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Metodologias de ensino da língua brasileira de sinais: da escola para casa

RC: 126905
1.006
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ensino-da-lingua-brasileira

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PEREIRA, Rosiane Sousa [1]

PEREIRA, Rosiane Sousa. Metodologias de ensino da língua brasileira de sinais: da escola para casa. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 09, Vol. 03, pp. 87-100. Setembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ensino-da-lingua-brasileira, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ensino-da-lingua-brasileira

RESUMO

A aquisição da Língua Brasileira de Sinais – Libras pelo aluno com surdez é imprescindível para seu desenvolvimento humano, social e escolar. No entanto, adquirir a língua de sinais e não ter em seu espaço de convivência escolar e familiar o respeito e comunicação em sua língua materna tem levado muitos surdos a se comunicar em Libras apenas com outros surdos e com os profissionais ouvintes que dominam a libras. Diante desse cenário, o estudo de caso apresentado neste artigo emergiu a partir da problemática vivenciada por uma aluna com surdez do 5º ano do ensino fundamental de uma escola pública, que enfrenta muitas dificuldades na aprendizagem porque o processo metodológico utilizado para o ensino não contempla sua língua materna, causando assim muitos obstáculos no seu desenvolvimento cognitivo. Pensando nisso, o objetivo desse trabalho é relatar as experiências vivenciadas na aplicação de projetos para o ensino da Libras no contexto escolar e familiar, de maneira contextualizada para subsidiar a comunicação em língua de sinais e dar acessibilidade à aprendizagem da aluna surda, através da sua língua materna. O trabalho apresenta a clarificação do caso e os reflexos dos projetos “Libras em Casa” e “Momentos em Libras” desenvolvidos pela professora do Atendimento Educacional Especializado – AEE em parceria com a escola regular e a família. Concluiu-se com a pesquisa que a parceria entre escola e família são essenciais para possibilitar o desenvolvimento cognitivo e comunicativo entre todos os envolvidos, respeitando e difundindo a língua de sinais com seu devido valor cultural e social. Dessa forma, a aluna passou a ter mais respeito por sua língua, melhor aproveitamento nas aulas da sala comum, as quais passaram a contemplar sua comunicação e interpretação de forma contextualizada, viabilizando a aquisição da Língua Portuguesa Escrita a partir da Libras, tornando sua comunicação e interpretação de mundo mais clara e expressiva, tanto na escola como em casa.

Palavras-chave: Libras, Comunicação, Escola e Família.

1. INTRODUÇÃO

Relembrando o percurso histórico da educação escolar brasileira dos alunos com surdez, nos deparamos com três fases distintas durante aproximadamente duas décadas, essas fases classificadas em: Oralismo, Comunicação Total e hoje, o Bilinguismo, trazem à tona mudanças legais (legislação) e educacionais ocorridas na perspectiva de proporcionar à comunidade surda uma educação de qualidade, respeitando sua diversidade cultural e linguística.

A educação desenvolvida pelo Bilinguismo propõe a valorização da pessoa surda e sua cultura, respeitando a língua de sinais como sua língua materna e aprendizagem da língua oral dominante em seu país, na modalidade escrita. Como afirma Schubert (2017, p. 37), “a inserção das políticas inclusivas, […] apontam para o bilinguismo na educação, asseguram a inclusão dos surdos em instituições […] onde o professor carece de formação bilíngue, a fim de que o processo de ensino-aprendizagem se efetive”.

Esse respeito à cultura da pessoa surda ganhou força com a Lei 10.436/02, na qual enfatiza em seu Art. 1º, que a Libras é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão, reafirmando em seu parágrafo único que

[…] é a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (BRASIL, 2002).

Ao longo dos anos a educação de pessoas com surdez no Brasil tem passado por diversas mudanças e implementações de legislações que possam garantir uma educação de qualidade e respeito à sua identidade linguística, cultural e educacional, o exemplo está no direito de manifestar-se e aprender os currículos escolares através de sua própria língua.

