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A responsabilidade médica pelas consequências da recusa de transfusões sanguíneas por adeptos da religião Testemunhas de Jeová

RC: 25951
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/responsabilidade-medica-25951

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

REGO, Heberth de Jesus Sales [1], SILVA, Jessica Moia da [2], BONNA, Alexandre Pereira [3]

REGO, Heberth de Jesus Sales. Et al. A responsabilidade médica pelas consequências da recusa de transfusões sanguíneas por adeptos da religião Testemunhas de Jeová. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04, Ed. 02, Vol. 02, pp. 25-42. Fevereiro de 2019. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/responsabilidade-medica, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/responsabilidade-medica-25951

RESUMO

O tema abordado neste artigo científico tem por finalidade analisar a relação médico e paciente, visando inferir se existe responsabilidade, civil ou penal, do médico ao realizar transfusão sanguínea diante da recusa dos pacientes que são adeptos da religião Testemunhas de Jeová. Os adeptos da religião Testemunhas de Jeová possuem uma concepção bíblica que os leva à recusa de qualquer tratamento médico que envolva transfusão sanguínea, pois para estes sectários, o sangue é considerado sagrado aos olhos de Deus, levando-os a abstenção deste. Portanto, os adeptos desta religião optam por tratamentos médicos alternativos desde que não sejam oriundos de sangue. No aspecto jurídico, esse contexto é bem complexo, pois instaura grande divergência entre as opiniões médicas, jurisprudenciais e de doutrinadores jurídicos. Diante disso, verifica-se a importância de debater-se sobre tal assunto, fazendo uma análise na relação médico e paciente, além de atentar para a existência de um possível conflito entre os direitos e garantias fundamentais do ser humano, amparados na Constituição Federal Brasileira de 1988, precisamente no caput do artigo 5º, onde podemos encontrar a proteção dada à vida e à liberdade; no inciso VI, do referido artigo, a legislação assegura a proteção ao direito à liberdade de crenças. Ao tratar de temas como esse, onde ocorrem conflitos de direitos fundamentais, o Estado fica incumbido de proteger, quando necessário, a garantia dos direitos assegurados ao cidadão. Desta forma, o presente artigo abordará estes conflitos de direitos fundamentais e analisará de forma sistemática a conduta médica a ser tomada diante destes casos com base no estudo das Responsabilidades Civil e Penal médica ao realizar transfusão sanguínea contra a vontade do paciente devido a sua convicção religiosa.

Palavras-chave: Testemunhas de Jeová, Transfusão sanguínea, Responsabilidade Médica, Religião, Direitos Fundamentais.

1. INTRODUÇÃO

A análise da responsabilidade médica pelas consequências da recusa de transfusões sanguíneas por adeptos da religião Testemunhas de Jeová remete ao confronto entre a crença religiosa, a autonomia do paciente e o ato médico, no qual todos os envolvidos possuem respaldo na lei, este tornou-se um assunto polêmico e complexo na sociedade civil, fazendo com que muitos casos acabem sendo levados ao Poder Judiciário. O conflito instaura-se diante dos princípios que se divergem, são eles: a liberdade de crença religiosa, a autonomia sobre o próprio corpo e a ética médica para salvar vidas. Ao se tratar de temas como esse, que ocorrem conflitos de direitos fundamentais, fica o Estado incumbido de proteger, quando necessário, a garantia dos direitos assegurados ao cidadão.

A pesquisa apresentará uma análise dos direitos e deveres dos médicos, assim como os direitos que amparam a recusa por partes dos adeptos da religião em estudo, buscando responder o problema central: A recusa pelo adepto da religião Testemunhas de Jeová diante da transfusão sanguínea gera responsabilidade civil e penal médica?

A partir daí, buscaremos esclarecer as seguintes questões que norteiam a pesquisa: Qual procedimento deve ser adotado diante da recusa à transfusão sanguínea por um paciente adepto da religião Testemunha de Jeová? O médico que realizar a intervenção deve responder civil e penalmente? Como resolver o conflito entre o direito à vida e odireito à liberdade de crença religiosa? A pesquisa tem como objetivo analisar a responsabilidade médica diante da recusa de transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová, identificar os efeitos civis e criminais resultantes deste ato e analisar o conflito entre os direitos fundamentais que envolvem este tema.

Para levar a efeito a pesquisa e realizar o estudo para responder o problema colocado, foi utilizado o método indutivo, onde as realidades dos fatos foram observadas e daí tirado as conclusões necessárias, fazendo uma abordagem qualitativa com a finalidade de averiguar se existe ou não a responsabilidade civil e penal do médico, quando este realiza a transfusão hematológica mediante a negativa do paciente. Para tanto, foram utilizadas pesquisas bibliográficas de doutrinas específicas de Responsabilidade Civil e Penal, bem como da Constituição Federal Brasileira, teorias de autores renomados e decisões jurisprudenciais.

