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Caso Genie: um estudo de caso comparativo entre as abordagens construtivista e sociointeracionista

RC: 132967
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

FONSECA, Felipe Zuculin da [1]

FONSECA, Felipe Zuculin da. Caso Genie: um estudo de caso comparativo entre as abordagens construtivista e sociointeracionista. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 11, Vol. 11, pp. 131-143. Novembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/abordagens-construtivista

RESUMO 

Genie Willey, nascida em 1957, ficou conhecida no mundo todo como “a criança selvagem” por ter passado a infância trancada em um quarto em total isolamento, sem nenhum contato humano. Nesse cenário, o presente artigo visa investigar: quais são os motivos que podem ter levado Genie a permanecer nesse estágio por tanto tempo e quais são as consequências dessa estagnação para o seu desenvolvimento futuro? Desta forma, objetiva-se realizar um estudo do desenvolvimento cognitivo da menina que ficou conhecida como Genie Wiley – a criança selvagem. Para tal, foi realizada uma pesquisa teórica, fundamentando-se nas abordagens teóricas do construtivismo, de Jean Piaget, e do sociointeracionismo, de Lev Vygotsky. A partir da análise das ações desenvolvidas pela equipe que acompanhou a menina e dos resultados obtidos, considerando os aspectos que foram apropriados e aqueles em que há a necessidade de ajustes para se alcançar resultados positivos, nota-se que os esforços da equipe de reabilitação foram importantes para a inserção de Genie na sociedade e para a conquista de sua autonomia. Por fim, concluiu-se que, para ambas as abordagens teóricas investigadas, um ponto crítico que deveria ter sido mais bem cuidado durante as pesquisas com Genie foi o fato de ela não ter recebido o afeto familiar que necessitava para apoiar o seu desenvolvimento cognitivo. Apesar de ter morado durante quatro anos com os Rigler, ela viveu muito tempo no hospital e passou por diversos lares adotivos, foi abandonada várias vezes e sofreu abusos, o que causou traumas severos, levando-a a um novo período de estagnação, onde Genie volta a se fechar novamente para o contato humano. Assim, é possível observar que a falta de afeto e carinho familiar foi uma das barreiras que afetaram o desenvolvimento de suas funções cognitivas.

Palavras-chave: teoria cognitiva, educação especial, caso Genie.

1. INTRODUÇÃO 

Genie Willey, nascida em Arcádia, na Califórnia, em 18 de abril de 1957, ficou conhecida no mundo todo como “a criança selvagem” por ter passado a infância trancada em um quarto em total isolamento, sem nenhum contato humano. Quando encontrada, em 4 de novembro de 1970, aos treze anos de idade, vivendo na mesma casa onde nasceu, a garota não falava – apenas emitia sons parecidos com os de um bebê – ainda usava fraldas, apresentava dificuldades motoras para se locomover e se alimentar, não mantinha hábitos de higiene e não tinha pudores em fazer suas necessidades fisiológicas em lugares inadequados (GENIE, 1994).

Assim, tornou-se alvo da indignação e da curiosidade do público em geral e da grande mídia. Foi acolhida e cuidada pelo poder público dos Estados Unidos e, por cerca de quatro anos, submetida a estudos e testes que buscaram compreender a sua mente para tentar responder a questionamentos de cientistas da época acerca do desenvolvimento humano. Nesse cenário, um grupo de professores, médicos, psicólogos e pesquisadores foi designado para tratar do caso, mas, apesar de todos os esforços, os resultados alcançados não foram satisfatórios, o que ocasionou o fim das pesquisas com Genie.

Assim sendo, por meio de uma revisão bibliográfica, este artigo busca elaborar uma análise teórica, com base nas abordagens teóricas do construtivismo, de Jean Piaget, e do sociointeracionismo, de Lev Vygotsky, para tentar responder à seguinte pergunta: quais são os motivos que podem ter levado Genie a permanecer nesse estágio por tanto tempo e quais são as consequências dessa estagnação para o seu desenvolvimento futuro? Objetivando realizar um estudo do desenvolvimento cognitivo da menina que ficou conhecida como Genie Wiley – a criança selvagem.

