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Desafios Contemporâneos Da Psicanálise Com Crianças: A Função Do Analista

RC: 88089
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CONTEÚDO

DISSERTAÇÃO

PAIVA, Raquel Tavares [1], PITANGA, Cláudia Escórcio Gurgel do Amaral [2]

PAIVA, Raquel Tavares. PITANGA, Cláudia Escórcio Gurgel do Amaral. Desafios Contemporâneos Da Psicanálise Com Crianças: A Função Do Analista. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 06, Vol. 05, pp. 05-35. Junho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/funcao-do-analista

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo abordar os desafios contemporâneos da psicanálise com crianças dentro do contexto atual em que estamos inseridos, bem como a função do analista frente às demandas de rapidez e eficiência a que somos submetidos. O cenário deste trabalho trata-se de uma clínica que oferece atendimento psicológico através de planos de saúde e a valores populares. A temática será desenvolvida através de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema e alguns fragmentos clínicos referentes aos atendimentos realizados com crianças e seus pais na referida clínica. O objetivo desse estudo é fornecer aos psicanalistas que atendem em espaços como este, cada vez mais crescentes na atualidade, possíveis ferramentas para a intervenção com crianças e seus pais. Ressalta-se o dispositivo das entrevistas preliminares, que definirá para o analista a elegibilidade do paciente para a psicanálise, bem como proporcionará a escuta diferenciada, ponto chave para a implicação dos pais no tratamento, e a modificação dos discursos.

Palavras-chaves: psicanálise com crianças, Entrevistas preliminares, Contemporaneidade.

1. INTRODUÇÃO

O tema da presente monografia intitulada: “Desafios contemporâneos da psicanálise com crianças: a função do analista frente às demandas de rapidez e eficiência” surgiu a partir da minha experiência como psicóloga em uma clínica que oferece atendimento psicológico através de planos de saúde, atendendo a demanda de diversos planos de saúde, bem como a valores populares.

Observou-se nesse contexto, que existem vários aspectos que dificultam uma condução clínica sob a ótica psicanalítica, ou seja, considerando o sujeito e o seu sintoma como formação do inconsciente. Dentre as dificuldades que encontramos podemos destacar a grande rotatividade de pacientes e a cobrança de resultados rápidos. Podemos dizer que em decorrência desses dois fatores ocorre também pouca aderência ao tratamento por parte das pessoas que procuram a clínica.

Sobre a baixa aderência ao tratamento, podemos afirmar que a demanda direcionada aos psicanalistas é de que haja uma rápida resolução da situação trazida e que também haja remoção do sintoma, respondendo a essa urgência que se faz presente no nosso contemporâneo. O fato de não respondermos a demanda, mas escutá-la, sem, porém, termos o objetivo principal de eliminar a queixa faz com que os pacientes não consigam persistir no tratamento.

A psicanálise vê no sintoma o sinal de que algo não vai bem com a criança, e por isso ela e os pais devem ser escutados. A psicanálise não visa à remoção do sintoma, mas o que esse sintoma diz de seu conflito inconsciente, sendo essa a diferença da abordagem psicanalítica para as outras abordagens.

O tempo de escuta na clínica é o tempo de escuta do inconsciente e este tempo não pode ser mensurado cronologicamente. Sabemos que o estabelecimento do lugar do analista e sua função de sujeito suposto saber é fundamental para uma operação em análise. Fundamental também é o estabelecimento da transferência analítica com a criança e a família (LACAN, 1967, p. 253).

Dentre as demandas que recebemos podemos destacar que a mais comum é: pedido de atendimento para crianças provenientes de médicos e escolas: crianças trazidas com um diagnóstico de TDAH, agitadas, crianças com dificuldades de aprendizagem, crianças dispersas, desobedientes, desafiadoras, ansiosas, entre outras queixas. Estas crianças vêm até a clínica através de seus pais ou responsáveis legais, podendo vir encaminhadas de outros lugares, sendo assim, precisamos identificar de quem é a demanda e que tipo de demanda estamos recebendo. O manejo clínico do psicanalista é fundamental para o desenvolvimento de um bom trabalho e para isso necessitamos de tempo, paciência e cuidado.