A Língua Brasileira de Sinais, língua materna da pessoa com surdez é adquirida através do ensino desenvolvido por profissional habilitado e qualificado para Atendimento Educacional Especializado – AEE realizado na escola regular, através do qual deve desenvolver de acordo com Damázio (2007), os três momentos didático-pedagógicos distintos, assegurando ao aluno surdo o conhecimento de Libras, em Libras e em Língua Portuguesa Escrita – LPE.

Adquirir a língua de sinais é imprescindível para o desenvolvimento acadêmico, social e familiar da pessoa com surdez, no entanto, muitas são as barreiras encontradas e enfrentadas por esse público para ter acesso a aprendizagem em sua língua. Entre essas barreiras, destaca-se o fato da escola regular majoritariamente ouvinte não receber apoio de políticas públicas para ter acesso e conhecimento da Libras, para utilizá-la de forma natural e adequada na interlocução com a pessoa surda.

O fato é que, tanto os professores do ensino comum, quanto os demais profissionais da escola, colegas de classe, como sua própria família, não tem acessibilidade a esse aprendizado, o que leva à falta de comunicação adequada em língua de sinais entre surdos e ouvintes, causando atrasos em sua aprendizagem e comunicação com equidade.

Dessa forma, o que se percebe na realidade das escolas regulares, é que o aluno com surdez inserido em sala de aula comum só tem acesso ao currículo em sua língua, quando o tradutor-intérprete de Libras e/ou o professor de AEE (como é nossa realidade local) estão presentes em sala. A falta de conhecimento entre os envolvidos no seu processo de escolarização gera de forma quase que automática, o desrespeito à sua forma de comunicação e a desvalorização do seu potencial cognitivo e socioafetivo, causando muitas barreiras de acesso à informação e conhecimento.

Tanto na escola quanto em casa, a pessoa com surdez enfrenta uma “luta diária” para se inserir, ser compreendida e compreender o mundo ao seu redor, isso porque os ambientes que a incluem, ao mesmo tempo excluem, principalmente por falta de conhecimento da sua língua materna. Pensando nisso, o estudo de caso desenvolvido com a aluna surda a ser denominada de “Antônia” (para preservar sua identidade), propõe relatar as experiências vivenciadas na aplicação de projetos “Libras em Casa” e “Momentos em Libras”, desenvolvidos pela professora do AEE em parceria com a escola e família para o ensino da Libras, expondo os reflexos obtidos no contexto escolar e familiar para subsidiar a comunicação e aprendizagem através da Língua de Sinais.

2. CONTEXTUALIZANDO O CASO

Antônia é uma adolescente de 12 anos que cursa o 5º ano do ensino fundamental de uma escola pública municipal de Santarém. Ela é a filha mais velha de uma família de três filhos e mora com sua mãe e seu padrasto. Antônia teve meningite aos três meses e como consequência adquiriu surdez profunda bilateral.

Sua infância foi muito difícil, ainda criança perdeu seu pai de forma drástica e passou a morar com seus avós paternos por aproximadamente cinco anos. Após esse período, sua mãe casou-se novamente e decidiu retomar a guarda de Antônia.

A família morava em uma cidade do interior do Pará, onde não tinham acesso a qualquer apoio e ensino em Libras, assim, tanto na casa dos avós como na casa de sua mãe, a comunicação desenvolvida entre eles era de forma gestual e com mímicas, apenas o suficiente para haver compreensão entre as partes.

Ao completar seis anos foi necessária sua inserção em um novo ambiente, o ambiente escolar. A expectativa familiar era que a partir de então, a menina tivesse a possibilidade de obter conhecimentos e desenvolvimento na língua de sinais, no entanto, o desafio escolar de Antônia estava só começando… A escola não dispunha de professores e profissionais habilitados para o ensino e acompanhamento especializado de alunos com surdez e durante um ano, a educanda não obteve avanços na escolaridade e a falta de comunicação adequada a fez tornar-se infrequente no ambiente escolar.

