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A importância do desenvolvimento da consciência do estudante durante o processo de ensino: reflexões e contribuições de Paulo Freire

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, Ana Paula Mendes da [1]

SILVA, Ana Paula Mendes da. A importância do desenvolvimento da consciência do estudante durante o processo de ensino: reflexões e contribuições de Paulo Freire. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 11, Vol. 06, pp. 05-20. Novembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/consciencia-do-estudante

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir a importância do desenvolvimento da consciência crítica do estudante durante o processo de ensino, buscando, especialmente nas reflexões e contribuições de Paulo Freire, argumentos do que é necessário oferecer ao indivíduo para que o mesmo consiga desenvolver essa consciência reflexiva e crítica, como um ser ativo na sociedade. Para o desenvolvimento da conscientização, destaco ser preciso adotar o diálogo no processo de ensino, envolvendo governo, escola, sociedade, alunado e professores, propor novas políticas educacionais e ter mestres compromissados e abertos a novas experiências e desafios. Partindo da afirmação de ser necessário pensar em novas ações políticas, será apresentada, resumidamente, a proposta do Novo Ensino Médio, programa educacional contemporâneo cuja concepção é fortalecer a autonomia e o protagonismo juvenil, despertando a criatividade dos alunos por meio de projetos interdisciplinares e investigativos. Por fim, aponta-se algumas considerações que enfatizam a importância social de se formar um indivíduo consciente, atuante e conquistador de saberes.

Palavras-chave: Ensino, Conscientização, Paulo Freire, Novo ensino médio.

1. INTRODUÇÃO

Desenvolver a consciência crítica do estudante vem sendo um desafio para os profissionais e estudiosos da educação. Apesar de uma vasta discussão e numerosos estudos realizados e publicados sobre a importância dessa ação em prol da conscientização dos nossos alunos, observa-se que, em grande parte das escolas brasileiras, o ensino ainda é bancário, convencional, rotineiro, empregando-se métodos que acarretam a repetição mecânica e a estagnação do raciocínio do aluno, não se preocupando em oferecer mecanismos que provoquem a reflexão e conscientização desses educandos.

Nesse sentido, cada vez mais crianças e adolescentes desistem de ir às escolas por não verem fundamento no que o local lhe propõe. Não querem fazer cópias de textos, resumos, e, ainda, exercícios matemáticos ilógicos e confusos. Rotineiramente, devem ficar sentados, e ainda enfrentam a determinação, por parte de alguns educadores, do silêncio e do não questionamento[2]. Com essa premissa, às vezes, por medo ou insegurança, não conseguem se posicionar, expor suas ideias ou opiniões, dialogar com colegas e professores, simplesmente voltam para casa e desistem, adentrando no conformismo social.

Fazendo um paralelo com a discussão do professor brasileiro Alysson Mascaro (2016), esse conformismo vai além de uma explicação do já dado, é a estagnação dos horizontes de seu tempo e aquilo que ainda poderia existir, transformando as pessoas passivas às injustiças, minando discernimentos de interesses e valores coletivos. Como pontuou o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato (2006, p. 70) em seu estudo sobre as revoluções do capitalismo, “neutralizar a potência da invenção [do desejo] e codificar a repetição para subtrair dela toda possibilidade de variação [em meio a singularidades], para reduzi-la[s] à simples reprodução.”.

Observamos que tal atitude prejudica não só os jovens renunciantes do ensino, mas toda uma sociedade, que carece de forma improtelável de seres mais humanizados, otimistas, idealizadores, conhecedores de seus direitos e deveres, capazes de viver e conviver de forma respeitosa com uma sociedade dotada de diversidades.

