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A prática de ensino culturalmente significativa para os povos indígenas e afrodescendentes

RC: 144358
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/pratica-de-ensino

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PESSIN,  Erivelton [1], SILVA, Marizete Andrade da [2]

PESSIN,  Erivelton. SILVA, Marizete Andrade da. A prática de ensino culturalmente significativa para os povos indígenas e afrodescendentes. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 05, Vol. 01, pp. 35-49. Maio de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/pratica-de-ensino, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/pratica-de-ensino

RESUMO 

Este artigo tem como objetivo apresentar alguns subsídios teóricos referentes à prática de ensino culturalmente significativa no âmbito da educação básica, que, historicamente, excluiu os afrodescentes e indígenas tanto dos currículos quanto das instituições escolares. Parte-se do pressuposto que, pelo fato do Brasil ser uma das sociedades ocidentais com importante diversidade étnica e cultural, a escola e o currículo têm como finalidade contemplar todos os estudantes dentro dos preceitos legais, especialmente na aplicação do currículo. Este estudo de natureza bibliográfica se reportará ao pensamento de Billings (1992), Candau (2010), Delors (2006), Freire (2003), Tardif (2014) e outros. Com base nessas referências, conclui-se que o desafio emergente da escola brasileira, neste cenário em que a diversidade é latente no espaço social e escolar, é apresentar ações e políticas públicas efetivas para assegurar a realização de um ensino que seja culturalmente significativo para todos os estudantes.

Palavras-chave: currículo, afro-brasileiros e indígenas, ensino.

1. INTRODUÇÃO 

Durante o período colonial do Brasil, somente os cidadãos brancos (praticamente somente homens) tinham acesso à escola. Quando a população indígena e a negra foram inseridas nos processos educativos formais, não houve o desenvolvimento de uma proposta de ensino significativo[3] em termos culturais, uma vez que seus saberes e cultura foram invisibilizados diante da destacada ênfase na reprodução da cultura colonizadora, conforme ainda é possível identificar até os dias atuais. Como bem destaca Bogo (2010), a historiografia da educação brasileira sinaliza a dificuldade de efetivar, em sala de aula, um conjunto de práticas educativas que sejam relevantes e significativas para os estudantes afro-brasileiros e indígenas, o que, de certo modo, contribui para o processo da gradativa perda de identidade étnica e cultural dos povos originários e afrodescendentes.

Os elementos das culturas se misturaram entre as etnias aqui presentes, evidenciando que o conjunto da sociedade brasileira é o berço para outras culturas. É nesse sentido que Hall (2013) ressalta as múltiplas culturas que se intercruzam no cenário mundial atualmente, em que a pluralidade cultural se manifesta fortemente no mundo globalizado. Por esse motivo, o autor afirma que, na contemporaneidade, a cultura é o eixo central do currículo.

Perante a diversidade cultural do Brasil, é imprescindível que sejam asseguradas, no processo de ensino-aprendizagem, práticas educativas culturalmente significativas para todas as etnias em respeito a riqueza representada por toda essa multiplicidade etnocultural que constitui o patrimônio sociocultural do país.

Para o orientar o estudo proposto, apresentam-se as seguintes questões norteadoras de nossas reflexões: a cultura trazida pelo aluno realmente importa ao processo educativo? A cultura de qual etnia tem sido disseminada e reproduzida pelo Ministério da Educação (MEC)?  O ensino proposto pelo MEC para a educação de indígenas tem sido culturalmente relevante para os povos indígenas e afrodescendentes atualmente? O currículo reproduz a cultura na qual foi produzido e valida, reconhece e legitima estes conhecimentos científicos?

Nessa perspectiva, objetiva-se, neste texto, apresentar alguns subsídios teóricos referentes à prática de ensino culturalmente significativa no âmbito da Educação Básica, que, historicamente, excluiu os afrodescendentes e indígenas tanto dos currículos quanto das instituições escolares. Parte-se do pressuposto que, pelo fato do Brasil ser uma das sociedades ocidentais com importante diversidade étnica e cultural, a escola e o currículo têm como finalidade contemplar todos os estudantes dentro dos preceitos legais, especialmente na aplicação do currículo.

2. ENSINO CULTURALMENTE RELEVANTE E UM CURRÍCULO MULTICULTURAL 

O desafio da proposta do ensino culturalmente relevante é reconhecer e valorizar as diferenças de culturas e os saberes dos estudantes, que são linguisticamente, culturalmente e etnicamente distintos, e as produções materiais, científicas e tecnológicas dos povos indígenas e africanos.

