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Paulo Freire em Guiné-Bissau

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CONTEÚDO

ENTREVISTA

ALVES, Antónia Cadijatú [1], RÊSES, Erlando Silva [2]

ALVES, Antónia Cadijatú. RÊSES, Erlando Silva. Paulo Freire em Guiné-Bissau. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 05, Vol. 07, pp. 64-79. Maio de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/freire-em-guine

RESUMO

O artigo apresenta o resultado de uma pesquisa documental e entrevista com antigo combatente da liberdade da pátria, professor e funcionário aposentado do Ministério da Educação, Ensino Superior, Cultura e Desporto, situado no departamento de alfabetização nos anos 1975-2010, Armando Mike Noba, junto ao programa de pós-graduação em educação da Universidade de Brasília, participante e acompanhante da equipe de Paulo Freire durante o seu percurso de alfabetização para adultos em Guiné-Bissau. A pesquisa teve como objetivo, investigar como se encontrava a situação da educação oficial em Guiné-Bissau, na época em que chegou a equipe de Paulo Freire no país; os resultados alcançados em relação a sua contribuição e os impactos no processo de descolonização das mentes, bem como, a sua opinião sobre as cartas de Amílcar Cabral no âmbito da educação pós-independência e sua proposta para a realidade educacional para a população do país naquela época.

Palavras-Chave: Guiné-Bissau, Independência, Educação, Forças Armadas, Escolas Públicas.

1. INTRODUÇÃO

A escolha de método de alfabetização na Guiné-Bissau até a presente data é um assunto que tem preocupado o Estado guineense, com o intuito de dar acesso à educação oficial a toda a população. De uma forma geral, como forma de promover o desenvolvimento do país logo depois da conquista da independência, os governantes apostaram na educação oficial para todos os cidadãos como elemento principal para alcançá-la.

De acordo com Moreira (1980), a República da Guiné-Bissau fica situada na costa Ocidental da África, e seu território estende-se em 36.125km². Faz fronteira com a República do Senegal ao norte e ao leste e com a República de Guiné ao Sul, Sudoeste e Leste. Sua costa é banhada pelo Oceano Atlântico e, além do território continental, o país integra ainda o Arquipélago dos Bijagós.

Em termos administrativos, o país é constituído por oito regiões: Bolama, Bafatá, Biombo, Cacheu, Gabú, Quinara, Tombali e o Arquipélago dos Bijagós, que é o setor autônomo de Bissau.

A metodologia usada durante a pesquisa para elaboração deste artigo foi fundamentada na pesquisa documental, bibliográfica e uma entrevista com Armando Mike Noba. Ele era funcionário aposentado do departamento de alfabetização de adultos e Comissariado de Estado da Educação, Cultura e Desporto, que no cenário atual se configura como o Ministério da Educação, Ensino Superior, Cultura e Desporto.

No primeiro momento, procurou-se demonstrar as modalidades da educação que já existiam no país antes da chegada de Paulo Freire, demonstrando suas características e suas particularidades. No segundo momento, procurou-se entender as lacunas deixadas no âmbito político, educacional, social, cultural e demográfico, que pudessem justificar as falhas do método utilizado no programa de alfabetização para adultos no país. E, por fim, apresentou-se a situação que se encontra o atual Plano de Ação Nacional de Educação para Todos, elaborado pelo governo de modo a identificar a contribuição de Paulo Freire na educação da Guiné-Bissau.

2. AS MODALIDADES DA EDUCAÇÃO

Antes da conquista da independência da república, ou seja, no regime colonial, em que Guiné-Bissau fazia parte da província ultramar de Portugal, havia quatro modalidades de educação: educação oficial destinada para os filhos dos portugueses e seus aliados[3], educação para indígenas, ou seja, para os nativos regidos pelas igrejas de missão católica, destinada para civilizar indignas, e direcioná-los para a aprendizagem da língua portuguesa e os costumes portugueses; educação nas zonas libertadas, destinadas para soldados das forças armadas da luta de libertação, seus filhos e a população local e a educação corânica destinada aos muçulmanos em regiões do país que possuíam população muçulmana (SEMEDO, 2009).

