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Ciências das religiões e o universo culinário: relações e produção de sentido

RC: 144426
425
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ciencias-das-religioes

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

NASCIMENTO, Telma Maria [1]

NASCIMENTO, Telma Maria. Ciências das religiões e o universo culinário: relações e produção de sentido. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 05, Vol. 01, pp. 82-92. Maio de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ciencias-das-religioes, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/educacao/ciencias-das-religioes

RESUMO

O artigo localiza possíveis interações entre duas instâncias essenciais da vida humana, o ato de se alimentar e a religião. Os seres humanos são capazes de atribuir sentido e produzir ritos e práticas a partir de sua experiência do sagrado, o que contribui para ultrapassar as fronteiras do significado da riqueza cultural já existente no universo culinário. Nessa experiência, os alimentos acabam sendo carregados de sentido religioso, de modo que seu manuseio e consumo se destinam a fins ritualísticos e de expressão do sagrado sob a égide dos preceitos definidos pelas religiões. Daí a relevância de perscrutar em que medida essas interações evocam a mediação das Ciências das Religiões. Apresenta-se, pois, uma proposta de atuação profissional por parte dos cientistas das religiões no campo dos serviços de alimentos destinados ao público religioso, no intuito de reafirmar que as Ciências das Religiões extrapolam os limites dos espaços acadêmicos rumo a diferentes campos de atuação profissional.

Palavras-chave: Religião, Produção de Alimentos, Ciências das Religiões.

1. INTRODUÇÃO

O ato de se alimentar representa um objeto de estudo bastante explorado nos diferentes campos da ciência e representa uma fonte de interesse sobre a forma como os seres humanos interagem a partir dele, tanto pela necessidade biológica quanto pelas questões culturais, sociais ou religiosas que envolve. A forma como as pessoas se alimentam, a comensalidade, a seleção dos alimentos que irão compor a mesa, a dimensão mística aí pressuposta, os atos celebrativos e as alusões ao sagrado, ou mesmo a decisão deliberada por não se alimentar – jejuns –, no conjunto, sinalizam a necessidade de investigar as riquezas presentes no universo culinário. Essa é uma tarefa complexa, que demanda uma abordagem interdisciplinar capaz de abarcar os aspectos biológicos, sociais, simbólicos e religiosos implicados.

Neste artigo, nosso interesse recai sobre as possíveis relações entre a alimentação e a religião, enquanto teia de sentido que abre lacunas para propostas de aplicação a partir das Ciências das Religiões, considerando a existência de uma profunda conexão entre o ato humano de se alimentar com os diversos rituais de diferentes religiões. Parte-se do pressuposto de que a simbologia e a sacralidade são constantemente evocadas no manejo com os alimentos e no ato de se alimentar. Nesse sentido, as religiões acrescentam, para além da prática ritualística, um ethos cujas restrições e permissões servem como modelo de orientação para os sujeitos religiosos.

De acordo com Souza (2015), a religião determina o modo como os sujeitos religiosos se alimentam. Nesse horizonte, a religião é um agente legitimador que prescreve quando e quais alimentos podem e/ou devem ser consumidos e/ou evitados na dieta dessas pessoas. Em alguns contextos religiosos, ainda é possível localizar a constituição de normas e princípios relativos ao plantio, produção, colheita, manuseio, armazenamento e ao preparo dos alimentos que se destinam a esse público. A religião messiânica, a título de exemplo, costuma aplicar tais normas e princípios em todo processo de produção e elaboração dos alimentos.

As relações entre alimentação e religião não são recentes. Em sua definição sobre o que é o alimento, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresenta dois significados, um fisiológico e outro comportamental. O primeiro aponta para a nutrição humana, cujo objetivo consiste em suprir as necessidades do corpo humano: funcionamento, manutenção, crescimento e restauração. O segundo significado supera a saciedade e aponta para o atendimento de razões culturais, sociais, religiosas, entre outras.

Não seria inútil, pois, considerar o ato de se alimentar para além de uma prática essencial de manutenção e propagação da vida humana, pois, para determinadas religiões, o alimentar representa uma expressão de um vínculo concreto entre o ser humano e o sagrado. Por isso, é essencial refletir sobre as possibilidades de aplicação das Ciências das Religiões em relação à certificação e à garantia da qualidade, do cumprimento das prescrições religiosas no processo de produção de alimentos destinados aos sujeitos religiosos.