O mundo contemporâneo nos mostra que o tempo está sempre escasso, tudo deve ser feito da forma mais rápida possível e efetiva, ou seja, não há tempo para esperar. Quanto mais rápido melhor, quanto mais resultado em pouco tempo melhor, afinal “tempo é dinheiro”!

No entanto, devemos questionar sobre a importância do tempo cronológico na clínica psicanalítica, visto que na clínica o que existe é a temporalidade de cada sujeito. Isto nos coloca a seguinte questão: Se na clínica psicanalítica levamos em consideração a temporalidade do sujeito, como lidamos com a urgência do tempo em que vivemos na atualidade e mais, quais as condições mínimas para um trabalho psicanalítico com crianças?

Dito isto, podemos interrogar qual é a possibilidade da entrada do discurso psicanalítico estabelecido por Freud e Lacan, em condições pouco favoráveis para o trabalho com a criança e seus pais? De que forma se dá a intervenção psicanalítica neste contexto? É possível um trabalho analítico com crianças e seus pais neste contexto? Qual a função do psicanalista? Qual a importância das entrevistas preliminares no trabalho analítico com crianças? São essas perguntas que orientam o desenvolvimento deste trabalho.

No primeiro capítulo são apresentados o contexto atual destas clínicas e os desafios que se impõem ao psicanalista. A necessidade de rapidez que não favorece a implicação por parte das crianças e seus pais.

No segundo capítulo abordaremos a criança em sua condição de dependência e assujeitamento, trazendo inicialmente como se dá a constituição do sujeito dentro do viés psicanalítico orientado por S. Freud e J. Lacan.

Por último, apresentaremos o papel crucial das entrevistas preliminares e a importância do estabelecimento do analista no lugar de suposto saber para a direção de tratamento psicanalítico com crianças.

Nesse contexto, veremos ao final deste trabalho que o psicanalista deve ter uma escuta apurada diante da demanda recebida pelos pacientes para que possa acolhê-la, porém não a responder, para que através da sua escuta possa proporcionar uma nova produção de sentido diante da queixa recebida na clínica.

Além disso, é necessária uma aposta do psicanalista que se apoia no seu desejo de que o paciente se coloque de forma ativa no processo analítico em andamento. Sem essa aposta, o trabalho fica impossibilitado, pois acabamos engolidos por essa demanda de urgência a que somos submetidos diariamente, e desta forma o estabelecimento da transferência analítica com os pais e as crianças fica prejudicado.

As entrevistas preliminares se colocam como um instrumento para a produção destas condições tanto para o paciente quanto para o analista, devemos a isso a sua importância.

2. CONTEXTO DAS CLÍNICAS CONVENIADAS A PLANOS DE SAÚDE

2.1 O LUGAR DA PSICOLOGIA NOS PLANOS DE SAÚDE PRIVADOS E O SABER MÉDICO

Podemos descrever como o centro do contexto da pesquisa, as clínicas que, na maioria das vezes, recebem e atendem demandas vindas de planos de saúde. Sabemos que os planos de saúde são regulamentados pela ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar por isso, falaremos dela aqui com a finalidade de contextualizar a clínica abordada.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar é a agência reguladora vinculada ao Ministério da saúde responsável por regulamentar, controlar e fiscalizar o setor de planos de Saúde no Brasil.

A regulamentação que estava em vigor desde 2013 determinava que a cobertura mínima obrigatória dos planos de saúde para sessões de psicoterapia era de 12 sessões anuais podendo se estender para 18 sessões. No entanto, o Ministério Público Federal sustentou que a regulamentação da ANS estaria em desacordo com a Constituição Federal, pois o acesso à saúde é um direito de todos e dever do Estado.

“A Carta Magna considera o direito à saúde como um dos direitos sociais garantidos (art. 6. o), cujo direito, reputado como fundamental, é, nos termos do art. i96 da mesma Lei Maior, “um direito de todos e dever do Estado” (BRASIL, 2017).

Considerando tal norma abusiva e prejudicial, o Ministério Público promoveu ação pública onde determinou que a cobertura obrigatória de sessões devesse ser ilimitada e determinada pelo profissional de saúde que acompanha o paciente. A Normativa n. 211, de 11 de janeiro de 2010 trouxe então alguns avanços (MOREIRA E DIAZ, 2013).