2. O CASO GENIE 

Durante toda a sua infância, até ser encontrada, Genie teve muito pouco o que ver, com o que e com quem interagir. Haviam indicações de que ela era espancada pelo pai caso fizesse algum barulho, e, por isso, aprendeu a não vocalizar.

De acordo com o documentário “Genie: o segredo da criança selvagem” (1994), segundo relatos da mãe, quando Genie nasceu, havia sido diagnosticada com uma leve deficiência intelectual, o que dificultaria um pouco a sua aprendizagem da fala, e isso, supostamente, teria levado seu pai a querer protegê-la da sociedade, mantendo-a isolada de tudo e de todos, o que não justifica em hipótese alguma as atrocidades às quais Genie foi submetida durante os treze anos em que foi mantida presa em seu quarto. Seu pai foi acusado de abuso infantil, mas suicidou-se com um tiro antes de ser julgado, o que dificultou o entendimento das reais razões que o levaram a cometer tal ato. Sua mãe era deficiente visual e alegou também ter sofrido abusos por parte de seu marido.

Genie foi levada a um hospital infantil, onde passou a viver sob os cuidados de médicos e pesquisadores, sendo submetida a uma série de testes e estudos. As autoridades acreditavam que ela ainda teria capacidades normais para aprender a falar e que poderia desenvolver-se como qualquer ser humano. Por este motivo, uma equipe de pesquisadores foi incumbida de cuidar de sua reabilitação. Susan Curtiss, especialista em Linguística, foi uma das pesquisadoras que acompanhou o caso, ficando responsável pelo desenvolvimento de sua linguagem. Já o psicólogo James Kent ficou responsável pelo seu desenvolvimento emocional.

Durante quatro noites, o psiquiatra Jay Shirley, especialista em isolamento social, e sua equipe, realizaram exames e coletaram dados das ondas cerebrais de Genie para saber o quão saudável ela estava após ter vivenciado o longo período de isolamento. Os resultados apresentaram certos padrões anormais, o que poderia indicar que Genie já teria nascido com algum tipo de deficiência intelectual congênita ou que a sua cognição havia sofrido danos irreversíveis durante o isolamento. Porém, nenhuma das hipóteses pôde ser comprovada, já que esses resultados indicavam as condições em que Genie se encontrava naquele momento. Apenas o acesso a resultados de exames anteriores ao isolamento possibilitaria um comparativo em que seria possível demonstrar os reais efeitos do isolamento em seu desenvolvimento cognitivo. Além disso, os laudos apresentados pelos pesquisadores que a acompanharam divergiram em vários aspectos, como veremos adiante.

Com um ano de tratamento, Genie havia aprendido aproximadamente cem palavras, apresentava ótimo desenvolvimento mental e físico e parecia ter potencial para se desenvolver ainda mais. Demonstrava interesse em aprender novas palavras e seus significados, parecia querer recodificar seu mundo por meio das palavras.

Genie passou por uma primeira experiência em um lar adotivo com Jean Butler, sua professora no hospital, e, em seguida, foi morar com David Rigler – que passou a responder como seu psicólogo no lugar de Kent – e sua esposa, Marilyn, especialista em desenvolvimento humano, que se tornou sua nova professora. Ainda nessa época, Genie apresentava ataques de fúria em que se agredia, e, para direcionar essa raiva contida para o exterior, Marilyn a ensinou a bater portas e a chutar. Depois de um certo tempo de convívio afetuoso com os Rigler, ela passou a ser capaz de nomear sentimentos e determinar a intensidade em que os sentia. Curtiss continuou a acompanhando e percebeu que ela havia aumentado consideravelmente seu vocabulário e já era capaz de ler palavras simples e utilizar a linguagem para descrever eventos do passado.