Para tanto, esse estudo é fruto de uma pesquisa teórica, embasada nas ideias do estudioso Paulo Freire. Num primeiro momento, abordamos a trajetória de nosso teórico de referência, e, na sequência, continuaremos a discorrer acerca das ideias de conscientização e lutas educacionais desse autor. O propósito é refletir e debater sobre a importância do desenvolvimento da consciência crítica do aluno, discutindo sobre o sentido do ato de ensinar e a relevância do diálogo nesse processo, bem como a necessidade de novas políticas públicas educacionais que enfatizem o protagonismo do estudante, e, ainda, apontar o quanto é importante o papel do professor na busca da formação desses cidadãos conscientes. Por fim, mencionar benefícios que esse indivíduo atuante, possuidor de saberes, pode oferecer à toda sociedade.

2. PAULO FREIRE E A LUTA PELA DESALIENAÇÃO DO CIDADÃO

O educador brasileiro Paulo Reglus Neves Freire nasceu em 1921, na cidade de Recife. A vida que experimentou enquanto criança, de pobreza e fome, o fez se preocupar com os mais pobres e o incentivou a construir seu método de educação popular. Suas ideias, reflexões e método de ensino o fez ser reconhecido mundialmente, inspirou e ainda inspira muitos profissionais não só da área da educação, mas todos aqueles que se preocupam com a formação do ser humano e que são comprometidos com as causas populares. Enxergava e lutava pela educação como um processo de conscientização, de libertação, residindo a esperança de alcançar uma sociedade mais justa e igualitária. Aluno e parceiro de Paulo Freire, o também educador brasileiro Moacir Gadotti (2007, p. 52) pontua que “Não se pode ‘ser freiriano’ apenas cultivando suas ideias. Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a construção de um ‘outro mundo possível’”. Percebe-se que sua pedagogia “sem fronteiras” é um convite para transformar o mundo.

Ainda sobre a vida de Freire, o teórico ingressou aos 22 anos na Faculdade de Direito de Recife, em seguida, começou a lecionar e assumiu diversos cargos públicos relacionados à educação, envolvendo-se em vários projetos nessa área. Foi criador de um sistema de alfabetização revolucionário para adultos, cuja implementação ocorreu durante uma grande crise política, o Golpe Militar (GADOTTI, 2007). Freire acreditava que a formação da consciência crítica permitia ao indivíduo questionar as situações vividas individualmente ou em sociedade, tornando-os sujeitos ativos da história. Essa prática política pedagógica comprometida com a humanização do sujeito e com a transformação da sociedade resultou na acusação de Freire por traição, insubordinação e motim. Como punição, foi exilado e preso pelos militares por mais de dois meses em 1964, mas Freire nunca desistiu de seus sonhos e deu continuidade a seu trabalho fora do Brasil. Em liberdade, partiu em exílio para o Chile, onde permaneceu por cinco anos e escreveu uma de suas principais obras, intitulada “Pedagogia do oprimido”. O livro retrata toda a luta de Freire na busca pela desalienação do ser humano e pelo desenvolvimento da consciência crítica de cada cidadão. Apesar do sistema de alfabetização de Freire ter sido criado para adultos, em um contexto do século XX, ainda é uma referência para o ensino contemporâneo de todas as idades. As ideias sucedidas do projeto visam a politização e a desalienação do cidadão e demonstram a necessidade de se desenvolver a consciência crítica do indivíduo. (LIBÂNIO; CELES, 1979; FREIRE, 1990; GADOTTI, 2007)

Nessa trajetória de aprendizados e ensinamentos, após deixar o Chile, Freire viajou por vários países, escrevendo suas obras, lecionando e prestando consultorias educacionais. Retornou ao Brasil em 1980, onde, além de dar continuidade a suas atividades, assumiu, novamente, diversos cargos públicos.

Freire via com inquietação os métodos de ensino tradicionais. Em sua concepção, a finalidade da educação era conscientizar o aluno, a educação devia estimular os educandos a terem liberdade de pensamento, refletir e buscar melhorar as condições sociais, sair de sua condição de oprimido e buscar novas oportunidades. Sua pedagogia é conhecida como pedagogia da humanização. Ele imaginava a educação como um itinerário onde o indivíduo pode encontrar possibilidades de alcançar essa transformação.

