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Uso da inteligência artificial: avanços, riscos e desafios relacionados à propriedade intelectual

RC: 145988
1.662
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/administracao/riscos-e-desafios

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

ROCHA, Uelisson Borges [1], SANTOS, Wagna Piler Carvalho dos [2],  NANO, Rita Maria Weste [3]

ROCHA, Uelisson Borges. SANTOS, Wagna Piler Carvalho dos. NANO, Rita Maria Weste.  Uso da inteligência artificial: avanços, riscos e desafios relacionados à propriedade intelectual. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 06, Vol. 03, pp. 137-149. Junho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/administracao/riscos-e-desafios, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/administracao/riscos-e-desafios

RESUMO

Diante do crescente uso da Inteligência Artificial (IA), verifica-se que, em alguns casos, a sua aplicação resulta na produção de criações. Neste artigo, apresentam-se os seguintes questionamentos quanto à aplicação da IA: i) se é capaz de propiciar a inovação; ii) se oferece algum risco de violação aos direitos humanos; iii) se as criações resultantes de sua aplicação são abarcadas pela proteção conferida pela Propriedade Intelectual (PI). Assim, teve como objetivo geral avaliar benefícios e riscos oriundos do uso e desenvolvimento da IA, bem como os desafios relacionados à PI. Como objetivos específicos: a) investigar sobre os avanços inovativos promovidos pelo uso e desenvolvimento da IA; b) identificar riscos decorrentes do uso e desenvolvimento da IA; c) constatar a lacuna nas normas que versam sobre a PI quanto à tutela das criações decorrentes da aplicação da IA. Quanto à metodologia, foi utilizada uma abordagem qualitativa e um trabalho exploratório, por meio das técnicas bibliográficas e documentais. Como resultados, constatou-se que se trata de uma tecnologia em expansão, cuja aplicação vem se mostrando essencial em diversas atividades habituais da sociedade contemporânea. No entanto, apesar do potencial de promover a inovação, pode gerar riscos de violação aos direitos humanos, como exclusão de parcelas da população ao acesso a determinados serviços, reforçar as desigualdades sociais ou mesmo o risco de automação que provoque excessiva extinção de postos de trabalho.

Palavras-chave: Propriedade Intelectual, Inteligência Artificial, Impacto Social, Atualização Legal.

1. INTRODUÇÃO

Por se tratar de uma tecnologia que envolve inúmeras ferramentas e aplicações, o uso da IA vem trazendo grandes benefícios para a sociedade, desde novas e mais rápidas formas de diagnóstico de doenças até facilitar a comunicação por meio de tradutores automáticos. Em contrapartida, deve-se atentar aos possíveis impactos negativos, tais como a exclusão de parcelas da população ao acesso a determinados serviços e o reforço das desigualdades sociais. Além disso, há o risco de automação, que pode gerar uma onda de desemprego em massa pela substituição de humanos por máquinas.

Ademais, partindo do pressuposto de que o uso da IA poderá, em alguns casos, resultar em novas obras e invenções, estas carecem da devida proteção das produções resultantes de sua aplicação, sejam elas de autoria exclusiva da IA ou em conjunto com o intelecto humano (FENG; PAN, 2021). Outrossim, é necessário definir a quem seria atribuída a titularidade dos direitos de Propriedade Intelectual (PI) da produção resultante da aplicação da IA: ao programador, ao usuário, à própria IA ou seria destinada ao domínio público da sociedade.

Vale ressaltar que, em razão da aplicação progressiva da IA em diversas atividades, surge a necessidade de se estabelecer a regulamentação de seu uso e desenvolvimento. Dessa forma, como problema de pesquisa deste artigo, questiona-se se a aplicação da IA tem a capacidade de promover a inovação, se oferece algum risco de violação aos direitos humanos e se as normas que versam sobre PI abrangem as criações decorrentes de sua aplicação.