Contudo, apesar de todos os esforços do grupo, seu progresso parecia não estar evoluindo ao nível esperado. Os pesquisadores buscavam justificativas para as dificuldades que enfrentavam na reabilitação de Genie, mas discordavam entre si. Uma parte acreditava que ela já teria nascido com um tipo de deficiência intelectual, enquanto outros acreditavam que as péssimas condições de vida a que foi submetida durante a sua infância teriam lhe causado danos cognitivos irreversíveis. Susan Curtiss, uma das pesquisadoras, defendeu a segunda hipótese, afirmando que, durante toda a pesquisa, o desenvolvimento de Genie foi monitorado por testes psicológicos e os resultados apontaram que a cada ano sua idade mental aumentou em um ano, o que não poderia acontecer com pessoas que tinham algum tipo de deficiência intelectual.

Após quase quatro anos de investimentos, o órgão do governo que financiou as pesquisas com Genie ficou descontente com a falta de direcionamento do caso e de resultados palpáveis e, em 1974, cancelou o financiamento do Caso Genie, alegando falta de dados científicos claros e significativos. Um ano após a perda do financiamento, os Rigler decidiram deixar de ser seus pais adotivos (GENIE, 1994).

Com isso, a maioria dos estudos de linguagem com Genie terminaram em 1975. Em relação ao seu progresso cognitivo, ela conseguiu desenvolver uma linguagem e se expressar por meio de um vocabulário simples, mas não foi capaz, ao final dos estudos, de juntar palavras de forma gramaticalmente correta.

A mãe de Genie foi inocentada das acusações de abuso infantil e tentou voltar a cuidar da filha, mas percebeu que a tarefa seria muito difícil para ela. Ela processou a equipe de pesquisadores, alegando excesso de testes durante as pesquisas em detrimento do bem-estar da garota, levando-a para além de seus limites.

Sem os cuidados da mãe e da equipe de pesquisadores, Genie passou por diversos lares adotivos e sofreu inúmeros tipos de abusos e violências que a levaram a retornar ao estado de completo silêncio.

Ainda hoje, apesar de a equipe ter acompanhado, registrado seu desenvolvimento e comprovado seu progresso, permanece a indagação: foi realmente feito o máximo possível para cuidar adequadamente de Genie ou a pesquisa sempre foi a prioridade?

3. A ABORDAGEM CONSTRUTIVISTA DE JEAN PIAGET

Jean Piaget (1896-1980) foi um importante biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço que desenvolveu uma das teorias do desenvolvimento cognitivo mais importantes e aceitas no mundo até hoje.

Segundo Rappaport; Fiori e Davis (1981a, p. 52), “a preocupação central de Piaget dirige-se à elaboração de uma teoria do conhecimento que possa explicar como o organismo conhece o mundo”. Ele considerou em seus estudos que “só o conhecimento possibilita ao homem um estado de equilíbrio interno que o capacita a adaptar-se ao meio ambiente” (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981a, p. 52).

Para ele, é a presença de uma realidade externa ao sujeito que regula e corrige o desenvolvimento por meio de esquemas, que são “estruturas lógicas que permitem ao indivíduo atuar sobre o mundo de formas cada vez mais flexíveis e complexas” (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981a, p. 52). Dessa maneira, de acordo com a Teoria da Equilibração Majorante, desenvolvida por Piaget, ao deparar-se com um conflito, a estrutura cognitiva do sujeito entra em desequilíbrio, o que faz com sejam acionados seus mecanismos de assimilação – o sujeito recorre aos seus esquemas já formados para resolver o conflito – e de acomodação – o sujeito precisa modificar os esquemas que possui ou construir novos para que possa resolver o conflito. Assim, a cada novo conflito, o sujeito busca retornar ao seu estado de equilíbrio, “efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa e de uma interiorização progressiva” (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981a, p.65).

