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Voz, gênero e subjetividade: considerações fonoaudiológicas sobre intervenções com transgêneros

RC: 70444
388
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/voz-genero

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PEREIRA, Daiane Regina [1], PALLADINO, Ruth Ramalho Ruivo [2], CUNHA, Maria Claudia [3]

PEREIRA, Daiane Regina. PALLADINO, Ruth Ramalho Ruivo. CUNHA, Maria Claudia. Voz, gênero e subjetividade: considerações fonoaudiológicas sobre intervenções com transgêneros. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 11, Vol. 18, pp. 149-165. Novembro de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/voz-genero, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/voz-genero

RESUMO

O artigo propõe discorrer sobre a atuação da fonoaudiologia para a saúde da população transgênero, no âmbito do trabalho de redesignação vocal e a correlação com aspectos de identidade de gênero e subjetividade. Participaram da pesquisa seis fonoaudiólogos que atuam na promoção de saúde para população transgênero. Pesquisa qualitativa, realizada por meio da a aplicação de questionário composto por perguntas fechadas e abertas. Os dados coletados a partir do registro das respostas dos participantes foram analisados pela técnica de interpretação de dados análise de conteúdo, conforme proposta de Laurence Bardin (2011). Os resultados permitiram identificar três categorias temáticas relevantes: Vulnerabilidade, Percepção da voz e Aspectos subjetivos. Conclui-se que a atuação da fonoaudiologia no trabalho de redesignação vocal com pessoas transgênero está atrelada às demandas sobre mobilidade de gênero, subjetividade e contexto social da população transgênero.

Palavras-chave: voz transgênero, redesignação vocal,  transexualidade, fonoaudiologia, psicologia.

INTRODUÇÃO

O termo transexualidade é definido como “qualidade do que é transexual”: o prefixo trans indica a ideia de através/além de/para além de e sexual faz referência às características anatômicas e fisiológicas distintivas entre os sexos feminino e masculino (DICIONÁRIO PRIBERAM, 2011). Portanto, o termo indica uma condição que ultrapassa e se destaca da estrutura orgânica. É uma condição, inclusive e sobretudo, de não reconhecimento desta estrutura enquanto corpo, instância fundamental de acolhimento do sujeito seguindo a perspectiva de Dias et al (2018, p. 166) que o “corpo é um território de fronteiras que articula a sua materialidade tanto por meio de traços físicos ou características observáveis como pelos traços demarcados pela linguagem que dá a ele uma capacidade de representação simbólica”.

É importante salientar que a palavra transexual é um termo genérico que caracteriza homens e mulheres transexuais (JESUS, 2012):

Termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Evite utilizar o termo isoladamente, pois soa ofensivo para pessoas transexuais, pelo fato de essa ser uma de suas características, entre outras, e não a única. Sempre se refira à pessoa como mulher transexual ou como homem transexual, de acordo com o gênero com o qual ela se identifica. (JESUS, 2012, p. 15)

Em relação a palavra transgênero, Jesus (2012) orienta que se trata de um termo “guarda-chuva” que acolhe a ampla diversidade de gênero: “conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento” (JESUS, 2012, p. 14).  Neste sentido, este estudo adota o termo transgênero e/ou “trans” como referência às pessoas transexuais.

A literatura sobre transexualidade aponta inúmeros casos de rompimento de fronteiras entre o masculino e o feminino em diversas épocas e culturas. Nessa direção, Bento (2006) faz o seguinte questionamento acerca do alcance histórico da transexualidade: “seria correto afirmar que a experiência transexual esteve presente em outros momentos da história ocidental e em outras sociedades?”.

A experiência de mobilidade e trânsito entre gêneros é antiga e imprecisa, como sugere a citação a seguir:

(…) encontramos referências sobre a transição entre os sexos a partir de Hipócrates e Heródoto (séc. V a. C), que narram a história dos citas (…) povo nômade que originalmente migrou da Ásia central para a Rússia meridional nos séculos VIII e VII a.C. A “doença dos citas”, também mencionada pelo psiquiatra francês Jean-Étiene Esquirol, é igualmente conhecida como “doença feminina”. Os soldados de Cita que marcharam contra o Egito e ousaram saquear o templo de Afrodite foram castigados pela deusa, que lhes tirou a potência. (…). Atribuíam a si (os citas) a falta de virilidade, passavam a executar trabalhos femininos, vestiam-se e falavam como mulheres. Chamados de anarieus, esses homens eram venerados pelos habitantes daquela região, que os reverenciavam com temor. (JORGE; TRAVASSOS, 2018, p.49-50)