A Educação oficial que existia naquela época estava estruturada de modo a permitir ao aluno prosseguir os estudos até o ensino superior, e a educação para os nativos era simplesmente para preparar o cidadão para a vida, a fim de ter uma profissão (cursos técnicos profissionais).

A educação corânica tradicional, que existiu na época colonial para os muçulmanos, foi uma educação religiosa baseada no estudo e interpretação dos versículos do alcorão (livro sagrado dos muçulmanos) para atender as necessidades religiosas dos muçulmanos.

A educação parecia ser laica, mas bem reduzida. Ela não era adequada para população guineense em relação à cultura e para promoção dos seus valores era uma educação para aculturar a população da província, para impor os valores morais, éticos, políticos e religiosos da realidade portuguesa.

A educação nas zonas libertadas[4] foi uma educação que teve seu início em 1964, em cidades que não faziam partes da administração colonial e com população analfabeta na sua maioria, tratava da educação popular dedicada a democratização do acesso ao saber e criar mentes revolucionárias aos seus educandos. Os dirigentes abraçaram as palavras de ordem “quem sabe deve ensinar que não sabe” (CABRAL, 1973).

Basicamente, era preciso que os soldados das forças armadas, militantes e simpatizantes compreendessem os objetivos da luta de libertação, por outro lado, deveriam ser capacitados para se defenderem dos colonialistas portugueses e participarem da mobilização dos outros guineenses para a luta armada.

Nas zonas libertadas, Amílcar Lopes Cabral havia declarado que depois da independência, todos os guineenses deveriam falar a língua portuguesa como a sua língua materna, porque ela se tornaria futuramente o bem mais precioso que os portugueses deixariam a eles. Se quisermos levar para frente o nosso povo, durante muito tempo a língua dos guineenses tem que ser português, devido à necessidade de estabelecer contatos com outros países e para conhecimento científico (CABRAL, 1973).

De acordo com Ampa (2012), Amílcar Lopes Cabral, filho do professor Juvenal Cabral e de Iva Lopes, nasceu em Bafatá, cidade leste do país, em 12 de setembro de 1924, sendo que com 8 anos de idade, mudou-se para Cabo Verde, local de onde sua família era proveniente. Ele terminou o seu estudo liceal em 1943 e no ano seguinte, começou a trabalhar na Imprensa Nacional de Cabo Verde na cidade de Praia, mas apenas por um ano. No ano seguinte, conseguiu uma bolsa de estudos para ir estudar em Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia, onde se licenciou em engenharia agronômica.

Como Amílcar fazia parte da camada burguesa, isto é, da camada privilegiada do regime; ele desconhecia a cultura e realidade dos africanos. Ele passou a conhecê-las a partir da convivência com outros africanos de diferentes colônias em Lisboa, e isso despertou-lhe a consciência da desigualdade social a que o sistema colonial sujeitava e uma vontade de descobrir e valorizar as culturas dos povos colonizados.

A vida de estudante lhe constituiu uma oportunidade para aprofundar o seu sentimento progressista anticolonial, participando ativamente nas atividades estudantis clandestinas que se desenvolviam à volta de casa dos estudantes.  Foi a partir disso que ele conheceu Marcelino dos Santos de Moçambique, Vasco Cabral da Guiné-Bissau, Agostinho Neto de Angola e Eduardo Mondlane de Moçambique, os quais se tornariam líderes dos movimentos de libertação.

Depois de terminar os estudos em 1953, ele foi colocado como engenheiro agrônomo em Bissau já com suas atividades políticas iniciadas em Portugal. Nesta ordem de ideia, Amílcar Lopes Cabral, apesar de nascer em Guiné-Bissau, ele não pertence a nenhum dos grupos étnicos que constitui a população guineense, também, não se identifica com nenhum dos grupos étnicos da Comunidade de Estados da África Ocidental -CEDEAO. Voltou para sua origem logo depois dos primeiros dois anos do ensino primário.

Em 1958, Amílcar Cabral, Aristides Pereira (ex-presidente da república de Cabo Verde), seu meio irmão Luís Cabral (ex-presidente da república da Guiné-Bissau logo após a conquista da independência da república), Fernando Fortes e Elisée Turpin, fundam o Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde PAIGC. Quatro anos depois, o PAIGC saiu da clandestinidade ao estabelecer uma delegação na cidade de Conacri, república da Guiné, país vizinho. Em 23 de Janeiro do ano de 1963 deu início a luta armada contra os colonos portugueses, com ataque ao quartel de Titi, no Sul do país, a partir da base em Conacri (AMPA, 2012).

