apenas mais um sonho. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 04, Vol. 02, pp. 70-87. Abril de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/sonho-de-assistencia, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/sonho-de-assistencia

RESUMO

Não há como negar a urgência de políticas públicas efetivas para a parcela da população jovem de casas de acolhimento que, ao completarem dezoito anos, precisam construir uma vida independente. Há alguns projetos de lei que se consolidam como o locus de reflexão, contemplado neste estudo. Ao nos relacionamos com a educação não formal, este estudo está fundamentado por teóricos como Gohn (2011), Freire (2022) e Catini (2021). É comum a investigação desta temática no campo da psicologia, mas as ações devem ser construídas a partir de ideias interdisciplinares. Assim, o objetivo geral, parte do pressuposto de: compreender o contexto de desabrigamento partindo de políticas públicas a fim de potencializar ações psicossociais a partir de uma educação não formal humanizadora. Este estudo caracteriza-se como bibliográfico, além de uma análise documental de projetos de leis sobre possíveis caminhos para os jovens egressos dos sistemas de acolhimento. Embora haja alguns projetos para amparo material aos jovens, identificou-se uma falta de preocupação com as concepções psicológicas. A falta de uma estrutura familiar para discussões de projetos de vida pode ser um desafio para os jovens adultos que precisam se estruturarem de modo solo.

Palavras-chave: Políticas públicas, Casas de acolhimento, Maioridade, Educação não formal.

1. INTRODUÇÃO

A educação possui amplos aparatos, teóricos e práticos, que constituem as políticas educacionais da comunidade. A família e/ou o meio em que os estudantes crescem são fortes impulsionadores da forma como os estudantes conduzem a vida escolar (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). A instituição familiar apresenta os primeiros valores aos indivíduos, entretanto, quando isto lhe é negado, crianças e adolescentes crescem sob a tutela do Estado.

O antagonismo presente nos abrigos é uma realidade, pois, ao mesmo tempo que acolhem, também aprisionam. Sentimentos positivos e negativos oscilam e marcam a vida de crianças e adolescentes. Além disso, ao atingirem 18 anos de idade, precisam sair dos abrigos e iniciar uma vida adulta (SANTOS; BOUCINHA, 2011). Este fenômeno (desabrigagem), estabelece-se como o objeto de estudo da pesquisa. É um fator estimulante para estabelecer novos conceitos teóricos-epistemológicos, sob quão humanizada está sendo o contexto educacional que estes jovens estão recebendo, uma vez que as experiências das relações familiares foram substituídas por um ambiente coletivo de proteção Estatal.

A construção da identidade dos jovens em casas de acolhimento passa pela reconstrução dos conceitos que os profissionais, atuantes nas casas, possuem. Acolher perpassa aspectos de demandas biológicas referentes a alimentação, vestuário, saúde física e educação formal. Há que se compreender a conjuntura de vida de cada pessoa, respeitando-a dentro dos princípios culturais e históricos, a fim de tentar minimizar os prejuízos psicossociais ocasionados pelos problemas familiares. Assim, propõem-se com objetivo geral: compreender o contexto de desabrigamento partindo de políticas públicas a fim de potencializar ações psicossociais a partir de uma educação não formal humanizadora.

A educação não se limita aos bancos escolares muito menos a maioridade. Nesse cenário, a temática deste artigo torna-se relevante ao passo que juventudes oriundas de casas de acolhimento se vem na condição de independentes, mas sem amparo financeiro e psicossocial. Portanto, questiona-se: como a educação não formal pode auxiliar as políticas públicas para jovens oriundos de casas de acolhimento na maioridade, a fim de potencializar ações psicossociais?

Esta pesquisa possui o intuito de contribuir para o campo teórico-epistemológico da Política Educacional, em um locus específico, jovens em processo de formação educacional que viveram em abrigos sociais ou casas lares de refúgio de crianças e adolescentes e que vem na maioridade (ao completarem 18 anos) a necessidade de estruturarem suas vidas sem o apoio familiar. Essas casas de acolhimento são instituições vinculadas ao Estado, recebem verbas e doações das comunidades.

