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O questionário online como dispositivo de produção de dados na pesquisa em saúde

RC: 132468
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/o-questionario-online-como-dispositivo-de-producao-de-dados-na-pesquisa-em-saude

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FERIGATO, Sabrina Helena [1], TEIXEIRA, Ricardo Rodrigues [2], MOREIRA JUNIOR, Jair de Souza [3], TOGASHI, Giovanna Benjamin [4], ANDRADE, Andresa Caravage de [5], SANTOS, Rogério da Costa [6], BOARO, Julio [7]

FERIGATO, Sabrina Helena. Et al. O questionário online como dispositivo de produção de dados na pesquisa em saúde. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 11, Vol. 08, pp. 123-150. Novembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/o-questionario-o…esquisa-em-saude, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/o-questionario-online-como-dispositivo-de-producao-de-dados-na-pesquisa-em-saude

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar e discutir uma experiência de aplicação de questionário online (QOL) como dispositivo de produção de dados no universo das pesquisas em saúde. Trata-se de uma pesquisa realizada em uma parceria entre a Faculdade de Medicina da USP e o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, que se propôs elaborar uma nova concepção de questionário online, voltado  à captação da experiência de vida dos respondentes durante o período da pandemia de Covid-19. A partir do referencial teórico-metodológico da pesquisa-intervenção, os resultados dessa experiência apontam para a proposição de um questionário em profundidade, a partir do uso de diferentes técnicas comunicacionais e da incorporação ativa em sua forma e conteúdo de pelo menos 4 dimensões indissociáveis da produção de conhecimento em saúde: (1) sua dimensão ética-investigativa, (2) a dimensão clínica, (3) a dimensão estética-comunicacional e (4) sua dimensão política. Conclui-se que, com o crescente processo de virtualização da vida – que se expressa também nos processos investigativos em saúde – a reinvenção de técnicas de produção de dados online pode se apresentar como uma estratégia para a criação de processos inovadores na produção acadêmica, que permitam o aumento extensivo e plural das amostras, sem a perda da profundidade na produção de conhecimento e cuidado.

Palavras-chave: Questionário online, Métodos de pesquisa, Pesquisa-intervenção.

INTRODUÇÃO

Nas pesquisas em geral, um questionário pode ser definido como “uma técnica de investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentadas por escrito às pessoas, tendo por objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações vivenciadas etc.”(GIL, 1999, p.128).

Na maior parte das vezes, questionários são utilizados no formato estruturado, voltado para pesquisas quantitativas ou mistas com amostras representativas de um grupo ou conjunto populacional, aplicado de forma online ou presencial. No entanto, nas últimas décadas, com o advento da cibercultura e o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de conhecimento, o uso de questionários online (QOL) em pesquisas qualitativas têm crescido exponencialmente, tanto no campo das ciências humanas (MCGUIRK; O’NEILL, 2016), (CHAER; DINIZ; RIBEIRO, 2011 )quanto nas ciências da saúde (RAMJAN; FOGARTY, 2019). Esse fenômeno se agudizou no contexto da pandemia da Covid-19 com a restrição das possibilidades de coleta de dados em contextos presenciais, o que provocou a adoção de novas práticas de produção de dados ou a reinvenção de velhos instrumentos.

As entrevistas presenciais e as observações empíricas são as estratégias mais tradicionais de coleta de dados qualitativos (GRAY; et al., 2020) e tendem a cumprir uma função de aprofundamento em relação ao objeto da pesquisa na perspectiva do participante em interação com o entrevistado, àquilo que normalmente não se alcança em um questionário online (QOL).

Exatamente por isso, o presente artigo tem como objetivo apresentar um processo de construção e aplicação de um questionário que, no âmbito de uma pesquisa-intervenção, enfrentou alguns limites de sua modalidade online a partir da experiência concreta de uma pesquisa quanti-qualitativa em saúde.

Sem a pretensão de substituir a interação presencial entre entrevistadores e entrevistados, propomos introduzir alguns elementos ao QOL, que possibilitem: (a) um maior grau de interação entre participantes e pesquisadores, (b) um incremento de suas possibilidades comunicacionais, (c) a ampliação de seu potencial de intervenção na realidade pesquisada. Com a confluência destas três possibilidades, propomos a constituição do que denominamos como questionário em profundidade.

Embora as formulações conceituais e metodológicas neste artigo possam ser úteis à diferentes modalidades de abordagens de pesquisa que utilizem o QOL como técnica de produção de dados, o plano de fundo teórico-prático que inspirou essa proposição foi o da pesquisa-intervenção.

A pesquisa-intervenção busca promover uma ruptura com os enfoques tradicionais de produção de conhecimento científico, ampliando as bases teórico-metodológicas que compreendem a pesquisa como um dispositivo de transformação da realidade sociopolítica investigada (PAULON; ROMAGNOLI, 2010). Nessa direção, propomos que, mais do que um instrumento de produção de dados, o QOL possa funcionar como um autêntico dispositivo que mobiliza os processos subjetivos dos respondentes.