A ANS determinou uma série de critérios para o estabelecimento da cobertura mínima de sessões, sendo determinados pelo CID, (Código Internacional de Doenças), escrito pelo médico no encaminhamento para atendimento psicológico. No entanto, após a determinação do Ministério Público, a cobertura mínima passou de 12 para 40 sessões por ano de contrato, dependendo do CID indicado pelo médico (BRASIL, 2017).

O cenário que temos na referida clínica é de tempo reduzido de sessões, de no máximo trinta minutos de atendimento, em que este tempo não é determinado pelo profissional, e de forma alguma pode ser estendido.

Na referida clínica recebemos as mais variadas demandas de atendimento, todas provêm dos planos de saúde, sendo que a maioria chega através de um encaminhamento feito por médico, no qual está indicado o Código Internacional de Doenças e, de acordo com este código, é liberado pelo plano um número de sessões limitadas.

Verificamos que a prática clínica é atravessada pelo saber médico, já que é o médico em seu papel “imparcial e objetivo” que determina quantas sessões este paciente terá direito pelo plano. Alguns planos de saúde fazem a exigência de que um novo encaminhamento médico, com CID e indicação, seja fornecido para o paciente a cada número limitado de sessões realizadas pelo psicólogo, deixando o psicólogo completamente de mãos atadas frente a esta exigência dos planos de saúde.

Percebemos que em geral a subjetividade dos pacientes é deixada de lado pelos médicos, visto que o médico indica um Código Internacional de Doenças (CID), a partir de um conjunto de sintomas relatado pelo paciente.

Na prática se observa também que as sessões são interrompidas pelos planos sem qualquer explicação prévia aos pacientes, isso sem mencionar o fato de que o tempo de duração dessas sessões são inferiores ao tempo que vemos nos consultórios particulares. Geralmente são sessões de trinta minutos no máximo. Podemos perceber que a gerência do caso de cada paciente fica sob a responsabilidade e tutela dos planos de saúde.

Os fatores abordados acima como: limitação de tempo das sessões e limitações de números de sessões são fatores que na prática dificultam aderência e permanência dos pacientes ao tratamento, como também os diagnósticos que justificam um atendimento psicológico.

Moreira e Dias (2013), afirmam que a saúde e doença não são consideradas em seus aspectos singulares e que apesar de ter havido avanços nas regulamentações da ANS, o conceito de saúde promovido pela agência não contempla o sujeito em sua singularidade.

Todavia, é importante enfatizar que, apesar das mudanças, como o aumento do número de sessões e a atenção à saúde mental, o trabalho psicológico mantém-se dependente da decisão do médico. O artigo 17 determina que a cobertura de psicoterapia seja definida pelas diretrizes de utilização previstas para o poder médico (MOREIRA E DIAZ, 2013, p. 14).

Além de toda essa temática levantada sobre a regulamentação dos planos de saúde e consequentemente do trabalho possível realizado nestas clínicas, não podemos deixar de mencionar que o contexto contemporâneo em que estamos inseridos é o da cultura “do mais rápido e do sempre mais” conforme afirma Garcez e Cohen (2011), em seu artigo: Ponderações sobre o tempo em psicanálise e suas relações com a atualidade.

Neste artigo as autoras abordam os efeitos sociais do discurso capitalista e de como o tempo se dá na clínica psicanalítica. Podemos dizer que não é sem efeito que esse discurso se impõe atualmente, tendo implicações na clínica.

Não pretendemos fazer uma incursão sobre as modalidades temporais e suas consequências para a vida dos homens, sejam elas vistas em seus aspectos históricos ou formais. O que nos interessa é apenas apontarmos para o uso que o sujeito faz do tempo e indicar uma nova cronologia da urgência, na contemporaneidade, que afeta a clínica psicanalítica (GARCEZ E COHEN, 2011, p. 357).

A psicanálise e seus pressupostos que nos orientam na prática clínica vêm na contramão do discurso da nossa época, nos fazendo perceber que o sujeito é atemporal. Trabalhamos com o inconsciente e, como Freud afirmou, os processos inconscientes não se alteram com a passagem do tempo, e não possuem qualquer relação com o tempo.