Os jovens em situação de desabrigamento passam por um momento crucial em suas vidas, tornam-se adultos com dia e hora marcada. As responsabilidades da vida adulta estão além dos compromissos financeiros e memorização de conteúdo. Jovens marginalizados necessitam ainda mais de uma educação humanizada. Pois, “tornou-se imperativo reconhecer que o desempenho escolar não dependia, tão simplesmente, dos dons individuais, mas dá origem social dos alunos (classe, etnia, sexo, local de moradia, entre outros)” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 17). Quantos destes jovens realmente conseguirão ser protagonistas de suas vidas, ou entrarão para as estatísticas de mão de obra barata, moradores de rua, usuários de drogas, entre tantas outras anomalias psicossociais.

Iniciaremos a exposição teórica deste estudo com alguns breves conceitos sobre como a vida tutelada de crianças e adolescentes deve ser estruturada. Na sequência, aborda-se a temática sobre a educação não formal sob diferentes objetivos e a exposição de projetos de lei para possíveis caminhos da vida adulta dos jovens oriundos de casas de acolhimento.

Este estudo possui um vínculo com um projeto de tese, com objetivo de analisar a história oral de egressos de uma casa de acolhimento. Em um primeiro momento nos dedicamos a compreender melhor a conjuntura de desligamento do sistema de acolhimento, a partir de uma pesquisa bibliográfica. E, para tanto, oportunizar discussões acerca da educação não formal ao fortalecimento de políticas públicas mais democráticas, humanizadoras e intensificadoras das vontades próprias dos egressos.

2. A VIDA TUTELADA

A problematização das mais diversas formas de violência simbólica sobre as crianças e adolescentes foi compreendida nos limites legais e práticos da educação tutelada pelo Estado às infâncias vivenciadas dentro de abrigos sociais.  Ao compreendermos a criança inserida em um contexto, cujas regras são frutos de um arranjo histórico e social, é possível diagnosticar uma gama de artefatos congruentes à governamentalização do sistema social global.

A família assume um papel fundamental, mas não único, na reprodução dos conceitos sociais junto à educação das crianças. Isso torna-se ainda mais delicado quando a conjuntura familiar não acolhe, o sentimento de abandono, submissão, carência e desprezo são experiências sentidas na pele. A ausência e/ou condições familiares precárias, vinculada ao uso de drogas, maus tratos, abusos sexuais, refletem as mais diversas formas de violência explícita. Cabe destacar, que a pobreza não se configura como uma razão para afastar crianças de suas famílias, e, portanto, é possível haver crianças com estruturas financeiras sendo tuteladas pelo Estado, quando nenhum familiar mais próximo se responsabiliza pela criança.

Ao passo que são dirigidas para casas de acolhimento, crianças e adolescentes deparam-se com novos desafios. O antagonismo presente nos abrigos é uma realidade, ao mesmo tempo que acolhem também aprisionam, sentimentos positivos e negativos oscilam e marcam a vida de crianças e adolescentes.

O abrigo deve oferecer um acolhimento aconchegante que é chamado de familiar, mas apresentar uma estrutura de organização diferente da família. É uma comunidade gerida por vários adultos profissionais. Às vezes, mostra-se como única alternativa para algumas crianças/adolescentes, principalmente os maiores, que encontram dificuldades para serem inseridos em outra família que não a sua. A história de separação vivida por eles traz sentimentos muito intensos: costumam se sentir rejeitados e rejeitam; sentem-se agredidos e agridem. Necessitam de um ambiente educacional especializado, que possa acolhê-los com todos seus sentimentos (GULASSA, 2010, p.10)

Este ambiente deve ser responsável pela ressignificação da vida das crianças, o papel dos responsáveis que atuam diretamente com essas crianças ultrapassa as questões meramente profissionais. Os sentimentos negativos (oriundo do processo de abandono e/ou maltrato) internalizado pelas crianças e adolescentes são externalizados com a mesma ou maior intensidade em que receberam. Portanto, é justificável o cuidado com a qualificação da equipe multidisciplinar e investimento nas instituições acolhedoras. As casas acolhedoras já sofreram muitas intervenções benéficas ao longo do tempo, por exemplo, instituições totais (GOFFMAN, 1961) é o nome dado aos abrigos que realizavam todas as tarefas de lazer, atendimentos de saúde e educação no próprio local. Entretanto, essa maneira de manter a vida das crianças e adolescentes foi confrontada por educadores e pesquisadores da área.