Diante das dificuldades enfrentadas, sua mãe buscou outra possibilidade para que sua filha pudesse desenvolver-se no ensino e comunicação. A solução foi mudar-se de domicílio onde houvesse apoio adequado e especializado para sua filha, decidindo morar em Santarém no estado do Pará.

No novo domicílio, Antônia foi matriculada no 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal, onde passou a receber acompanhamento especializado de professor do AEE e a ter uma educação pautada no ensino bilíngue. Além de Antônia, sua família também passou a ter momentos de apoio e orientação sobre o ensino da Libras, para que pudessem compreender o “mundo da pessoa com surdez” e assim poder respeitar e valorizar sua língua, além de adquirir uma comunicação adequada para dialogar em língua de sinais.

Na sala de aula comum, a aluna tem dificuldades em aprender conteúdos técnicos por falta de recursos visuais adequados e por seu professor desconhecer a língua de sinais, prevalecendo a Oralização durante suas aulas. Essa realidade dificulta muito para que Antônia consiga acompanhar na “íntegra” todos os conteúdos de sua escolaridade, sentindo-se “perdida” em sala de aula.

Fica evidente sua tranquilidade e participação durante o ensino, quando a professora do AEE está presente em seu turno de aula, pois assim consegue compreender e acompanhar os conteúdos que são explicados com acessibilidade e interpretação. Haja vista que o professor do regular usa metodologias que não se adéquam às necessidades da aluna, como por exemplo, realiza ditado de textos e atividades orientadas verbalmente, deixando Antônia desmotivada e sem interesse em frequentar as aulas quando a professora do AEE não está em sala.

O fato é que o Atendimento Educacional Especializado realizado em sala de aula comum não ocorre diariamente, tornando-se insuficiente para suprir as necessidades comunicativas e interpretativas da aluna. Vale ressaltar, que esse tempo disponibilizado é para a função de professor do AEE com atuação em interpretação da língua de sinais, pois a rede de ensino não dispõe de intérpretes de libras escolar. Nesse caso, o professor especialista em educação especial reveza seu tempo de trabalho para atender na sala de recursos multifuncional todos os alunos inseridos na escola, além de atuar como intérprete na sala de aula em períodos distintos.

Antônia sabe que esse tempo é mínimo, mas é tão esforçada e interessada que valoriza ao máximo esses momentos de aprendizagem, pois sabe que seu desempenho em sala de aula “está em suas mãos” e que precisa “sobreviver” em meio às metodologias de ensino por vezes excludentes.

Essa realidade vivenciada pela aluna Antônia e certamente por tantos outros alunos surdos é minha grande inquietação enquanto pessoa e profissional da área, uma vez que jamais podemos nos tornar indiferentes diante de situações que minimizem ou desprezem o valor do outro, como comenta Brum (2013, p. 177), pois

acho que o mundo seria melhor – e a vida doeria um pouco menos – se cada um se esforçasse para vestir a pele do outro antes de rir, apontar e cutucar o colega para que não perca a chance de desprezar o outro, em geral, mais vulnerável.

A problemática levou-me a pensar na possibilidade de tornar o uso da língua de sinais de fato “natural” para a aluna, que, por motivos não especificados, desconhecia sua língua materna, como propõe a Lei da Libras (BRASIL, 2002). Tornar o uso da língua de sinais uma prática cotidiana para a aluna no processo de escolarização já era um desafio, desafio maior seria tornar “natural” essa comunicação no contexto familiar.