Para Gilles Deleuze (1990), os dispositivos são máquinas de fazer ver e falar processos que resultam do cruzamento de regimes de visibilidade, de enunciados, de linhas de força (o indizível e o invisível), linhas de objetivação e subjetivação – possíveis dimensões expressivas do próprio problema que se quer analisar em pesquisa.

Nesse sentido, nos importa, além dos dados e resultados que o QOL pode produzir, o seu processo de produção, ou seja, a atividade de construir e responder ao questionário é por nós encarada como uma possibilidade de experiência para pesquisadores e participantes, que pode acessar, em algum grau, os diversos regimes citados.

Propomos construir, junto aos participantes da pesquisa, outros sentidos a serem agregados ao processo de preenchimento de um QOL. Para isso, incorporamos a ele elementos que reafirmam a dimensão da experiência de participar de uma pesquisa. Em uma perspectiva existencial e estética, pretendemos pensar a produção de conhecimento e a construção de seus dispositivos de produção de dados a partir do par experiência-afeto ou, em outras palavras, a partir do par conhecer-cuidar, para nos aproximarmos mais claramente da pesquisa-intervenção em saúde.

Mas como podemos produzir conhecimento-experiência-afeto-cuidado, a partir de um questionário online, sem perder de vista a importância de seu rigor teórico-metodológico e sem descaracterizar esse instrumento? Vamos pensar na problematização dessa pergunta a partir de uma experiência que nos deu algumas pistas para a construção de possíveis respostas…

RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA EM PESQUISA: A CRIAÇÃO DE UM QOL EM PROFUNDIDADE

Para relatar a experiência de produção do QOL em profundidade, apresentaremos, inicialmente, o processo e o contexto de sua construção.

Após meses de experiência coletivamente compartilhada da pandemia da Covid-19, emergiu a necessidade de investigação dos processos de reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia, em um contexto de parceria entre o Departamento de Medicina Preventiva e Social da USP e o Centro de Pesquisa de Formação do Sesc-SP, que pesquisavam as fronteiras entre Saúde e Cultura.

O Sesc-SP e suas unidades se destacam como espaços de produção de atividades culturais e de lazer e, portanto, possuem uma importante vocação para a produção de saúde na medida em que, além de ofertarem serviços de saúde stricto sensu para os comerciários, favorecem a promoção da saúde e a produção de comum para a comunidade em geral, sob múltiplas formas, mas, em especial, ao oferecer espaços de convivência e oportunidades de encontros, mediados por sua ampla oferta de atividades culturais.

Um dos grandes desafios colocados pela pandemia foi exatamente como produzir comum e, dessa forma, saúde, em tempos de restrições de nossas interações, em contexto de distanciamento e de esvaziamento dos espaços públicos de convivência. Pode-se dizer que o objetivo principal da pesquisa foi responder a essa pergunta, baseando-se na hipótese de que a cultura desempenha um papel fundamental nesse processo. Assim, a investigação tratou das múltiplas estratégias de produção de saúde que vêm sendo inventadas em tempos de pandemia, identificando os mundos (os comuns) produzidos nessas invenções e de que modo determinadas “práticas e atividades culturais” participaram dessa produção.

As próprias condições impostas pela pandemia nos conduziram a propor uma forma de produção de dados online. Mas, como não podíamos renunciar aos pressupostos teórico-filosóficos da pesquisa-intervenção que nos conduziram a formular o problema de pesquisa, o grande desafio passou a ser o de elaborar um QOL que fosse capaz, em última instância, de auscultar a normatividade vital sendo exercida e intervir nela/com ela – Retomamos, aqui, o conceito de “normatividade vital”, conforme proposto por Canguilhem inconsciente a certas normas de vida. Por conseguinte, na espécie humana, a frequência estat (2002), para quem a normalidade se constrói como uma relação flexível entre o corpo-organismo e o mundo, sendo o corpo um produto das atividades que ele próprio exerce relacionalmente e, portanto, em constante transformação. Neste sentido:

“Se é verdadeiro que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos traços, revelados por uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas da vida. Por conseguinte, na espécie humana, a freqüência estatística não traduz apenas uma normatividade vital,” (CANGUILHEM, 2002, p. 113).

Nos vimos diante de um grande desafio porque um QOL é um instrumento muito limitado para se investigar quaisquer relações mais sutis e complexas. Assim, para minimizar essa redução de relações complexas a números e gráficos, incluímos, em pontos estratégicos do questionário, sete questões dissertativas, como espaços abertos para o discurso livre.

Sem desconsiderar as reconhecidas limitações de um questionário, buscamos realizar um levantamento sistemático e abrangente de dados estruturados sobre os impactos na vida relacional e afetiva e das transformações ocorridas nos hábitos de vida cotidianos, com destaque para os hábitos de saúde, culturais e de vida digital. Esse levantamento foi enriquecido pelo material textual levantado pelas questões abertas, além de se ter feito uso de outras estratégias ético-políticas que serão aprofundadas a seguir.

Decidiu-se por um estudo transversal, com respondentes selecionados por meio do procedimento de amostragem de tipo snowball, em que os “influenciadores” iniciais foram as redes sociais do Sesc-SP.