Outra referência de mobilidade entre os gêneros são as hijras, comunidade da Índia que apresenta como característica hábitos, traços, sentimentos e comportamentos associados ao feminino (JORGE; TRAVASSOS, 2018). Para a sociedade indiana são consideradas como um terceiro gênero e vivem em clã constituído com regras e costumes próprios. As hijras concedem bênçãos aos casamentos e aos recém-nascidos. Durante os rituais, as hijras verificam o sexo do bebê e se esse for ambíguo – intersexual[4] – são consideradas hijras natas e terão status diferenciado na hierarquia do grupo (JORGE; TRAVASSOS, 2018).

Observa-se, portanto, que o desejo de transicionar entre a face do feminino e do masculino é antigo e sua interpretação varia de acordo com a cultura na qual está inscrito. A transexualidade, compreendida pela perspectiva da nossa época e cultura, está relacionada à intervenção do saber médico/científico que estabelece diagnósticos e tratamentos para os transtornos de identidade: “a exigência de inscrever no corpo as insígnias femininas e masculinas através de cirurgias e hormonioterapia nasceu em um contexto muito específico, do avanço do discurso da ciência no mundo contemporâneo” (JORGE; TRAVASSOS, 2018, p. 53).

Nesse contexto, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) inclui a transexualidade no rol de doenças mentais. O CID-10, em vigor desde 1990, indica que ainda há perspectivas patologizantes em relação a transição de gênero (LIONÇO; CARVALHO; COACCI, 2018). No entanto, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apresentou, em 18 de junho de 2018, a CID-11, que entrará em atividade a partir de janeiro de 2022 (OPAS, 2018). A 11ª edição do CID apresenta uma outra classificação para a transexualidade: a categoria de “saúde mental” no capítulo relativo à “saúde sexual”:

Importante destacar que na nova edição da CID, essas classificações diagnósticas psiquiátricas serão suprimidas. Uma nova classificação emerge, mas não mais como transtorno mental, a incongruência de gênero, uma resposta a luta internacional pela despatologização trans. (LIONÇO; CARVALHO; COACCI, 2018, p. 227)

Ressalta-se que alteração da CID atende uma importante demanda do movimento transgênero internacional e das organizações de travestis e transexuais no Brasil, a saber, a despatologização da transexualidade (MDH, 2018). Ou seja, retirá-la da categoria de patologia é uma das estratégias para desconstruir o estigma que lhe é atribuído (MDH, 2018). Nessa direção, essa mudança pode colaborar para a redução do preconceito sofrido por essa população, sem impedir a oferta de cuidados em saúde sobre o processo de transição de gênero de travestis e transexuais (MDH, 2018).

No contexto brasileiro, a proposta do Ministério da Saúde para o atendimento de pessoas transexuais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) está baseada nos princípios de universalidade, integralidade e equidade de atenção à saúde (ARÁN; MURTA, 2009).

O Processo Transexualizador no SUS foi instituído por meio da Portaria nº 1.707/GM/MS, de 18 de agosto de 2008 e da Portaria nº 457/SAS/MS, de 19 de agosto de 2008. Essas portarias estão pautadas na habilitação de serviços em hospitais universitários e na realização de procedimentos hospitalares (MS, 2018).

(…) De acordo com essa portaria, o Ministério da Saúde reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero são determinantes e condicionantes da situação de saúde, e que o mal-estar e o sentimento de inadaptação em relação ao sexo anatômico dos usuários transexuais devem ser acolhidos e tratados pelo SUS, seguindo os preceitos da universalidade, integralidade e da equidade da atenção. (ARÁN; MURTA, 2009, p. 18).

Em 30 de julho de 2013 foi publicada a Portaria nº 859 que estabeleceu uma linha de cuidado organizada da atenção básica à especializada, sendo esta última focada não somente no procedimento cirúrgico e hospitalar, mas também na estruturação e ampliação dos serviços de atenção ambulatorial (MS, 2018). Em 19 novembro de 2013 foi publicada a Portaria nº 2.803 que redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (MS, 2018).