Para Piaget (2006), um desenvolvimento cognitivo adequado depende, também, da própria maturação fisiológica do sujeito. Assim, quatro fatores são determinantes nesse processo, em que mente e corpo estão interligados. São eles:

  • Estrutura cognitiva (mente e cérebro) capaz de desequilibrar e majorar – a criança não possui nenhum tipo de deficiência intelectual que possa prejudicar ou atrasar o seu desenvolvimento cognitivo;
  • Maturação biológica (desenvolvimento físico do corpo) – a criança recebe uma alimentação adequada, com os nutrientes que necessita para que seu corpo possa ter uma maturação biológica adequada;
  • Experiência física (lazer) – a criança recebe estímulos externos, tem contato com a natureza e ambientes variados, tem acesso a diferentes tipos de materiais para interagir;
  • Experiência social (emocional/afeto) – a criança é bem socializada com outros membros pertencentes ao grupo em que ela está inserida, tem contato e interage com outras pessoas, crianças e adultos.

Dessa maneira, contemplados os quatro fatores elencados acima, o desenvolvimento da criança se dá em quatro etapas, denominadas estágios, que começam com o nascimento e vão até a fase adulta. Cada estágio é composto de características próprias, que dependem da constituição de novos esquemas e que irão possibilitar ao sujeito realizar ações cada vez mais complexas para que, assim, avance progressivamente aos estágios seguintes.

  1. Sensório-motor: período compreendido entre o nascimento do bebê e os dois anos de idade, caracterizado pela exploração das sensações e dos movimentos. O bebê, nesse estágio do desenvolvimento, ainda não possui a linguagem desenvolvida e, portanto, está preso ao presente, ao “aqui e agora”. Ao conquistar a função simbólica através da linguagem, será capaz de representar eventos passados e prever eventos futuros, lançando-se, então, no estágio pré-operatório (PIAGET, 2006);
  2. Pré-operatório: período compreendido entre os dois e os sete anos de idade, marcado pelo aparecimento dos esquemas simbólicos, da imitação, do desenho, da imagem mental e da linguagem. Nessa etapa, o pensamento da criança será caracterizado por uma tendência fantasiosa e uma noção limitada da realidade. Ao superar o egocentrismo e conquistar o pensamento lógico, por volta dos sete anos, com a entrada na escola e a pressão dos amigos e da família, a criança lança-se no estágio operatório concreto (PIAGET, 2006);
  3. Operatório concreto: período compreendido entre os sete e os onze anos de idade, caracterizado pela visão concreta de mundo, ou seja, ler e entender o mundo “ao pé da letra”. Nesse período, a criança já possui noções apropriadas de tamanho, dimensões, agrupamento e divisão em classes. As grandes ilusões e a visão fantástica são substituídas pelo pensamento lógico e crítico. A linguagem ainda aparece um pouco marcada pelo egocentrismo, mas deve se tornar totalmente socializada até o final desse estágio. Para lançar-se ao estágio operatório formal, a criança precisa se livrar do pensamento concreto e ser capaz de formar esquemas conceituais abstratos (PIAGET, 2006);
  4. Operatório formal: período que inicia aos doze anos e vai até a fase adulta. Nesse estágio, o adolescente já consegue se situar bem no tempo e no espaço, passando a desconsiderar as restrições do concreto, crendo excessivamente na força do pensamento (retoma certo egocentrismo – messianismo). Desenvolve o pensamento hipotético-dedutivo e adquire a autonomia, atingindo sua forma final de equilíbrio (PIAGET, 2006).

Ainda de acordo com Rappaport (1981a, p. 64), “a grande maioria das crianças de uma dada cultura amadurece seus processos biológicos e psicológicos em faixas etárias aproximadas”. Assim, “as estruturas mentais e os seus mecanismos funcionais acabam sendo comuns à grande maioria das crianças de uma mesma idade cronológica”.

Dessa forma, aos treze anos de idade, adolescentes que se desenvolveram em condições normais deveriam, necessariamente, estar no início do estágio operatório formal. Porém, não foi o que aconteceu com Genie, que, após passar por um período de treze anos em total isolamento, ainda apresentava características relativas ao estágio sensório-motor.

4. A ABORDAGEM SOCIOINTERACIONISTA DE LEV VYGOTSKY 

Lev Semionovitch Vygotsky foi um importante estudioso do desenvolvimento do ser humano. Sua formação e seus estudos abrangeram diferentes áreas do conhecimento, como: a Literatura, o Direito, a Medicina, a Filosofia e a Psicologia.