Além de satisfazer à necessidade de se levantar um determinado conjunto de dados estruturados sobre o assunto, o QOL foi concebido, elaborado e oferecido aos respondentes como uma trilha de reflexão, de tal forma a lhe conferir um certo valor de uso imediato e, com isso, possibilitar uma maior adesão e maior engajamento na experiência de respondê-lo.

Com as questões estruturadas constituímos um banco de dados que incluiu: dados sociodemográficos, dados sobre os impactos da pandemia na vida pessoal e familiar e dados sobre as mudanças nos hábitos digitais, culturais e de saúde dos respondentes. Com as questões abertas, visamos abrir um espaço para a expressão, por escrito, de narrativas, sentimentos, impressões, reflexões, vivências e outras formas de expressão da experiência através do discurso livre, de tal forma a constituir um banco de dados textuais.

POTÊNCIAS E LIMITES NO USO DE QOL PARA PESQUISAS EM SAÚDE

De modo geral, o uso de questionário na modalidade online apresenta algumas vantagens, como: a tabulação automática e a possibilidade de acompanhamento do campo de pesquisa “em tempo real” e a flexibilidade no preenchimento, com a possibilidade de pausa-lo, o que é especialmente importante nos QOL maiores e mais complexos. Além disso, os questionários são técnicas de baixo custo e grande alcance, e nessa perspectiva financeira ele pode ser também um democratizador da pesquisa (GIL, 1999).

Mas também identificamos limitações em relação a esse dispositivo. Em relação à constituição da amostra, por exemplo, a opção por um QOL já confere uma primeira característica e restrição ao universo dos potenciais respondentes: o acesso à internet. Podemos citar pelo menos outras quatro limitações do QOL como técnica de produção de dados (TORINI, 2016) e como procuramos minimizá-las:

1- Falta de compreensão e habilidade digital dos respondentes: esse componente, somado com a necessidade de acesso a recursos tecnológicos, pode ser um fator de viés nas respostas. Os cuidados para contornar esse problema incluíram: a formulação de perguntas breves, objetivas e concisas, com a maior simplificação e desagregação de itens possível; design da interface simples e amigável e a realização de pré-testes contemplando uma ampla diversidade de respondentes.

2- Baixa taxa de respostas e impessoalidade: A ausência de um entrevistador presente elimina as possibilidades de “persuasão” ou de criar um “ambiente favorável” ao preenchimento. Os cuidados para contornar essa dificuldade incluíram: estratégia de captação de respondentes bem direcionada, intensiva e em rede, utilizando-se dos canais institucionais oficiais relacionados à pesquisa; contorno da impessoalidade através de “convite persuasivo”, conjugado a um conjunto de estratégias para produzir um “ambiente favorável” ao preenchimento do QOL: construímos uma apresentação clara e sucinta do questionário e sua finalidade, somado a introdução de elementos criativos ao questionário cujo preenchimento pôde se tornar uma autêntica “atividade cultural” ou um convite à reflexão sobre o tema pesquisado.

3- Controle amostral – Geralmente, é preciso que o QOL conte com ferramentas de controle de respostas, para evitar, por exemplo, que o QOL seja respondido mais de uma vez pela mesma pessoa, o que pode ser feito por IP, por e-mail, por senha, por CPF, controle de respostas por cookies como forma de assegurar o anonimato dos respondentes, ou ainda, em alguns casos, por checagem de consistência interna das respostas. Em nosso caso, entre ganhos e perdas, optamos por realizar o controle de respostas por cookies, sem qualquer identificação pessoal, mas como um reforço de consistência para evitar envios repetidos pelo mesmo respondente.

4- A possibilidade de os respondentes conhecerem as questões previamente – Em algumas pesquisas, a chance do respondente poder refletir previamente sobre as respostas pode ser um fator de viés, mas não em nosso caso, em que a reflexão prévia não compromete e pode mesmo qualificar as respostas. Por isso, em cada bloco de perguntas, antecipamos de que se tratava o conjunto das perguntas seguintes, construindo uma síntese do que os respondentes encontrariam e o que se esperaria dele em cada bloco.

Além disso, um QOL possui limitações relacionadas às possibilidades de exploração das respostas e do modo como elas se produzem, reduzindo o potencial de investigação das dinâmicas mais complexas que constituem outros procedimentos metodológicos, como as entrevistas em profundidade, por exemplo. Em estratégias como a que propomos, é possível acessar mais o conteúdo do dito do que a experiência de dizer, por isso, também ficam reduzidas (mas não impedidas) as condições dos pesquisadores de interferir nessa experiência.

Em função desses e de outros desafios que pesquisadores enfrentam na elaboração de QOL, a etapa de imersão na formulação das perguntas e na estética do questionário é fundamental, e exige um bom investimento de tempo e colaboração entre os principais interessados e parceiros da pesquisa para adequação das questões ao tema estudado quanto para a criação de condições assertivas para as respostas dos participantes (LIMA, 2016).