2.  A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO ATO DE SE ALIMENTAR

O ato de se alimentar e a capacidade humana de simbolizar são praticamente indissociáveis, estabelecendo-se como um elemento da linguagem e da comunicação entre os seres humanos, grupos e culturas. A atribuição de eixos semânticos e de alternativas simbólicas para a alimentação e para os alimentos é uma característica intrinsecamente humana. Em seu aspecto simbólico, a produção e a distribuição de alimentos seguem regras específicas, e elas podem ser melhor compreendidas a partir das tramas e dos sentidos estabelecidos no interior das crenças que permeiam a cultura e incluem a religião.

Ingeridos ou não, os alimentos são carregados de sentido e de valores simbólicos, capazes de conduzir os sujeitos a lugares, sensações e memórias, demarcando estações do ano, ativando lembranças familiares, compondo o contexto de festas civis ou religiosas e remetendo a territórios geográficos. Tudo isso não apenas extrapola as fronteiras da função nutricional dos alimentos, mas, envolve valores simbólicos, culturais e religiosos. Por intermédio dos alimentos, inclusive, os sujeitos religiosos podem transpor a capacidade humana de instaurar e reger o espaço e o tempo. Nesse sentido, a capacidade humana de reconfigurar o espaço e o tempo exemplificam a dimensão religiosa manifestada em certos alimentos.

Segundo Carvalho, Luz e Prado (2011, p. 156), “as relações simbólicas impõem-se aos sujeitos como um sistema de regras irredutíveis tanto às regras do jogo econômico quanto às intenções particulares dos sujeitos”, o que constrói nas pessoas o que, no pensamento de Bourdieu (1989), seria o habitus, com potencial para definir os gostos. Carvalho, Luz e Prado (2011) argumentam que tal estruturação acontece no ato de se alimentar, ou seja, passando a ser uma atitude de incorporação de alimentos e de seus significados, num processo de trocas simbólicas que envolve aspetos e associações que expressam e consolidam a posição de um agente social em suas relações cotidianas. Com efeito, pode-se compreender a alimentação e a religião como fatos sociais, estruturados e estruturantes do habitus do ser humano. Habitus, nesses termos, representa o conjunto de disposições incorporadas nos agentes sociais, de modo que o ser, seus sentimentos e suas ações representam evidências sociais que perpassam os diferentes meios sociais acessados por ele.

No pensamento de Mattos e Luz (2009), a construção dos sentidos empreendida pelos agentes pode gerar identidades individuais e coletivas, estabelecer vínculos e relações sociais que superam a lógica consciente do discurso. Isto é, os alimentos acabam transmitindo uma noção de tempo, de espaço e de valores. Nas palavras de Souza (2015, p. 47), isso acontece mormente “se o sistema culinário a que [o sujeito] estiver submetido for determinado por uma religião: dia de jejum, hora de comer doces, dia de comer carne, dia de festas, etc.”. Nesse sentido, o ato de se alimentar contribui no processo de interiorização do sistema de crenças no sujeito religioso, pois o rito da alimentação expressa a crença e, concomitantemente, reforça a convicção interna dessa crença. A religião, dessa forma, envolve uma teia de significados e um arcabouço de experiências e ações interligadas no limiar do comportamento e da crença religiosa. A alimentação está profundamente associada à construção da identidade humana e das relações sociais.

Na perspectiva de Croatto (2001), as culturas e os povos contêm uma expressão religiosa. As expressões, nessa ótica, aludem as manifestações religiosas que se conduzem na simbologia, na literatura, na linguagem, na arte, nos diversos rituais, nas doutrinas e nos modos de vida. O que é expresso em variadas maneiras representa alguma experiência do transcendente e compreende o conjunto de registros da vida humana. Da mesma forma que toda experiência humana, a expressão, explica Croatto (2001), inclina-se à comunicação e à socialização. Logo, é importante refletir sobre o alimento como um elemento constitutivo das diferentes religiões.

3. O CONSUMO DE ALIMENTOS E A CONSTITUIÇÃO DAS RELIGIÕES

Segundo Carneiro (2003), a história comparada das religiões empreendeu esforços no intuito de descrever e interpretar as regulamentações e as representações sagradas em torno do consumo de alimentos. Para o autor, “o alimento é um dos primeiros deuses ou tem um deus tutelar” (CARNEIRO, 2003, p. 23). Entre os mexicanos, existem cogumelos alucinógenos – do gênero Psilocybe – compreendidos como sagrados e chamados de “carne de deus”. Também existem plantas psicoativas, tais como a ayahuasca, originalmente indígenas, bem como cactos andinos e mexicanos, como o peiote e o San Pedro, tratados como bebidas e alimentos sagrados.