Na apresentação da obra “Educação como prática da liberdade” (1967), o educador e pesquisador suíço Pierre Furter apresenta Freire como o homem da palavra, ou seja, do diálogo. Segundo Furter, para Paulo Freire, o diálogo é condição de existência de uma educação libertadora, que é capaz de retirar os homens da marginalidade social. Nesse sentido, Demerval Saviani, educador brasileiro, também enfatiza o legado de Paulo Freire:

Paulo Freire, foi com certeza, um dos nossos maiores educadores, entre poucos que lograram reconhecimento internacional. Sua figura carismática provocava adesões, por vezes de caráter pré-crítico, em contraste com que postulava sua pedagogia. […] é irrecusável o reconhecimento de sua coerência na luta pela educação dos deserdados e oprimidos […] (SAVIANI, 2008, p. 36).

Freire escreveu dezenas de livros e, como reconhecimento de seu trabalho, recebeu diversas homenagens, entre elas, a criação do Instituto Paulo Freire em São Paulo e o título de Patrono da Educação Brasileira. Faleceu no ano de 1997, na cidade de São Paulo.

3. A IMPORTÂNCIA DA CONSCIENTIZAÇÃO

Uma grande preocupação de Freire como educador era o caminho que deveria ser percorrido pelo ser humano para que houvesse o desenvolvimento da consciência, para que cada pessoa pudesse se tornar autor e autora de sua própria história, assumir o papel de indivíduo disposto a transformar o mundo. Freire acreditava ser a conscientização a primeira finalidade de toda educação, o elemento catalisador de todo seu pensamento. Para ele, a leitura de mundo precede a leitura da palavra, é a esperança que fomenta a prática libertadora. Em sua obra “Educação e mudança”, enfatiza que “o primeiro objetivo de toda educação: antes de tudo [é] provocar uma atitude crítica, de reflexão, que comprometa a ação.” (FREIRE, 2007, p. 46).

Segundo Freire, o ser humano foi criado para dialogar com o mundo. Quando o privamos de sua liberdade, sua consciência também é suprimida. Sem forças para lutar, diante da opressão das massas, tenta se adaptar à realidade que a sociedade lhe oferece. Nesse pensamento freireano, vemos um alerta sobre o estímulo constante ao conformismo social e a instigação aos profissionais da educação para não entrar nesse fluxo traiçoeiro. É necessário desenvolver o pensamento crítico do indivíduo para que o mesmo não se deixe levar pelo pensamento dominante das elites. Com o intuito de fugir desse cenário, o ser humano deve adquirir a capacidade de reflexão junto aos temas de sua realidade, a fim de se posicionar, dialogar, agir e se tornar um indivíduo ativo perante os fatos.

Paulo Freire (1980) entendia que só através da tomada de consciência que a opressão poderia, e pode, ser superada, mas não era qualquer consciência, era necessário o desenvolvimento de uma consciência crítica, olhando a realidade vivida de cada um, da sociedade, a qual se dá através da práxis, da atuação ativa.

Na teoria de Freire, podemos considerar como indivíduos de consciência crítica aqueles que procuram agir sobre o mundo, que analisam as situações, que questionam e tomam consciência do seu poder de ação, percebendo as necessidades da sua própria situação, um cidadão ativamente democrático. Como destacou em suas discussões:

O homem e somente o homem é capaz de transcender, de discernir, de separar orbitas existenciais diferentes, […] de travar relações incorpóreas […] Criando e recriando, integrando-se nas condições de seu contexto, respondendo aos desafios, auto objetivando-se, discernindo, o homem vai se lançando no domínio que lhe é exclusivo, o da história e da cultura. (FREIRE, 2007, p. 63).

De acordo com essa assertiva, é essencial desenvolver a capacidade do ser humano de refletir e atuar. A pedagogia, que tem como objetivo conscientizar, deve superar o ensino tradicional e buscar, através do diálogo, do amor e do respeito, despertar a consciência crítica do ser.  O indivíduo consciente, que encontra seu lugar no mundo, é capaz de definir sua própria existência, consegue acreditar, sonhar, adquire visão de mundo e se torna um agente transformador de sua própria realidade e das circunstâncias sociais que o rodeiam.