Ademais, as casas de acolhimento continuam sendo objeto de estudo e crítica, “ao contrário do que se esperava, elas acabam por criar as mesmas dificuldades, sofrimentos e abandonos já vividos por essas crianças e adolescentes, reeditando, assim, a mesma relação que a sociedade estabeleceu com esses sujeitos ao abandoná-los e isolá-los” (ARPINI, 2003, p. 77). Resultado de equipes mal estruturadas, grande número de crianças, rígidas regras de organização e conduta, fato aniquilador de identidade e potencializador de problemas psicossociais para toda a vida.

A todo momento somos fruto de ações coercitivas: quando nos perguntamos por que temos que nos comportar de uma maneira e não de outra, a moral já tem uma resposta pronta: “É para o seu bem”, responde-nos a sociedade. Notem que “é para o seu bem” significa que, se você agir assim, estará sendo aceito, não será marginalizado; portanto, tem que andar na linha. “Dentro da faixa, fora do perigo”, orienta-nos o código de trânsito. E não é só no trânsito; isso vale para todos os códigos que regem nosso comportamento” (RIOS, 2006, p. 15).

Ao podarmos as escolhas dos jovens abrigados, juntamente podamos a criatividade, a expressividade, a liberdade, a vontade de fazer, tornam-se adultos subalternos. Desafiar o discurso hegemônico é uma afronta a tudo aquilo que está posto como verdade, denominado por muitos como anarquia. E, se o caso for com crianças e adolescentes menores de 18 anos, a intensidade é maior, precisa haver silêncio, ordem, obediência, comportamento.

3. A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL EM DUAS FACES

A falta de convergência sobre o conceito de educação não formal transcorre no contexto histórico. Diferentes perspectivas epistemológicas são defendidas em âmbito nacional e internacional. A educação não formal já nasce em um contexto precário de pós-guerra (II Guerra Mundial), a fim de mitigar problemas de ordem econômica e social. Nos Estados Unidos, em 1967, o evento International Conference on World Crisis in Education, patrocinado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) foi debatido sobre uma crise na educação. Combs (coordenador do Instituto Internacional de Planejamento da UNESCO em 1967) traz o uso do termo ‘non-formal education’ (educação não formal) de modo pioneiro e sobretudo

propõe que ações […] possam alavancar a educação nos países subdesenvolvidos, valendo-se do discurso assumido de tentar realizar por outros modos as funções e tarefas que a escola não consegue ou deixa de fazer, entretanto, envolvendo menores recursos, investimentos e tempo” (FERNANDES; GARCIAS, 2019, p. 501).

Caracterizado como um método emergencial de formação, idealizado para os sujeitos em situação econômica precária.

Para Freire (2022), a educação nunca esteve em crise, esse projeto configurou uma estratégia política hegemônica de manipulação das massas para o crescimento econômico. Tendo princípios autocráticos muito bem definidos. No Brasil, a perspectiva da educação não formal se consolidou, como inicialmente planejado, para a classe pobre, de maneira mais precisa para os analfabetos.

Na década de 60, Paulo Freire popularizou-se com seu curso de alfabetização para adultos, quando ensinou cerca de 300 cortadores de cana a ler e escrever em 45 dias. A concepção ontológica de Freire compreendia o sujeito dentro de suas particularidades e os apresentava uma pedagogia de libertação. Às dezessete palavras escolhidas para o embasamento do curso, não eram escolhidas pelo acaso, tinham o objetivo de proporcionar uma autonomia cognitiva social (FREIRE, 2022).