Por ser uma das mais destacadas necessidades humanas, a alimentação se destaca não apenas no seu aspecto nutricional, mas, também, pela sua potencialidade de promover a interação humana, com a natureza e com as culturas. Com efeito, os alimentos podem unir pessoas, envolvê-las em territórios, na natureza e, na concepção de Wirzba (2014), ao transcendente e ao sagrado.

A despeito de depender diretamente da materialidade e se circunscrever na racionalidade da produção agrícola, o numinoso é inevitavelmente ativado pela alimentação, exatamente pelo fato de que sua obtenção e produção nem sempre pressupõem uma lógica linear. Destarte, na esteira da produção dos alimentos, há uma experiência com o numinoso que, no pensamento de Schleiermacher, define-se como uma “reação como sentimento de dependência”. Otto (1992) sugere que a religião emerge como uma tentativa de configurar um universo de significados, que gera medo em relação ao objeto externo. Por isso, o mistério subjacente ao aprimoramento de técnicas de obtenção e preparo de alimentos, desde os primórdios, justifica as relações intercambiáveis entre a alimentação e o transcendente, sem perder de vista as formulações religiosas desenvolvidas a posteriori.

A relação entre alimento e religião é muito antiga e clara. Para Mintz (2001), alimentar-se é uma prática antiga que desperta grande interesse no campo da antropologia. A alimentação é importante na vida dos sujeitos religiosos, o que pode ser notado, por exemplo, nas inúmeras proibições, permissões, modelos alimentares, jejuns, ritos e proteção aos animais, e muitos outros. A história da alimentação envolve uma riqueza para além da história dos alimentos, de sua produção, distribuição, preparação e consumo. Nesse sentido, o que e o quando se come são igualmente importantes e, na mesma intensidade, o lugar em que se come, o modo como se come e as pessoas com quem se come têm significado. Por isso, a mudança de hábitos alimentares e os contextos que eles se realizam é um aspecto intrincado e correlato a muitos fatores. Assim, parte-se para uma análise sobre como as pessoas se orientam simbolicamente em relação a sua alimentação e qual seu vínculo com a instância do sagrado.

4. RELAÇÕES SOCIAIS E A ALIMENTAÇÃO

No âmbito da antropologia, a alimentação também é considerada como um tipo de linguagem. A partir da noção de habitus, postulada por Bourdieu (1989, p. 27), os saberes alimentares, as memórias degustativas, a forma de preparar e servir os alimentos são inseridos na cultura. Com base nisso, os habitus podem definir características socioculturais presentes nos sujeitos, uma vez que o habitus é definido “de cima para baixo”, isto é, na lógica da hierarquia em que os sujeitos internalizam as práticas por intermédio da sua criação, dos costumes transmitidos a partir dos grupos sociais, da família e da escola, culminando, posteriormente, na sua reprodução.

Segundo Barbosa (2019), o habitus se estrutura a partir das continuidades. Nesse sentido, a alimentação se reproduz por intermédio da memória do sujeito que a reconstitui como tal e a modifica, porém, não há um rompimento com os próprios costumes, porque faz parte da formação cultural desse sujeito. O sujeito, por sua vez, pode acabar introduzindo outros modos de fazer, outros objetos e elementos sem desvincular-se das tradições precedentes e/ou ancestrais.

Carvalho, Luz e Prado (2011, p. 148) defendem o seguinte argumento: “as relações simbólicas impõem-se aos sujeitos como um sistema de regras irredutíveis tanto às regras do jogo econômico quanto às intenções particulares dos sujeitos”. Para os autores, tal estruturação acontece com o ato de se alimentar, que, agora, passa a ser uma “ação concreta de incorporação tanto de alimentos como de seus significados, permeada por trocas simbólicas, envolvendo uma infinidade de elementos e de associações capazes de expressar e consolidar a posição de um agente social em suas relações cotidianas” (CARVALHO; LUZ; PRADO, 2011, p. 148).