4. O ATO DE EDUCAR

Educar é formar cidadãos, propiciando condições para o educando ampliar sua visão de mundo, construir saberes e despertar sua conscientização. É oferecer diversos desafios ao educando, refletir e dialogar junto a ele e, em seguida, observar a ação do mesmo. É mostrar, através do diálogo e da conscientização, o quanto ele é um indivíduo importante para o todo, que faz parte de um grupo, de uma sociedade que possui diversidades, e que a mesma deve ser sempre respeitada. Educar é oferecer possibilidades de mudança, transformação e esperança. Em seu livro “Pedagogia da Indignação”, Freire (2000, p. 58) afirma que o ser humano é capaz “de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo”.

Para promover essa autonomia, o educador deve se capacitar, estudar, ter humildade em reconhecer o educando como agente ativo do sistema educacional, numa transformação social promovida através da educação na qual todos são participantes. Deve-se, por meio do processo educativo, estar apto a transformar experiências de senso comum em curiosidade e pesquisa, desenvolvendo, assim, a consciência crítica do saber. É como plantar uma semente e observar o fruto crescer, cada um a seu tempo, respeitando a diversidade entre os alunos. Nesse processo, não deve haver nenhuma forma de discriminação, seja ela de gênero, raça, origem ou classe social, e se houver, precisa ser eliminada. A função do professor, na teoria de Freire, é de dialogar e orientar, com postura respeitosa e afável, nunca impor ou influir. Aqui, todos são respeitados. Como ressaltou em seus escritos: “ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. Todos sabemos algo; todos ignoramos algo.” (FREIRE, 1993, p. 55).

No ato de educar, o educando é sujeito da própria ação.

[…] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto a face da tarefa que tenho- a de ensinar e não transferir conhecimento. (FREIRE, 2021a, p. 47).

A ideia enfatizada por Freire é que o ato de educar é um ato de amor e coragem. Coragem em aceitar o relato de novas experiências e promover o respeito aos diferentes saberes e pontos de vista. A ideia é: amo, e por isso respeito o seu jeito de ser, aprendo contigo ao passo que aprendemos juntos.

Vale ressaltar que Freire propõe uma educação transformadora, humanizada, democrática, que visa o cidadão autônomo, participativo e racional, que é capaz de promover mudanças, pensar e agir criticamente, que é capaz de lutar pelo direito de ser respeitado e que consegue ouvir e respeitar a opinião alheia. Pontua que educar também é um ato político, é uma possibilidade de intervenção no mundo. A educação não é neutra, deve propiciar ao educando as opções de analisar, criticar, construir e sonhar. O futuro é visto como uma possibilidade, uma esperança. É preciso romper com o sistema opressor em busca de novas oportunidades e justiça social.

Ainda com essa perspectiva da educação, Freire acreditava que a luta dos oprimidos podia restaurar a humanidade, e essa luta pode começar no ambiente escolar, com o desenvolvimento da consciência crítica, desenvolvendo estratégias para fugir da domesticação da classe dominante.

A educação de Paulo Freire luta pela humanização através do despertar da conscientização, proporciona aos indivíduos a possibilidade de se libertarem e de agirem segundo sua vontade. São esses pensamentos libertos transformados em ações diárias que acreditamos poder promover uma educação formal mais humana.

5. ENTRE DIÁLOGOS

Recorrendo às informações sobre a leitura e escrita dos brasileiros, de acordo com a Agência Senado, em 2020, tínhamos, frente aos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11 milhões de brasileiros que não sabiam ler e nem escrever, o que corresponde a mais de 6% da população (BORGES, 2020). Esses cidadãos têm mais de 15 anos, e não conseguem resolver cálculos simples e nem formular ou interpretar pequenos textos. Sabendo que a escrita e a leitura de palavras é um grão desse compósito de interação com o mundo humano, a ideia baseada nos ensinamentos de Freire é que devemos estimular esses cidadãos a sair da exclusão social e buscar melhores condições de vida através de uma educação libertadora, capaz de despertar sua consciência crítica e a esperança em um futuro melhor.