As teorias, conceitos e análises presentes no artigo estão distribuídas em três tópicos: o primeiro, “A relação médico e paciente diante da recusa de transfusões sanguíneas por convicções religiosas”, apontará as teorias e princípios que fundamentam a recusa por parte dos religiosos, bem como o procedimento a ser adotado pelo médico diante de tal situação; o segundo intitulado “Responsabilidade médica”, abordará os efeitos civis e penais, sofridos pelo médico, em conseqüência da recusa de transfusão sanguíneas pelos adeptos da religião Testemunhas de Jeová; e por fim, o terceiro tópico “Análise e interpretação dos dados” fará considerações sobre os principais elementos e princípios que norteiam a pesquisa.

2. A RELAÇÃO ENTRE MÉDICO E PACIENTE DIANTE DA RECUSA DE TRANSFUSÕES SANGUÍNEAS POR CONVICÇÕES RELIGIOSAS

A recusa dos adeptos da religião testemunha de Jeová em receber transfusões sanguíneas sempre foi objeto de muita polêmica e críticas, despertando a atenção dos meios de comunicação social e acarretando debates entre a comunidade médica e jurídica.

A saúde, na Constituição Federal Brasileira é considerada direito social contida no artigo 6° entre os demais direitos sociais, como educação, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, à infância e a assistência ao desamparado, portanto é considerada também um importantíssimo bem jurídico da personalidade, logo, ter saúde é possuir condições mínimas de dignidade física e psíquica a fim de se enquadrar em uma sociedade de direitos, sendo essencial ao ser humano, por este motivo a sua importância como um direito de personalidade estando diretamente ligada com o direito à vida.

O presente artigo enfatiza a recusa do tratamento médico na hipótese em que uma atividade prestacional obrigatória (dever do médico em realizar a transfusão sanguínea), na efetivação do direito à saúde, surge contrapondo uma liberdade negativa, ou seja, quando um paciente não deseja se submeter a este tratamento médico por convicções pessoais.

O direito à vida é um princípio amplamente protegido na Constituição Federal do Brasil juntamente com o direito à liberdade de crenças religiosas, contudo, tais princípios se contrapõem quando se analisa o direito de recusa à transfusão sanguínea por motivos religiosos.

A religião das Testemunhas de Jeová defende um dogma bíblico que impede a aceitação de transfusões sanguíneas, pois segundo os adeptos, a alma do ser humano está presente no sangue e ao submeter-se a uma transfusão seria aceitar o recebimento da alma de outra pessoa juntamente com os seus pecados. Portanto, há passagens bíblicas que dissertam expressamente a proibição da utilização de sangue para consumo e, conseqüentemente, estende esse conceito para a transfusão sanguínea, conforme consta nas passagens bíblicas: Gênesis (9: 3-4), Levítico (17: 10) e Atos dos Apóstolos (15: 19-21).

De acordo com o livro de Gênesis:

Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde. A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis. (GÊNESIS 9:3,4).

O livro de Levítico:

E qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que comer algum sangue, contra aquela alma porei a minha face, e a extirparei do seu povo. (LEVÍTICO 17:10)

E de acordo com o livro Ato dos Apóstolos:

Por isso julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus.Mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, da fornicação, do que é sufocado e do sangue. Porque Moisés, desde os tempos antigos, tem em cada cidade quem o pregue, e cada sábado é lido nas sinagogas. (ATOS 15:19-21).

Portanto, com base nestas passagens da Bíblia, os adeptos da Religião Testemunhas de Jeová fundamentam sua recusa de transfusão sanguínea, pois segundo seus dogmas, trata-se de um pecado gravíssimo. Para os adeptos, a rejeição de tratamento com uso de sangue e derivados, seja qual for a circunstância, é ponto fundamental de seus preceitos religiosos.