A escolha da língua portuguesa como língua de ensino em todos os níveis do ensino pode ser justificada de seguinte maneira:

Amílcar fazia parte daqueles cidadãos, filhos dos aliados do regime colonial, tinha como língua materna portuguesa, mal falava crioulo da Guiné-Bissau, com cultura e costumes dos portugueses.

Amílcar Cabral e seus companheiros fundaram PAIGC em 19 de setembro de 1956, logo depois das independências dos primeiros países africanos, a saber, o Sudão, no dia 1 de janeiro de 1956 e a Tunísia em 20 de março de 1956, mas em clandestinidade. Somente saíram da clandestinidade 4 anos depois, isto é, depois de 5 anos da independência da República da Guiné pela França (2 de outubro de 1958), com a língua do ensino do país colonizador (francês) e Senegal obteve a sua independência da França em 1960, 3 anos antes do início da luta de libertação. A língua deste país de ensino continua sendo francês. Neste contexto, em que todos os países vizinhos continuaram com a língua do colonizador (francês), Amílcar Cabral não tinha referências que lhes pudessem influenciar para fazer diferente. Por outro lado, até a data presente, os únicos países da África negra que adicionaram a língua diferente do colonizador, isto é, a língua regional da África Austral Swahili[5] como oficial foram Tanzânia, no ano de 1968; Uganda, em 2004 e Quênia, em 2005.

Antes da independência, a maioria das pessoas vivia no campo, somente 44% da população (urbana) falava crioulo e, nos interiores, poucos tiveram o domínio da língua crioula em função das suas línguas étnicas. Eles enfrentavam o dia a dia sem nem pensar no governo, principalmente a população que habitava as ilhas. Nessa perspectiva, nem todas as cidades do interior foram colonizadas, ou seja, os poderes das autoridades coloniais não conseguiram penetrar até a conquista da independência da república em muitas cidades do interior.

O crioulo, identidade dos guineenses, não possui terminologia técnica científica e política ideológica indispensável a uma sociedade que estava para construir, os únicos materiais didáticos disponíveis na altura eram os que tinham sido preparados para a divulgação do ensino de português e os professores que tinham a altura estudaram em língua portuguesa (FREIRE, 1986).

Armando Miki Noba, na entrevista, relatou que, em função da política educativa da época colonial, em Guiné-Bissau, depois da sua independência em 24 de setembro de 1973, sua taxa de analfabeto era de 98, 4%, (MOREIRA, 1980) uma das mais elevadas do mundo, naquela época. Com este drama, a situação levou o governo a dar atenção e prioridade à educação. O governo passou a pedir ajudas, fazer acordos com o exterior, com o objetivo de melhorar a alta taxa de analfabetismo que era considerado muito elevado. Foi nesse quadro que Paulo Freire foi convidado por Mario Rabelo Cabral, comissário do estado da educação para assessorar no processo de alfabetização dos soldados nos quartéis (NOBA, Fonte oral).

3. EDUCAÇÃO PÓS-COLONIAL E CHEGADA DE PAULO FREIRE A GUINÉ-BISSAU

Em toda época colonial, a educação sempre foi baseada em preconceitos étnicos e raciais. Precisava ser filho de português ou de seus aliados para ter acesso à educação oficial oferecida pelo governo colonial. Foi neste quadro que Amílcar Lopes Cabral estudou.

Guiné-Bissau, logo depois da independência da república em 1974, tinha uma população de aproximadamente 700 mil habitantes, dentre os quais mais de 500 mil viviam no campo, e estima-se que 36% sejam muçulmanos, 13% sejam cristãos e que o restante da população siga praticante de religião tradicional africana (animista) (MOREIRA, 1980).

Com a entrada do governo do partido libertador, a educação e outras instituições foram conquistadas e nacionalizadas, foi abolida educação para indígenas, proibindo assim as escolas de missões católicas a ensinar religião e de formação profissionais e foi ampliado a educação oficial para todos, com programas de alfabetização para adultos e soldados provenientes da luta armada da libertação com mudanças curriculares. A educação corânica tradicional continuou a ser educação não oficial na nova legislação da república (art.40/1975). Neste contexto, a educação passou a ser laica em seus objetivos e foi colocada a serviço do interesse público.