Apesar de saber que enfrentaria muitas barreiras de aceitação, principalmente por parte da família, propus o desenvolvimento de dois projetos educacionais para o ensino da Libras para além da escola, em parceria com a equipe pedagógica/administrativa e a família da aluna Antônia. Os projetos educacionais denominados: “Libras em Casa” e “Momentos em Libras”, desenvolveram-se com a pretensão de levar às pessoas ouvintes inseridas nesses ambientes o acesso ao conhecimento da língua de sinais para possibilitar o desenvolvimento da comunicação Libras com a aluna surda.

Afinal, não basta apenas a pessoa com surdez adquirir sua língua materna se nos ambientes em que estiver inserida não houver o acesso às informações em Libras. Difundir a Língua Brasileira de Sinais no ambiente escolar e familiar é imprescindível para quebrar as barreiras de comunicação e informação, possibilitando assim a efetivação da aprendizagem da pessoa surda de forma significativa e construtiva.

3. PROJETOS DE INCLUSÃO LINGUÍSTICA E CULTURAL: “LIBRAS EM CASA” E “MOMENTOS EM LIBRAS”

Almejando a inclusão, socialização, comunicação e o desenvolvimento integral da aluna Antônia, propus à direção da escola a implementação de dois projetos: o ensino da língua de sinais no ambiente familiar, intitulado “Libras em Casa”, com a proposição de desenvolvê-lo uma vez por semana na residência da aluna, distribuindo o AEE que ocorria três vezes (na semana), com dois encontros na escola (AEE contraturno) e um, na casa da aluna com duração de 4 horas. O outro projeto foi o “Momentos em Libras” realizado na sala de aula comum, uma vez na semana.

Após a autorização da direção da escola para inserir a proposta dos projetos no PEI[2], chegou o momento mais desafiador: apresentar a proposta dos projetos à mãe de Antônia e convencê-la da importância do seu desenvolvimento.

A preocupação maior se deu pelo fato de que necessitaria não só de sua aceitação, mas principalmente da autorização para adentrar a residência, já que o “Projeto Libras em Casa” ocorreria no ambiente domiciliar e necessitaria de disponibilidade e alguns momentos de sua participação. Pensando nessa problemática e almejando obter êxito na investidura, recorri a algumas argumentações fundamentadas na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEE/2008, apresentando-lhe seu objetivo principal:

[…] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, […] orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem […] e oferta do atendimento educacional especializado; participação da família e da comunidade; acessibilidade […] nas comunicações e informação (BRASIL, 2008, p. 14).

Além da PNEE (BRASIL, 2008), informei-lhe sobre a Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015 (BRASIL, 2015), que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), enfatizando o Art. 3, que considera “barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas” (BRASIL, 2015); e a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), que dispõe sobre o uso e a difusão da Libras, da qual sua filha está inserida.

No início, houve resistência por parte da mãe, talvez por desconhecer o quão significativa fosse a Libras para a aprendizagem e o desenvolvimento da filha, mas, após as argumentações com bases legais, o projeto desenvolvido trouxe muitos avanços, foi aceita e foi iniciada a aplicação.

Através do “Projeto Libras em Casa”, foi possível acompanhar a realidade familiar da adolescente. Antônia era tratada como “limitada” e incapaz de desenvolver-se, sendo valorizada apenas pelos afazeres do dia a dia. Essas concepções eram reforçadas pelas atribuições que desempenhava como atividades domésticas, como, por exemplo, cuidar da irmã e algumas vezes atuar como “pombo-correio”[3], levando e trazendo recados escritos entre parentes e o proprietário do comércio onde a família comprava produtos de consumo.

As ações desempenhadas faziam parte da rotina familiar, sendo naturais para ela. Afinal,

a família torna-se nossa primeira referência no que se refere às ideias de mundo, de gente, de convivência, de ações e reações diante das mais variadas situações, enfim, de compreensão de nossa estada e inferência em todas as circunstâncias da vida (SANTOS, 2012, p. 13).

Muitas vezes, o projeto era interrompido pelo fato de Antônia ter que atender uma ou outra função que a mãe solicitava. Mudar essa rotina foi desafiante!