Diante disso, este artigo teve como objetivo geral avaliar os benefícios e riscos oriundos do uso e desenvolvimento da IA, bem como os desafios relacionados à PI. Como objetivos específicos, buscou-se: a) investigar os avanços inovadores promovidos pelo uso e desenvolvimento da IA; b) identificar os riscos decorrentes do uso e desenvolvimento da IA; c) constatar a lacuna nas normas que versam sobre a PI, no que diz respeito à tutela das criações decorrentes da aplicação da IA.

Para tanto, o artigo apresenta: uma seção introdutória, contendo contextualização, problematização e objetivos; a seção de metodologia; a seção de desenvolvimento, com quatro subseções; e a seção de considerações finais.

2. METODOLOGIA

Com base em documentos publicados em periódicos indexados, bem como em legislações vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, realizou-se esta pesquisa por meio das técnicas bibliográficas e documentais. Trata-se de uma abordagem qualitativa e um trabalho exploratório, pois, segundo Gil (2002), visa proporcionar maior familiaridade com o problema, a fim de torná-lo mais explícito ou estabelecer hipóteses ao estudar determinado fenômeno.

Com o propósito de realizar uma revisão de literatura, construir a análise bibliográfica e estabelecer as discussões sobre a temática em questão, realizou-se uma busca nas bases científicas Web of Science, Scopus, Google Acadêmico e Scielo. Assim, foram explorados artigos, teses, dissertações e monografias que abordassem a regulação do uso e desenvolvimento da IA, bem como a proteção das criações decorrentes de sua aplicação.

Ademais, foi realizada uma revisão técnica em busca de Projetos de Lei sobre a regulação do uso e desenvolvimento da IA, bem como das normas que versam sobre PI. Para isso, foram acessados os sites do Portal da Legislação do Planalto, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

3. DESENVOLVIMENTO

A fim de obter maior familiaridade com o tema e promover as discussões ao longo deste artigo, esta seção será subdividida nas seguintes subseções: 1) compreensão do funcionamento da IA; 2) desafios para regular o uso e desenvolvimento da IA; 3) aplicação da IA visando à produção de obras e invenções passíveis de proteção; 4) atualização da legislação que disciplina a Propriedade Intelectual.

3.1 COMPREENSÃO DO SEU FUNCIONAMENTO DA IA

Segundo Correia (2020), a IA é um sistema (software) que pode ser aplicado a uma máquina (hardware), em que, por meio do processo de aprendizagem e resolução de problemas, simula atividades humanas. Dessa forma, por meio da coleta de informações e do aprendizado gradual a partir do acúmulo de dados adquiridos, são formados os algoritmos para que a IA forneça à máquina a capacidade de executar tarefas e resolver problemas que exigem o uso do que é considerado inteligência (GRIBINCEA, 2020; LUDERMIR, 2021).

Dentre as abordagens e técnicas utilizadas para operar a IA, destaca-se o machine learning, que representa uma forma de incorporar algoritmos que melhoram o desempenho à medida que uma maior quantidade de dados é processada. O resultado será cada vez mais aprimorado (HIGH-LEVEL EXPERT GROUP ON AI, 2019). Em outras palavras, trata-se de uma técnica que permite que algoritmos evolutivos ensinem a máquina quais ações realizar (LUDERMIR, 2021). Assim, por meio do machine learning, por exemplo, um programa se torna capaz de gerar saídas interpretáveis, como sequências de caracteres, imagens ou escalas sonoras, que podem ser textos, pinturas ou músicas pré-determinadas.

Uma técnica de aprendizado de máquina amplamente utilizada para solucionar problemas são as redes neurais artificiais (LUDERMIR, 2021). De acordo com Ludermir (2021, p. 89), elas são “modelos matemáticos que se inspiram nas estruturas neurais biológicas e possuem capacidade computacional adquirida por meio de aprendizado”.