A liberdade de consciência e de crença, alinhadas à supremacia da liberdade de manifestação do pensamento, completam o princípio de que nenhuma pessoa pode ser obrigada a fazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser por força de lei e tal princípio está assegurado na Constituição Federal do Brasil. Portanto, ninguém pode ser constrangido a renunciar sua consciência, sua fé e seus princípios religiosos, pois caracterizaria uma violação do direito de liberdade de escolha e iniciativa de querer e decidir, pois liberdade religiosa e de manifestação são direitos invioláveis. (LOPES, 2009)

Evidentemente que a Administração Pública não possui a prerrogativa de avaliar e fazer julgamentos de valores religiosos, mas respeitá-los e preservá-los, conforme o ponto de vista do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (2001), fundamentado em um parecer jurídico dado à Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová através da Revista dos Tribunais:

[…] o paciente tem o direito de recusar determinado tratamento médico, no que se inclui a transfusão de sangue, com fundamento no art. 5º, II, da CF. Por este dispositivo, fica certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (princípio da legalidade). […] Como não há lei obrigando o médico a fazer a transfusão de sangue no paciente, todos aqueles que sejam adeptos da religião ‘Testemunhas de Jeová’, e que se encontrarem nesta situação, certamente poderão recusar-se a receber o referido tratamento, não podendo, por vontade médica, ser constrangidos a sofrerem determinada intervenção. […] Mesmo sob iminente perigo de vida, não se pode alterar o quadro jurídico acerca dos direitos da pessoa.

O renomado constitucionalista também elaborou um parecer quanto aos casos de recusa em que envolve menores incapazes, afirmando que, quanto aos pais ou demais responsáveis, é preciso deixar certo que não há negligência ou qualquer espécie de culpa quando solicitam aos médicos que usem meios alternativos para o tratamento de sangue em seus filhos. A recusa a uma determinada técnica médica, pelos pais ou responsáveis, quando não se têm outros meios que atinjam melhores resultados do que a técnica padrão, não é suficiente para configurar a culpa em qualquer de suas modalidades.

[…] Em verdade, o que os pais querem é salvar a vida dos seus filhos por métodos alternativos, sem que com isso tenha-se de pagar um alto preço que seria a violação de princípios religiosos que lhe são por demais caros.(Direito de Recusa de Pacientes Submetidos a Tratamento Terapêutico às Transfusões de Sangue, por Razões Científicas e Convicções Religiosas – Parecer jurídico dado à Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová – RT 787, pp. 506).

Portanto, contrariar a livre decisão do paciente, seu familiar, responsável ou representante legal, se incapaz ou incapacitado de consentir, será constranger ilegalmente e assumir o risco de responder civil e penalmente.

Os praticantes da Religião Testemunhas de Jeová, movidos pelo desejo de verem preservados seus princípios religiosos, costumam transportar um cartão de identificação ou uma declaração onde afirmam não admitir procedimentos terapêuticos que envolvam transfusões de sangue, objetivando, também, tranqüilizar os médicos, tentando isentá-los da responsabilidade por qualquer resultado adverso proveniente da recusa, apresentando sempre este documento ao serem internados em um hospital.

Porém, estas medidas não são suficientes para eximir o médico da responsabilidade civil e criminal ao se defrontar com situaçõesonde a vida do paciente dependerá inteiramente do seu agir. Entretanto, há situações em que o profissional precisa fazer o que entende ser correto para salvar a vida do enfermo, mesmo contra a sua vontade ou dos familiares.

As Testemunhas de Jeová criaram uma rede mundial de Comissões de Ligações com Hospitais (COLIH), incumbidas de orientar equipes médicas sobre alternativas para evitar a hemotransfusão ou ajudar pacientes que desejam ser transferidos a hospitais que usam procedimentos alternativos. Contudo, quando for realmente necessário tornando-se realmente impossível retardar o procedimento para a utilização de outro meio substitutivo ou alternativo face ao risco da morte inevitável que sobrevirá ao paciente, o médico não se submeterá a constrangimentos e deve efetuar a transfusão, mesmo sem consentimento, pois, se deixar de aplicar aquele tratamento e o paciente falecer, estará sujeito a sérias consequências legais.

O Conselho Federal de Medicina editou uma resolução orientando o médico a como deve proceder quando tratar de pacientes que, por motivos diversos, inclusive de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue. As diretrizes são estas:

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º- Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º- Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. (RESOLUÇÃO CFM nº 1.021/80)

Havendo tempo hábil sem causar riscos ao paciente, o respeito ao direito de crença deverá ser preservado e o primeiro procedimento a ser adotado pelo profissional será buscar um tratamento alternativo. Esta medida é a que mais se compatibiliza com as normas médicas e com os direitos do paciente, assegurados pela ordem constitucional. Sendo aconselhável, entretanto, que o médico ou o hospital tomem nota destas observações no prontuário médico e, sempre que possível, obtenham do doente, familiares ou responsáveis, uma declaração registrando a recusa de submeter-se ao tratamento proposto. (LEME, 2005)

Em regra geral, mesmo com divergência de algumas decisões e opiniões doutrinárias, a jurisprudência tem decidido que o direito à vida se sobrepõe à liberdade de crenças, baseada no entendimento de que as convicções religiosas não podem prevalecer perante o bem maior que é a vida. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, independentemente do consentimento e mesmo contra a vontade deste, familiares ou responsáveis, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Significa dizer que, presente o perigo de morte, o médico tem o direito-dever de agir em benefício do paciente para lhe salvar a vida.

A liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. (DWORKIN, 2001)

As Testemunhas de Jeová dogmatizam a crença religiosa de que introduzir sangue no corpo pela boca ou pelas veias contraria as leis divinas previstas em inúmeras passagens bíblicas. Daí a interdição à transfusão de sangue humano, que não pode ser excepcionada nem mesmo em casos emergenciais, nos quais exista risco de morte. Por essa razão, os adeptos desta religião somente aceitam submeter-se a tratamentos e alternativas médicas compatíveis com a interpretação que fazem das passagens bíblicas relevantes. (LEME, 2009)

A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira.

Não cabe ao Estado interferir no mérito da convicção religiosa, bastando penas constatar a sua seriedade. Em outras palavras, o que interessa não é julgar o que está certo ou errado nos dogmas sustentados pelas Testemunhas de Jeová, mas sim o direito, ostentado por cada um de seus membros, de orientar sua própria vida segundo esse padrão ético ou abandoná-lo a qualquer momento, segundo sua própria convicção. A proteção seletiva excludente a determinados dogmas religiosos equivaleria à negação da liberdade de religião e do pluralismo, violando a exigência de que os diferentes grupos sociais sejam tratados com igual consideração e respeito. (BASTOS, 2001)

Admitindo que o artigo 5º da Constituição Federal normatiza como inviolável a liberdade de consciência e de crença, o mesmo dispositivo legal dispõe, no entanto, que ninguém deverá ser privado de seus direitos por motivos de crença religiosa ou de convicções filosóficas ou política. Portanto, mesmo que haja previsão constitucional acerca do direito à crença, vale ressaltar que nenhum direito é absoluto, pois encontra limites nos demais direitos igualmente consagrados na Constituição Federal. Assim, havendo conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, deve ser utilizado a ponderação ou método de harmonização, partindo da análise que a Constituição Federal também protege o direito à vida (AMARAL, 2009).

O direito à vida é pressuposto material do exercício dos demais direitos, constitui antecedente lógico do direito fundamental à liberdade e apenas será por este sobrepujado havendo manifestação consciente do paciente, invocando de forma inconteste a sua vontade de não realizar a transfusão, desde que não esteja em estado de perigo iminente. Portanto, nos casos em que é possível o tratamento alternativo, a transfusão sanguínea torna-se desnecessária, prevalecendo a liberdade religiosa do paciente e respeitando-a. Todos os pacientes, nessa condição, são tratados, sem a administração de sangue, por via endovenosa, mediante, principalmente, a infusão de fluidos (soro à base de cloreto de sódio, ringer etc.) e a administração de eritropoitina exógena e de expansores sintéticos de plasma. A terapia transfusional só é utilizada quando há risco de vida e a infusão de fluidos e demais terapias alternativas são insuficientes. Eis que surge, nesse entrave, não apenas um problema médico, mas também jurídico de difícil solução (MENITOVE, 1997).

A vida humana tem que ser o motivo para promover a dignidade sempre com o objetivo de preservá-la, porem respeitando a vontade do indivíduo. Se a testemunha de Jeová for obrigada a realizar o procedimento que viola profundamente suas convicções, poderá até sobreviver à doença ou à operação, porém terá uma sobrevida sem dignidade pessoal, provavelmente apartada de seu meio social, e profundamente abalada em sua integridade, seu amor-próprio, suas perspectivas. (LOPEZ, 2006)

Havendo a recusa do tratamento por parte do paciente praticante da religião Testemunha de Jeová ou de seu representante legal, analisando o caso específico, poderá ser solucionado a critério médico nas situações de emergência, ou através da tutela jurisdicional, quando houver a necessidade de se recorrer a esse meio de resolução de conflitos. Nesse último caso, o médico pode obter uma liminar, autorizando a realização do tratamento. O médico é o único árbitro, que deve tomar as decisões nas situações de emergência em face do iminente perigo de vida, sendo que em alguns casos, não há tempo, para se recorrer ao poder judiciário. (LOPEZ, 2006)

Constantino (1998) interpretou como sendo o médico quem vai definir se é necessária uma transfusão de sangue ou outro tratamento alternativo; sendo a transfusão necessária, o profissional da medicina não pode omitir-se de aplicá-la, em razão da religião de seu paciente, pois a vida é o direito maior, irrenunciável, de ordem pública.