Contudo, ressalta-se que a Portaria nº 2.803/2013 do MS não inclui fonoaudiólogos na equipe multiprofissional, o que é questionável:

A feminilização ou masculinização da voz envolve o uso não habitual do mecanismo de produção da voz. São necessárias medidas preventivas para evitar a possibilidade de mau uso vocal e danos vocais a longo prazo. Todos os serviços de terapia de voz e comunicação devem incluir uma componente de saúde vocal. (ADLER et al., 2006 apud WPATH, 2017, p. 60)

Aspectos como comunicação e a voz se destacam na proposta da World Professional Association for Transgender Health[5] (WPATH), que inclui a comunicação – verbal e não verbal – como aspecto importante ao cuidado de saúde integral já que é um fator implicado na expressão de gênero (COLEMAN et al., 2012). Nesse documento, afirma-se que pessoas transexuais ou com variabilidade de gênero, que sintam a necessidade, podem desenvolver características vocais e/ou padrões de comunicação não verbal que promovam conforto à sua identidade de gênero (BARROS; CAVADINHA; MENDONÇA, 2017).

De acordo com Rameck (2001) a voz é, cultural e socialmente, um atributo importante no comportamento comunicativo e na percepção de gênero e, assim, a incompatibilidade entre estes aspectos não é desejável na medida em que:

A voz possui um papel extremamente importante na interação social, pois, além de servir como veículo (com seu potencial sonoro/ uso vocal) para comunicar os aspectos verbais, oferece informações sobre as características de identidade e de personalidade de um indivíduo, bem como de sua atitude e emoção (…) a voz tem implicações de construção social sobre a questão de gênero (masculino\feminino). (RAMECK, 2001, p. 38)

Na busca de tal compatibilidade, existem intervenções cirúrgicas na laringe e hormonais para feminização da voz, porém a hormonioterapia feminina não tem efeito sobre a voz após a puberdade (COLEMAN et al, 2012). Por sua vez, o tratamento hormonal com testosterona, no caso de homens trans, promove diversos efeitos na fisiologia e na função vocal para uma voz grave (COLEMAN et al., 2012).

Sendo assim, as intervenções fonoaudiológicas quanto aos aspectos vocais e comunicação podem contribuir para uma transição de gênero efetiva, caracterizando-se como seu principal objetivo a obtenção de padrões vocais e de comunicação tanto mais confortáveis como mais autênticos para a pessoa trans (BARROS; CAVADINHA; MENDONÇA, 2017). Nessa direção, sublinha-se que se a redesignação vocal não for assistida por um fonoaudiólogo especialista, podem ocorrer problemas significativos do ponto de vista tanto da fisiologia quanto da subjetividade desses sujeitos.

Feitas essas considerações, é importante explicitar que, inicialmente, as intervenções fonoaudiológicas quanto à redesignação vocal estavam embasadas na adaptação da frequência fundamental: elevar a frequência fundamental, no caso das mulheres trans, e abaixá-la nos homens trans (AZUL, 2016 apud BARROS; CAVADINHA; MENDONÇA, 2017). Em outras palavras: a altura vocal, ou altura tonal, refere-se à frequência de vibrações das pregas vocais, que gerará a frequência fundamental da emissão – um dos primeiros elementos da voz passível de caracterização de gênero (JACOBS, 2017).

Apesar da relevância contemporânea do tema, ainda são escassas as referências na literatura sobre o trabalho de comunicação e redesignação vocal para pessoas transgênero. Nesta perspectiva, o artigo tem por objetivo caracterizar a atuação de um grupo de fonoaudiólogos no âmbito do trabalho de redesignação vocal com pessoas transgênero na relação identidade de gênero e subjetividade.

MÉTODO

CASUÍSTICA

Participaram da pesquisa 06 fonoaudiólogos, atuantes no âmbito da Saúde Pública, especialmente em hospitais universitários dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, selecionados pelo método de amostragem Bola de Neve.

Critério de seleção: profissionais fonoaudiólogos atuantes na readequação vocal de transexuais. A tabela abaixo caracteriza os sujeitos:

Tabela 1 – Caracterização dos participantes da pesquisa

Fonte: Autor

COLETA DOS DADOS

Os dados pertinentes à pesquisa foram coletados pela aplicação de um questionário composto por três perguntas fechadas e quatro perguntas abertas, elaboradas a partir do próprio objetivo do estudo. As perguntas fechadas se referiram aos seguintes aspectos: ano de conclusão da graduação em Fonoaudiologia, local e tempo de atuação com a população transexual. Para tais perguntas, o registro das respostas foi estabelecido por assinalação. As perguntas abertas se referiram aos seguintes aspectos:  como motivação para atuar com a população transexual e aspectos de percepção da voz feminina e masculina, as quais os participantes puderam responder livremente.