Nos primeiros anos depois da independência (1974-1980) continuaram com o sistema educacional sobre o modelo da educação em zonas libertadas. Educação baseada em princípios e valores da luta de libertação que conciliava ensino com trabalho do campo. Nesta perspectiva, tinham uma matéria com nome de formação militante e uma atividade chamada de trabalho produtivo, as quais eram obrigatórias para todos os níveis do ensino.

Formação militante era matéria criada na época da luta de libertação nas escolas de zonas libertadas para descolonizar as mentes da população através da educação escolar, a fim de criar um homem novo, uma sociedade nova e uma sociedade liberta. Era matéria objetivada para incutir na mente dos estudantes o espírito revolucionário, os objetivos da luta armada pela libertação nacional, razões pelas quais, todos os guineenses deveriam se unir para lutar contra os colonialistas portugueses, e dentre as quais deveriam preparar politicamente os estudantes para que eles passassem a ser um cidadão nacionalista.

A atividade chamada de trabalho produtivo se tratava de atividades obrigatórias que eram exercidas pelos alunos na área de agricultura para sustento dos soldados, professores, alunos e dirigentes do PAIGC em zonas libertadas. O trabalho também incluía os serviços de limpeza nos quartéis e nas escolas.

O governo tinha objetivo de expandir a nível nacional a experiência obtida em zonas libertadas, o objetivo que foi difícil de se concretizar, porque, PAIGC passou a governar uma nação; não um grupo de militantes e simpatizantes de um partido em zonas libertadas que compartilhavam as mesmas ideias; passou a resolver problemas em geral de uma nação com pessoas ou etnias de diferentes ideias em um território.

A experiência da zona libertada não se consolidou em Guiné-Bissau, porque nas cidades que permaneceram sob administração colonial (as zonas não libertadas) antes da independência, os costumes e a cultura portuguesa continuaram prevalecendo e criando dificuldades aos programas do governo.

Os professores nacionais que continuaram nas instituições de ensino eram muitas das vezes inadequados com o novo método e nova situação. A tradição cultural herdada dos portugueses leva-os a serem bem resistentes às mudanças.

Nas escolas das zonas libertadas, os alunos eram organizados em salas e em grupos de estudos que eram dirigidos por um professor. Como não havia estágios de capacitação dos professores, além de se organizarem para discutir sobre o planejamento das aulas, eles trocavam entre si as suas experiências (NOBA, Fonte oral).

O regime político foi baseado em princípios e valores de regime socialista imposto pelos países que estavam apoiando a luta de libertação (União socialista Soviética e Cuba). Eram países parceiros da luta armada que forneciam armamentos de guerra aos combatentes da liberdade da pátria.

Durante a luta de libertação, o PAIGC enviou muitos dos seus militantes e simpatizantes para estudar cursos técnicos e superiores nesses países. A ideia era preparar quadros para atuar de forma política e militar, a fim de que mais tarde fosse possível governar e trabalhar na construção do país.

4. CHEGADA DE PAULO FREIRE EM GUINÉ-BISSAU

Paulo Freire chegou a Bissau a convite do Comissariado de Estado da Educação Sr. Mario Rabelo Cabral, em 1976, dois anos depois da independência da república, na época que estava vivendo asilado em Genebra. (ROMÃO; GADOTTI, 2012)

Naquela época, o método (alfabetização de consciencialização)[6] dele já estava sendo usado nos programas de alfabetização para adultos nos quartéis, através do treinamento que os delegados coordenadores guineenses receberam dos especialistas em educação de adultos do governo comunista português no ano de 1975 em Bissau logo depois da independência. Mas parecia que o processo de alfabetização que estava sendo realizado pelos nossos especialistas e voluntários das Nações Unidas estava a decorrer de uma forma muito lenta (NOBA, fonte oral).

Paulo Freire, por sua vez, chegou ao país em 1977, recrutando alguns técnicos nacionais com aqueles do Instituto de Ação Cultural- IDAC simplesmente para assessorar e aperfeiçoar o método que estava sendo utilizado na alfabetização nos quartéis. O projeto de alfabetização estava sendo financiado pelo Fundo Sueco para Desenvolvimento ASDE e o Conselho Econômico das Igrejas CEI (NOBA, fonte oral).