3. RESPONSABILIDADE MÉDICA

O médico, no exercício de sua profissão, deve obedecer aos conceitos éticos interpostos na sua atividade. Ele deve se dedicar, ter respeito pela vida e buscar agir sempre com cautela e diligência, evitando que seu paciente sofra, sinta dor e/ou tenha perdas irreparáveis. Os acontecimentos advindos em virtude de sua profissão, assim como a responsabilidade médica, podem suscitar efeitos nas esferas: civil, ética e criminal.

A responsabilidade médica é tratada desde os primeiros vestígios do Direito, como o Código de Hamurabi, que responsabilizava o médico caso não tivesse sucesso em sua atuação. Atualmente, é comum a incidência de ações na seara jurídica que visam debater a responsabilização médica e, por isso, essa responsabilidade é muito discutida em casos que se cogita a necessidade ou não de realizar o procedimento de transfusão sanguínea em pessoas adeptas da religião Testemunhas de Jeová.

O médico se depara com uma situação bem delicada perante a recusa do paciente por convicções religiosas, pois adota o compromisso profissional e ético de “salvar vidas”, entretanto, por outro lado, o médico, ao realizar a transfusão sanguínea contra a vontade do paciente, estaria realizando um procedimento não consentido, o que pode acarretar consequências de natureza civil e penal.

Desta forma, surge o grande impasse que, de um lado há a autonomia do paciente em não aceitar o tratamento médico por motivo de crença religiosa; e de outro lado há a autonomia do médico em atuar de forma a zelar pela saúde e vida do paciente. Em situações como esta, deve o médico analisar os dispositivos éticos e legais vigentes para dar um direcionamento na sua conduta a ser realizada.

Fundamentalmente, vale ressaltar o artigo 5º da Constituição Federal, que aborda dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, tendo a vida como o principal deles, da qual emanam todos os outros, até mesmo a garantia à liberdade de crença religiosa. A liberdade de crença religiosa abrange a liberdade de cultos, assim como a possibilidade de o indivíduo se orientar de acordo com os costumes religiosos estabelecidos.

3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL

O surgimento da responsabilidade civil se dá a partir do momento em que as regras são violadas, ou seja, há a necessidade de haver o descumprimento de uma norma para que possamos configurar responsabilidade civil. No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade civil está regulamentada no Código Civil Brasileiro, especificamente no artigo 186 dispondo que perpetra ato ilícito aquele que, “[…] por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.”

O Código Civil também regulamenta a responsabilidade civil em seu artigo 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

Para Sérgio Cavalieri (2010), “A responsabilidade civil é a obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”.

Ao analisar o artigo 186 do Código Civil, percebe-se a referência dada a conduta humana (ação ou omissão), a culpa (negligência ou imprudência), o dano e o nexo de causalidade. Portanto, o comportamento humano, seja ação ou omissão, é o elemento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil.

A ação consiste na forma pela qual externamos uma conduta causando dano a outrem ou coisa, já a omissão é a ausência de uma conduta que deveria ter sido praticada. (VENOSA, 2011)

O sofredor do prejuízo deverá identificar o nexo de causalidade do ato lesivo cometido e apontar o verdadeiro culpado, caso contrário, a vítima não conseguirá ser indenizada.

Se o fato ocorrido for eventual ou por força maior, o nexo de causalidade será eliminado, isso porque a relação causa e efeito não existirá nesses casos. O mesmo ocorre se o dano for decorrente de culpabilidade exclusiva da vítima. (CAVALIERI, 2010)

Portanto, a responsabilidade civil possui uma condição essencial que consiste na presença do nexo causal entre o fato ilícito e o dano por ele produzido. Logo, verifica-se a importância da identificação do nexo causal, pois a partir desse processo a vítima conseguirá alcançar a devida indenização.

Partindo para a análise da responsabilidade, identifica-se a forma subjetiva quando o dever de indenizar surgir em razão do comportamento do sujeito que causa danos a terceiros, por dolo ou culpa. Entretanto, na forma objetiva, basta que haja o dano e o nexo de causalidade para existir o dever de indenizar, sendo irrelevante a conduta culposa ou não do agente causador. Logo, para haver a responsabilidade civil subjetiva é necessário que a conduta do agente seja culposa, já na responsabilidade civil objetiva, a culpa é irrelevante. E havendo dano e nexo causal surgirá a obrigação de indenizar a vítima.

A princípio, a responsabilidade médica não decorre de um direito específico da sua profissão, e sim do conceito genérico de responsabilidade, ilustrado na obrigação, atribuída por lei, a quem causa prejuízo a terceiros, de botar o ofendido na situação em que estaria sem a lesão.