Inicialmente, cheguei a pensar que as interrupções eram uma forma de motivar a desistência do projeto, mas, ao longo do tempo, ficou evidente o quanto Antônia era importante para a mãe nesses momentos, pois só podia contar com ela, já que a irmã mais nova tinha apenas seis anos de idade. Nesse momento, foi imprescindível fazer um paralelo entre a realidade e a necessidade educativa da aluna. Nesse sentido, foi necessária mais uma conversa com a mãe, que entendeu a importância da atenção e da concentração da filha para que esse momento do ensino da Libras em Casa ocorresse sem mais prejuízos à vida da educanda.

Começou então uma nova fase do projeto, com a participação mais atenta da mãe e da irmã mais nova, que aprendia com facilidade a língua de sinais. Além disso, o personagem pombo-correio deu lugar a uma nova ave: a águia[4].

A partir dessa compreensão da família, Antônia mostrou-se motivada a comunicar-se efetivamente, principalmente em casa, ensinando com autonomia a língua de sinais não só à mãe e à irmã, mas também a outros familiares, fato que consolidou a valorização e o uso da língua de sinais na sua comunicação.

Após alguns encontros do projeto, a mãe relatou que já havia falado com outros parentes e que “agora todos nós teremos que aprender Libras para compreender as informações e a comunicação da Joana” (Mãe da Antônia). Nessa perspectiva, percebemos a magnitude familiar para o desenvolvimento escolar, familiar, social e cultural do filho com deficiência. A família, de acordo com Santos (2012)

[…] é como um pequeno exemplo de convívio social, composto de suas regras, com sua hierarquia própria, seus modos de ação e de relação que não demora muito a se estender do portão da casa para fora, chegando até aos vizinhos da rua, aos moradores do bairro, além dos parentes e amigos da família (SANTOS, 2012, p. 13).

Além do AEE em Libras, a Língua Brasileira de Sinais e a Língua Portuguesa Escrita – LPE que a aluna recebia no contraturno da sala de aula comum, o projeto para o ensino da Libras ocorria em outros dois momentos: o primeiro, em sua residência, e o segundo, na sala de aula, com a participação dos colegas e do professor da sala comum.

Para o desenvolvimento do projeto em sala de aula, o professor regente, que ministrava todas as disciplinas da turma, disponibilizava trinta minutos de suas aulas, duas vezes por semana, para que a professora do AEE (eu) e a aluna surda apresentassem aulas em língua de sinais, para ensinar aos colegas e ao professor da turma, vocabulários e alguns diálogos envolvendo temáticas do dia a dia. As escolhas eram orientadas pela necessidade comunicativa observada no cotidiano escolar, para possibilitar a comunicação entre a aluna surda e a comunidade ouvinte, para, dessa forma, difundir a Libras em todo o ambiente escolar, potencializando a comunicação entre todos os sujeitos envolvidos no processo educativo da Joana.

Promover o ensino e a comunicação em língua de sinais com ouvintes da escola e do ambiente familiar evidenciou mudanças de paradigma para os pais e a mudança de postura de alunos e professores da escola, que passaram a atuar com mais respeito e valorização da cultura surda, bem como a participar mais ativamente do processo de ensino e aprendizagem da aluna.

Com a possibilidade de usar a Libras e fazer-se entender no contexto inclusivo, Joana sentia-se estimulada e “inclusa” no ambiente escolar, mesmo sem a presença da professora de AEE, pois os colegas e professores tinham condições de comunicação e a estimulavam no ensino de novas palavras em LPE, que ela ainda não conhecia. Por outro lado, Antônia ensinava os sinais referentes a essas palavras em língua de sinais, aos colegas e ao professor, possibilitando a ampliação do vocabulário em Libras e em LPE, para o seu repertório de escrita, tornando o ensino equitativo.