Paulo Freire, ao chegar a Bissau, deparou-se com apenas um liceu[7], chamado, Liceu Nacional kwame nkrumah, Honório Pereira Barreto, na época colonial. A maioria dos professores eram voluntários das Nações Unidas que estavam trabalhando no país como cooperantes nas instituições de ensino do segundo grau e poucos professores nacionais, pois os poucos que tinham eram portugueses e, como consequência da independência, haviam regressado a Portugal. Tinha-se uma escola técnica profissional de Brá, uma escola de missão católica no centro da cidade, um ciclo preparatório Salvador Allende, Marchal Carmona na época colonial e poucas instituições de ensino primário em todo o país.

Em cada capital das oito regiões que o país possui, além da capital Bissau, havia apenas uma escola de missão católica (Bafatá, Gabu, Bolama, Cacheu, Bisorão). Nas regiões sul, Tombali e Quinara faziam parte das zonas libertadas pelo PAIGC (NOBA, Fonte oral).

Inicialmente, o programa de alfabetização da equipe de Paulo Freire limitou-se aos soldados analfabetos provenientes da luta de libertação nacional nos quartéis. As suas participações eram obrigatórias, porque nas zonas libertas havia atividades de alfabetização para os soldados, mas os recém recrutados, no momento em que a guerra estava muita intensa, não dispunham de tempo para participar das atividades de alfabetização, assim como não tinha escolas e professores disponíveis em todas as zonas libertadas (NOBA, Fonte oral).

Todas as aulas ocorriam nos quartéis em salas aprovisionadas e nos horários acessíveis que permitia conciliar as aulas com as tarefas dos soldados. Em dois anos de intenso trabalho foi radicalizado o analfabetismo nas forças armadas, porque, nos quartéis, havia uma disciplina do cumprimento do horário, obrigatoriedade por parte dos soldados participantes e a avaliação dos seus desempenhos pelas chefias militares.

A alfabetização foi em língua portuguesa, o que funcionou, já que todos os soldados tinham domínio da língua crioulo de base português (crioulo da Guiné-Bissau).  O crioulo de Guiné-Bissau é um português mal falado, mal pronunciado, um dialeto natural, de formação rápida, criada pela necessidade de expressão e de comunicação plena entre os indivíduos inseridos em comunidades de diversidades linguísticas como: Pula, Papel, Manjaco, Balanta, Mandinga etc. Procurou superar a pouca funcionalidade das línguas maternas nacionais e recorreu-se ao modo imposto da língua socialmente para ser dominante e ao seu saber linguístico para construir uma forma de linguagem veicular simples, do uso restrito mais eficaz, que posteriormente é gramaticalmente complexificado e lexicalmente expandido em 1780, em particular pelas novas gerações de crianças que adquirirem como língua materna, dando origem ao crioulo (BULL, 1986).

Na tentativa de melhorar as ações de alfabetização de adultos, o governo, através de seu Comissariado de Estado da Educação, ampliou o programa de alfabetização para as empresas e criou um departamento para coordenar apenas assuntos de alfabetização de adultos, chamado Departamento de Alfabetização de Adultos.

A alfabetização nas empresas foi para aqueles empregados analfabetos das empresas portuguesas, que foram nacionalizadas pelo governo provenientes da luta de libertação. Todos os trabalhos foram em língua portuguesa e, em um ano, o analfabetismo foi radicalizado nas empresas públicas de todo o país, porque todos os empregados já tinham domínio da língua de ensino (português) e crioulo de base portuguesa e todos eles já haviam convivido com os portugueses no período da colonização (NOBA, Fonte oral).

Com a eficácia do método utilizado nas empresas e nos quartéis, o Departamento das Políticas do Estado Maior das Forças Armadas, na pessoa de Julio Cesar de carvalho, por sua vez, construiu em Bissau, dentro do espaço do quartel general, Liceu 23 de Janeiro, mais conhecido pelo Liceu de FARO[8], com intuito de alfabetizar os cozinheiros dos quartéis, algumas chefias militar que não havia participados nos programas anteriores de alfabetização pelos motivos da idade. E, para aqueles soldados alfabetizados darem continuidade aos seus estudos até terminar 2º grau (NOBA, Fonte oral).