Inúmeros processos judiciais tramitam no Brasil buscando a solução para conflitos envolvendo a recusa da transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunha de Jeová. Diversos médicos já foram condenados judicialmente e tiveram seu CRM suspenso por não realizar tais procedimentos por pedido de pacientes praticantes desta religião.

O profissional da medicina, por ter o dever de seguir rigorosamente o seu Código de Ética Médica, é isento de ser responsabilizado civilmente ao realizar a transfusão de sangue contra a vontade do paciente, nos casos de iminente risco de morte, estando apenas cumprindo com sua obrigação ética e legal. (SHYMIDT, 2009)

Conforme entendimento da autora Poliana Shymidt (2009), havendo transferência de sangue endovenosa devido ao risco iminente de morte, sem o consentimento do paciente, estaria o médico respaldado legalmente, pois este ato estaria ancorado pela existência do estado de necessidade do enfermo, afastando, portanto, a responsabilidade civil.

Para os médicos não incorrerem na responsabilidade civil, nos casos de morte ou qualquer outra complicação do paciente, deverá este antes, fornecer uma declaração demonstrando o seu conhecimento com relação as implicações decorrentes da sua recusa à hemotransfusão, ressaltando ser a única maneira de salvar sua vida. (BATISTA, 2011)

Portanto, para averiguar a responsabilidade civil médica, deve-se fazer uma analise quanto a intervenção médica sem o consentimento prévio do paciente, levando em consideração a sua autonomia de vontade e o risco que este paciente pode incorrer devido a esta recusa, pois o ordenamento jurídico tem por objetivo coibir a intervenção que ponha em risco os direitos dos pacientes e ao mesmo tempo proteger a integridade, vida e saúde dos mesmos.

Em detrimento disso, o médico deverá cumprir os acondicionamentos delineados no Conselho Federal de Medicina, bem como no seu Código de Ética. Partindo por esta ótica, inexiste responsabilidade civil do médico quando este realiza a transfusão de sangue contra a vontade do paciente devido a dogmas religiosos, pois este profissional só está cumprindo com o seu dever ético e legal, visando resguardar o bem maior, a vida.

3.2 RESPONSABILIDADE PENAL

Dependendo da conduta adotada pelo médico, diante de um caso em que haja a necessidade de intervenção cirúrgica ou realização de um determinado tratamento, assim como da manifestação da vontade do paciente, pode emergir a responsabilização criminal deste profissional da medicina, tanto por ação, quanto por omissão.

Desta forma, questiona-se a responsabilidade penal do médico ao se deparar com situações em que ele julga necessário a realização de transfusão sanguínea no paciente, e este, por ser adepto a religião Testemunhas de Jeová, não autoriza o procedimento, mesmo sendo alertado pelo médico que corre risco de morte.

Diante de tal entendimento, questiona-se a possibilidade de responsabilização criminal do médico, ao submeter o paciente ao tratamento sem sua autorização ou de um responsável, pelo crime, previsto no art. 146 do Código Penal, de constrangimento ilegal. Observemos:

Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Aumento de pena

§ 1º – As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas.

§ 2º – Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência. § 3º – Não se compreendem na disposição deste artigo:

I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II – a coação exercida para impedir suicídio.

De acordo com o aludido dispositivo, a responsabilidade criminal do médico é extinta quando é realizada a intervenção médica sem o consentimento do paciente ou de seu responsável em caso de iminente perigo de vida.

Além da extinção da responsabilidade criminal quando é realizado o procedimento em caso de perigo iminente de morte ao paciente, o Código de Ética Médica também prescreve que é vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. […]

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Os artigos mencionados acima resguardam o respeito e a defesa da vida do paciente, por outro lado, mostra que, a vontade do paciente ou de seu representante legal não deverá prevalecer em casos de iminente risco de morte.

Assim sendo, com a finalidade de melhorar o entendimento acerca da responsabilidade penal do médico, conclui-se que, se o paciente adepto da religião Testemunha de Jeová encontra-se em estado de vida grave ou apresente sinais de perigo imediato, que de fato é indispensável a hipótese de transfusão sanguínea, é admissível ao médico decidir em realizar à transfusão, sem que venha a ser responsabilizado por isto (França, 2001).

Foi publicado no dia 30 de novembro de 2014, processo de nº 0014859-61.2014.402.5101, da 26º Vara Federal Fluminense, em que a Justiça Federal autorizou transfusão sanguínea em Testemunha de Jeová, que recusou o tratamento por motivos religiosos. Na decisão, prevaleceu o entendimento de que o direito à vida se sobrepõe à garantia dada pela Constituição Federal em relação à liberdade de crença religiosa, desta forma, o hospital não poderia ser responsabilizado e a conduta da equipe médica não poderia ser configurada como crime de constrangimento ilegal.