Por isso, como já dito acima, a alimentação e a religião despontam como fatos sociais, estruturados e estruturantes do habitus dos seres humanos. É importante retomar essa discussão, pois os significados e os sentidos apreendidos e incorporados pelas pessoas, no decorrer de suas vidas, representam um arcabouço de possibilidades para o futuro. O corpo, nesses termos, emerge como o lugar principal para a construção de sentidos, como uma força potente e inevitável nas relações sociais. O processo de construção de sentidos realizado pelos sujeitos pode gestar novas identidades, individuais e coletivas, que implicam nas relações sociais e nos vínculos que, na análise de Croatto (2001), extrapolam as fronteiras da lógica consciente do discurso.

No âmbito da alimentação, as regras não são rígidas e/ou inflexíveis, mas são dinâmicas e num contínuo processo de transformação. O campo da alimentação não se restringe ao ato de comer, mas, relaciona-se com um ciclo que envolve desde a obtenção da matéria-prima até o consumo de alimentos. O alimento consumido, por sua vez, carrega uma carga de sentidos e de símbolos, capaz de remeter os sujeitos a lugares, lembranças e sensações. Todo alimento é passível de simbologia e pode adquirir uma carga simbólica nas relações sociais e religiosas.

5. CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES E A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS PARA SUJEITOS RELIGIOSOS

A economia de uma sociedade e os hábitos alimentares possuem vínculos estreitos, na medida em que mutuamente essas instâncias se influenciam para satisfazer a necessidade das pessoas. Em relação aos aspectos alimentares de uma determinada população, pode-se constatar que a religião interfere significativamente no comportamento humano bem como na organização da vida pessoal e social. De acordo com Farinha (2017), a preocupação da religião com os alimentos envolve a criação, a plantação, os modos de abate, o preparo e outros fatores que envolvem os alimentos e constituem a cadeia produtiva e os costumes humanos.

Os alimentos religiosos são produzidos à luz dos pressupostos religiosos, explica Farinha (2017). São produtos alimentícios que ganham destaque na exportação de alimentos no território brasileiro, em virtude da indústria de alimentos no Brasil se mostrar aberta e receptiva às exigências do mercado. Porém, a diferenciação produtiva que envolve esse tipo de alimento afeta os custos e a receita final relativa à comercialização dos produtos religiosos, por assim dizer. Logo, a estrutura organizacional das empresas desse ramo precisa ser flexível para atender as exigências de público-alvo, os sujeitos religiosos. Com isso, observa-se a influência do fenômeno religioso na produção e no consumo de alimentos na cultura e, de modo consequente, no agronegócio brasileiro.

A relação entre a produção de alimentos para sujeitos religiosos com as Ciências das Religiões tem a ver com os modelos de vida que consideram as restrições, permissões, práticas de cultivo, os jejuns, entre outros fatores alimentícios que envolvem a vida dos sujeitos religiosos. Isso faz com o que campo das Ciências das Religiões seja desafiado a empreender análise e estudos sobre o processo produtivo de alimentos destinados às pessoas que seguem as regras das religiões em seu comportamento alimentar. Os cientistas das religiões, nesses termos, diferem-se dos profissionais ligados à área de produção de alimentos. Estes últimos têm a função de garantir a integridade da cadeia produtiva dos alimentos, mas, àqueles primeiros devem garantir a confiabilidade dos alimentos, de modo a assegurar que a cadeia produtiva cumpra com as etapas e com os modelos produtivos em consonância com os preceitos das religiões envolvidas.

As Ciências das Religiões formam profissionais cientistas das religiões que podem atuar nas áreas relacionadas à produção de alimentos: na indústria, nos serviços de alimentação, nos órgãos e nas instituições públicas. Esses profissionais são habilitados para participar desde o início do processo de produção de alimentos para sujeitos religiosos, ou seja, desde a pesquisa para novos produtos e seus respectivos insumos até no processo de definição de embalagens e armazenamento dos alimentos já preparados para o consumo. Os cientistas das religiões, nessa ótica, podem, por exemplo, selecionar a matéria-prima e/ou apresentar propostas de armazenamento em conformidade com as especificidades do grupo religioso consumidor.

Defende-se, ainda, que as Ciências das Religiões contribuem para que seus cientistas fiscalizem os padrões de controle de qualidade da indústria de alimentos, realizando testes sensoriais e/ou desenvolvendo formulações, visando o fornecimento de produtos mais seguros e capazes de atender às necessidades do sujeito religioso. A título de exemplo, menciona-se a produção de alimentos kosher, correspondente aos preceitos do judaísmo. O termo kosher aponta para a saúde e a limpeza, por isso, de acordo com Ribeiro e Amaral (2019, p. 2), a produção desse tipo de alimento tem a ver com o rigoroso “processo de certificação [que] depende da total colaboração e transparência nas informações da empresa e, ainda, a visita de um rabino ortodoxo, perito neste assunto, avaliando o processo de fabricação do produto”.