Vygotsky escreveu uma teoria que vai além do desenvolvimento intelectual, considerando múltiplos fatores e dimensões do desenvolvimento humano. Propôs, em seus estudos, dois âmbitos diferentes do desenvolvimento humano: o biológico e o social. Ele considerava que, quando os sujeitos nascem, o âmbito biológico se faz mais presente, porque eles possuem apenas as funções psicológicas elementares (naturais, imediatas, involuntárias) para sobreviverem. Essas funções se mantêm por toda a vida, mas se desenvolvem, também, as funções psicológicas superiores (sociais, mediadas, voluntárias), que são mais complexas e se formam a partir das experiências sociais desse indivíduo no meio em que vive: memória, percepção, atenção e autorregulação (REGO, 2012; VYGOTSKY, 2008).

De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento humano é dinâmico, não é imutável ou estável e se constitui a partir de quatro níveis: o filogenético, referente à espécie; o nível sociogenético, do âmbito da cultura; ontogenético, sobre o modo ou contexto de vida, e o nível microgenético, correspondente ao das funções psicológicas (REGO, 2012; VYGOTSKY, 2008).

Segundo Rego (2012), os trabalhos de Vygotsky pertencem ao campo da psicologia genética, pois consideram o desenvolvimento psíquico como um fator social e cultural, que se dá ao longo da vida do sujeito por meio da interação deste com o meio em que vive. Ou seja, as Funções Psicológicas Superiores (FPS) – que são mecanismos psicológicos mais sofisticados, exclusivamente humanos -, como: o controle consciente do comportamento, a percepção, a atenção, a memória, o pensamento abstrato, a linguagem, a imaginação, a capacidade de planejamento, entre outros, não estão presentes desde o nascimento do indivíduo, mas se formam a partir de suas relações, “por meio dos elementos da cultura, da comunicação e da criação e utilização de instrumentos e signos” (MAGALHÃES, 2022).

Dessa forma, Vygotsky defendia que todo conhecimento deveria, necessariamente, ser mediado, determinando ao professor e à instituição escolar papéis mais ativos no desenvolvimento da aprendizagem. Assim, surge o conceito de zona de desenvolvimento próximo, que é definido pela distância entre o desenvolvimento real da criança, seus conhecimentos e habilidades já adquiridas e aquilo que ela pode vir a desenvolver diante de seu potencial, com o apoio de um colega ou do próprio professor. Nas palavras de Vygotsky, “o nível de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento próximo caracteriza o desenvolvimento mental prospectivamente” (VYGOTSKY, 1991, p. 58).

5. FATORES DO DESENVOLVIMENTO EM PIAGET 

Ao ser encontrada, Genie havia permanecido estagnada no primeiro estágio do desenvolvimento, o sensório-motor, sendo que, com a sua idade na época, já deveria ter alcançado o operatório formal. Analisando o caso sob a óptica de Piaget, constatou-se que o seu crescimento não ocorreu de forma adequada para que uma criança se desenvolvesse normalmente.

Quando o estágio do desenvolvimento da criança não está de acordo com o que seria típico para sua idade, precisamos olhar, a princípio, para os quatro fatores do desenvolvimento. A primeira condição para o desenvolvimento adequado da criança é que ela tenha uma estrutura cognitiva capaz de se desequilibrar e majorar. No caso de Genie, os pesquisadores não entraram em um acordo a respeito dessa informação tão importante e que poderia ter definido os próximos passos da pesquisa. Caso Genie realmente tivesse sido diagnosticada com deficiência intelectual, poderia haver algum tipo de comprometimento em sua estrutura cognitiva que a levasse a uma maior dificuldade em avançar para um estágio posterior que estivesse de acordo com a sua idade cronológica. Considerando essa hipótese, sua dificuldade em desenvolver-se além daquilo que conseguiu durante os estudos seria justificada por um fator biológico, alheio às intervenções disponíveis para os pesquisadores. Mas, como não houve um diagnóstico concreto, e como ela demonstrou se desenvolver cognitivamente após ser encontrada e iniciar a reabilitação, podemos considerar que sua estrutura cognitiva era capaz, sim, de majorar.