Diante disso, pode-se observar que os Tribunais Superiores vêm seguindo essa mesma linha de raciocínio, ou seja, a possibilidade de realização de transfusão sanguínea, ainda que contra a vontade do paciente adepto da religião Testemunhas de Jeová, quando houver risco de morte para o paciente. Aludem que a vontade do paciente deve prevalecer somente quando não houver urgência ou perigo de morte, caso em que deverá se buscar tratamento alternativo.

Portanto, mesmo nos casos em que o médico realizar o procedimento de transfusão sanguínea contra a vontade do paciente (nos casos de iminente perigo de vida) não poderá resultar a responsabilidade civil ou criminal, pois estará acatando o que determina o Código de Ética, especialmente o disposto nos artigos 46 e 56. Vejamos:

Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo iminente perigo de vida.

Art. 56. Desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida.

Como visto, os pesquisadores do direito e também os profissionais da área médica defendem o direito do médico em realizar o procedimento de transfusão sanguínea, ainda que contra a vontade do paciente, quando este se encontrar em iminente perigo de morte. Tal posicionamento está amparado no disposto do artigo 146, § 3º, inciso I, do Código Penal, pois sua consulta se justifica, plenamente, em estado de necessidade, que afasta a responsabilidade criminal

4. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Conforme foi abordado anteriormente, podemos observar que há um conflito entre os adeptos da religião Testemunhas de Jeová e os direitos fundamentais, e isto gera uma grande polêmica, não havendo a possibilidade de estabelecer uma solução em favor de um princípio sem que haja o detrimento do outro.

Para levar a efeito a pesquisa e realizar o estudo para responder o problema colocado, através do método indutivo, observamos a realidade dos fatos e o posicionamento dos envolvidos nessa problemática: os adeptos da religião Testemunhas de Jeová, um analista jurídico e um médico. Vejamos alguns relatos.

Os adeptos da religião em estudo, quando indagados sobre a recusa da transfusão sanguínea e a recusa a este procedimento, foram unânimes ao afirmar que procuram o melhor tratamento médico possível, que quando ficam doentes buscam médicos que possuem experiência em realizar tratamentos e cirurgias sem o uso de sangue. Atualmente, esses tratamentos que foram desenvolvidos para ajudar pacientes adeptos da religião Testemunhas de Jeová são utilizados também para beneficiar outros pacientes. Eles defendem a premissa de que qualquer paciente pode optar por evitar os riscos provenientes da transfusão sanguínea, como as doenças transmitidas pelo sangue, reações do sistema imunológico e erro humano.

Posteriormente, quando indagados a respeito de situações em que haja o iminente perigo de morte e que a única alternativa seria a transfusão sanguínea, argumentam que é comum médicos executarem procedimentos complexos, como operações cardíacas e transplantes de órgãos, sem adotar o uso de transfusões sanguíneas. Os pacientes, inclusive crianças, que não aderem à transfusão geralmente têm uma recuperação tão boa quanto, ou até melhor, do que aqueles que recebem transfusão. De qualquer forma, ninguém pode garantir que um paciente vai morrer se recusar uma transfusão ou que vai sobreviver se aceitá-la.

Quanto ao motivo da recusa à transfusão sanguínea, os religiosos dizem existir vários motivos médicos para isso. Entretanto, o mais importante é que Deus determina que o homem deve abster-se do sangue pois ele simboliza a vida, que é algo sagrado para Deus, conforme Levítico 17:11; Colossenses 1:20.

Para conhecermos o outro lado da questão, conversamos com um médico, o Dr. Daniel Cesar Sales da Silva, inscrito no CRM-PA 10.405, Médico do Serviço de Urgência e Emergência do HSM e Médico plantonista da Santa Casa de Misericórdia.

Ao perguntarmos sobre qual procedimento adotaria se estivesse diante de um caso de iminente perigo de morte e que a única alternativa para salvar a vida de um paciente Testemunha de Jeová seria a transfusão sanguínea, Dr. Daniel Silva afirma que seria obrigado a transfundir o sangue para o paciente, uma vez que, sendo este procedimento indispensável para a manutenção da vida do paciente, deixar de fazê-lo seria crime de negligência e omissão, mesmo sendo a vontade do paciente contrária a realização do procedimento.

Sobre a responsabilidade civil do médico que realiza o procedimento sem o consentimento do paciente, ele considera que a ausência de legislação, definindo de forma clara e objetiva, como proceder em tais situações, é extremamente prejudicial a classe médica brasileira. Diz ainda, que a medicina tem como princípio maior preservar a vida de seus pacientes, independente de sua orientação religiosa, e assim é ensinado a todos os médicos formados no Brasil. Se existir exceção a tal princípio, que esta seja colocada de forma clara, em letra de lei, e não a depender da opinião deste ou daquele jurista.