Freire (1983) refletiu que não existe um único saber, mas sim diferentes saberes e significados, desse modo, cabe à escola reverenciar aqueles referentes aos estudantes dos grupos sociais desfavorecidos, porque a cultura vivenciada no seu cotidiano é uma ferramenta que a escola precisa utilizar como ponto de partida no processo educativo. Nessa direção, Billings (1992) também afirma que a escola precisa valorizar os saberes socioculturais que os estudantes trazem de seu contexto, visto que nem sempre as instituições formais de ensino as reconhecem, e, ainda conforme o autor, esse é um dos motivos do fracasso escolar.

Para que o ensino culturalmente relevante seja efetivado no espaço escolar, é fundamental que o professor tenha uma sólida e profunda formação teórico-prática, caso contrário, o objetivo desse ensino – que é o estímulo ao desenvolvimento de um ambiente reflexivo que promova a afirmação da identidade e o respeito às diferenças – tende-se ao fracasso.  Cabe, portanto, ao professor contribuir para que os estudantes indígenas e negros valorizem e resgatem suas identidades étnicas e culturais. Um dos pilares da educação proposto por Delors (2006) é o de saber conviver com o outro e o respeito à diversidade, sendo isso desafiador para todos, pois diariamente são noticiados conflitos envolvendo xenofobia e racismo por todo o mundo.

Em conformidade com o pensamento de Billings (1992), Burke (2000, 2005) e Certeau (1995), entende-se que o ensino culturalmente relevante precisa estar alinhado com um currículo multicultural, de modo que exista um conjunto de práticas pedagógicas com a finalidade de garantir aos estudantes uma formação intelectual, social e política para conviver no mundo, na dimensão cultural e no deslocamento cultural da alta cultura europeia e norte americana para a valorização das culturas de países multiculturais como os latino americanos. Todavia, o currículo em ação no cotidiano da escola tem sido muito distinto do currículo legal, e essa diferença precisa ser reduzida com um trabalho coletivo que envolva a participação de toda a comunidade escolar.

Parece haver uma articulação entre as práticas de ensino culturalmente relevantes e a definição de currículo proposta por Mota e Barbosa (2004), que defendem o currículo como sendo um conjunto sistematizado de elementos que compõem todo processo educativo e a formação humana constante do educando. Nesse modelo de ensino, a proposta do currículo multicultural proposto por Mclaren (1997a) também está fundamentado nessa perspectiva, porque dá voz aos sujeitos historicamente excluídos, como negros, mulheres, indígenas, homossexuais, pobres e pessoas com deficiência.

Para além dos espaços escolares, o currículo tem a missão de promover o cumprimento do ensino em consonância com a realidade social dos estudantes, e o meio para garantir esse ensino culturalmente relevante é por meio do trabalho coletivo. Esse desafio não é fácil de ser enfrentado, dado que inúmeras pesquisas atuais apontam um distanciamento entre a dimensão legal e real, que é vivenciada pelas escolas. No entanto, há relatos de experiências exitosas que se baseiam no compromisso sério e ético dos docentes, da supervisão escolar, da gestão e na participação efetiva do conselho de escola e dos demais membros da comunidade escolar.

Para assentar o ensino culturalmente significativo na educação básica, cada escola precisa considerar suas especificidades e necessidades, pois não há um esquema rígido e universal para seguir. É fundamental que cada instituição direcione a discussão no campo da metodologia, da avaliação e da política a fim de elaborar estratégias educacionais realizáveis. Sabe-se que o Ministério da Educação prevê autonomia na parte diversificada do currículo para as escolas construírem seu Projeto Político Pedagógico (PPP) de acordo com sua singularidade regional e com a participação da comunidade escolar (BRASIL, 2013).

O grande desafio da implementação do ensino significativo nas escolas públicas está na permanente construção da formação humana dos educandos para o respeito à diversidade e aos sujeitos históricos da formação do país que foram excluídos dos processos sociais e educacionais (SANCHES et al., 2022).