Posteriormente, Edna Ferreira, diretora e coordenadora do Departamento de Alfabetização de Adultos ampliou a atividade de alfabetização para a população em todas as comunidades do país, o que ficou conhecido como “alfabetização em massa”. Naquela época, a maioria das comunidades não tinha escolas, os coordenadores do programa de alfabetização tiveram que negociar o espaço com as comunidades de acordo com as suas realidades.

Em comunidades que não tinham escolas, as aulas eram realizadas em ar livre, debaixo das árvores e em casas particulares e nas comunidades onde tinham escolas, as atividades eram realizadas nas escolas fora do horário normal de aulas.

Logo no início do recrutamento das pessoas, apareceram possíveis problemas que supostamente originaram a falha do método que já tinha sido utilizado em alfabetização nos quartéis e nas empresas do país. Os impactos e as falhas no método utilizado podem ter sido causados pelas seguintes situações:

Língua do ensino, pelo fato da maioria das comunidades falarem línguas do seu grupo étnico diferente a do ensino, ou seja, sua língua materna diferente da de ensino, resultou por sua vez, em alto índice de abandono por parte de muitos aprendizes.

Falta de estradas que ligassem a cidade de Bissau, onde moram a maioria dos professores e coordenadores, e as cidades do interior do país. As estradas eram todas de terras batidas, cheias de buracos, tudo era de difícil acesso.

As populações não eram beneficiadas pelos serviços básicos do governo, não tinham sonhos, não tinham projetos de vida, não havia desenvolvimento, somente isolamento econômico e social. As dificuldades predominaram na população. Eles não acreditavam em dias melhores, não tinham eletricidade e havia cidades que não tinham nem estradas de terras batidas.

Bafatá era a segunda maior cidade depois de Bissau, a distância era de 150 km, tudo de terra batida. Os professores não conseguiam se deslocar para as cidades mais remotas, porque eram cidades que possuíam muitas minas terrestres e a trajetória de desenterrar as minas era muito demorada e cara. O pior de tudo, a guerra terminou, mas o campo minado ainda continua matando a população no campo naquela época.

As minas terrestres são armas mais baratas e mais fáceis de fabricar, mas sai muito caro removê-las do solo. Nesta perspectiva, depois da independência, tanto retirar minas, como construir estradas se tornaram tarefas das mais complicadas, dentre as enfrentadas pelos governantes (NOBA, Fonte oral).

As minas tinham como objetivo principal criar obstáculos ou dificuldades aos avanços dos soldados da luta de libertação, movimentação dos militantes do PAIGC e população das zonas libertadas. A ausência das estradas estava prejudicando a população do interior do país, pois a isolava da cidade de Bissau, provocando seus desconhecimentos de outras atividades, além daquelas de subsistência familiar.

Havia muitas cidades que não circulavam dinheiro. Nelas havia trocas diretas entre agricultores. Na época das chuvas, as pessoas não viajavam em função de muitas lamas e árvores caídas nas estradas aprovisionadas.

Dificuldade de conciliar aulas com o trabalho da população por motivos de desconhecimento das atividades das comunidades. Nelas, havia vários tipos de atividades (pesca, pastagem, agricultura, caça, artesanato) com horários diferentes, razão pela qual as populações daquela época tinham dificuldades de cumprimento dos horários marcados, porque suas atividades costumeiras não dependiam de horários marcados.

A população islâmica tinha educação corânica tradicional nos horários livres de suas atividades cotidianas. A educação corânica tradicional é uma educação que funciona de maneira bem fixada no ensino do alcorão, onde os alunos aprendem o alfabeto árabe em primeiro lugar e posteriormente as interpretações dos versículos traduzidos em língua árabe para as línguas locais, também aprendem a interpretar o alcorão para atender as necessidades religiosas dos muçulmanos em alguns casos, para futuramente serem pais de santos ou Almuadém [9].

Conclui Freire (1970) que a educação implica uma atitude e uma postura radicalista, baseadas no encontro com o povo através do diálogo enquanto instrumento metodológico que permite a leitura crítica da realidade, partindo da linguagem do povo, dos seus valores e da sua concepção do mundo, transformando-se desta forma na luta pela libertação dos oprimidos pelo método de educação que valoriza o saber do povo e suas realidades culturais na construção de novos saberes.