Apesar dos números divulgados pelo IBGE serem muito elevados para essas duas primeiras décadas do século XXI, teóricos envolvidos com a formação do ser humano e as causas populares  têm uma preocupação maior: cresce cada vez mais o número de indivíduos que não aparecem nessa estatística, que possuem o letramento básico, mas não são capazes de exercer sua cidadania, que vivem à mercê das vontades da classe dominante, incapazes de questionar a situação e agir em prol de melhores condições de sobrevivência. São números camuflados dentro da estatística da educação.

No Brasil, há tempos, é adotada a política do assistencialismo. Paulo Freire critica essa política por acreditar que ela não transforma a sociedade, porque não atua na estrutura do sistema, é uma falsa libertação, simplesmente provoca uma transferência de responsabilidade do indivíduo. O Estado dá pequenas esmolas à população, demonstra generosidade, e o cidadão, se sentindo acomodado com a situação, não busca novas oportunidades. É uma parte da população dominada, ajustada à realidade de opressão à qual está submetida. Muitas vezes, esse cidadão nem percebe que está inserido nesse contexto.

Líderes políticos e grandes empresas buscam e incentivam a manutenção dessa sociedade com indivíduos descrentes e sem esperança, de pessoas oprimidas pelas condições sociais, que, por suas experiências de vida, se tornam assustadas e diminuídas, que duvidam da sua própria capacidade e temem o julgamento da sociedade. Pessoas assim são mais fáceis de manipular, e os opressores conseguem impor com mais facilidade suas vontades. Por isso, muitas vezes, não investem numa educação de qualidade, crítica e que objetiva o despertar da consciência.

Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comando pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. (FREIRE, 1997, p. 41).

Segundo Freire, a educação bancária é responsável pela criação do aluno mecânico, individualista, que entende a realidade social como algo exterior a ele. Nessa concepção, o professor tinha como função conduzir o aprendizado do aluno, e o via como um indivíduo depositário de conhecimentos, incapaz de criar e ser protagonista do seu próprio conhecimento. Freire defendia que esse processo de mecanização poderia ser dissipado por meio de diálogo, onde a escola, professores e alunos pudessem, juntos, buscar formas de conhecimento, desenvolvendo o ser social consciente, necessário para toda a sociedade.

Nosso país nasceu e cresceu sem experiência de diálogo. Desde o período colonial, observa-se a implantação de poderes exacerbados e, em consequência, as classes de submissão. Freire acreditava em uma constante conscientização para transformar a realidade. Sua proposta pedagógica é baseada em diálogo, e busca dar voz e espaço aos grupos sociais excluídos.

Para se desenvolver o pensamento crítico de cada educando em relação aos acontecimentos de uma sociedade, é necessário mudar a relação não democrática entre educadores e educandos. Esse método de hierarquia sem dialogicidade, herdado há séculos, deve ser questionado. O diálogo é um caminho de construção da conscientização, da educação crítica e libertadora. Segundo Freire:

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática de liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como também não seria possível fazê-lo fora do diálogo.

É através deste que se opera a superação de resulta um termo novo: não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas educador-educando com educando-educador. Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, é educado com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem.  (FREIRE, 2021b, p.95-96). 

Se não houver diálogo, não há conhecimento, e sem conhecimento não se alcança a conscientização. Se os educandos só vão à instituição escolar ouvir o educador, não são chamados a interagir, conhecer, refletir, e sim a memorizar um conteúdo narrado, exposto de forma alienada e alienante. De acordo com Paulo Freire (2021b, p. 96), “[…] ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” Então, nessa participação mútua, em que todos devem trabalhar em suas diferenças, mas buscando uma educação que eduque para a vida, devemos dar atenção ao importante processo de conscientização humana, nossa e dos educandos.