Pode-se afirmar que a diversidade é constitutiva da espécie humana, sobretudo se for entendida como um processo histórico de construção constante nas dimensões culturais, linguísticas e sociais que faz parte do cotidiano de todos os povos (LIMA, 2006). A diversidade biológica e sociocultural precisa ser respeitada, porque ela se faz presente na escola brasileira, e o currículo oficial e o praticado no interior das instituições de ensino precisam contemplar essa universalidade, propondo um ensino culturalmente importante para os estudantes, em que se espera que as questões de natureza política, linguística, cultural, biológica, ética e da cidadania sejam cardeais no processo de formação dos estudantes.

O que se espera como objetivo desse ensino culturalmente relevante é que ele venha garantir a emancipação dos sujeitos que dele fazem parte considerando suas singularidades. A compreensão da realidade do sujeito é o ponto de partida para se pensar as possibilidades concretas de transformação. Não é possível formular estratégias de alterar qualitativamente as formas de organizar a vida e de distribuir socialmente o produto da atividade humana no mundo de maneira justa sem entender a lógica de ordenamento da sociedade e os fenômenos que a caracterizam. Daí a relevância de colocar em perspectiva a historicidade humana e as singularidades de cada tempo e de cada cultura. Essa tarefa precisa se constituir em um compromisso político escolar, que será identificado no sujeito dentro e fora do espaço educacional, pois a escola, com seu currículo proposto, é responsável pelo aluno que forma. Contudo, para assegurar esse modelo, é essencial que o docente repense sua prática educativa permanentemente.

3. A CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS E AFRODESCENDENTES NO CURRÍCULO MULTICULTURAL

Dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2020 apontam que há 1.133.106 indígenas distribuídos em todo o país, cerca de 305 etnias, 3.359 unidades de ensino, 251.601 estudantes indígenas na educação básica e um quadro docente de 20.373 educadores. O Censo também aponta que menos da metade (48%) utiliza material didático em língua indígena ou bilíngue (em língua indígena e em língua portuguesa), apesar da maioria (74%) ministrar aulas em língua indígena (INEP, 2020).

De acordo com Grupioni (2008), é fundamental reafirmar que os povos indígenas estavam aqui antes de Colombo, e, assim, muito antes de Pedro Álvares Cabral chegar, ocorreu a invasão das terras indígenas, das quais eles eram os verdadeiros donos. Além de terem a terra retirada deles, também perderam a cultura e a língua materna. Então, é essencial ensinar, nas escolas, a história pela perspectiva dos colonizados, da educação infantil até os jovens do Ensino Médio, para que tenham uma compreensão da história real do país. Com isso, terão um maior entendimento para exercer a sua cidadania de forma crítica no momento presente e no futuro.

Ressalta-se que existem, atualmente, no Brasil, 305 etnias indígenas. O elemento comum que esses grupos compartilham é o fato de serem de origem pré-colombiana e de terem sido injustiçados, massacrados, mortos e proibidos de manifestar sua cultura e língua materna. Cada etnia apresenta suas especificidades, manifestações artísticas, ritos e tradições próprias da sua comunidade e sua educação indígena, que é transmitida oralmente, entre anciãos, adultos, jovens e crianças, de geração em geração, através da rotina do cotidiano, no trabalho e no lazer, por meio da demonstração, observação, imitação, tentativa, erro e limitação, e não se restringe ao espaço escolar, pois a rotina escolar compreende todos os espaços físicos da aldeia (SOUZA; SILVA, 2020).

Em relação à pluralidade de povos e formas diferentes de organizar a vida destacada acima, é necessária a contextualização dos dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2015), que apontam que os cidadãos brasileiros da etnia negra representam 53,5% e os povos indígenas, cerca de 0,47% da população brasileira, que é estimada em 212, 6 milhões de brasileiros. A questão é propor um ensino que valorize os saberes tradicionais desses povos no processo de ensino-aprendizagem.

Nas últimas décadas, estudos como os de Munanga (2001, 2022) apontam uma maior participação da população negra, resultado de políticas públicas afirmativas, como o sistema de cotas para ingresso no ensino superior. Conforme a pesquisa Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019), pela primeira vez, pretos e pardos passaram a ser 50,3% dos estudantes de universidades públicas. Entre estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos, o percentual que cursava ensino superior aumentou 5% em relação a 2016 (de 50,5% para 55,6%), porém, permanece abaixo do percentual de brancos da mesma faixa etária (78,8%). Já a taxa de analfabetismo entre as pessoas pretas ou pardas teve uma ligeira queda (de 9,8% para 9,1%), contudo, esse número é quase o triplo em relação à população branca (3,9%).