Haveria de ser a de uma educação que tentasse a passagem crítica e criticadora. De uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica, somente como poderíamos, ampliando e alargando a capacidade de captar os desafios do tempo, colocar o homem brasileiro em condições de resistir aos poderes da emocionalidade da própria transição (FREIRE, 2022, p. 113).

O acesso à leitura e escrita é apenas uma ponte para a plena compreensão do mundo, bem como as relações de poder entre ricos e pobres. Com a alfabetização, as pessoas puderam exercer o direito do voto, contribuindo com a democracia. No nordeste brasileiro, em 1962, cerca de 15 milhões de analfabetos permaneciam às margens de uma sociedade com 25 milhões de habitantes, ou seja, mais da metade da população não participava do exercício da democracia.

Em 1964, já havia um plano nacional para 2 milhões de pessoas, com coordenadores preparados para os 20 mil círculos de alfabetização. Porém, o caminho da liberdade estava fadado ao descaso, com o regime militar (1964 – 1985). O idealizador do projeto, Paulo Freire, na época ministro da Educação, sofreu algumas intervenções, contando com 70 dias de prisão e um convite para se retirar do país, considerado um traidor por doutrinar a população com o curso de alfabetização (CATINI, 2021).

Entretanto, o projeto não foi arquivado, apenas remodelado com novos objetivos. O governo entendia a necessidade de dar conhecimento à população, pois o pobre quase nada tem e pouco consome, uma limitação no desenvolvimento econômico era observada. E, portanto, toda a sociedade letrada, foi convidada a se tornar um tipo de “professor” para o ensino da leitura e escrita aos analfabetos, com o auxílio da cartilha do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). O objetivo era claro,

[…] que cada trabalhador e trabalhadora se torne peça de um mecanismo rentável, como força de trabalho inserida na produção e no consumo, também desenha a lógica de um direito social que funciona como investimento econômico, uma espécie de especulação de um futuro rentável (CATINI, 2021, p. 9).

Isso foi publicado, de modo explícito, na contracapa de uma revista da editora Abril (Figura 1).

Figura 1: Contracapa de uma revista da Editora Abril

Fonte: Catini (2021).

Letrar a população comum era o caminho de manipulação para uma exploração econômica silenciosa. O consumo traria ainda mais riqueza à elite, com isso também se originou a oferta de crédito, e uma população escrava do seu próprio trabalho. Hoje, o analfabetismo possui números muito menores, mas a alienação é igual ou ainda maior. A facilidade na troca e acesso às informações levam as massas a crer e buscar um mundo utópico. A cultura de massa é produzida a partir da “propaganda. Esta atuaria como estímulo sobre os indivíduos atomatizados que reagiriam com respostas cegas e irracionais, gerando movimentos. […] expostos aos estímulos perniciosos de certas mensagens para que produzissem respostas comportamentais instantâneas” (GOHN, 2011, p. 46). Criou-se o desejo ao consumo em uma escala muito maior, ao passo das gerações sentirem-se culpadas por não atingirem níveis de riqueza desejáveis.

O século XXI oferece inúmeras percepções de uma luta além de classes, são embates diários pela sobrevivência, inúmeras são as articulações dos sujeitos para a superação de pautas extensivamente politizadas, preconceitos raciais, econômicos, sociais, linguísticos, políticos, homofóbicos, culturais, religiosos e, sob nosso enfoque, problemas psicossociais. A sociedade encontra-se em crise, a exploração do homem pelo próprio homem é lamentável. Sobre isso, continuamos refletindo o papel da educação não formal na sociedade, especificamente aos jovens desassistidos oriundos das casas de acolhimento.

Diferentes são as perspectivas do que realmente seja a educação formal e, muitas vezes, a definição do termo é conexa ao que ele não é. Por exemplo, não segue o padrão da cultura escolar repleta de burocracia. Por ser uma educação não formal, diferentes objetivos podem estar postos, e as concepções de liberdade e humanização podem ser desconsideradas. Discute-se a educação não formal em escala mundial, nos relatórios da Unesco destaca-se alguns tipos de atividades consideradas não formais, “segundo os contextos de cada país, poderá encampar programas educativos para alfabetização de adultos, educação básica de crianças fora das escolas, e competências para a vida ativa, para o trabalho e cultura geral” (BENDRATH, 2016, p. 70). Percebe-se uma educação não formal com objetivos muito claros, voltados para a solução de problemas sociais e voltado para uma classe particular, nada muito diferente do programa do Mobral nos anos 60.