O questionário foi disponibilizado digitalmente para os sujeitos em formato digital por meio da plataforma Google Forms (apêndice 1) e acessado pelos participantes após aceite do termo de consentimento livre e esclarecido – TCLE.

CRITÉRIOS DE ANÁLISE DOS RESULTADOS

Os dados coletados a partir da aplicação do questionário foram analisados pela técnica de interpretação de dados Análise de Conteúdo de acordo com a proposta de Bardin (2011), como se segue:

  1. Pré-análise: inferências sobre os temas que se repetem com frequência a partir da leitura dos textos produzidos pelos participantes;
  2. Exploração do material: elaboração das categorias temáticas com base na frequência de citação de características comuns entre os textos dos participantes;
  3. Tratamento dos resultados: a interpretação dos resultados considerou a validação e significação do conteúdo implícito à fala do participante em relação a fundamentação teórica de embasamento da pesquisa;

RESULTADOS

Os resultados obtidos foram identificados em três categorias temáticas, descritas e ilustradas com fragmentos das respostas dos participantes a seguir.

CATEGORIA TEMÁTICA 1: VULNERABILIDADE

Segundo os participantes, os fatores de dificuldade de acesso aos serviços de saúde, exposição a práticas discriminatórias, marginalização social, sujeição à ataques de violência física e/ou verbal são fatores que circundam a população trans e não devem ser desconsiderados do trabalho em saúde. Neste sentido, segundo os participantes, a contribuição do trabalho fonoaudiológico deve ir além das técnicas de intervenção para redesignação vocal, portanto, o profissional de saúde deve assumir uma abordagem amplificada para as demandas da população trans.

Sujeito 3: Para uma população ainda marginalizada, que carece de todo tipo de cuidado é muito importante um olhar mais amplo.

Sujeito 5: A necessidade é de auxílio a uma população em situação de vulnerabilidade importante, além de discriminada e vítima de violência constante.

Sujeito 2: (fala em relação à motivação para trabalhar com população transexual) (…) as condições de saúde dessa população, a dificuldade em ter acesso aos serviços de saúde.

CATEGORIA 2: PERCEPÇÃO DA VOZ

O ponto principal abordado nesta categoria é a intervenção dos componentes vocais relacionados com a percepção de identificação de gênero. A fala dos participantes em relação aos elementos da voz que contribuem para a identificação de gênero é diversificada. Alguns apontam a agudização ou gravidade (pitch) da voz como fator marcante para a percepção de gênero, já outros destacam componentes como ressonância vocal, prosódia e expressão corporal como pontos relevantes.

Sujeito 1: Para os pacientes (a percepção vocal) está associada ao” pitch” agudo ou grave, para mim à articulação e ressonância.

Sujeito 2: Percebo que (a percepção vocal) a cada dia que se passa mais se distancia da frequência fundamental. (Para mim) Está mais no modo de comunicar, corpo, gestos etc.

Sujeito 5: Até o momento, fica evidente que características de gênero e voz são muito abrangentes e incluem dados de frequência, pitch, articulação, aspectos suprassegmentais da fala, além de prosódia (ritmo, velocidade de fala, curva melódica, prolongamento de vogais, dentre outros aspectos). Mas a identificação do gênero não se limita a essas características, inclui também gestos, expressão facial e corporal – mais específicas, mas também globais.

CATEGORIA 3: ASPECTOS SUBJETIVOS

Essa categoria se refere a preocupação dos profissionais em articular o trabalho de redesignação vocal com os conteúdos subjetivos manifestos pelos pacientes transexuais. Neste contexto, a voz pode representar para pessoas trans, dentre outros fatores, elemento importante para uma performance de gênero capaz de suprimir julgamentos ambíguos. Outros conteúdos retratam a redesignação vocal a partir da visão singular do/da pessoa do que para ele/ela representa o “ser feminina” ou “ser masculino”.

Sujeito 1: Pacientes transgêneros em sua maioria estão em busca da adequação de voz ao gênero que se identificam, em busca de uma passabilidade e em sua maioria são mulheres trans (em relação a demanda para readequação vocal) – então, sim, alcançar uma voz feminina e masculina.