Mesmo com as atuais políticas públicas afirmativas do governo federal, como a efetivação das cotas raciais, os dados estatísticos revelam que, nas universidades federais ou estaduais, a presença destes representantes tem sido mínima nos cursos superiores tradicionais, como medicina, odontologia, direito e farmácia. Uma das razões é a qualidade do ensino público brasileiro. Outro ponto é o fato de que a maioria dos estudantes da etnia negra trabalha, pois são “arrimos de família”, e estuda no período noturno, sendo um número importante matriculado na Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou no ensino médio (COSTA, 2009).

Esse panorama cruel e perverso da desigualdade social, cultural e econômica retrata a realidade atual na qual os estudantes estão inseridos. Para uns, a escola parece ser a expansão da sua casa, para outros, a escola é um mundo estranho. E, conforme aponta Keddie (1982), a tipificação que os professores fazem dos estudantes está diretamente relacionada à classe social e à etnia.

Devido ao processo histórico de exclusão escolar da população brasileira de etnia negra, sugere-se que o ensino culturalmente relevante e inserido dentro de uma proposta pedagógica libertadora e emancipadora depende que o currículo oficial, aquele realmente praticado, venha a contemplar, no cotidiano da escola, a questão contemporânea, que é a educação das relações étnico-raciais em todos os níveis e modalidades da educação, principalmente no ensino superior, que ainda  tem se mostrado monocultural e eurocêntrico. Atualmente, em decorrência da implementação das políticas afirmativas, como as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 (BRASIL, 2003; BRASIL, 2008), as políticas de cotas raciais, as licenciaturas interculturais específicas para os povos indígenas e a licenciatura em educação do campo, instituída através da Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015, as matrizes étnicas deste país têm ingressado nas universidades públicas, espaço ocupado historicamente pelos brancos.

É consenso que o povo brasileiro é um povo de formação multiétnica e multicultural, o que significa que a escola deveria contemplá-la no dia a dia e não em datas pontuais, como é verificado na maioria das escolas, especialmente em datas comemorativas como o dia da consciência negra. No ensino culturalmente relevante, essa temática citada precisa ser discutida, em todo ano letivo, na prática docente, não basta estar apenas determinado no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola para cumprir fins burocráticos e legais, conforme previsto na legislação de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDBEN 9394/1996) (BRASIL, 1996). É fundamental, na educação básica, projetos que suscitem o debate sobre as diferentes etnias que compõem o povo brasileiro.

Acredita-se que a ação pedagógica docente seja determinante nesse processo, porque, como nos ensina Tardif (2014), o professor é o mediador entre a cultura do aluno e os conhecimentos científicos escolares. Isto é, compete ao docente, em suas aulas, abordar os elementos da cultura afro-brasileira e indígena na sua área de conhecimento, o que mostra que não é a determinação legal que fará com que o mesmo, na sua práxis, cumpra os preceitos legais, e sim sua formação política, que deve permear a formação docente. Como bem considera Silva (2021), não se concebe a atividade docente sem relacioná-la ao processo histórico real, em suas dimensões particulares e em sua generalidade, dado que o processo educativo se realiza em um mundo historicamente determinado e a partir de situações concretas. Os educadores não têm como escapar da historicidade humana e, principalmente, da realidade.

A educação dos povos marginalizados é uma fração desta totalidade complexa que é o conjunto das relações sociais. Assim, é fundamentalmente necessário que a dimensão educativa não seja isolada ou desarticulada, se isto é possível, da materialidade da vida. Diante dessa compreensão, é preciso destacar que não é qualquer prática de ensino que interessa aos povos indígenas e negros em movimento histórico de resistência. Para os marginalizados, somente a atividade educativa que se converta em compromisso político a favor da classe expropriada pode ser genuinamente um momento de despertar de consciência e do simultâneo desvelamento da realidade.

Um caminho a ser percorrido deve ser a implementação dos cursos de licenciaturas em todo os país, como eixo central da organização curricular de disciplinas que discutem a temática da história e da cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros, para que, posteriormente, os docentes venham a debater com mais solidez e profundidade o aporte teórico da Lei nº 11. 645/2008 (BRASIL, 2008).