Existem três tipos principais de aprendizado de máquina: supervisionado, não supervisionado e por reforço (HIGH-LEVEL EXPERT GROUP ON AI, 2019). O aprendizado supervisionado refere-se a um modelo pré-definido no qual o algoritmo, com base em resultados conhecidos, ajusta seus parâmetros para determinar a saída para novos valores de entrada. Já no aprendizado não supervisionado, o algoritmo não possui uma referência pré-definida para os valores de saída, agrupando os exemplos fornecidos com base em suas similaridades de atributos. No caso do aprendizado por reforço, o algoritmo baseia-se em uma determinada hipótese que pode ser boa ou ruim, e dependendo da escolha, haverá uma recompensa ou uma punição (PEREIRA et al., 2020; LUDERMIR, 2021).

Dentre as formas de autoaprendizagem, também existe a deep learning, que se caracteriza pelo uso de redes neurais com múltiplas camadas e diversas tipologias (PEREIRA et al., 2020; LUDERMIR, 2021).

Para resolver problemas mais específicos, é necessário o uso de deep neural networks, também conhecidas como redes neurais profundas. Nessas redes, as camadas deixam de ter uma estrutura relativamente conectada e utilizam um tipo de mecanismo chamado de camadas de convolução, que são um tipo específico de rede. Além disso, existem versões profundas com deep convolucional network (LUDERMIR, 2021).

Portanto, existem uma série de mecanismos, possibilidades de funcionamento e aplicações da IA propostas para solucionar problemas nas mais diversas atividades, tais como: em tradutores automáticos, como os tradutores do Google; em reconhecimento facial, como o DeepFace, que identifica rostos humanos em imagens digitais; em diagnósticos automáticos na área da saúde, como o Google Health; em sistemas de recomendação, como o da Amazon (recomendação de livros e produtos em geral), Netflix (recomendação de filmes e séries), Spotify (recomendação de músicas) (LUDERMIR, 2021), entre outros exemplos.

Na subseção a seguir, serão apresentados alguns desafios relacionados à regulação do uso e desenvolvimento da IA.

3.2 DESAFIOS PARA REGULAR O USO E DESENVOLVIMENTO DA IA

Sem dúvida, a IA é uma tecnologia disruptiva que se mostra essencial para o suporte de praticamente todas as atividades habituais da sociedade contemporânea. No entanto, tem causado muita controvérsia e até mesmo certa rejeição devido ao receio da possibilidade iminente de se tornar uma ameaça à subsistência humana (ROCHA et al., 2022b).

Diante disso, Rocha et al. (2022b) defendem que é imprescindível um debate democrático entre os formuladores de políticas, principalmente porque o Brasil, assim como outros países, aderiu aos princípios da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no tocante ao desenvolvimento da IA.

Portanto, no caso de se pretender regular o uso e desenvolvimento da IA, é necessário realizar uma série de debates, com a realização de várias consultas públicas, envolvendo os diversos interessados. Tudo isso com o intuito de potencializar os benefícios e evitar os riscos proporcionados.

Apesar da velocidade com que vão surgindo os avanços tecnológicos, por se tratar de um assunto capaz de causar grandes impactos nas mais diversas áreas do conhecimento e de atuação profissional, não é viável ter uma excessiva pressa na elaboração de um marco regulatório para a IA. Uma regulação precoce e inapropriada poderá gerar efeitos negativos e indesejáveis, como, por exemplo, desacelerar a inovação em atividades que utilizem a IA. Trata-se de uma discussão necessária que deve envolver a ampla participação de todos os interessados (ROCHA et al., 2022b).

Ademais, ao estabelecer a regulação da IA, deve-se buscar equilibrar o controle das pessoas sobre o desenvolvimento dessa tecnologia, visando não apenas potencializar os benefícios sociais, mas também reduzir o risco de automação que resulte em uma excessiva substituição de seres humanos por máquinas.

Rocha et al. (2022b) enfatizam a importância da elaboração de uma regulação que garanta a subsistência humana, resguardando valores como igualdade, solidariedade e paridade. O foco principal deve ser a proteção dos grupos considerados vulneráveis, como crianças, idosos, aqueles historicamente excluídos das conquistas sociais e aqueles que vivem em relações desiguais, como empresários e trabalhadores.