Ademais, como o tema trata-se de um conflito entre direitos constitucionais, conversamos com o Msc. Paulo Mauricio Sales Cardoso, Analista Jurídico do Ministério Público do Estado do Pará e Professor de Direito Constitucional da Universidade da Amazônia.

Ao ser questionado sobre a forma de resolver este impasse que a recusa de transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová nos traz, entre o direito a vida e o direito a liberdade de crença religiosa, Msc. Paulo Mauricio Sales Cardoso diz que quando uma relação jurídica envolve um conflito de princípios de igual nível, no caso, dois princípios constitucionais, a técnica da ponderação pode ser utilizada, a partir das peculiaridades do caso concreto.

Para o constitucionalista, a posição do médico quando ocorre tal conflito é muito delicada, pois o sistema constitucional brasileiro é garantista e prega como regra, a inviolabilidade e a indisponibilidade do direito à vida; embora possa ocorrer o processo contra o médico que realiza o procedimento sem a autorização do paciente, em caso de risco de morte não vislumbra uma possibilidade concreta de condenação do médico, seja no âmbito civil seja no criminal.

Ao se tratar de menor incapaz, em estado de iminente perigo, onde a sua sobrevivência depende de transfusão sanguínea e os pais/responsáveis não autorizam o procedimento, Msc. Paulo Mauricio pronuncia que a Constituição Federal e o ordenamento jurídico brasileiro como um todo tem como princípio basilar a proteção integral da criança, de sorte que, sob o aspecto jurídico, a posição mais consentânea é a inviolabilidade e a indisponibilidade do direito à vida, de sorte que a transfusão de sangue deve ser realizada quando houver risco de vida do paciente.

Diante dos dados analisados, percebemos que embora haja, de forma majoritária, o entendimento de que o direito à vida é superior a todos os direitos, para os pacientes adeptos da religião Testemunha de Jeová, não há vida se eles não seguirem o que está escrito na Bíblia e, partindo desse entendimento, ficamos impossibilitados de definir a importância e/ou a superioridade de um direito sobre o outro.

Cada caso deve ser analisado de uma forma em que os valores e interesses sejam ponderados, para que assim encontre a melhor solução possível de um determinado caso concreto.

5. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, conclui-se que o tema abordado é extremamente delicado e cada vez mais recorrente, estando o profissional médico, obrigado a realizar o procedimento da transfusão sanguínea em pacientes praticantes da religião Testemunha de Jeová, mesmo sem o seu consentimento ou de seu representante legal, nos casos de iminente risco de morte.

Tal entendimento foi concluso com base em análises das legislações que regem sobre a matéria e alicerçadas em decisões jurisprudenciais, além da primazia do princípio constitucional de direito à vida que se sobrepõe ao outro princípio de direito à liberdade religiosa.

Portanto, quando ocorrer situações onde a única alternativa para salvar a vida do paciente é a realização do procedimento de transfusão sanguínea, antes de executá-lo é aconselhável a conversa prévia com o paciente e/ou seu representante legal informando sobre a obrigatoriedade de efetuar este procedimento e o médico deverá, sob pena de ser responsabilizado pelas consequências, proceder a transfusão para tentar salvar a vida deste paciente.

Além disso, o prontuário médico deve conter toda descrição fática, bem como ter o apoio da equipe de saúde atuante, tudo de forma a gerar uma atuação médica ética, legal e transparente para com o paciente.

Contudo, quando ocorrer situações onde não há risco eminente de morte e o paciente necessitar de fluidos sanguíneos, o médico deverá optar por tratamentos alternativos que consistem utilização de fluidos plasmáticos com propriedades similares ao sangue, que segundo alguns especialistas, são mais benéficos e diminuem a probabilidade do paciente contrair outras doenças como HIV, Hepatite, dentre outras.

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[1] Engenheiro Civil, Estudante do Curso de Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, Especialista em Avaliações e Imóveis e Perícias de Engenharia.

[2] Pós-Graduação em Direito e Prática Previdenciária, Pós-Graduação em Direito e Prática Trabalhista, Graduação em Direito, Graduação em Relações Internacionais. ORCID: 0000-0001-6674-2283.

[3] Orientador. Advogado-sócio do Escritório Coelho de Souza. Docente da Universidade da Amazônia – UNAMA/Grupo Ser. Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará, com sanduíche na Universidade de Edimburgo (Escócia). Belém, PA. Brasil.

Enviado: Janeiro, 2019.

Aprovado: Fevereiro, 2019.

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Heberth de Jesus Sales Rego

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