Para Rocha (2012), é essencial fortalecer a implementação de ações afirmativas nas universidades e em outras instituições para permitir a criação de outros espaços de práticas formativas que tenham como centralidade as relações étnico-raciais, a história e a cultura africana e indígena e a preservação do patrimônio material e imaterial. Isso exige trabalhos de natureza histórica, diante de diferentes processos fundamentados pela articulação entre as teorias e as circunstâncias práticas que dizem respeito ao ensino da cultura e da história afro-brasileira e indígena. É neste sentido que Zarth (2010) defende não somente uma ressignificação de natureza metodológica, mas também uma reconsideração por meio de uma compreensão crítica das condições de existência de distintos grupos étnicos, enfatizando e analisando, de modo particular, as desigualdades de tratamento no interior das relações sociais.

Uma outra problemática está relacionada aos livros didáticos, que, por muitos anos trouxeram, e alguns ainda trazem, a imagem estereotipada do indígena e do negro, reforçando os preconceitos sobre esses povos que têm sido historicamente marginalizados (ALMEIDA, 2021). Daí decorre a necessidade de o professor ter consciência e conhecimento de suas filiações ideológicas e teóricas na escolha e no trabalho com os livros didáticos. Nenhum livro é neutro, e os professores também não são neutros no exercício de suas leituras e interpretações. Conforme a concepção althusseriana, a escola, vista como aparelho ideológico de Estado, pode agir como instrumento de reprodução da sociedade capitalista, ressaltando conhecimentos, saberes e, logo, representações de interesse da classe hegemônica. Desse modo, o ensino priorizaria, em detrimento dos conhecimentos históricos e culturais, os saberes teóricos e práticos ideais ao movimento harmônico do sistema produtivo. (ALTHUSSER, 1999).

No espaço escolar, devido à formação docente ser insuficiente em relação à temática sobre a Lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008), a abordagem, quando feita, é precária em contextualização acerca dos povos indígenas e afrodescendentes, reafirmando a hegemonia da etnia branca do currículo escolar, o que impede a realização de um ensino culturalmente relevante para índios, negros e demais minorias étnicas presentes no país. Para efetivar o ensino, na perspectiva da valorização da diversidade, é fundamental que a escola contemporânea repense suas práticas e seu currículo real. A inclusão dessa temática no espaço da sala de aula requer o cumprimento dos pilares da diferença intercultural e reflexão sobre o tipo de formação humana que se quer alcançar dos estudantes ao longo do processo educativo na educação básica.

A problemática central que caracteriza a fragilidade do trato com a diversidade cultural é a formação dos professores. A grande maioria dos professores não teve formação sobre a temática da diversidade cultural. Podemos destacar, especificamente, o fato de que alguns professores acreditam que as exigências legais (Lei 10.639/03 e Lei 11.645/08) já estão contempladas no conteúdo didático. As referidas exigências legais tratam da obrigatoriedade do ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nas escolas. Alguns professores declaram que no processo histórico colonial brasileiro constam as temáticas da escravidão de negros africanos e dos povos indígenas. Deixando claro que a temática da diversidade cultural está contemplada nos conteúdos. (LIMA, 2019, p.48).

Isso reforça a percepção da necessidade de formação continuada, pois essa perspectiva torna evidente que há uma carência em compreender a diversidade cultural, demonstrando um certo desconhecimento sobre a temática. Portanto, o que justifica a necessidade de uma lei que determine o ensino dessa diversidade cultural? Esta temática está contemplada de forma automática no currículo? O currículo somente se concretiza no contexto da escola, quando estudantes e docentes vivenciam e reconstroem os conhecimentos científicos, transformando-os em saber escolar e adequando-os aos aspectos socioculturais dos estudantes.

Inúmeros pesquisadores, a exemplo de Giroux (1997), Mclaren (1997b) e Apple (2006), apontam que existe uma imensa correlação entre o currículo e a formação do professor, pois ele é o ator principal para disseminar, em sala de aula, um currículo que proponha um ensino culturalmente relevante, capaz de atender aos estudantes indígenas e aos afrodescendentes. Esses discentes precisam ter conhecimento do direito legal das suas raízes culturais, tal como afirma a Constituição de 1988, nos artigos 215 e 216 (BRASIL,1988).

Os pilares contemporâneos dessa formação docente perpassam sobre o aspecto político, que precisa ser alicerçado e estar dentro de um enfoque multicultural. Os cursos de formação para docentes devem levar em consideração o compromisso político e a preocupação em efetivar uma práxis pedagógica com as questões atuais do ensino, como a diversidade sociocultural, as diferenças, a educação inclusiva, com a implementação da Lei nº 11. 645/2008 (BRASIL, 2008), no direcionamento de uma sólida formação humana.