Para Gohn (2011), a perspectiva é muito mais subjetiva, não está ligada a um ou outro grupo de pessoas, questões econômicas, étnicas, raciais, sexuais, religiosas, entre outras, não servem de parâmetro para definir pautas da educação não formal. Essa definição relaciona-se aos princípios de Freire (2022) sobre a emancipação dos seres humanos.

Liberdade deve ser outra categoria também lembrada quando falamos da educação não formal, dada à força motivadora de suas práticas, geradoras de processo incentivador na busca e produção e saberes que podem vir a serem ferramentas importantes para os indivíduos aprenderem a fazer leituras próprias do mundo em que vivem, dos fatos que os circundam (GOHN, 2011, p. 12).

A busca pela liberdade só será efetiva quando realmente as massas compreenderem que estão envolvidas a um sistema articulado de domínio, e quererem sair dele. A plena liberdade humana não se basta na passagem de conteúdos sistematizados da educação formal. Gohn (2011), apresenta algumas dimensões de uma educação não formal para o século XXI.

Figura 2: Dimensões da educação não formal

Fonte: Adaptado de Gohn (2011, p. 106 – 107).

Essas dimensões “tem como escopo de trabalho a formação do indivíduo para o mundo, abrindo janelas para novos conhecimentos, criando canais de aprendizagem que poderão levar os indivíduos à emancipação de formas de pensar e agir social” (GOHN, 2011, p. 12). Compreende-se a necessidade de conteúdos técnicos para a inserção no mercado de trabalho, mas isso não basta, pois, a anomalia da juventude do século XXI são questões psicossociais.

E quando olhamos para os jovens oriundos de casas de acolhimento, as oportunidades de escolha de um caminho autêntico são minimizadas, por seguirem pautas institucionalizadas pelas políticas públicas, além das dificuldades financeiras e psicossociais. Especialmente, aqui neste estudo, traz-se a falta de amparo após a maioridade.

Neste contexto, a lei nº 12.010 (BRASIL, 2009), orienta que haja a tentativa de reinserção de crianças e adolescentes garantindo a convivência na família de origem, e sendo as casas de acolhimento um espaço momentâneo até que a situação familiar seja resolvida.  Entretanto, estima-se que anualmente três mil jovens egressos do sistema de acolhimento precisam não só de amparo financeiro como emocional (SNA, 2020).

Há alguns projetos de lei em andamento para a promoção de políticas públicas aos jovens na maioridade. O Senador Paulo Paim (PT) tramita a PL 2.528/2020 com a seguinte ementa:

Cria reserva de vagas gratuitas em cursos e programas de educação profissional para adolescentes órfãos de 14 a 18 anos. Dispõe sobre o reajuste do auxílio financeiro concedido aos beneficiários do Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem). Estimula as entidades de acolhimento familiar ou institucional a preparar os jovens para o trabalho. Dispõe sobre o acesso prioritário de órfãos a programas públicos de financiamento estudantil, acesso ao primeiro emprego, entre outros, e a vagas de estágio em órgãos públicos. Concede o benefício do Bolsa Família a crianças e adolescentes órfãos sob a guarda de entidades de acolhimento familiar ou institucional. Dispõe sobre a condição de dependente de segurado da Previdência Social (AGÊNCIA SENADO, 2020).

O projeto de lei preconiza a urgência de formar mão de obra técnica além de oportunizar aportes financeiros. Destacamos a falta de uma rede de proteção que não pode ser justificada pela maioridade. Instituir um projeto de auxílio psicológico pode ser uma alternativa para mitigar problemas psicossociais, no que se refere às escolhas para um projeto de vida.