QOL COMO TRILHA DE REFLEXÃO

Além da formulação das perguntas, o QOL, com as características aqui buscadas, exige um verdadeiro trabalho de “roteirização”, em que importam a ordem das perguntas dentro de cada bloco, a ordem e a divisão dos blocos dentro do questionário, os elementos selecionados para contextualizar as perguntas e estimular a reflexão para as respostas e outros elementos estéticos mobilizados para que se consiga proporcionar mais do que uma colaboração à pesquisa, mas uma experiência ou, dito de outro modo, a construção de uma autêntica trilha de reflexão e uma experiência cultural.

Antes de ser publicado, sugere-se que o QOL passe por uma etapa de pré-teste, para a detecção de erros de construção, fluxo e dificuldades de compreensão (FAERSTEIN, 1999). Os respondentes do questionário na fase de teste podem ser compostos por referências no tema do assunto pesquisado, profissionais com experiência no uso de QOL e/ou pessoas com o mesmo perfil dos respondentes previstos.

Para potencializar nossa intenção de fazer da participação da pesquisa um processo interventivo, buscamos ampliar o alcance tradicional de ferramentas como essa, incorporando ativamente em sua forma e conteúdo pelo menos 4 dimensões indissociáveis:

(1) A dimensão ética-investigativa, que buscou construir perguntas adequadas para responder ao problema inicial da pesquisa – Para isso, fizemos do trabalho de formulação das perguntas, um processo rigoroso e intensivo de reelaboração intelectual e afetiva dos problemas, incluindo um movimento de construção textual o mais afinado possível em seu potencial de inteligibilidade, simplicidade e assertividade, sem que com isso,  perdêssemos sua capacidade de afetação,  acessibilidade e sua articulação com nossos referenciais teórico-práticos.

(2) A dimensão política, valorizando o potencial crítico de transformação que toda pesquisa pode comportar, de alterar a relação dos participantes com o próprio objeto da investigação, conforme sugerido pelos pressupostos da pesquisa-intervenção.

(3) A dimensão clínica, ao compreender que o processo de produção de conhecimento em saúde, pode também ser um processo de produção de cuidado, na medida em que pode guardar condições de produzir experiências de autopercepção/autoconhecimento, identificação de incômodos, reflexões, nomeação de problemas percebidos, ressignificação e elaboração sobre processos vividos, movimentos de reafirmação ou deslocamentos de si.

(4) A dimensão estética-comunicacional – Para acolher nosso desafio de transformar o movimento de responder a um questionário online em uma trilha reflexiva, incluímos diferentes linguagens e formas de fazer perguntas (questões de múltipla escolha, questões abertas, além do uso de imagens e vídeos).

A incorporação dessas quatro dimensões se atualiza na construção de duas outras estratégias metodológicas: A introdução de vídeos com arte-acompanhantes no QOL e a escolha do encadeamento das questões.

a) A introdução de imagens e vídeos com arte-acompanhantes.

Uma das estratégias transversais a essas quatro dimensões foi a incorporação de um meio de comunicação entre pesquisadores e participantes que expressasse em sua forma-conteúdo as fronteiras entre Saúde e Cultura. Esse dispositivo constituiu-se inicialmente pela introdução de imagens no QOL, especialmente em uma fase de sondagem qualitativa, em que se pretendia identificar os sentimentos e emoções relacionados à experiência pandêmica.

Depois de responder uma série de questões estruturadas referentes aos sentimentos e emoções experimentadas no contexto de distanciamento social imposto, os respondentes foram convidados a selecionar imagens que melhor descrevessem os sentimentos e emoções experimentados na pandemia e, em seguida, relacionar uma palavra ou comentário à essa imagem.

Quando se faz a pergunta diretamente sobre os sentimentos experimentados e se oferece um conjunto de respostas estruturadas e mais a possibilidade de expressar esses sentimentos em linguagem escrita, é possível ainda que afetos importantes fiquem fora do campo de valorização. É possível que se perscrute apenas camadas mais “superficiais”, não no sentido de pouco importantes, mas de mais “visíveis”, mais prontas para serem “ditas”. Oferecemos um espaço para uma associação livre entre imagem e posterior registro na linguagem escrita.

Foram incorporados também a inserção de um vídeo de chamada para a pesquisa e mais oito pequenos vídeos distribuídos ao longo do questionário, protagonizado por artistas e comunicadores, e não por cientistas-pesquisadores.

De acordo com Marconi e Lakatos (2003):

“Junto com o questionário deve-se enviar uma nota ou carta explicando a natureza da pesquisa, sua importância e a necessidade de obter respostas, tentando despertar o interesse do recebedor para que ele preencha e devolva o questionário dentro de um prazo razoável.” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 100).

O primeiro vídeo citado, visou cumprir essa função de chamamento para a pesquisa, incorporando voz, movimento, rostos, afetos, performances a esse chamado, em complementação às notas ou cartas que tendem a acompanhar as pesquisas com uma linguagem acadêmica e nem sempre acessível ao público mais amplo.