Nessa perspectiva, como afirma Quadros (1997, p. 46), “uma proposta educacional bilíngue e bicultural para surdos caracteriza-se pela utilização de uma língua oral usada na comunidade ouvinte e uma língua de sinais própria da comunidade surda”. Por serem línguas distintas, devem ser estabelecidas de acordo com suas regras: “as línguas de sinais se apresentam numa modalidade diferente das línguas orais; são línguas espaço-visuais, ou seja, a realização dessas línguas não é estabelecida através dos canais oral-auditivos, mas através da visão e da utilização do espaço” (QUADROS, 1997, p. 46).

Considerando os objetivos propostos pelos projetos desenvolvidos no processo de aprendizagem da Antônia, os resultados foram extremamente gratificantes e valiosos, principalmente, ao evidenciarem os efeitos da disseminação da língua de sinais para além da escola e da sua casa, além da mudança do cenário vivido pela aluna surda, que passou de excludente e segregativo para um cenário inclusivo e bilíngue, no contexto escolar e familiar. Com esses resultados, é perceptível que, “ao mesmo tempo em que o indivíduo e sua família contribuem para a história do meio em que vivem, inferindo e transformando a cultura local, também são reconstruídos e transformados pelos elementos culturais da sociedade em que estão inseridos” (SANTOS, 2012, p. 15).

Ao sentir-se inserida nesse contexto, a educanda não se intimidava em interagir com os ouvintes e ensinar sua língua em qualquer espaço em que estivesse. Se havia reciprocidade, ela ensinava e aprendia de forma colaborativa e ativa.

Ao relembrar as duas primeiras propostas educacionais para alunos com surdez, as quais emergem da Oralização e passam pela Comunicação Total (CT), muitas são as marcas deixadas e o desrespeito à identidade e cultura, sendo proibidos de usar a língua materna.

Apesar de mudanças significativas no percurso educacional e das políticas públicas voltadas para a inclusão de alunos com surdez, ainda é evidente a inclusão excludente dos alunos surdos em salas de aula comuns.

A regulamentação da Libras como língua oficial para o ensino bilíngue, proposta pela Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, ainda não é garantia de ensino acessível aos surdos, uma vez que, apesar da publicação da lei e seu Art. 2, que institui ser “dever do poder público em geral e de empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e a difusão da Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil” (BRASIL, 2002), ainda não se tornou realidade em grande parte das escolas públicas com alunos surdos inclusos.

Logo após a publicação da lei, a dificuldade foi manter o atendimento que garantisse o direito do aluno sinalizante. Assim, professores do AEE passaram a desempenhar esse papel, até que fosse promulgada a lei que oficializasse um profissional específico para tal função. Assim, a Lei 12.319, de 1º de setembro de 2010, foi homologada para regulamentar a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais e assim garantir aos alunos com deficiência, o direito de acesso ao currículo em sua própria língua (BRASIL, 2010). A lei ressalta no Art. 6º, as atribuições do tradutor e intérprete no exercício de suas competências, entre as quais destacam-se:

I – Efetuar a comunicação entre surdos e ouvintes, surdos e surdos, surdos e surdocegos, surdocegos e ouvintes, por meio da LIBRAS para a língua oral e vice-versa;

II – Interpretar, em Língua Brasileira de Sinais – Língua Portuguesa, as atividades didático-pedagógicas e culturais desenvolvidas nas instituições de ensino nos níveis fundamental, médio e superior, de forma a viabilizar o acesso aos conteúdos curriculares (BRASIL, 2010).

A expectativa por parte de alunos, familiares e profissionais da área para a efetivação do tradutor-intérprete Libras em sala de aula ainda permanece, isso porque, no contexto escolar pesquisado, não há esse profissional específico, sendo essa função exercida pela professora de AEE. A falta deste profissional tem comprometido tanto o aprendizado quanto desenvolvimento integral do aluno com surdez, além de dificultar o acesso e a comunicação entre surdos e ouvintes.