Sujeito 2: Algumas ainda procuram ter uma voz mais feminina ou masculina, mas a maioria busca por uma voz passável socialmente.

Sujeito 3: Trabalho com a noção que o paciente me traz do que pra ele é ser feminino ou masculino e atrelado a isto as questões orgânicas vão balizando os ajustes laríngeos possíveis. Sentir-se feminina para alguns pacientes é muito mais que ter gestos suaves e delicados e uma voz doce, com controle de intensidade, ajuste de vocabulário e entonação. Para alguns a busca é a não padronização.

DISCUSSÃO

A fala dos sujeitos participantes da pesquisa nos remete a uma questão discorrida na literatura: a vulnerabilidade a que a população LGBT está exposta. Nascimento; Sousa e Barros (2018), citam que transexuais e travestis estão expostos a vulnerabilidade social, o que pode determinar comportamentos de risco atrelados, principalmente, a marginalização e discriminação vivenciados por essa minoria.

Importante destacar que o uso do termo vulnerabilidade pela área da saúde começou no início dos anos 1980, período de intensos estudos sobre a síndrome da imunodeficiência adquirida (aids), compartilhando conceitos da área dos Direitos Humanos (CARMO; GUIZARDI, 2018). O ser humano vulnerável, conforme partilhado pelas áreas da saúde e da assistência social, é aquele que está mais suscetível a danos, uma vez que possui desvantagens para mobilidade social o que caracteriza uma cidadania e qualidade de vida fragilizadas (CARMO; GUIZARDI, 2018).

Não é possível refletir sobre equidade social sem considerar o contexto de vida dos sujeitos. Carmo e Guizardi (2018) destacam:

Quando refletimos sobre justiça social não é possível desconsiderar o contexto de vida dos sujeitos e como tais contextos podem contornar suas formas de expressividade, exercendo influências sobre as maneiras como se posicionam na sociedade e como se enxergam. A omissão e/ou o recuo do poder público em seu papel de proteção social cria ciclos de reprodução de situações de opressão, não só no sentido da desigualdade no acesso a políticas e serviços, mas de cerceamento da livre expressão e lutas dos sujeitos, o que esconde a dimensão coletiva da vivência das populações em contextos de produção de vulnerabilidades. (CARMO, GUIZARDI, 2018, p. 6)

Nascimento et al. (2018) e Garcia et al. (2016) citam que a população de travestis e transexuais está exposta as vulnerabilidades em saúde e comportamentos de risco. A acessibilidade à saúde é atravessada por uma série de iniquidades, violação e obstáculos dinamizados pelo processo de estigma, discriminação e preconceito por essa população. Em resposta a isso, são encontradas nessa população complexos indicadores de saúde: concentração de HIV\Aids entre transexuais e homens que mantém relações sexuais com homens, altos índices de distúrbios mentais e ações suicidas entre jovens e adultos LGBT e maior propensão ao uso de álcool e drogas psicoativas (GARCIA et al., 2016).

No que se refere a categoria percepção de voz, Schneider e Courey (2016) apontam que o pitch é um componente valorizado para a identificação do gênero feminino considerando que o aumento do pitch influencia o grau de feminização da voz. Todavia, adequar o pitch no parâmetro compreendido para voz feminina/aguda (pitch médio feminino não transgênero é de 225 Hz) não garante, necessariamente, o julgamento de ouvintes leigos favorável para voz feminina (SCHNEIDER; COUREY, 2016). De acordo com os autores, outros fatores de composição da voz, como amplitude de tom, entonação, ressonância e a qualidade da voz desempenham papéis variados para a identificação de gênero, como também apontaram alguns participantes.

Ainda nessa direção, a literatura aponta que a autopercepção de pessoas transgênero em relação à sua qualidade de voz é um aspecto fundamental para uma transição bem-sucedida. A relação autopercepção de voz e qualidade de vida é recorrente na literatura e na opinião de especialistas, porém há carência de estudos dessa natureza quando se explora a autopercepção de voz de pessoas trans. Segundo Hancock et al. (2011), os estudos sobre autopercepção de voz e satisfação tem sua potencialidade nas questões relacionadas aos distúrbios de voz e não necessariamente na influência da voz relacionada à identidade de gênero.