O primeiro deslocamento promovido por esse gesto simples de incorporação de vídeos à pesquisa foi introduzir um recurso audiovisual em um QOL e, com isso, construímos uma nova estética para essa técnica de produção de dados, que também minimiza o impacto da ausência de um entrevistador e mobiliza afetos relacionados à performance e texto contidos nos vídeos.

O segundo deslocamento está relacionado à finalidade destes vídeos em sua dimensão estética, pedagógica e clínica. Os vídeos internos, distribuídos ao longo do QOL, tiveram primeiramente uma função didática, no sentido de situar os respondentes sobre as questões de cada bloco, de alguma forma antecipando-as, mas também humanizando-as e introduzindo as questões em processos cotidianos.

A função clínica dos vídeos se inspirou em três dispositivos consagrados no campo da saúde:  Humanização, Acolhimento e de Acompanhamento Terapêutico (AT).

Embora assuma um caráter polissêmico no setor saúde, com a implementação da Política Nacional de Humanização (PNH), a Humanização, passou a ser concebida como um ethos, uma política que transversaliza as relações de cuidado, comunicação, trabalho e gestão em saúde, fomentando trocas solidárias e colaborativas por meio da invenção de um conjunto de princípios e diretrizes que nortearam essa política, como a clínica ampliada, a participação social e a singularização dos processos terapêuticos (BRASIL, 2010).

O Acolhimento é definido como uma das estratégias de humanização em saúde. O acolhimento enquanto dispositivo de uma política pública deve reconhecer a singularidade das necessidades em saúde,  comparecer e sustentar as relações entre pessoas, serviços, ambientes, territórios e seus vínculos, tendo como objetivo a construção de relações de confiança e compromisso (BRASIL, 2010).

Já o Acompanhamento Terapêutico é uma prática clínica em saúde mental, desenvolvida a partir da década de 70 na América Latina, com fortes influências da Psicanálise e dos princípios da Atenção Psicossocial no contexto da Reforma Psiquiátrica, que valoriza a construção de práticas de cuidado em espaços e contextos de vida de quem é acompanhado, fora das instituições de saúde.

A partir dessas inspirações teórico-práticas, a proposta dos vídeos e de seus protagonistas, previu:  Acolher/ aproximar os participantes da pesquisa, acompanhá-los (trilhando junto com cada respondente um caminho reflexivo, articulado às cenas e experiências cotidianas), instigar a presença, a permanência e a duração no processo de responder o questionário.

O terceiro deslocamento produzido pelos vídeos se refere a seus protagonistas, que denominaremos como arte-acompanhantes.

Uma vez que o acolhimento e a humanização dos processos de cuidado e produção de conhecimento são diretamente mediados pelas estratégias de comunicação entre quem cuida e quem é cuidado (no caso de um processo clínico) ou entre quem pesquisa e que é pesquisado (no caso do processo investigativo), a escolha dos protagonistas, bem como sua performance desses vídeos não era indiferente. Por isso, optamos por produzir uma intersecção entre arte/clínica/comunicação ou dito de outro modo entre Saúde e Cultura introduzindo artistas e comunicadores para performar esse acolhimento/acompanhamento audiovisual.

A escolha dos arte-acompanhantes selecionados passou por critérios de representatividade, diversidade, coerência ético-política com a pesquisa e pluralidade de públicos a serem acessados.

Figura 1: card de divulgação do QOL e os arte-acompanhantes participantes

card de divulgação do QOL e os arte-acompanhantes participantes.
Fonte: autores.

A inserção de artistas na pesquisa não mirava apenas uma ampliação das possibilidades de comunicação, mas uma verdadeira intersecção entre Arte e Ciência. O conceito de Intercessão, conforme sugere Deleuze, opera na relação estabelecida entre termos que se intercedem a partir de processos de interferência, de intervenção através da desestabilização de um domínio sobre outro (disciplinar, conceitual, artístico, sócio-político, etc). A relação de intercessão mais do que uma relação de sobreposição ou de aproximação é uma relação de perturbação, de produção de diferença, e não mera troca de conteúdo (DELEUZE, 1992).

Para a roteirização e produção dos vídeos, nos preocupamos também em dialogar com diferentes públicos e com linguagens diversas, proporcionando a livre criação/performance de cada arte-acompanhante. Embora partíssemos de uma padronização do conteúdo dos roteiros, foi estimulada a singularidade de forma/ estilo de cada um na gravação dos mesmos, bem como na escolha de palavras, contextos e exemplos cotidianos. Foi sugerido ainda que os arte-acompanhantes evitassem termos ou falas que induzissem respostas, seja por identificação, seja por rejeição em relação à posição do arte-acompanhante.

A ferramenta utilizada para desenvolver o QOL foi o programa LimeSurvey.

b) A escolha do encadeamento das questões.

A organização e a sequência das questões ao longo do QOL tiveram como inspiração a afectologia de Spinoza (2009), tomando as afecções e os afetos como indicativos da variação da potência de existir. Assim, o questionário se inicia com uma investigação sobre os impactos da pandemia (afecções), posteriormente investiga as reações a esses impactos (paixões) e, por fim, os sonhos e as estratégias cotidianas de reinvenção de si e do mundo em pandemia (ações).