Em relação aos demais fatores, observamos que Genie, durante seus primeiros anos de vida, não teve as condições adequadas para que seu corpo tivesse a correta maturação biológica; ela não recebeu uma boa alimentação e não vivenciou experiências físicas e sociais adequadas, tendo sido trancada em um quarto durante toda a infância, não recebendo nenhum tipo de estímulos externos, não teve contato nem explorou outros ambientes, não teve acesso a materiais diversos para experienciar, não recebeu o afeto da família para que pudesse se desenvolver emocionalmente, não teve contato com outras pessoas, adultos ou crianças, com quem pudesse socializar e interagir (GENIE, 1994). A privação de contato humano a que Genie foi submetida pode ter sido um fator determinante para o agravamento de sua situação, uma vez que “o contato com as pessoas se constitui num dos elementos que permite à criança adaptar-se à realidade e, portanto, crescer no sentido psicológico” (RAPPAPORT; FIORI; DAVIS, 1981b, p. 50).

Analisando as características do estágio do desenvolvimento em que Genie foi encontrada, o sensório-motor, é possível identificar que, ao não desenvolver a linguagem, e consequentemente, não ter conquistado a função simbólica de representar acontecimentos fora do “aqui e agora”, não foi possível para ela superar esse estágio para que pudesse avançar ao seguinte. É, também, nesse estágio que Genie necessitava ter sido estimulada em seu desenvolvimento através de diferentes oportunidades de interação com o meio, para que, através de suas experiências, pudesse ter ampliado a quantidade de esquemas formados, o que não ocorreu. Assim, explica Rappaport; Fiori e Herzberg (1981, p. 82) que: “[…] se a criança está em um meio rico em termos de estimulação, terá maior oportunidade para descobrir estes ‘resultados interessantes’, ampliando seu repertório de esquemas; e o inverso ocorre num meio de pequena estimulação”.

Como Genie passou toda a infância trancada em um ambiente onde teve pouquíssima estimulação, sua estrutura cognitiva quase não se desequilibrou, suas experiências foram restritas e sua interação com o meio foi nula, então, ela não teve a oportunidade de majorar. 

6. FATORES DO DESENVOLVIMENTO EM VYGOTSKY 

Genie nasceu nos anos 70, em uma família de classe média baixa do interior dos Estados Unidos, centrada no pai, um homem machista, preconceituoso e que acreditava que tinha poder sobre os filhos e a esposa. O meio social em que ela cresceu e se desenvolveu até os treze anos de vida pode ter sido o principal fator da causa dos déficits cognitivos apresentados ao ser encontrada.

Segundo Rego (2012), Vygotsky defendia que, para se humanizar, o indivíduo precisa crescer em um ambiente social e interagir com outras pessoas. Sendo assim, de acordo com a teoria vygotskyana, Genie, por ter crescido em um ambiente sem condições favoráveis para que pudesse se desenvolver adequadamente, mantido apenas contato humano mínimo com os progenitores e permanecido trancada em um quarto durante toda a sua infância e parte da adolescência, não se apropriou da cultura humana. Dessa maneira, explica Rego (2012), que, “quando isolado, privado do contato com outros seres, entregue apenas a suas próprias condições e a favor dos recursos da natureza, o homem é fraco e insuficiente” (REGO, 2012, p. 39).

Seus problemas de fala provavelmente foram causados pela falta de interação com a cultura humana. A maneira como Genie foi tratada nos experimentos também contribuiu para que ela não apresentasse os resultados esperados, provavelmente devido à pouca qualidade e frequência das mediações. Vygotsky considerava que o conhecimento é construído no social, por meio de um processo complexo que se dá no contexto sociocultural e histórico no qual o sujeito está inserido, sendo esta a base de sua teoria sociointeracionista.