A realidade vivenciada traz à tona um paralelo entre o legal (leis) e o real (realidade). Essa relação entre as leis e decretos que garantem esse direito ao aluno surdo e a realidade encontrada ainda hoje em algumas vivências não é com o intuito de “proceder a uma crítica radical à inclusão em geral e à inclusão educacional, significa conhecer, analisar e problematizar as condições para a sua própria emergência” (VEIGA-NETO; LOPES, 2011, p. 125).

A crítica é necessária, porque ainda é a realidade das escolas do município de Santarém-Pará, onde a implementação do ensino de Libras, tradução e interpretação curricular, bem como a comunicação entre os alunos surdos e professores/alunos ouvintes continuam sendo desempenhadas pelo professor do AEE. Essa situação poderia ser diferente, caso houvesse um intérprete para ficar integralmente com o aluno surdo em sala, para interpretar e auxiliar na comunicação, já que o professor do AEE destina apenas algumas horas semanais para se fazer presente na sala, tendo em vista que há outros alunos público-alvo da Educação Especial para atender no AEE.

A falta de profissionais qualificados e específicos para a inclusão do aluno surdo na sala de aula comum evidencia o processo de exclusão, pois o aluno não participa e não interage nas aulas, porque os professores da sala desconhecem a língua e não há profissionais disponíveis para mediar essa comunicação. A percepção que se tem é que o aluno surdo só existe quando o professor do AEE está presente na sala de aula, marcando assim a in/exclusão dos alunos com surdez na escola comum. Para Veiga-Neto (2001) é perceptível que,

[…] se parece mais difícil ensinar em classes inclusivas, classes nas quais os (chamados) normais estão misturados com os (chamados) anormais, não é tanto porque seus (assim chamados) níveis cognitivos são diferentes, mas, antes, porque a própria lógica de dividir os estudantes em classes – por níveis cognitivos, por aptidões, por gênero, por idades, etc. – foi um arranjo inventado para, justamente, colocar em ação a norma, através de um crescente e persistente movimento de, separando o normal do anormal, marcar a distinção entre normalidade e anormalidade (VEIGA-NETO, 2001, p. 25).

 Esse pensamento reflete o resultado da inclusão escolar e o desenvolvimento educacional dos alunos surdos inclusos, que, na maioria das vezes, são considerados ineficazes. Observa-se que “muito frequentemente inclui-se para excluir, isso é, faz-se uma inclusão excludente” (VEIGA-NETO; LOPES, 2011, p. 123). É fundamental desenvolver estratégias educacionais que tragam à tona a inclusão da pessoa com surdez na escola comum, respeitando e usando sua língua de aquisição e direito. Direito esse, que também deve ser implementado em sua “segunda escola”, o ambiente familiar.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o trabalho desenvolvido no AEE com o apoio dos projetos “Libras em Casa e Momentos em Libras”, além da parceria fundamental da escola e família, é possível afirmar que um dos reflexos observados é que Antônia passou a ser inserida nas ações familiares e escolares, sendo valorizada pelo seu potencial e fazendo parte de um novo cenário inclusivo, no qual a socialização e comunicação na sua língua materna passaram a ser real e significativo.

Em sala de aula, recebe apoio do professor regente e dos colegas que por saberem se comunicar em Libras, conseguem interagir e não se intimidam em conversar em língua de sinais e tentar ajudá-la na realização de suas atividades curriculares. Ressalto ainda uma observação muito relevante, os colegas “disputam entre si” quem irá ajudar a colega Antônia nas atividades escolares, deixando-a com semblante de felicidade por estar sendo tão bem aceita e respeitada em sua cultura linguística e cultural. Quando surgem dúvidas quanto aos sinais referentes ao assunto a ser abordado para Antônia, os colegas e professor de sala recorrem à professora do AEE/Libras para auxiliá-los, além dos recursos acessíveis para a comunicação em língua de sinais já orientados pela professora do atendimento.