Os processos do sistema Ics são atemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs (FREUD, 1975 [1915], p. 214).

Devemos nos questionar então de que forma deve se dar a nossa prática clínica tendo em vista o contexto em que estamos inseridos, já que o psicanalista precisa escutar os modos de apresentação do mal-estar na nossa época.

“Que antes renuncie a isso (à prática da psicanálise), portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época (LACAN, 1953, p. 322).

Apesar da “correnteza” da urgência que nos empurra diariamente e de cada época marcar um sujeito fruto do seu tempo, as autoras Garcez e Cohen (2011) nos indicam que existe sempre um uso que o sujeito deve fazer do seu tempo, ou seja, cabe ao sujeito decidir de que forma irá fazer uso do seu tempo, afinal a nova cronologia da urgência afeta a clínica psicanalítica, mas não a determina.

As autoras também apontam para o paradoxo existente no sujeito contemporâneo: “por um lado a pressa em relação aos objetos de consumo e por outro, a necessidade de postergar o encontro com a falta.” (GARCEZ E COHEN, 2011, p. 359). Demonstrando desta forma que o sujeito não está completamente alienado ao tempo, cabendo a ele, inclusive, definir que uso fará do mesmo.

A nossa aposta enquanto psicanalista se dá na direção de acreditar que apesar de todas estas dificuldades que se colocam neste contexto, nestas clínicas, é possível que o sujeito se coloque como ativo neste processo analítico, ou seja, não seja levado pela cilada do nosso tempo, sabotando o processo analítico em andamento. Cabe ao psicanalista fazer uma aposta que as condições de uma análise possam se constituir.

Vale a pena salientar que para o processo analítico com crianças, precisamos de tempo com os pais, e de tempo com as crianças para que possamos firmar uma hipótese diagnóstica que irá nos orientar em todo nosso percurso de tratamento com aquele paciente.

Enfim, enumeremos então as dificuldades encontradas: O número de sessões pode variar de doze á quarenta por ano dependendo do CID fornecido pelo médico. O tempo de sessão é de no máximo trinta minutos, determinado pelas clínicas, por conta do baixo valor financeiro pago pelas empresas de planos de saúde.

Alguns planos fazem exigência de novos encaminhamentos fornecidos pelo médico a cada doze sessões realizadas. Deixemos claro que o que determina o número de sessões é o CID fornecido pelo médico, deixando então fora do alcance do psicólogo algum tipo de autonomia em relação aos pacientes.

As dificuldades citadas em relação aos planos de saúde somam-se às dificuldades que recebemos para uma rápida resolução e remoção do sintoma. No entanto, a psicanálise vai à contramão disso. Freud (1916), em: “Conferências introdutórias sobre psicanálise”, afirma que os sintomas têm um sentido e que se relacionam com as experiências do paciente, por isso, é uma mensagem a ser decifrada, passível de interpretação. Podemos afirmar que existe um desejo inconsciente que para o sujeito não pode ser realizado devido às exigências defensivas representadas através das normas e permissões culturais. O sintoma então surge como uma formação de compromisso entre a pulsão recalcada e as forças repressoras de defesa. Dessa forma não visamos à remissão deste, mas olhamos com cuidado para o sintoma, identificando seu sentido.

As solicitações que chegam até nós são de eliminação do sintoma, provocando muitas vezes um engessamento da criança, ou seja, a demanda que chega até nós não é a de que escutemos o sintoma e trabalhemos a partir daquilo que a criança traz, e sim um pedido de remoção do sintoma para que a criança volte a se adaptar na escola ou em qualquer lugar em que esteja “prejudicando” o andamento natural das coisas.

Freud (1916), afirma logo no início que a clínica psiquiátrica atenta muito pouco para a forma externa do conteúdo dos sintomas, e que, no entanto, a psicanálise valoriza precisamente este ponto. É nisto que se coloca a diferença eliminação do sintoma/ escuta do sintoma. Enquanto a clínica médica em geral visa a eliminação do sintoma a qualquer custo, o nosso objetivo enquanto psicanalistas é encontrar o sentido do sintoma, o que ele representa, qual é a função dele na vida da criança.