O Brasil está dando os primeiros passos para instituir o Marco Regulatório da IA, com a edição da Portaria Nº 4.617 do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, conhecida como Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA). Essa estratégia já passou por uma alteração por meio da Portaria MCTI nº 4.979, de 13 de julho de 2021, com o objetivo de traçar um plano de desenvolvimento do país nesse âmbito (ROCHA et al., 2022b).

Além disso, há diversos Projetos de Lei tramitando nas Casas Legislativas no âmbito federal que tratam da regulação do uso e desenvolvimento da IA. Alguns deles são de iniciativa do Senado Federal e outros da Câmara dos Deputados. Destaca-se o PL 21/20, que, após sofrer algumas emendas, teve seu substitutivo, o PL 21-A/2020, aprovado em 29 de setembro de 2021. O mesmo foi encaminhado ao Senado Federal, que elaborou uma minuta de substitutivo dos Projetos de Leis nº 5.051/2019, 21/2020 e 872/2021 (SENADO FEDERAL, 2022).

Na subseção seguinte, será abordada a aplicação da IA com o objetivo de produzir criações passíveis de proteção.

3.3 APLICAÇÃO DA IA OBJETIVANDO A PRODUÇÃO DE OBRAS E INVENÇÕES PASSÍVEIS DE PROTEÇÃO

Diante da grande revolução tecnológica vivenciada nos últimos anos, observa-se que as pessoas passaram a buscar obter tudo com muito mais rapidez e facilidade do que antes, o que demanda a utilização de produtos e serviços disponíveis de forma digital, principalmente por meio da aplicação da IA. Portanto, a humanidade está caminhando para uma era em que a expansão dos horizontes de aplicação da IA desencadeia uma nova revolução digital (KHISAMOVA et al., 2019).

Vale destacar que o uso e o desenvolvimento da IA têm o potencial de alavancar a economia brasileira. De acordo com uma pesquisa realizada pela Microsoft, a adoção de IA nas empresas pode não apenas aumentar a produtividade no país, mas também gerar novos empregos. Consequentemente, com a disseminação da IA em várias áreas da economia e em diferentes regiões do país, o Produto Interno Bruto (PIB) se elevaria (MICROSOFT, 2019).

Nesse sentido, verifica-se que os sistemas de IA vêm sendo empregados com diferentes objetivos e em diversas áreas do conhecimento, como na produção de obras passíveis de proteção por Direitos Autorais (SCHIRRU, 2019) ou na criação de invenções patenteáveis.

Um dos exemplos é o modelo de linguagem artificial chamado GPT-3 (Generative Pre-trained Transformer), desenvolvido pela empresa OpenAI (ESR, 2023), o qual consegue criar sequências de caracteres ou palavras a partir de redes neurais alimentadas por uma rede de dados (textos já produzidos por humanos). Assim, com instruções iniciais e utilizando palavras disponíveis em todo tipo de texto na internet, o GPT-3 faz o resto do trabalho. Ou seja, ao ser inserido no sistema um parágrafo com determinada ideia, que após ser interpretada pelo programa, são geradas palavras-chave para compor um texto (QUARESMA, 2021).

Como exemplo de criação de pinturas, temos a Ai-Da. Criada em 2019, a Ai-Da é o primeiro robô artista ultrarrealista do mundo, capaz de desenhar e pintar “usando câmeras” em seus olhos que, em conjunto com algoritmos de IA, processam a imagem e comandam os braços robóticos para realizar a arte (AI-DA ROBOT, 2020). O processamento da imagem é feito por IA, mas o algoritmo de processamento possui pré-treino supervisionado, inclusive do que é rotulado como “ultrarrealismo” por seres humanos.

Outro exemplo interessante é o projeto The Next Rembrandt, por meio de um sistema que foi desenvolvido para analisar parte das pinturas de Rembrandt van Rijn e reproduzir suas técnicas em uma nova pintura, sem copiar nenhum dos trabalhos existentes (MICROSOFT, 2016).