Vygotsky considerava que o psicológico se constitui quando começa a linguagem, que, no caso da Genie, era muito limitada, e apenas iniciou-se depois que ela foi encontrada, teve mais interações e pôde ir se individualizando e se desenvolvendo, conquistando funções psicológicas superiores. A linguagem, composta por conceitos, é a mediadora entre a criança e o meio, pois é através dela que a criança pode apropriar-se dos significados sociais. Para aprender os conceitos e seus significados, os indivíduos dependem da atividade mental de mecanismos mais complexos, como: a atenção, a comparação e a memória, funções psicológicas superiores que ainda não haviam sido conquistadas por Genie (GENIE, 1994; REGO, 2012; VYGOTSKY, 2008).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo a teoria construtivista de Piaget, todo o tratamento de reabilitação a que Genie foi submetida após ter sido encontrada pôde levá-la a desenvolver um pouco a sua comunicação através da linguagem, tornando-a capaz de representar acontecimentos por meio da função simbólica, superando, assim, o período sensório-motor. Porém, ela não chegou, ao final dos estudos, a desenvolver a linguagem por completo e, dessa maneira, também não desenvolveu o pensamento crítico, não alcançando o estágio operatório concreto. Ou seja, mesmo sendo considerada uma adolescente, Genie não alcançou o último estágio do desenvolvimento, não sendo capaz de superar os prejuízos por ter crescido em um ambiente tão desfavorável e que a privou de estímulos necessários nas fases específicas de maturação biológica.

Observamos que a estrutura cognitiva de Genie desenvolveu-se minimamente ao longo dos primeiros treze anos de sua existência, apenas para adaptar-se ao ambiente pernicioso em que vivia, e, sendo assim, não construiu os esquemas necessários para lidar com situações da vida em sociedade que, para a maioria de nós, são completamente normais e corriqueiras.

Dessa maneira, podemos considerar que os danos causados à estrutura cognitiva de Genie pelo isolamento foram demasiadamente severos, a ponto de terem causados danos à sua capacidade de fala e interpretação, e, mesmo com todos os esforços da equipe que atuou na sua reabilitação, durante o pouco tempo em que se deram tais intervenções, não foi possível recuperar todo o atraso no desenvolvimento para que Genie alcançasse o que era considerado adequado à sua idade biológica.

Apesar disso, ainda de acordo com a teoria de Piaget, Genie, apenas um ano após ter sido descoberta pelas autoridades, havia acabado de superar o estágio sensório-motor e alcançar o pré-operatório. Dessa maneira, mesmo em condições normais de desenvolvimento, a criança levaria ainda alguns anos até que pudesse superar o egocentrismo e conquistar o pensamento lógico, construindo, assim, os esquemas necessários para alcançar o estágio operatório concreto.

Segundo a teoria sociointeracionista de Vygotsky, as FPS se criam na interação, a partir do contato do indivíduo com outros de sua espécie, e, como Genie não conviveu socialmente com outros seres humanos durante os seus primeiros anos de vida até a adolescência, fase crítica para que pudesse se desenvolver em toda a sua plenitude, não criou as FPS. Porém, Vygotsky acreditava na capacidade de adaptação do ser humano às condições que se apresentam para a sua sobrevivência.

Quando foi encontrada, Genie não andava muito bem, não enxergava bem, não mastigava bem, tinha um peso muito baixo e uma altura menor que o esperado para sua idade. Essas são características que dizem mais sobre seu desenvolvimento biológico, que sofreu, também, influências pela sua condição de vida. Após ser atendida por diferentes profissionais do desenvolvimento, ela pôde ampliar algumas dessas habilidades, como: a locomoção, a deglutição etc.

Para Vygotsky, a aprendizagem seria condição de seu desenvolvimento, já que é ela que o impulsiona. Genie perdeu muitas oportunidades de aprender e desenvolver-se quando esteve isolada, e essa falta de contato social parece ter sido determinante em seu processo de desenvolvimento.