Com efeito, os cientistas das religiões são profissionais aptos que precisam estar atualizados no tocante às legislações vigentes que regem a produção desses produtos, de sua rotulagem, da quantidade de substâncias permitidas em certos produtos, bem como quanto às questões ligadas ao meio ambiente e à sustentabilidade. Os cientistas das religiões podem definir métodos de tratamento de resíduos, por exemplo, em relação ao descarte dos resíduos industriais. Isso se justifica pelo fato de as Ciências das Religiões pressuporem uma abertura para relações inter e transdisciplinares com os demais saberes (TWORUSCHKA, 2013).

De acordo com Ribeiro e Amaral (2019, p. 9), o processo de certificação representa um instrumento capaz de garantir ao produto especificações de qualidade pré-estabelecidas, ou seja, a certificação “é reconhecida como um instrumento indispensável para dar confiabilidade aos produtos”. Para as autoras, essa é uma maneira de “transmitir aos consumidores informações sobre a qualidade, origem e conformidade com os padrões estabelecidos do produto”. Por isso, a certificação kosher não seria uma exigência legal para atender a importação de produtos alimentícios de Israel, mas os produtos considerados não kosher “têm uma participação de mercado muito menor, já que a maioria dos supermercados e hotéis se recusa a comercializá-los e, até mesmo, transportá-los” (RIBEIRO; AMARAL, 2019, p. 3).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aspecto da profissionalização dos cientistas das religiões para além dos limites dos espaços acadêmicos é uma pauta relevante que deve envolver os programas de pós-graduação dessa área no Brasil. Os programas, em geral, devem manter o foco no oferecimento de uma formação capaz de inserir os cientistas das religiões no mercado de trabalho, ainda bastante restrito para essa área atualmente, sobretudo no território brasileiro. Isso exige o desenvolvimento e a disseminação da dimensão aplicada das Ciências das Religiões, ou seja, por intermédio desse campo, é possível promover a dimensão prática que essa área propõe.

Enquanto corpo científico comprometido com os elementos e com as questões religiosas, e, consequentemente, com as questões políticas e sociais contemporâneas, importa um oferecimento de uma assessoria prática relevante, um serviço eficaz e efetivo, uma presença atuante para além das fronteiras das universidades brasileiras, envolvendo o que se ensina e se aprende nas pesquisas. O movimento seria, portanto, da academia para o âmbito das relações sociais.

Parte-se, dessa forma, do reconhecimento de uma demanda tangível de pessoas e grupos religiosos, bem como da afirmação e da valorização de profissionais habilitados e qualificados para atender às demandas alimentares dos sujeitos e dos grupos religiosos. Existe uma produção notável no Brasil acerca da relação entre alimentos e a religião, entretanto, constata-se uma escassez significativa em relação às pesquisas com propostas de atuação para os cientistas das religiões junto a esse setor específico. No Brasil, aparentemente, as pesquisas valorizam mais as relações entre alimento e sacralidade ou a dimensão simbólica dos alimentos.

Para fomentar esse debate, compreende-se que a atuação de cientistas das religiões pode expandir-se para o campo da produção e da distribuição de alimentos destinados ao consumo dos sujeitos religiosos ou aos rituais dos grupos que demandam certas especificidades em relação ao manejo e à elaboração de alimentos. Alguns grupos específicos podem ser listados aqui, por exemplo: mulçumanos, judeus, hinduístas, candomblecistas, entre outros.

A introdução dos cientistas das religiões no mercado de alimentos, nesses termos, tem espaço privilegiado por intermédio de consultorias para o processo de obtenção de certificações, bem como para realização de atividades que envolvem o marketing da indústria, podendo até desenvolver ações em conformidade com os objetivos e com o público-alvo dessas empresas. Isso implicará diretamente na expansão e no reconhecimento e, eventualmente, no conhecimento dos produtos, fortalecendo o relacionamento com os clientes, a fiscalização, supervisão e inspeção de produtos, bem como o desenvolvimento de novas modalidades de produtos visando a produção, a padronização e a regulamentação de alimentos à luz dos preceitos religiosos. Compreende-se que isso irá proporcionar aos sujeitos religiosos um sentimento de segurança no que tange o exercício de sua prática religiosa.