Para Freire, o diálogo é uma prática pedagógica que reivindica reciprocidade na atitude da fala e escuta e tem como princípios básicos o amor, a esperança, o respeito e a humildade. Essa relação permite uma reflexão crítica e o despertar de um posicionamento consciente, uma oportunidade para educando e educador poderem expressar suas opiniões, fazer pesquisas, elaborar projetos, criar em comunhão. É o despertar de uma conexão democrática, sem autoritarismo no elo educador-educando. Freire indaga em sua obra “Educação como prática de liberdade”:

E o que é o diálogo? É uma relação horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade(…) Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. (FREIRE, 1997, p. 115).

Na concepção de Freire, educador-educando constroem o conhecimento juntos durante o processo de ensino. Cabe ao professor discutir os temas propostos no sentido social, ideológico e político, desafiando a curiosidade do aluno e aguçando sua criticidade, pois “[…] não existe ensinar sem aprender” (FREIRE, 1993, p. 27).

6. A BUSCA POR NOVAS POLÍTICAS PÚBLICAS: NOVO ENSINO MÉDIO

Segundo Freire, não existe método de ensino ideal e nem, tampouco, escola. Inicialmente, para que as decisões institucionais possam ser tomadas, deve-se fazer o diagnóstico da realidade de cada ambiente com a participação democrática de professores e alunos.

Para que haja conhecimento, Freire acredita que seja necessária uma formação que ensine a pensar, pois, quando o indivíduo entende sua realidade e passa a refletir sobre ela, obterá capacidade de se compreender como um ser social e buscará melhorar sua condição. O objetivo é a busca pela construção de um conhecimento crítico e centrado na autonomia do educando. O aluno deve aprender a ler o mundo para, assim, poder transformá-lo. Freire recomenda a estratégia da ação-reflexão-ação, utilizando, como instrumento, o estímulo à curiosidade, à postura ativa e à experimentação; indica, também, o incentivo à análise crítica e ao protagonismo do aluno.

Contudo, nesse processo, o professor, como formador de conscientização, vive um dilema entre cumprir o conteúdo programático imposto pelos órgãos educacionais e ensinar o aluno a refletir criticamente e pensar conscientemente. Para Freire, o tema proposto deveria partir da experiência do aluno e do conhecimento que o educando e o educador já possuem, mas, muitas vezes, o currículo não condiz com a realidade do aprendiz, e se cria um abismo entre educador-educando. Assim, mesmo com planejamento realizado, o educador não consegue alcançar o interesse do aluno.

O ensino formal e a tentativa de desenvolver a conscientização do educando ocorrem na escola. Para além da teoria, a escola deve orientar sua prática democrática visando o bem dos alunos. Dessa maneira, deve ser acolhedora, privilegiar o ato do pensar, oportunizar de forma direta a transformação social e promover a relação entre ser humano e mundo. Ela se torna um espaço de múltiplas possibilidades de aprendizagens, que exerce papel fundamental na busca pelo conhecimento. Nesse ambiente, membros da comunidade escolar, alunos, professores, gestores e coordenadores pedagógicos, devem dialogar com objetivos bem definidos, com espaço para exporem suas expectativas e, juntos, promoverem metodologias que valorizem os diferentes saberes. É necessário que busquem desenvolver um currículo significativo e contextualizado, pautado em um projeto político pedagógico que esteja calcado no desenvolvimento da consciência crítica do cidadão, respeitando-o como ser social e histórico.

Dessa forma, Freire enfatizava que toda instituição escolar deve acolher efetivamente o educando, traçar estratégias de ensino que supram suas necessidades, criando projetos que agucem sua curiosidade e estimulem constantemente a criatividade.

Nesse contexto, uma das ações que o governo está implantando no Brasil recentemente é o Novo Ensino Médio. O objetivo dessa nova política educacional é ofertar uma educação de qualidade a todos os jovens brasileiros, colocando-os no papel de protagonistas do processo educacional. A ideia é estreitar a relação entre escola e educando, considerando as complexidades da realidade do aluno, suas perspectivas no campo profissional e de sua vida em sociedade.