Os programas públicos de financiamento estudantil poderiam ser repensados, por bolsas de estudos em universidades públicas, uma vez que não estariam criando uma dívida posterior à graduação.

Outro Projeto de Lei do Senado 507/2018 criada pela CPI dos maus tratos prevê:

Dispõe sobre o serviço de apoio que organizará moradias, denominadas repúblicas, destinadas a jovens de 18 a 21 anos egressos do serviço de acolhimento de adolescentes, que estejam em situação de vulnerabilidade e não tenham possibilidade de retorno à família de origem ou de colocação em família substituta. Prevê que a transição do adolescente incluirá acesso a atividades culturais, esportivas, profissionalizantes e de aceleração da aprendizagem (AGÊNCIA SENADO, 2018).

Este projeto se constitui como uma ponte à vida adulta, mas deve ser estruturado junto com um grupo interdisciplinar de cuidados, especialmente psicológicos. Estruturar uma vida apenas com artefatos materiais não se configura plenamente com os desafios emocionais deparados pelos jovens adultos sem a supervisão de uma família.

Ainda, há um terceiro projeto, n° 557, de 2019, sob responsabilidade do Senador Eduardo Girão (Podemos) sobre a priorização de ingresso na carreira militar. “Determina que na elaboração dos critérios para a seleção do serviço militar, será concedida prioridade aos jovens egressos de instituições de acolhimento familiar ou institucional” (AGÊNCIA SENADO, 2019). Esse projeto não pode ser considerado uma regra, pois nem todos os jovens possuem afinidade com a carreira militar. E a falta de assistência familiar não pode se tornar um ativo determinante para a obrigatoriedade de ingresso na carreira militar.

4. METODOLOGIA

 A partir de uma abordagem qualitativa de cunho bibliográfico e com análises documentais de projetos de leis, este estudo se constitui como uma primeira tarefa de aproximação ao objeto de estudo, às casas de acolhimento no Brasil. Ao fazer isso, contribuímos para uma melhor compreensão do acolhimento e somamos a um projeto de tese, ainda em desenvolvimento no ano de 2023, sobre a história oral de egressos de uma casa lar do interior do Paraná.

Ao discutirmos sobre a educação não formal em uma das disciplinas do doutorado, resolvemos pesquisar o quanto ela poderia ser fundamental para subsidiar políticas públicas de amparo aos jovens egressos dos sistemas de acolhimento ao atingirem a maioridade. A falta de projetos específicos para esse grupo de pessoas que se inserem na sociedade sem amparo financeiro e familiar, resulta em problemas sociais graves, ao inserirem-se na prostituição, alcoolismo, uso de drogas e criminalidade.

5. ANÁLISES E DISCUSSÕES

Os três projetos de leis estão configurados junto às considerações mais positivistas da educação não formal, ao destacarem apoio financeiro e oportunizar posições de trabalho. Mas, a educação não formal está além dos aportes materiais, é preciso emancipar maneiras de pensar e agir na sociedade. Para Gohn (2011), os conhecimentos de conteúdos e capacitação para o trabalho são importantes. Junto a isso, estão a educação para a cidadania, prática para solução de problemas comunitários, educação desenvolvida na vida e filosofias para técnicas orientais. Este último está conectado com a saúde mental das pessoas, uma anomalia presente no século XXI. E, de modo mais contundente, pode afetar jovens sem apoio familiar.

A educação não formal pode ser utilizada como um aporte às políticas públicas para uma sensibilização maior no que tange a construção psicossocial dos jovens adultos. Catini (2021), desperta oportunidades de mudanças a partir de inúmeras práticas educacionais aplicadas a qualquer comunidade.  Aquilo que geralmente discutimos informalmente em nossas casas sobre a tomada de decisões em nossas vidas, não é uma realidade dos egressos. Portanto, o estabelecimento de repúblicas para os egressos pode ser uma ótima opção aos egressos, desde que ainda mantenham contato com as pessoas que lhe cuidaram durante o processo de acolhimento.