Ao término de cada bloco de questões os participantes tinham a possibilidade facultativa de escrever  livremente sobre aquele bloco. Essa possibilidade de construção de narrativas livres em cada grande etapa do questionário visava proporcionar a possibilidade de registro daquilo que estava fora do campo de hipótese dos pesquisadores. Do mesmo modo, visava escapar à uma resposta estruturada, introduzindo o QOL numa outra política das narratividades, que não se reduzem à suas formas sobrecodificáveis, incluindo mais radicalmente posições narrativas em sua subjetividade:

No trabalho da pesquisa e da clínica é sempre, de alguma forma, de narrativas que tratamos. Os dados coletados a partir de diferentes técnicas (entrevistas, questionários, grupos focais, observação participante) indicam maneiras de narrar seja dos participantes ou sujeitos da pesquisa, seja do pesquisador ele mesmo, que apresenta os dados, sua análise e suas conclusões segundo certa posição narrativa (PASSOS; BARROS, 2009, p. 150).

As narrativas permitem ao participante incorporar exemplos, críticas, ausências, complementações, percepções e cenas, que escapam aos inquéritos ou questões de múltipla escolha, cenas que colocam o problema em contextos singulares dos respondentes, constituídos por ambientes, pessoas, coisas, afetos, ideias, etc…

Ao longo do processo de captação de respostas e experiências, também é possível mensurar o grau de engajamento dos participantes. No caso da pesquisa aqui relatada, que foi a experiência inicial de uso deste tipo de questionário em profundidade, tivemos um total de 5.635 acessos, 1.118 respostas completas, com um tempo médio de resposta de 54,5 minutos.

Estas 1.118 representam 19,8% das 5.635 pessoas que acessaram a primeira página do QOL. O gráfico abaixo, que mostra qual foi a última página do QOL acessada pelos respondentes, indica um padrão muito claro:

Gráfico 1 – Distribuição dos acessos e respondentes

Gráfico 1
Fonte: autores.

Não há uma perda significativa dos respondentes ao longo do questionário, que pudesse indicar um padrão de cansaço e desistência de responder algo mais extenso. Praticamente 80% dos acessos abandonaram o QOL logo na primeira página, onde constam as instruções e o Termo de Consentimento para participação (boa parte destes 80% não são humanos, mas sim robôs que seguem links, principalmente para indexação de conteúdo para motores de busca, denominados crawlers). Os cerca de 20% restantes, que começaram a respondê-lo, demonstraram uma elevada adesão à proposta, quase todos respondendo até o final, com pouquíssimas perdas pelo caminho, a despeito de ser um questionário relativamente longo.

O tempo de resposta foi em média de 54,5 minutos, com uma mediana de 35,9 minutos. Isso significa que 50% dos respondentes levaram menos de 36 minutos para respondê-lo e os outros 50%, um tempo maior, com uma maior dispersão (como se pode ver no gráfico abaixo), puxando a média geral para cima.

Gráfico 2 – Distribuição dos respondentes pelo tempo de resposta

Gráfico 2
Fonte: autores.

Estes números indicam um aspecto importante na caracterização de nossa amostra, que é o grau de engajamento obtido dos respondentes. A Tabela 1 abaixo complementa essa avaliação, mostrando os números e os percentuais de respondentes que dedicaram mais de uma hora, uma hora e meia, duas ou até três horas ao questionário, mostrando também seu possível potencial reflexivo/clínico e suas possibilidades de pausas:

Tabela 1 – Tempo de resposta

Tabela 1: Tempo de resposta N %
> 60 minutos 221 19,7
> 90 minutos 93 8,3
> 120 minutos 61 5,4
> 180 minutos 23 2,1

Fonte: autores.

Um outro indicador especialmente importante desse engajamento são os percentuais de respostas obtidos para cada uma das sete questões abertas (todas de preenchimento não obrigatório) e o volume de texto produzido, conforme apresentado na Tabela 2.

Conseguimos obter um percentual relativamente elevado de respostas, considerando que eram questões de preenchimento não obrigatório. Em especial, em relação às três últimas, que eram das mais importantes para a nossa investigação e nas quais obtivemos os maiores percentuais de resposta, mesmo sendo as últimas questões de um extenso questionário, a serem respondidas por escrito.

Tabela 2 – Respostas às questões abertas

Tabela 2: Respostas às questões abertas N % no de palavras
Emoções e sentimentos experimentados na pandemia 565 50,5 25.021
Mudanças com a virtualização da vida 282 25,2 12.133
Mudanças na relação com o corpo e aparência 197 17,6 8.015
Avaliação do Sesc SP na pandemia 162 14,5 3.776
Invenções, descobertas, aprendizados e conquistas 815 72,9 20.057
Sonhos e desejos para o mundo pós-pandemia 815 72,9 26.982
Como imagina o mundo pós-pandemia 887 79,3 22.086

Fonte: autores.

Essa primeira caracterização da amostra indica que obtivemos não apenas uma amostra quantitativamente expressiva (n = 1.118), mas também com um elevado grau de engajamento dos respondentes na trilha reflexiva proposta, onde pudemos recolher inúmeras reflexões e ricos relatos de experiências relacionadas ao problema da pesquisa.