A partir dessa proposta, estabelece-se uma nova organização curricular, “mais flexível”, que possibilita aos aprendizes escolhas que contemple a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Isso ocorrerá através de itinerários formativos, que consiste em um conjunto de oficinas, as quais serão ofertadas para que o aluno escolha mediante sua aptidão e interesse.

Faz-se oportuno relacionar tal proposta à pedagogia de Freire, pois uma das finalidades dessa nova política educacional é libertar e desenvolver a criatividade dos alunos por meio de projetos investigativos e interdisciplinares. Segundo Paulo Freire (2021a), o trabalho interdisciplinar possibilita o diálogo entre as diferentes áreas e seus conceitos, de maneira a integrar os conhecimentos distintos objetivando dar sentido a eles.

A ideia é que os itinerários formativos adotados no Novo Ensino Médio irão mostrar, através de debates e experimentos, o desenvolvimento de projetos e a aplicabilidade dos conteúdos curriculares aos educandos.  Eles visam estimular o interesse daqueles que consideram o estudo uma ação de extrema dificuldade e que, por razões pessoais, se sentem desestimulados e descrentes em continuar. Acredita-se que com a adoção dos itinerários o aluno poderá exercer o papel de protagonista no ensino. Ele terá a oportunidade de escolher a área do conhecimento de sua preferência, que valorizará suas expectativas, interesses e aptidões, permitindo, assim, a pesquisa, o debate e a elaboração de projetos com temas integrados a sua vocação, pontos esses considerados como essenciais para a aprendizagem do educando na pedagogia de Paulo Freire.

O papel dos educadores será desafiador diante dessa nova realidade. É preciso buscar, junto a outros professores, desenvolver planejamentos criativos, inovadores e interdisciplinares, objetivando alcançar o êxito da proposta. Nesse sentido, é importante mediar o conhecimento com amor, respeito e diálogo, além de propor desafios aos educandos para despertar a vontade de aprender. Ademais, cabe ressaltar a desvalorização dos educadores, que gera a insatisfação, pois, além da sobrecarga de trabalho que já lhes é imposta, encaram a depreciação financeira e social e convivem, diariamente, com alunos que não valorizam seus esforços. Por isso, o incentivo do governo deve envolver não só recursos para escola e educandos, mas também para a valorização do educador.

Torna-se evidente, portanto, que o projeto do Novo Ensino Médio é uma tentativa para melhorar os resultados da aprendizagem do educando e, ainda, alcançar uma redução no índice de evasão escolar, que atualmente possui taxas alarmantes, consequência da desigualdade presente em nossa sociedade.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ESPERANÇA QUE IMPULSIONA O LIBERTAR

A esperança pode representar um estímulo significativo para ação, tornando-se um impulso para a libertação do pensamento do indivíduo. A teoria e a prática de Freire são um exemplo que não devemos nos entregar e perder a esperança em momentos difíceis, que podemos sim lutar, buscar confrontar as dificuldades e encontrar soluções para transformar a realidade que nos aflige.

Os seres humanos devem ter consciência da relevância de seu papel na sociedade, pois suas atitudes podem provocar, de forma imediata ou não, a desigualdade, o preconceito, a violência e outras adversidades. Precisa ser oferecida, a eles, a oportunidade de uma formação, para a consciência sobre sua vida, em relação a si mesmo e ao mundo. Paulo Freire destaca a importância de se ter uma educação humanizada, na qual o ensino seja acompanhado de valores humanos, como, por exemplo, o amor e o respeito.  Desse modo, crianças, jovens e adolescentes poderão desenvolver a conscientização, adotando, na práxis, atitudes de solidariedade e amor ao próximo.

As instituições de ensino devem ofertar uma educação voltada para a ética e para o respeito ao coletivo. Nesse sentido, é necessário promover a transformação social, trazer perspectivas e esperança, oportunizar a liberdade pessoal e o pleno desenvolvimento dos indivíduos. Cabe ao professor o papel de estimular a participação responsável do educando nos processos políticos, sociais e culturais, procurando transformar as relações escolares em oportunidades de pleno exercício e vivência da cidadania e autonomia, incentivando a colaboração mútua de todos.