Neste sentido, uma outra questão é desencadeada, o modelo de contratação dos colaboradores das casas de acolhimento, pois nem todos os educares possuem um contrato efetivo. Tal situação afeta diretamente na construção de laços afetivos. Essa questão constitui um outro assunto para pesquisas futuras, como a relação de tempo entre os educadores e acolhidos interfere na qualidade do relacionamento entre eles, ao ponto de confiarem ou não na confissão de desejos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A infância é uma etapa da vida com maior capacidade de memória, nela são guardadas as mais belas experiências como os mais árduos sentimentos, por este motivo, o trabalho efetivo do Estado junto aos órgãos competentes é indispensável. Seria mais fácil aceitarmos a realidade e talvez colocarmos a culpa no destino, mas enquanto pesquisadores das ciências humanas é nossa responsabilidade buscarmos condições mais humanizadas de vida.

Compreendemos que existem projetos de leis preocupado com a inserção à vida adulta dos jovens acolhidos, mas o apoio material é o principal ponto discutido. Há necessidade de discutir como as políticas públicas poderiam dar um suporte psicossocial e abranger práticas educacionais mais humanas para alcançar um desenvolvimento de projeto de vida mais amplo.

O sonho dos jovens acolhidos pode nem mesmo ser ouvido e, quando percebidos, talvez, não tenham uma estrutura emocional para serem desenvolvidos ao atingirem a maioridade. É dever do Estado efetivar políticas públicas contínuas aos egressos dos sistemas de acolhimento. Um acompanhamento psicossocial na vida adulta destes jovens configura-se como uma alternativa aos desafios encontrados. O desligamento repentino das casas de acolhimento configura-se como uma nova forma de abandono já vivenciado pelo jovem, quando foram desligados/abandonados por suas famílias de origem.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA SENADO. Projeto de Lei do Senado 507/2018. Senado Federal, 2018. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/134843#:~:text=Projeto%20de%20Lei%20do%20Senado%20n%C2%B0%20507%2C%20de%202018&text=Ementa%3A,destinadas%20a%20crian%C3%A7as%20e%20adolescentes. Acesso em: 09 abr. 2023.

AGÊNCIA SENADO. Projeto de Lei n° 557, de 2019. Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135122. Acesso em: 09 abr. 2023.

AGÊNCIA SENADO. Projeto de Lei n° 2528, de 2020. Senado Federal, 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141885#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20o%20acesso%20priorit%C3%A1rio,de%20acolhimento%20familiar%20ou%20institucional. Acesso em: 09 abr. 2023.

ARPINI, D. M. Repensando a perspectiva institucional e a intervenção em abrigos para crianças e adolescentes. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 23, p. 70-75, 2003.

BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Presidência da República, 2009.

BENDRATH, E. A. Convergências e distanciamentos na educação não-formal: uma análise dos relatórios da UNESCO. Propuesta educativa, n. 45, p. 69-80, 2016.

CATINI, C. Educação não formal: história e crítica de uma forma social. Educação e Pesquisa, v. 47, 2021.

FERNANDES, R. S.; GARCIA, V. A. Educação não formal no contexto brasileiro e internacional: tensões que perpassam a formulação conceitual. Revista Espaço Pedagógico, v. 26, n. 2, p. 498-517, 2019.

FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. 52ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.

GOHN, M. da G. Educação não formal e cultura política: Impactos sobre o associativismo do terceiro setor. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

GULASSA, M. L. C. R. Imaginar para encontrar a realidade: reflexões e propostas para trabalho com jovens nos abrigos. São Paulo: NECA-Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente, 2010.

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SISTEMA NACIONAL DE ADOÇÃO E ACOLHIMENTO – SNA. Diagnóstico sobre o Sistema Nacional de Adoção e acolhimento. Conselho Nacional de Justiça. Brasília: CNJ, 2020.

[1] Doutoranda em educação. ORCID: 0000-0002-7245-2984. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/6518755539466648.

[2] Orientadora. Doutora em educação. ORCID: 0000-0002-4887-7042. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/8168143921428986.

Enviado: 28 de fevereiro, 2023.

Aprovado: 19 de março, 2023.

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Suélen Pontes Machado

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