As queixas mais comuns são: crianças inseguras, com medos intensificados; crianças que não fazem nada sozinhos, não dormem sozinhas; crianças agitadas, irritadas, ansiosas; crianças que não sabem lidar com frustrações (ouvir não, por exemplo); crianças com diagnóstico de TDAH desde os quatro/cinco anos, muitas vezes usuárias de medicações como: Imipramina, rispiridona, neuleptil, Ritalina, entre outras; crianças sem limites; crianças que ficam conectadas à internet durante todo o dia; crianças que não “obedecem aos comandos” na escola; e por fim crianças desinteressadas nos estudos, ou em tudo que exige paciência e concentração. Essas são falas dos pais, escola e médicos que têm um dizer sobre a criança.

Podemos descrever o caso de uma criança que veio encaminhada da escola. O pedido era que o menino fizesse acompanhamento psicológico porque era muito agitado na escola, chorava o tempo todo, não queria fazer as atividades propostas pela professora. Quando entrei em contato com a escola, foi percebido que não houve esforço por parte da coordenação pedagógica para compreender o momento de vida em que ele estava. O menino encontrava-se no meio de um intenso processo de angústia devido à recente separação dos pais.

Pelo motivo da separação, sua mãe precisou voltar ao mercado de trabalho, tendo somente um dia de folga durante a semana, que era o dia em que ela levava o menino para o atendimento.  A mãe também trazia intensa angústia e foi acolhida pela terapeuta, pois ela sentia que todos estavam contra ela, inclusive a escola. A cobrança estava muito árdua sobre ela, ela precisava se sentir acolhida.

Então, o momento que este paciente vivia era muito delicado, pois além de não poder estar sempre com o pai, a mãe também teve que trabalhar. Ao tentar explicar para a referida coordenadora pedagógica, foi percebido que a mesma não teve recepção para escutar sobre o menino. O único pedido dela era que a questão fosse resolvida para que ele pudesse não atrapalhar mais aos colegas, e para que ele também pudesse aprender. Este é um exemplo das muitas queixas e encaminhamentos que recebemos.

Como psicanalistas não respondemos a demanda trazida, mas trabalhamos tentando desdobrá-la, fazendo os pais e a criança falarem sobre o que os leva ao consultório. Trazem-nos crianças com sintomas que precisam ser eliminados o mais rápido possível, porém para a psicanálise o sintoma é sinal de que algo não vai bem, e por isso devemos escutar os pais, a criança, a família.

Compreenderá o que se quer dizer quando se diz, falando do psicanalista, que o que faz a sua especificidade é a sua receptividade, a sua “escuta”. Ele verá pessoas que vieram, sabendo apenas a quem se dirigiam, enviadas pelo médico, pelo educador, por alguém que conhece as dificuldades em que estão, mas que não pode ajudá-las diretamente; essas pessoas, na presença de um psicanalista, começam a falar como falariam com qualquer indivíduo e, no entanto, a única forma de escutar do psicanalista, uma escuta no sentido pleno do termo, faz com que o discurso se modifique , adquira um sentido novo a seus ouvidos (DOLTO, in Prefácio MANNONI, 1923, p.10).

Conforme foi bem discutido por Dolto em seu prefácio do livro de Manonni, a demanda que chega até nós se trata da mesma demanda que os educadores, médicos e outros profissionais recebem. O que, porém, nos diferencia é a escuta, pois quando escutamos, no sentido pleno da palavra, fazemos com que o discurso tenha um novo sentido para aquele que o traz.

Uma questão importante se coloca: tendo em vista este contexto contemporâneo de exigência de resoluções rápidas, e de padronização do tempo na sua relação com o diagnóstico, (não considerando o singular de cada sujeito e vislumbrando todo este contexto destas clínicas onde sua forma de funcionar atrapalha o estabelecimento da relação transferencial com o paciente), nos perguntamos então se existe possibilidade de entrada do discurso psicanalítico nestas clínicas? Existe possibilidade de realização de um trabalho orientado pela psicanálise neste espaço?

Dito isto, passaremos para o próximo capítulo: a criança da psicanálise.