Um exemplo curioso é o sistema DABUS, cuja sigla em inglês significa “Dispositivo para Inicialização Autônoma de Consciência Unificada”. Criado por Stephen Thaler na Universidade de Surrey, o sistema usa redes neurais e é capaz de gerar novas ideias por meio de interconexões. A partir da interconectividade e da inovação acelerada, o DABUS conseguiu criar duas novas invenções: um recipiente para alimentos líquidos baseado na geometria fractal e um dispositivo que pode auxiliar em emergências de busca e salvamento (WIPO, 2019).

Entretanto, surgem grandes desafios para o Direito no que se refere à Propriedade Intelectual (PI) (BOFF; ABIDO, 2020), a fim de decidir sobre questões relacionadas à titularidade dessas criações e estabelecer a devida proteção das obras e invenções por IA.

Trata-se, portanto, de uma evidente lacuna, visto que a aplicação da IA tem o potencial de gerar criações, e a proteção conferida pela PI não abrange tais criações, uma vez que, com base na legislação específica, não é possível atribuir à IA a autoria das criações resultantes de sua aplicação.

Ademais, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, a personalidade jurídica é conferida apenas às pessoas naturais e às pessoas jurídicas, a fim de que elas tenham o status de sujeitos de direitos e obrigações. Também estão expressamente previstas as figuras dos entes despersonalizados, elencados no art. 75 do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).

Vale ressaltar que, conforme sinalizado por Gagliano e Pamplona (2015), trata-se rol exemplificativo, até porque o inciso IX do aludido dispositivo legal, admite interpretação extensiva:

Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:

(…)

IX – a sociedade e a associação irregulares e outros entes organizados sem personalidade jurídica, pela pessoa a quem couber a administração de seus bens (BRASIL, 2015);

Ocorre que, ainda que fosse o caso de haver uma atualização na legislação que disciplina a personalidade jurídica, admitindo a possibilidade de se atribuir à IA o status de sujeito de direitos e obrigações, haveria a necessidade de se constituir um representante. Como ocorre no caso da pessoa jurídica, que necessita de um representante legal, bem como nos casos de entes despersonalizados que também precisam ter constituídos seus representantes.

Assim, na seção seguinte será abordado o atual cenário da Regulação do uso e desenvolvimento da IA.

3.4 ATUALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO QUE DISCIPLINA A PROPRIEDADE INTELECTUAL

Rocha et al. (2022a) ressalta que a legislação vigente sobre PI foi, por muito tempo, apta a garantir a devida proteção das criações intelectuais, mas em virtude da atual transformação digital e do crescente desenvolvimento tecnológico, já não é mais suficiente.

De acordo com Francis Gurry que durante anos liderou a Organização Mundial de Propriedade Intelectual, afirma que o uso de tecnologias baseadas em IA provocaria grandes mudanças no contexto da PI:

O amplo uso de tecnologias de IA também transformará os conceitos de PI estabelecidos – patentes, designs, obras literárias e artísticas e assim por diante. Isso já está acontecendo, mas é consequência da economia digital, não apenas da IA. Por exemplo, as ciências da vida geram enormes quantidades de dados que têm valor significativo, mas não constituem uma invenção no sentido clássico. Portanto, precisamos descobrir os direitos e obrigações que lhes são inerentes (WIPO, 2018, on-line).

Portanto, surgem desafios ao Direito de Propriedade Intelectual no sentido de ampliar a proteção em futuras situações com certo grau de complexidade, como no caso em questão (BOFF; ABIDO, 2020).

O ordenamento jurídico deve passar por uma modernização imediata sobre esta matéria. A legislação em vigor que rege a PI precisa ser urgentemente alterada, pois as tecnologias estão se desenvolvendo de forma acelerada. Para que se tenha sucesso na regulamentação legal em todos os aspectos dessa área, é necessário elaborar um planejamento para o futuro. Ou seja, deve-se levar em consideração o progresso tecnológico e o possível surgimento de novas tecnologias baseadas em IA cada vez mais avançadas (GRIBINCEA, 2020).

Isso porque, de acordo com as normas que versam sobre a PI, é reconhecida a proteção das obras intelectuais e invenções consideradas criações do espírito (ROCHA et al., 2022a).