5. O ATUAL CONTEXTO DA EDUCAÇÃO EM GUINÉ-BISSAU

De acordo com artigo 16 da constituição da república de 1996, parágrafo 1º a educação visa à formação do homem. Ela deverá manter-se estreitamente ligada ao trabalho produtivo, proporcionar a aquisição de qualificações, conhecimentos e valores que permitam ao cidadão inserir-se na comunidade e contribuir para o seu incessante progresso.

No Parágrafo 2º, o Estado considera a liquidação do analfabetismo como uma tarefa fundamental. Nesta ordem de ideia, com a queda do socialismo em 1991, ou seja, Perestroika (reforma do estado soviético) que aconteceu na Ex-União Socialista Soviética, o PAIGC que era partido único acatou o multipartidarismo, decisão que foi incluída na constituição da república, em maio de 1991, pressionada pela França e Portugal em troca de ajuda econômica.

Implantando o multipartidarismo no país (ALVES, 2004), os partidos políticos pressionaram o governo a fazer reformas do Estado. A reforma dizia respeito à descentralização do poder do Estado, à privatização das empresas públicas, produtores de bens e serviços para o mercado, à terceirização dos serviços auxiliares, à reestruturação do Estado e a sua reorganização. Foi neste quadro que começaram a surgir escolas privadas, oferecendo maiores salários em relação às escolas do governo no país, razão pela qual a maioria dos professores com formação abandonaram as escolas públicas. Eles passaram a atuar em escolas privadas.

As escolas públicas começaram a enfrentar enormes dificuldades em função de greves dos professores, que eram proibidos na época do socialismo, anos letivos nulos, fuga dos professores qualificados para as escolas privadas, diminuição de investimento do governo na área da educação, financiamento da educação em escolas públicas passaram a repousar sobre as famílias através das cobranças de taxas de matrículas, compras dos uniformes e compras de materiais escolares.

De acordo com dados do IMVF (2017), os problemas no setor educacional têm suas raízes, no contexto social e econômico, que acabam interferindo diretamente no desempenho dos alunos nas escolas públicas.

No contexto social, os abandonos escolares e a reprovação são dois elementos que contribuem para um fraco rendimento interno: por motivos de trabalhos infantis, casamento precoce, falta de interesse pela escola, doenças e gravidez precoce. As redes escolares continuam a ser desigual quanto mais afastado do centro urbano menor é a oferta de uma escola. Quanto mais distante a escola, maior a chance de a criança não frequentar escola.

No contexto econômico, o orçamento do estado para educação era de 13%, contudo passou para 3%. Como consequência do fraco orçamento do Estado, as despesas passaram a ser arcadas pelas famílias e isto é uma das fortes razões pela qual muitas famílias não colocam seus filhos na escola.

O acesso ao ensino básico era uma realidade até 2006 para 76 % das crianças, das quais apenas 37% conseguiam chegar a uma escola de ensino médio. Uma em cada quatro crianças guineenses não conseguem entrar numa escola, no ensino básico/primário. As reprovações e abandonos se verificam com maior número nas escolas públicas (15%), nas escolas privadas (5%), e 60 % das crianças com menos de 10 anos estão fora de escola (UNESCO, 2017).

6. CONCLUSÃO

A participação do Sr Armando Mike Noba foi um elemento mais marcante e presente neste trabalho. No contexto de aquisição de informação sobre a alfabetização nas zonas libertas e no percurso de Paulo Freire e sua equipe do IDC nos trabalhos de alfabetização que foram realizados no país (alfabetização nas forças armadas, alfabetização nas empresas públicas e alfabetização em massa).

Paulo Freire foi convidado pelo Comissariado de Estado da Educação, o atual Ministério da Educação, Ensino Superior, Cultura e Desporto de Guiné-Bissau, na pessoa de Mario Rabelo Cabral, para assessorar no programa de alfabetização dos soldados provenientes da luta de libertação. Esta atividade foi uma continuidade da alfabetização dos soldados nas forças armadas em zonas libertadas, que estava sendo realizada pelos técnicos nacionais e voluntários das Nações Unidas, logo depois da independência da república.