Sem dúvidas, essas provocações sobre o processo de produção, realização de constantes pesquisas e aperfeiçoamento científico junto ao setor alimentício justificam a relevância da realização de pesquisas que inserem o ato de comer e a alimentação no âmbito das discussões também religiosas, e não somente culturais, sociais, nutricionais, entre outras. Daí a pertinência e a plausibilidade da atuação dos cientistas das religiões no contexto da produção de alimentos para sujeitos religiosos, uma vez que o trabalho na indústria alimentícia sempre envolveu a atuação de diversos profissionais das diferentes áreas, tais como: nutricionistas, engenheiros de alimentos, agrônomos, veterinários, entre outros.

A proposta profissional aqui delineada, isto é, da existência de cientistas das religiões como agentes de inspeção e regulação no setor da produção de alimentos consumidos pelos sujeitos religiosos representa uma conquista para o campo das Ciências das Religiões. Trata-se, como já dito, de um espaço ainda pouco explorado e que, por isso, solicita reivindicações e dedicação conjunta da área por intermédio de seus professores, pesquisadores e dos programas de pós-graduação. O desenvolvimento de campos profissionais como está sendo sugerido nestas linhas deve ser entendido como um compromisso de uma área que enfrenta o desafio de justificar-se e dar razões de sua existência e relevância. A promoção do avanço das Ciências das Religiões aplicadas implica, nesses termos, no oferecimento de resultados para a sociedade, implicando no compromisso com uma contrapartida política, social e religiosa, exatamente a partir daquilo que essa área produz e pode oferecer de modo qualificado.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Isabela. Entre o fogão e a ciência: a comida como objeto de estudo na construção da cultura. Revista Inter-Legere, Natal, v. 2, n. 25, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.21680/1982-1662.2019v2n25ID17308>. Acesso em: 10 maio 2023.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Campus, 2003.

CARVALHO, Maria Cláudia da Veiga Soares; LUZ, Madel Therezinha; PRADO, Shirley Donizete. Comer, alimentar e nutrir: categorias analíticas instrumentais no campo da pesquisa científica. Revista Ciências & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, p. 155-163, 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/n3sxS3DYmgbTDXzD5sFn7rP/?lang=pt>. Acesso em: 10 maio 2023.

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001.

FARINHA, Maycon Jorge Ulisses Saraiva et al. A relação interdisciplinar entre religião, hábitos alimentares e economia a partir de uma abordagem bibliométrica. Revista Espacios, Caracas, v. 38, n. 12, 2017. Disponível em: <https://www.revistaespacios.com/a17v38n12/17381201.html>. Acesso em: 10 maio 2023.

MATTOS, Rafael da Silva; LUZ, Madel Therezinha. Sobrevivendo ao estigma da gordura: um estudo socioantropológico sobre obesidade. Revista Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 489-507, 2009. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/physis/a/vGqBqHFkLxQ6x6Ydw5bK7Qq/abstract/?lang=pt >. Acesso em: 10 maio 2023.

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RIBEIRO, Érika Neves.; AMARAL, Larissa Maciel do. Certificação Kosher como estratégia de acesso a novos mercados. Fortaleza: [s.n.], 2019. Disponível: <https://www.academia.edu/40316332/CERTIFICA%C3%87%C3%83O_KOSHER_COMO_ESTRAT%C3%89GIA_DE_ACESSO_A_NOVOS_MERCADOS >. Acesso em: 10 maio 2023.

SOUZA, Patrícia Rodrigues de. A religião vai à mesa: uma degustação de religiões com suas práticas alimentares. São Paulo: Griot, 2015.

TWORUSCHKA, Udo. Ciência Prática da Religião: considerações teóricas e metodológicas. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank. (Orgs.). Compêndio de Ciências da Religião. São Paulo: Paulinas; Paulus, 2013. pp. 577-587.

WIRZBA, Norman. Alimento e fé: uma teologia da alimentação. São Paulo: Loyola, 2014.

[1] Mestranda em Ciências das Religiões, especialista em Educação de Jovens e Adultos. Graduação Plena em Pedagogia. ORCID: 0000-0001-5640-3229. Currículo Lattes: 6608440123619730.

Enviado: 17 de abril, 2023.

Aprovado: 28 de abril, 2023.

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Telma Maria Nascimento

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