3. A CRIANÇA DA PSICANÁLISE, UM SUJEITO A ADVIR

Precisamos delimitar o que estamos chamando aqui de “criança” para que posteriormente possamos entrar no capítulo que abordará o tema sobre a análise de crianças.

O que é a criança? O que a define? Seria sua idade, seu tamanho? Sua inocência ou falta de conhecimento? Para o senso comum podemos dizer que todas estas características definiriam uma criança. No entanto, a psicanálise tem uma maneira muito particular de defini-la.

Antes de definirmos o que é a criança para a psicanálise, é importante salientar que nem sempre a criança foi vista como um ser diferente do adulto. Podemos afirmar que a criança passou a ser vista de uma maneira particular após o surgimento do sentimento de infância (ARIES, 1981).

Aries (1981), em seu livro História Social Da Infância E Da Família, afirma que antes do surgimento do sentimento de infância, as crianças eram vistas como adultos em miniatura trabalhavam como adultos, nos mesmos locais e não havia sentimento de infância, não havia separação entre o mundo adulto e o mundo infantil.

“A criança era, portanto, diferente do homem, mas apenas no tamanho e na força, enquanto as outras características permaneciam iguais” (ARIÈS, 1981, p. 14).

As crianças eram tratadas como adultos e por conta disto era dado liberdade a elas, os adultos e crianças realizavam juntos todas as atividades. Havia, por exemplo, brincadeiras sexuais entre crianças e adultos. A partir do século XVI é que começa a existir uma preocupação com as crianças. Mais precisamente no século XVII, com o processo de escolarização, as crianças foram separadas dos adultos, mas o sentimento de infância não era ainda tão evidente. Só a partir do século XVIII é que as crianças começaram a ser reconhecidas em suas particularidades.

Na esteira das evoluções dos conceitos de “infância” e “criança”, podemos afirmar que Freud com a descoberta da “sexualidade infantil perversa e polimorfa”, introduz uma nova concepção de criança que até então não existia, Freud descortina uma concepção de criança totalmente inusitada para sua época, pois introduz o campo da sexualidade infantil, e afirma que a criança é capaz de portar sentimentos como: amor, ódio, medo, ansiedade, ciúmes, entre outros. Freud introduz uma ruptura no seu tempo, pois até então a criança era tida como um ser inocente e isenta de sexualidade.

Lèvy (2008), no capítulo intitulado: O que é uma criança? Afirma que Freud através da psicanálise reconheceu existência própria à criança atribuindo-lhe sexualidade.

(…) Freud, ao eliminar o recalque fundamental sobre a sexualidade da criança, permitiu que ela fosse reconhecida como sujeito. A partir daí, a criança passa a ter uma sexualidade e a existir como sujeito, o que causou escândalo naquela “época bem pensante” (LÈVY, 2008, p. 20).

Lacan ao referir-se à criança vai falar de linguagem, sendo a criança um sujeito a advir, que se encontra numa posição subjetiva de assujeitamento no campo do Outro.

Lacan (1964/1985), afirma que o sujeito é produzido primeiro no campo do Outro para que em um tempo lógico posterior, possa se separar dele. A criança então é um sujeito a advir que ainda se encontra em posição de assujeitamento ao Outro. E para que possamos compreender particularidades desse sujeito a advir, passaremos a seguir para a compreensão da constituição de sujeito segundo Freud e Lacan.

3.1 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

Freud (1895), não usou o termo constituição do sujeito, já que este é um conceito trazido por Lacan, a partir das leituras que este fez dos textos de Freud. No entanto, no início, quando o autor começou a escrever seus textos, cunhou o conceito de “experiência de satisfação” que é importante para que possamos compreender de que forma se dá a constituição psíquica do sujeito, abordada por Lacan e por outros autores.