Além disso, alguns dos retornos que tivemos dos participantes por meio de conteúdo textual, indicam a efetividade do questionário em sua qualidade de intervenção/interferência:

“Que baita pesquisa! Adorei muito. caramba! Saí tocada, transbordando, e espero que essa mensagem leve meu entusiasmo”

“Bah! Terminando agora e impressionada com o efeito desse instrumento! A ideia das celebridades acompanhando é d+ e a estrutura do questionário parece um bate papo íntimo com eles, no meu caso, a Rita”

“Respondidíssimo! Foi quase um desabafo terapêutico! Muito obrigada pela oportunidade dessa experiência. Amei o acompanhamento da Adriana ao questionário”

“To tão injuriado que até chorei respondendo a pesquisa”

“coisa bonita essa pesquisa, heim gente! Muito legal! Fui com meu colega de profissão, Paschoal. Achei muito bonito propor essas reflexões enquanto pesquisa e aos próprios pesquisadores”

“Respondi em 43 mints, mas não senti que durou tudo isso, por que foi bacana escrever sobre essa experiência da pandemia. Além de tudo, ficou bem fluido com a Rita, bem leve. Algumas perguntas me fizeram refletir bastante sobre a vida.”

POSSIBILIDADES PARA A ANÁLISE DE DADOS PRODUZIDOS EM UM QOL EM PROFUNDIDADE

Convencionalmente, os dados produzidos por meio de QOL costumam ser analisados através de estatísticas descritivas (dados quantitativos) e/ou por meio de diferentes técnicas de análise de conteúdo (dados qualitativos) (RAMJAN; FOGARTY, 2019).

Seguindo essa tendência, utilizamos 4 planos de análise:

(1) Para a descrição e análise estratificada dos dados quantitativos produzidos pelas questões estruturadas do QOL, foram realizadas análises de perfil da amostra, análises estatísticas descritivas das questões estruturadas, filtragens para associações e correlações.

(2) Para a análise das imagens e as respostas relacionadas a elas, do ponto de vista quantitativo, o pesquisador pode associar uma palavra a cada imagem, a partir de um universo de símbolos ou representações socialmente compartilhadas e analisar descritivamente o número de pessoas que se identificou com cada imagem e/ou criticamente, introduzindo possíveis interpretações sobre imagens mais ou menos escolhidas em diferentes possibilidades de cruzamento de dados (Ex; gênero, raça, classe social, faixa etária, etc). Mas essa é apenas uma primeira camada de análise.

Quando se solicita ao respondente que escolha a imagem que melhor expressaria o seu afeto em relação à experiência pandêmica, ele é convocado a uma operação de avaliação que se dá, eminentemente, no plano dos afetos, sem a mediação linguística. O que interessa em cada imagem é uma qualidade afetiva, que será o único e integral critério da escolha, o que suscita análises qualitativas. Feita essa escolha, nessa operação puramente “sentimental”, temos sempre a possibilidade de dialogar com as diferentes escolhas sobre bases igualmente “sentimentais”, explorando as infinitas aberturas hermenêuticas que toda imagem nos oferece. Mas também propusemos a reinserção dessa escolha imagética numa nova dobra linguística, solicitando aos respondentes que associassem pelo menos uma palavra ao afeto descrito pela imagem escolhida. Ao cabo, retomamos o registro na linguagem escrita, mas acreditamos que essa passagem por um momento de “reflexão eminentemente sentimental”, provocado pelo jogo com as imagens, tenha sido fundamental para dar passagem a afetos que escapam ao radar da linguagem e que são, no entanto, importantes que nela encontrem inscrição.

Para os conteúdos textuais dos campos abertos, incorporou-se outros dois processos analíticos:

(3) Análise quantitativas dos dados textuais que incluíram técnicas de análises estatísticas de conteúdo textual (nuvens de palavras) privilegiando a análise de classificação hierárquica de conteúdos que dão uma representação gráfica da frequência de cada palavra dentro de cada corpus textual e bigramas (sequências de duas palavras mais frequentes).

Os corpora textuais foram constituídos pelas respostas a cada uma das perguntas abertas e pelos conteúdos escritos que acompanhavam a alternativa “outros” nas questões estruturadas do QOL.

É importante ressaltar que, apesar dos avanços tecnológicos e da alta complexidade de análise de dados textuais em corpora – hoje disponível através de algoritmos – se faz sempre necessária uma análise qualitativa, feita pelos próprios pesquisadores. Isso se dá, também, pela vasta gama de significados e sentidos trazidos pela linguagem natural que não podem ser completamente apreendidos pela máquina. O software em si não deve ser confundido com o método da pesquisa a ser realizada, sendo, na verdade, um dos componentes dele.

As análises quantitativas das questões estruturadas e do banco de dados textuais, bem como suas possibilidades de filtragem e variáveis de cruzamento, foram praticadas a partir do desenvolvimento de um dashboard (painel), que permite o acesso ao QOL, a análise exploratória dos dados por parte dos pesquisadores e do público em geral. Os resultados sistematizados neste painel, bem como a possibilidade para a realização de novas pesquisas a partir dos dados produzidos estão disponíveis neste link: [excluído para não identificação dos autores].