Barros et al. (2017) citam que estudos sobre a voz de homens trans são escassos, o que pode estra relacionado ao fato científico de que os homens trans não teriam problemas vocais ou necessidade de atenção relacionada a voz devido a administração do hormônio testosterona que levaria a uma transformação satisfatória de suas estruturas de produção vocal e, consequentemente, da sua voz. Porém, a hormonioterapia não garante, necessariamente, satisfação quanto a nova voz (BARROS; CAVADINHA; MENDONÇA, 2017).

A transição de gênero de masculino para feminino exige ajustes mais complexos para a adequação da voz à nova identidade social – a voz masculina possui padrões de ressonância, velocidade de fala, intensidade, pitch e outras características suprassegmentais que a diferem da voz feminina (SCHMIDT, 2018). O sujeito 1 pontua que há uma tendência pela busca de uma voz idealmente feminina ou masculina, sendo esta uma demanda expressiva das mulheres trans. Schmidt (2018), reafirma tal fala: “a adequação da voz é uma das principais questões que as mulheres transgênero enfrentam durante a transição, e a satisfação ou insatisfação com esta vem a ser um importante parâmetro de como as políticas de transição de gênero estão funcionando no país”.

A implicação dada pelo sujeito 5 de que a identificação de gênero não se limita aos atributos da voz e/ou da fala, sugere que a composição do cuidado para a pessoa trans pretende incorporar não apenas metas objetivas, ajustes de frequência, por exemplo, mas também aspectos subjetivos.

Diante das questões subjetivas, destaca-se o desejo de passabilidade – termo usado na comunidade transgênero e que implica em determinado indivíduo trans “passar”, ser identificado pelo gênero por ele assumido (PONTES; SILVA, 2018). Os sujeitos 1 e 2 também ressaltam a preocupação da pessoa trans sobre atingir uma voz “passável socialmente”, portanto, uma voz capaz de suprimir ambiguidades ou incoerências no reconhecimento do gênero feminino ou masculino.

A relevância da voz para homens e mulheres trans convoca a importância da terapia fonoaudiológica ancorada numa abordagem crítica e atenta às questões sociais e subjetivas intrínsecas a expressão de gênero, além dos aspectos singulares da comunicação e da voz.

CONCLUSÃO

A implicação da Fonoaudiologia no processo de transição de gênero representa potencial relevante para a promoção da saúde de pessoas transgênero. Os sujeitos participantes da pesquisa compartilharam conceitos e pontos de vistas sobre a redesignação vocal que, apesar de não homogêneos, apontam para modos de intervenção fonoaudiológica que privilegiem não somente a diversidade de gênero como a singularidade de cada sujeito.

Nesse contexto, cabe pontuação final sobre a não referência explícita à Fonoaudiologia nas portarias de viabilidade do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Sugere-se, assim, a intensificação de pesquisas fonoaudiológicas que ressaltem e questionem tal lacuna.

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RAMECK, Maruska Freire. Dinâmicas da voz e do gênero: uma questão de poder. São Paulo, 2001. 230 f. Tese (Doutorado em Fonoaudiologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.

SCHMIDT, Jeanne Gabriele et al. O desafio da voz na mulher transgênero: autopercepção de desvantagem vocal em mulheres trans em comparação à percepção de gênero por ouvintes leigos. Rev. CEFAC, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 79-86, 2018.

SCHNEIDER, Sarah; COUREY, Mark. Transgender voice and communication – vocal health and considerations. Disponível em: <https://transcare.ucsf.edu/guidelines/vocal-health>. Acesso em 10 jul. 2019.

TRANSEXUALIDADE. In: DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. Priberam Informática, 2011. Disponível em <https://dicionario.priberam.org/transexual>. Acesso em: 4 mar. 2019.

APÊNDICE

APÊNDICE – REFERÊNCIAS DE NOTA DE RODAPÉ

4. Intersexual é uma nomenclatura nova que se refere aos hermafroditas, portanto, indivíduos que apresentam órgãos reprodutores ambíguos. (JORGE; TRAVASSOS, 2018; p.52).

5. Organização educacional e profissional interdisciplinar sem fins lucrativos dedicada à saúde transgênero. Autoria do guia WPATH seguirá como Coleman et al (2012).

[1] Bacharel em Fonoaudiologia; Mestranda em Fonoaudiologia.

[2] Profa. Assistente – Doutor da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC/SP.

[3] Profa. Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC/SP.

Enviado: Junho, 2020.

Aprovado: Novembro, 2020.

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Daiane Regina Pereira

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