O que se pode observar em Genie é que ela não teve a oportunidade de se desenvolver no âmbito cultural, pois não teve experiências suficientes de interação, o que também dificultou a possibilidade de aprendizagem. O desenvolvimento acontece a depender das possibilidades que o ambiente oferece e das interações que a pessoa tem com os outros. Sem interação, não há cultura, e sem cultura, não é possível desenvolver as funções psicológicas superiores. De todo modo, uma vez em interação e em contato com a cultura, a possibilidade de aprender e desenvolver-se está sempre presente, no ritmo e com as adaptações que forem necessárias. Vygotsky teria considerado que as trocas com o meio e com os outros, com a mediação de alguém com mais repertório cultural, seria uma das opções e oportunidades possíveis para Genie seguir desenvolvendo-se (REGO, 2012).

Para ambas as abordagens, um ponto crítico que deveria ter sido mais bem cuidado durante as pesquisas com Genie foi o fato de ela não ter recebido o afeto familiar que necessitava para apoiar o seu desenvolvimento cognitivo.

Apesar de ter morado durante quatro anos com os Rigler, viveu muito tempo no hospital e, pior ainda, passou por diversos lares adotivos, foi abandonada várias vezes e sofreu ainda mais abusos, o que também lhe causou traumas severos, levando-a a um novo período de estagnação, quando, após vivenciar diversos tipos de violência em lares adotivos, Genie volta a se fechar novamente para o contato humano. Assim, é possível observar que a falta de afeto e carinho familiar foi uma das barreiras que afetaram o desenvolvimento de suas funções cognitivas.

Os cuidados que Genie recebeu ao ser encontrada foram complexos, uma vez que permeado por conflitos de interesse em relação à maneira como os profissionais lidavam com o caso, e, apesar de não terem sido totalmente bem-sucedidos, podemos considerar que os esforços da equipe de reabilitação foram importantes para a inserção de Genie na sociedade e para a conquista da sua autonomia, mas, principalmente, por representarem um avanço em seu desenvolvimento cognitivo quando comparado aos treze anos de completo abandono em que ela viveu trancada e isolada pelo pai.

Assim, podemos constatar que os estudos com Genie tiveram que se encerrar muito cedo, e, dessa maneira, ela não teve o tempo necessário para que pudesse desenvolver todo o seu potencial. Como não foi comprovadamente diagnosticada com deficiência intelectual, poderia ter se desenvolvido mais se tivesse continuado recebendo os estímulos da reabilitação, onde lhe era oportunizada a interação com diferentes tipos de materiais, juntamente com uma boa alimentação, contatos externos em ambientes variados e uma boa relação socioafetiva com uma família que a acolhesse, até alcançar os padrões considerados normais para a sociedade atual.

REFERÊNCIAS

MAGALHÃES, L. O. R. Introdução à Vigotski. Slides da disciplina de Psicologia da Educação I. 31 mai. 2022.

PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. 24ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

RAPPAPORT, C. R.; FIORI, W. R.; DAVIS, C. Psicologia do desenvolvimento: teorias do desenvolvimento: conceitos fundamentais. 16ª ed. São Paulo: EPU, 1981a

RAPPAPORT, C. R.; FIORI, W. R.; DAVIS, C. Psicologia do desenvolvimento: a idade pré-escolar. 13ª ed. São Paulo: EPU, 1981b.

RAPPAPORT, C. R.; FIORI, W. R. HERZBERG, E. Psicologia do desenvolvimento: a infância inicial: o bebê e sua mãe. 13ª ed. São Paulo: EPU, 1981

REGO, T. C. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. Petrópolis: Vozes, 2012.

GENIE: o segredo da criança selvagem. Direção: Linda Garmon. Estados Unidos: Nova, 1994. 1 filme (58min). Disponível em: https://www.dailymotion.com/video/x62fbjq. Acesso em: 15 abr. 2022.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[1] Mestrando em Psicologia da Educação, especialização em Educação Especial, Psicopedagogia e Neurociências, Graduação em Letras e Pedagogia. ORCID: 0000-0003-4615-6927

Enviado: Setembro, 2022.

Aprovado: Novembro, 2022.

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Felipe Zuculin da Fonseca

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