Nos primeiros momentos, o processo de alfabetização estava muito lento, com a chegada de Paulo Freire e sua equipe; o analfabetismo foi erradicado nas forças armadas em um período de dois anos. Como consequência da eficácia do método utilizado pela equipe, a atividade foi estendida para as empresas públicas de todo o país e foi criada a escola 23 de janeiro/Liceu de FARO para os soldados alfabetizados darem continuidade aos seus estudos até terminarem o segundo grau.

Pela terceira vez, a atividade foi estendida de novo para população (alfabetização em massa) para todas as comunidades do país, utilizando o mesmo método. Método (educação em zonas libertadas) que foi escolhido pelo governo do partido libertador.

As 3 sessões de alfabetização realizadas foram, a alfabetização nas forças armadas, a alfabetização nas empresas e a alfabetização em massa. As duas primeiras terminaram com muito êxito e ficaram na história da educação de Guiné-Bissau. A última, alfabetização em massa, em função do método da diversidade linguística, cultural e ocupacional que existia naquela época.

REFERÊNCIAS

ALVES, A. C. Desenvolvimento de Recursos Humanos no contexto da Reforma de Estado: estudo comparativo entre Brasil/Guiné Bissau. Salvador: Bahia, 2004.

AMPA, J. História da Guiné-Bissau em datas (1950-1993). Boletim Cultural da Guiné-Bissau (BCGP), Imprensa Nacional de Bissau, Bissau, maio 2012.

BULL, B. P. Crioulo da Guiné, Filosofia e Sabedoria. Lisboa 1987.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU, 1991.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU, 1996.

CABRAL, Amílcar. Unidade e Luta.  Comitê Executivo da Luta do PAIGC, Novo Seara, 1973.

FREIRE, Paulo. Cartas da Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1970.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2005.

FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

GADOTTI, J. E. R M.; FREIRE, P.; CABRAL, A. Descolonicação das mentes, 2012.

IMVF. Instituto Marquês de Valle Flor. UE-PAANE promoveu debate sobre “A Educação na Guiné-Bissau”. 2017. Disponível em: https://www.imvf.org/2017/04/07/ue-paane-promoveu-debate-sobre-a-educacao-na-guine-bissau/

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO DO BRASIL. Plano Nacional de Ação Educação para Todos. 2003. Disponível em: http://pne.mec.gov.br/

MOREIRA. N. Guia de Terceiro Mundo. Mapas, Dados Estatísticos e monografias de mais de 150 países. Ed. tricontinental, 41, 2° Dto, Lisboa, 1980 e 2010.

ROMÃO, J. E.; GADOTTI, M. Paulo Freire e Amílcar Cabral: a descolonização das Mentes. 1975, SP, Ed., Instituto Paulo Freire. 2012. ISBN 978-85-61910-85-3.

UNESCO. Pole Dakar. 2016. Disponível em: www.iipe-poledakar.org

APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

3. Lei colonial n° 42994 de 28 de maio de 1960.

4. Cidades conquistadas pelas forças armadas antes da independência e que estão fora do controle da administração colonial.

5. Swahili, é a língua mais falada no leste da África e ao sul do Saara. Desde 2004 passou a ser uma das línguas oficiais da União Africana. É uma língua pertencente aos grupos das línguas bantus que nasceu na integração entre os povos da Ásia oriental e das populações provenientes da Índia e do golfo pérsico. (Instituto da Investigação e desenvolvimento em políticas Linguística) jornal de Angola 14/02/2017

6. Ter consciência crítica, recorrendo à radicalização crítica, criadora enquanto unidade dialética entre subjetividade e objetividade, a qual gera um atuar e pensar certo sobre a realidade com a visão transformadora. Esse processo transforma-se ainda assim, numa ameaça à classe dominante. Paulo Freire (1970)

7. Escola do ensino médio

8. Forças Armadas Revolucionárias do povo

9. Quem dirige as rezas em mesquitas

[1] Doutoranda em educação pela universidade de brasília/UNB, mestrado em administração pela universidade federal da bahia /UFBA, graduação em administração pela universidade da Bahia UFBA).

[2] Orientador. Doutorado em Sociologia.

Enviado: Julho, 2020.

Aprovado: Maio, 2021.

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Antónia Cadijatú Alves

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