Os atores educacionais devem ter a autopercepção de que, neste mundo contemporâneo, a cultura se afirma como uma identidade de cada grupo social que precisa ser resgatada, preservada, valorizada e disseminada de geração em geração. A escola é o instrumento que tem, entre outras, essa missão, pois muitos conflitos e tensões mundiais estão correlacionados com a cultura, com as etnias e com as crenças (CANDAU, 2010).

Os conflitos dentro da dimensão cultural derivam das tensões, em relação aos interesses de diferentes grupos hegemônicos, de tentarem impor ou impedir as minorias de expressarem a sua cultura. Então, compreende-se que a cultura importa, sim, porque ela é lugar de lutas históricas e atuais, de respeito às diferenças políticas, de segmento social, de gênero, de linguagem, de orientação sexual e deficiência física ou neurológica. Percebe-se, na sociedade, as abruptas perseguições e discriminações sofridas por cidadãos ou grupos que defendem alguma causa das minorias no Brasil e no mundo.

A escola tem um papel social de ensinar a cultura de todas as etnias, pois depende do aprendizado que o ser humano constrói na sua trajetória histórica. Nesse entendimento, o professor é o sujeito privilegiado para efetivar esse aprendizado no processo educativo (KROEBER, 1939).

4. CONCLUSÃO 

A instituição da educação como direito elementar dos cidadãos brasileiros esteve distante da realidade de muitas gerações e se estabeleceu através de um processo gradativo e lento, alcançado através de lutas políticas e sociais histórica, e, durante os estágios de sua construção, os interesses da classe dominantes sobressaíram às reivindicações dos setores populares, impedindo o legítimo exercício da cidadania e da efetiva participação política de todo o conjunto da sociedade. Entretanto, as garantias determinadas pela constituição não significam que ocorrerá a universalização da educação de qualidade para todos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017), os obstáculos que impedem o acesso e dificultam a permanência na educação básica atingem, de modo mais expressivo, a população negra e a indígena. Muitas vezes, os estudantes não se identificam com as instituições de ensino tampouco com as práticas pedagógicas. Como pondera Tardif (2002), em algumas ocasiões, os dispositivos jurídicos são impostos com reflexo direto na atividade docente, sem que exista uma apropriada preparação dos educadores para as finalidades que são projetadas.

Esse processo de supressão e desumanização das raízes culturais foi mantido e até mesmo intensificado no decorrer da história brasileira, resultando em uma sociedade que discrimina as minorias ou que nega a existência dessa prática por entender que já é um fato inerente à realidade. Nesse sentido, é fundamental ressignificar e repensar o sistema educacional para o colocar na direção de uma formação humana em um contexto plural, multicultural, multiétnico. Por isso, enfatiza-se que um dos grandes desafios das instituições escolares é efetivar um ensino que seja culturalmente relevante, e isso só é possível com o desenvolvimento de um currículo multicultural.

É inegável os avanços que as políticas públicas de ações afirmativas para a população negra e indígenas trouxeram para a concretização de práticas de ensino mais alinhadas com as demandas históricas desses povos. De fato, houve uma participação importante de entidades e sujeitos nos órgãos oficiais do Estado, reivindicando espaços e reconhecimento das experiências educativas que se desenvolviam em diversas regiões do país, mas é fundamental reconhecer, diante da intensidade e da duração da marginalização que a população afro-brasileira e indígena sofreu e ainda sofre, que existe um longo caminho de luta a ser percorrido.

REFERÊNCIAS 

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Neste texto a palavra significativo é compreendida como aquilo que se articula com a materialidade da vida do sujeito com a finalidade de contribuir com a análise crítica da realidade e sua transformação.

[1] Doutorando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória; Mestre em Ciência, tecnologia e educação pela Faculdade Vale do Cricaré; Especialista em História do Brasil pela Faculdade de Nova Venécia e Graduado em História pela Universidade de Uberaba.  ORCID: 0000-0001-5395-4922. Currículo Lattes:  https://lattes.cnpq.br/4999663481287969.

[2] Doutorado. ORCID: 0000-0001-5901-6814. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/4983800954558754.

Enviado:  01 de Março, 2023.

Aprovado:  11 de Abril, 2023.

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Erivelton Pessin

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