Podemos exemplificar a primeira experiência de satisfação através de um bebê que chora de fome, mas que se encontra incapaz de saciar sua fome por si própria, necessitando de uma ajuda alheia. Freud (1895), afirma que o estímulo endógeno, ou seja, proveniente de dentro do corpo humano só é passível de ser abolido por meio de uma intervenção que venha do mundo externo, promovida por uma ação específica. O autor também afirma que o organismo humano é, a princípio, incapaz de promover esta ação externa sozinho, necessitando então de uma ajuda alheia, que seria uma pessoa experiente voltada para o desamparado. Então, o que ocorre é que quando essa pessoa experiente executa a ação específica capaz de remover o estímulo endógeno, o mesmo é removido. Isto é o que constitui a experiência de satisfação. Podemos dizer então que a primeira experiência de satisfação acontece apoiada em uma necessidade fisiológica, ou orgânica, a necessidade de alimentar-se.

Após esta primeira vivência, o bebê iniciará uma busca para reviver esta primeira experiência de satisfação que estará para sempre perdida. O bebê apoiado na satisfação erógena associada à necessidade de alimentação irá estimular os próprios lábios mediante a sucção rítmica de alguma parte da mucosa ou da pele. Estamos falando do Autoerotismo explicitado por Freud. (FREUD, 1905, p. 108).

No caso da zona labial vimos que o que promoveu a satisfação da necessidade foi a alimentação, ou seja, após a primeira mamada, impulsionado pela necessidade de alimentar-se, o bebê busca incessantemente sentir novamente aquela satisfação primeira, para sempre perdida. É dessa forma que se inicia o autoerotismo que é a satisfação sexual através da estimulação das suas zonas erógenas.

Desta forma o autor estabelece a noção de que apoiado em uma função orgânica, a alimentação, nasce o desejo, nasce a busca de um prazer que é de outra ordem, se deslocando então da função orgânica.

Então podemos dizer que é através da função alimentar que se desenvolve um processo sexual no qual o objeto passa a ser a satisfação sexual infantil.

Freud (1905) estabelece a excitação sexual como subproduto de um processo orgânico.

Além disso, a excitação sexual parece surgir como um subproduto, por assim dizer, de um grande número de processos que ocorrem no organismo, tão logo eles alcançam certa intensidade, e muito especialmente, de todas as comoções mais fortes, ainda que de natureza penosa (FREUD, 1905, p. 140).

A primeira experiência de satisfação depende de um Nebenmensch – um humano próximo, semelhante, pois somente desta forma a tensão interna provocada pela fome poderá ser interrompida.

Assim Freud evidencia a importância deste semelhante para diminuir a tensão interna através de uma ação específica. (FREUD, 1985/1905). Este humano próximo nas palavras de Lacan, o “Outro Primordial” é imprescindível para a constituição de um sujeito.

A prematuridade do bebê humano se dá no fato de que ele é incapaz de prover a ação externa por si só, ou seja, alguém experiente terá que estar disponível para este bebê.

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (FREUD, 1895, p. 190).

Jerusalinsky (2002), afirma que o bebê se encontra incapacitado de realizar a ação específica não só por conta de sua dependência física, mas por falta de saber o que lhe convém.

Na falta do instinto no humano, tal circuito só pode ocorrer por meio da leitura que o agente materno – essa pessoa experiente, como nos diz Freud, e este Outro encarnado como situa Lacan – realiza com seu saber consciente e inconsciente a partir do choro do bebê, tomando este choro como a ele dirigido e outorgando-lhe significação (JERUSALISNKY, 2002, p. 57).

Para Lacan esse agente é chamado de Outro, que pode ser encarnado pela mãe, o pai, ou qualquer pessoa que esteja ali pronto para o bebê, para dar sentido as suas produções, e para falar com o bebê. O Outro primordial.

A constituição do sujeito foi abordada por Lacan no seminário 5 – As formações do inconsciente. Lacan (1957/1999), explica como ocorre este processo através dos três tempos do Édipo.

O autor afirma que a criança quando nasce sente desconfortos provocados por estímulos internos, sinalizando que algo não está em equilíbrio. Neste momento a criança é somente um corpo que sente fome, frio, ou dor, mas não sabe o que sente, cabendo a este ser que se coloca inteiramente disponível para a criança dar sentido ao que o bebê faz.

O autor afirma que para que isso possa ocorrer por parte deste semelhante que se coloca disponível para a criança, ele precisa estar inserido no campo da linguagem, ainda que parcialmente ou mal adaptado. Então á medida que a mãe deseja algo, é possível que a mesma também possa atribuir que a criança também deseja algo.