Freire defende uma educação conscientizadora, dialógica e emancipadora. Diz que o ser humano é um ser social que interage, comunica-se e dialoga com outras pessoas. Portanto, é de suma importância para o educando adquirir consciência e reconhecer seu papel na sociedade. Somente assim deixará de promover ações individuais/ egoístas e poderá, junto a outros cidadãos, promover transformações para a coletividade.

Ainda, segundo Freire, somente a educação baseada no desenvolvimento ético do educando é capaz de transformar o cidadão, e esse, por sua vez, será capaz de transformar o mundo. Freire, ressalta, também, que “O futuro não nos faz. Nós é que nos refazemos na luta para fazê-lo.” (FREIRE, 2000, p. 56).

Para finalizar, Freire nos deixa um legado de esperança, demonstra a necessidade de uma luta constante por uma educação baseada na reflexão crítica, mais ética, justa e democrática. Destaca a importância do despertar da consciência do educando, através de uma prática humanizada, em que todos se engajam e se comprometam, além da implantação de um currículo significativo e contextualizado, para que o mesmo se torne cidadão autônomo, capaz de idealizar e realizar transformações em sua sociedade. Ressalta que a educação através do diálogo é o caminho, e que a escola e o professor são peças fundamentais nesse processo.

Gadotti (2007, p. 89) reconhece que:

O poder da obra de Paulo Freire não está tanto em sua teoria do conhecimento, mas no fato de ter insistido na ideia de que é possível, urgente e necessário mudar a ordem das coisas […] despertou em muitas pessoas a capacidade de sonhar um mundo “mais humano, menos feio e mais justo.

Observa-se que ele foi uma espécie de guardião da utopia. Essa é a herança que nos deixou, acima de tudo, um legado de esperança.

Portanto, o processo de desenvolvimento da consciência crítica do educando e a busca por sua autonomia social requer uma ação contínua de toda uma sociedade, na qual governantes, instituições de ensino formal, educadores e educandos devem permanecer em constante diálogo na busca da superação das diversidades sociais. A partir da reflexão aqui realizada, percebemos ser ainda um desafio propor políticas públicas eficazes, pois demanda ação de várias partes envolvidas, como os governantes e a sociedade. Percebe-se que o trabalho dos educadores que almejam uma educação conscientizadora representa um espaço para o fomento e construção de propostas em que o aluno é reconhecido no centro do processo.

Fica claro, dessa forma, que se esse enfoque for, de fato, um empenho conjunto, de interação contínua entre os grupos sociais, de políticas educacionais e de campos da cultura e da ciência, os problemas poderão ser minimizados e os objetivos alcançados, assim como Freire idealizava, uma educação que pudesse transformar a sociedade, com cidadãos não somente escolarizados, mas também capazes de modificar seu meio.

REFERÊNCIAS

BORGES, I. F. Brasil tem 11 milhões de analfabetos segundo IBGE. senadonotícias, 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/11/brasil-tem-11-milhoes-de-analfabetos-aponta-ibge. Acesso em: 18 fev. 2022.

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 4ª ed. São Paulo: Moraes, 1980.

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d’água, 1993.

FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, [1967]/1997.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2000.

FREIRE, P. Educação e mudança. 30ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2007.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Essa desistência vai além de faltar às aulas. Em muitos momentos, os alunos podem estar fisicamente em sala, mas mentalmente distantes desse processo de escolarização, pois, para eles, não há ligações reais com a sua realidade.

[1] Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da FacMais, Inhumas/GO. Especialista pelo programa de Pós-graduação em Educação Matemática pela UFG, Goiânia/GO. Graduada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Federal de Goiás, em Goiânia. ORCID: 0000-0002-3046-1102.

Enviado: Outubro, 2022.

Aprovado: Novembro, 2022.

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Ana Paula Mendes da Silva

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