No entanto, segundo Rocha et al. (2022a), é de extrema importância a definição da autoria das criações decorrentes da utilização de sistemas de IA, para que então seja atribuída a titularidade dos direitos autorais e, consequentemente, se desfrute dos benefícios propiciados por tal proteção.

Diante disso, Rocha et al. (2022a) sugere que a discussão a definição do titular dos direitos de PI das criações decorrentes da aplicação da IA gira em torno das seguintes hipóteses:

A discussão sobre a autoria das obras criadas por IA poderá se estender por muitas décadas. Bingbin Lu (2021) apresenta cinco opções para auxiliar na compreensão da titularidade dos direitos autorais em se tratando de criações originadas por IA, a saber: (a) possibilidade de colocação das obras em domínio público; (b) concessão da autoria a uma máquina ou computador equipado com IA; (c) abordagem do usuário do computador como autor; (d) abordagem do programador como autor de qualquer conteúdo gerado pela IA; e (e) abordagem da autoria conjunta entre a IA e uma pessoa (ROCHA et al., 2022a, p. 1.133).

Portanto, diante do atual cenário em que se pretende estabelecer a regulação da IA, entende-se ser viável tratar dessa questão, a fim de promover uma atualização das normas que abordam a PI, para que as criações resultantes da aplicação da IA também recebam a devida proteção.

Na seção a seguir, serão apresentadas as considerações finais com a síntese das principais conclusões baseadas nos objetivos propostos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da compreensão do funcionamento da IA, foi possível constatar que o uso e desenvolvimento da IA têm se expandido nos últimos anos. Em razão dos avanços inovativos promovidos pela sua aplicação, a IA tem se tornado uma ferramenta indispensável em diversas atividades. Inclusive, em alguns casos, tem dado origem a novas obras e invenções, porém, estas carecem de proteção.

Verificou-se também que se trata de um tema que merece ampla e aprofundada discussão. Isso ocorre em razão dos possíveis riscos muito significativos, como discriminação e exclusão de parcelas da população no acesso a serviços, além de acentuar as desigualdades sociais, caso não seja acompanhada de um arcabouço jurídico de proteção. Ademais, é necessária uma forte política pública que sustente a implantação do Marco Regulatório da IA.

O trabalho incita novas discussões sobre quem detém a titularidade das criações decorrentes da aplicação da IA, visto que as normas vigentes que versam sobre a PI apresentam lacunas quanto a essa definição. Porém, isso é algo necessário para gerar segurança jurídica e promover o desenvolvimento técnico-científico visando à autonomia tecnológica e social da Nação.

Vale ressaltar que, conforme abordado neste artigo, a discussão vai muito além quando se trata da hipótese de atribuir à IA a titularidade dos direitos de PI dessas criações. Apesar de a IA não possuir personalidade jurídica de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, poderia ser considerada um ente despersonalizado, em razão da interpretação extensiva extraída do rol exemplificativo da norma que disciplina a referida matéria.

Sugere-se, portanto, uma atualização legal, a fim de que, a partir de alguma das hipóteses apontadas, a proteção conferida pelas normas de PI possa abranger também as criações decorrentes da aplicação da IA.

Nesse sentido, conclui-se pela personificação da IA possibilitando o reconhecimento da autoria da IA nas obras e invenções decorrentes de sua aplicação, bem como a definição sobre quem seria o seu representante/administrador, detentor da titularidade dos direitos e deveres relacionados à PI.

REFERÊNCIAS

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[1] Mestrando em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia pra Inovação. ORCID: 0000-0001-8648-1949. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/6588460651498307.

[2] Orientadora. Doutorado em Química. ORCID: 0000-0001-7494-5179. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7745470765033035.

[3] Co-orientadora. Doutorado em Química. ORCID: 0000-0003-1666-4963. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3662325407439075.

Enviado: 14 de fevereiro, 2023.

Aprovado: 14 de junho, 2023.

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Uelisson Borges Rocha

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