Neste link, percorre todos os blocos de questões e cada questão do QOL. Além do acesso às distribuições de frequência globais para cada pergunta, permite o cruzamento desses dados com as principais variáveis trabalhadas na pesquisa e, também, observar se existem diferenças estatísticas nas distribuições de frequência entre as diferentes categorias daquela variável. O dashboard também permite a filtragem dos dados para que se possa analisar aqueles de apenas um subgrupo de respondentes, correspondente a uma das categorias de uma variável. As categorias das variáveis de cruzamento foram selecionadas considerando as de frequência igual ou superior a 50 respondentes.

(4) Análise qualitativa dos textos: a partir do primeiro grau de análise semântica produzida pela análise de nuvem de palavras e bigramas sugerimos a adoção da técnica analítica da tradução das narrativas do discurso livre. (KASTRUP; PASSOS, 2013), (JULLIEN, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos apresentar a proposição de um QOL como dispositivo de pesquisas-intervenção, a partir da possibilidade de ampliação das tecnologias tradicionalmente relacionadas a um instrumento de produção de dados deste tipo. Para isso,  à luz de uma experiência singular de construção de um questionário em contexto de pandemia, foi possível introduzir à esse dispositivo: (1) um caráter de maior aprofundamento, com a proposição de construção de um “questionário em profundidade”, (2) a diversificação de suas possibilidades comunicacionais e estéticas, a partir da proposição de uma trilha de reflexão e experiência cultural e (3) a ampliação de suas possibilidades interventivas, especialmente em sua interface com o cuidado, elemento central para pesquisas qualitativas em saúde.

Assim, QOL, que poderia se reduzir a um instrumento de produção de dados, se transfigura em um dispositivo ativador de experiências, em uma intervenção produtora de conhecimento, mas também de cuidado, de reflexão, performance, de deslocamentos de si e, portanto, de transformação da realidade “dada”.

Utilizamos aspas na palavra acima, pois há uma preocupação central nas pesquisas-intervenção que equivoca a própria noção hegemônica de “dado”. Ao promover uma intervenção, a própria ação de pesquisar faz emergir novos processos e realidades que não estavam “dadas” (BARROS; BARROS, 2013), neste sentido, mais do que um dado coletado, que informa sobre o objeto investigado, os dados são produzidos e se caracterizam como efeitos do conjunto de processos que constituem a pesquisa – neste caso, por exemplo, o encontro com o dispositivo QOL, as condições de participação e seu contexto sócio-histórico-cultural.

Essa realidade produzida e transformada, além dos mundos de cada participante, inclui também uma intervenção no próprio campo de pesquisa e no ciberespaço, na medida em que ocupamos as redes sociais com uma estratégia de produção de conhecimento que convida à desaceleração e ao mesmo tempo ativa a inteligência coletiva (LÉVY, 1999) dos participantes em contraposição ao fluxo oceânico de consumo do marketing digital (que utiliza muito QOL como estratégia de avaliação) que dominou as redes sociais.

Por fim, acreditamos que dentro das possibilidades interventivas deste dispositivo, tivemos também a intenção de produzir uma intervenção nos modos de produção de conhecimento, introduzindo linhas flexíveis nas técnicas de produção de dados limitadas pelo contexto pandêmico, desconstruindo as linhas duras de um instrumento clássico de produção de dados.

REFERÊNCIAS

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LÉVY, Pierre. A Inteligência Coletiva: por uma Antropologia do Ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1999.

[1] Mestrado em Filosofia Social – PUC-Camp. Doutorado em Saúde Coletiva pela UNICAMP e Pós-doutorado em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP). ORCID: 0000-0001-7567-7225.

[2] Doutorado em Medicina. Mestrado em Medicina. Graduação em Medicina. ORCID – 0000-0002-9550-5807.

[3] Doutorado em Ciências Odontológicas. Mestrado em Ciências Odontológicas. Graduação em Odontologia. ORCID 0000-0003-3635-9907.

[4] Doutorado em Ciências. Mestrado em Ciências. Especialização em Fisiologia do Exercício. Graduação em Licenciatura Plena em Educação Física. ORCID 0000-0002-4456-4452.

[5] Doutorado em Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional. Mestrado em Terapia Ocupacional. Graduação em Ciências da Atividade Física. ORCID: 0000-0003-0149-1000.

[6] Doutorado em História da Filosofia; Mestrado em Filosofia; Especialização em História das Ciências; Especialização em Filosofia Leibniz e o Barroco; Especialização em Filosofia; Graduação em Engenharia de Sistemas e Computação. ORCID: 000-0002-6807-4263.

[7] Mestrando em Inovação Tecnológica (Instituto de Ciência e Tecnologia) Tecnólogo em Gestão de Negócios e Inovação. ORCID:0000-0003-3402-6834.

Enviado: Novembro, 2022.
Aprovado: Novembro, 2022.
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Rogério da Costa Santos

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