Para retribuir tanto apoio e empenho dos colegas, Antônia sempre que possível separa um tempinho para ensinar novas palavras aos colegas e ao professor de sala, mesmo fora do horário do projeto, buscando ao máximo expressar-se através da língua de sinais e manter esse ensino aos ouvintes da sala e até mesmo da escola, já que o projeto se estendeu em algumas ocasiões para toda a escola.

A discente tem apresentado um excelente desenvolvimento em sua comunicação em Libras por sentir-se inserida nos espaços de convivência: escola e família, além disso, seu conhecimento em LPE apresentou muitos avanços. Infelizmente pelo fato de ter iniciado acompanhamento especializado tardiamente, ainda apresenta dificuldades em interpretar e produzir textos extensos. Antônia necessita sempre de maior tempo para realizar essas atividades, já que recorre ao auxílio da professora do AEE e de aplicativos/dicionários com tradução da LPE para Libras para desenvolvê-los, no entanto, os faz com eficácia e empenho.

Em casa, sua comunicação tem sido desenvolvida através da língua de sinais, eliminando gradativamente “os gestos” antes usados pelos familiares. Antônia faz questão de ensinar os sinais adequados em Libras, em toda e qualquer situação de comunicação, não só com os familiares de seu domicílio quanto para sua família externa. Assim, mantém a rede de ensino e comunicação da língua de sinais estimulada através do projeto “Libras em Casa”.

Dessa forma, as barreiras comunicacionais e de ensino para a aluna com surdez foi e está sendo gradativamente substituída por comunicação, socialização, respeito e ensino de qualidade e com equidade através da Língua Brasileira de Sinais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Lei de Libras. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm. Acesso em: 13 ago. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2010. Regulamenta a profissão de Tradutor e Intérprete da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm. Acesso em: 31 jan. 2022.

BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEE. Brasília: Ministério da Educação e Cultura/Secretaria de Educação Especial, 2008. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em: 10 mar. 2022

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 10 mar. 2022

BRUM, Eliane. A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.

DAMÁZIO, Mirlene Ferreira Macedo. Atendimento Educacional Especializado: Pessoa com Surdez. São Paulo: MEC/SEESP, 2007.

QUADROS, Ronice Muller. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.

SANTOS, Ivan Álvaro dos. A relação família, escola e deficiência auditiva. Indaial: Editora Uniasselvi, 2012.

SCHUBERT, Silvana Elisa De Morais. Limites e possibilidades da educação bilíngue para surdos no contexto das políticas de inclusão (1990- 2017): implicações à formação de professores. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, 2017.

VEIGA-NETO, Alfredo. Incluir para saber: Saber para excluir. Pro-posições, v. 12, n. 2-3, p. 35-36, jul./nov. 2001. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643993. Acesso em: 10 mar. 2022

VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corcini. Inclusão, exclusão, in/exclusão. Verve, v. 20, p. 121-135, 2011. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/verve/article/view/14886. Acesso em: 10 mar. 2022 

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. O Plano Educacional Individualizado é organizado a partir das necessidades específicas do aluno com deficiência, traçando objetivos e metodologias articuladas com a equipe pedagógica da escola e professores da sala comum a fim de eliminar as barreiras de acesso ao ensino, garantindo assim, sua acessibilidade.

3. [Sentido Figurado] Indivíduo que leva mensagens de uma pessoa para outra; mensageiro.

4. A analogia da águia ao relato exposto está associada a atitudes de autonomia, liderança, elevação, determinação, superação e vitória, que a discente com surdez conseguiu alcançar.

[1] Mestra em Ensino pela Universidade Vale do Taquari – UNIVATES; Pós-graduada em Atendimento Educacional Especializado – AEE pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.  ORCID: 0000-00019859-0843.

Enviado: Agosto, 2022.

Aprovado: Setembro, 2022.

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Rosiane Sousa Pereira

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