Neste sentido, Lacan (1957/1999), afirma que o desejo da criança é o desejo do desejo da mãe, estando intrínseco que só é possível que a criança deseje se houver desejo na mãe, ou seja, a criança deseja, à medida que a mãe deseja.

A mãe é definida por Lacan (1957/1999), como este ser primordial para a criança, que está ali disponível para que possa significar toda a produção da criança necessitando, como dito acima que ela esteja minimamente inserida no campo da linguagem.

Neste processo de constituição do sujeito, é essencial que a mãe coloque a criança no lugar de seu objeto de desejo para que a mesma seja alvo de seus cuidados, e ainda, é imprescindível que o desejo da mãe comporte um para-além da criança, um desejo que não cessa no bebê.

O autor afirma que a mãe deve ser interditada, barrada, ou seja, que algo ou alguém faça barreira entre ela e a criança, que algo a prive de seu objeto de desejo. A criança não deve permanecer neste lugar de objeto para sempre. Existe a necessidade de que a criança entenda que o desejo da mãe não é somente para ela. É o desejo da mãe que está para além da criança que faz ir e vir.

Neste sentido podemos dizer que a mãe precisa estar interditada simbolicamente, isto é, o privador na ordem simbólica, ou seja, não é o pai homem, mas é o pai do simbólico. O pai enquanto função no simbólico já existente na mãe possa interditar o desejo da mãe. (LACAN, 1957, p. 180)

O pai está ali para demonstrar para mãe que o que ela deseja está para além do filho, e isto se torna crucial na medida em que se não houver interdição a criança continuará no lugar de objeto do desejo da mãe, dificultando sua constituição enquanto sujeito.

Lacan coloca que esta configuração não se dá da mesma forma na neurose, psicose e perversão, mas coloca que esta relação é um ponto nodal e de extrema importância ao falar sobre a constituição de um sujeito, dependendo da resposta do sujeito à entrada da castração no inconsciente.

Posteriormente, Lacan (1964/1985), elucidou a constituição do sujeito em outros termos e cunhou os conceitos de Alienação e Separação que serão falados no próximo capítulo.

3.2 ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO

Quando falamos sobre constituição do sujeito não podemos deixar de abordar as operações alienação e separação apresentadas por Lacan. Lacan (1964/1985) afirma que a Alienação é “(…) a primeira operação fundamental em que se funda o sujeito” (LACAN, 1964/1985, p. 199).

Podemos afirmar que o sujeito é produzido pela linguagem, mas inicialmente ele é um corpo despedaçado entre pulsões parciais necessitando se identificar como objeto do gozo do Outro para que venha entrar na linguagem e consequentemente se constituir sujeito. (LAURENT, 1997, p. 43)

Como apontamos no capítulo acima sobre a constituição do sujeito, o bebê precisa estar neste lugar de objeto, para ser falado por essa mãe. Desta forma, identificado ao lugar de objeto a aquilo que falta à mãe, esse bebê surge no mundo dos significantes, necessitando ser tudo aquilo que sua mãe deseja.

“A alienação é o destino. Nenhum sujeito falante pode evitar a alienação. É um destino ligado à fala” (SOLER, 1997, p. 65).

E ainda,

Esta definição liga o Outro e o sujeito de um modo que constitui, claramente, uma alienação: o sujeito como tal só pode ser conhecido no lugar ou lócus do Outro. Não há meios de se definir um sujeito como consciência de si (LAURENT, 1997, p. 34).

A outra operação fundamental para a constituição do sujeito é a separação. O sujeito precisa encontrar seus próprios significantes, ele não deve se “colar” de forma totalitária aos significantes provindos do Outro, mas para isso o sujeito deve ter “uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer para além daquilo inscrito no Outro”. (SOLER, 1997, p. 321)

A autora Soler (1997), afirma que a separação requer que haja um desejo de se separar dos significantes que provém do Outro para encontrar o seu próprio; é preciso que haja um questionamento de si mesmo, que o sujeito não se petrifique no significante que provém do Outro.

“(…) petrificação por um significante e indeterminação no interior do deslizamento do sentido. Isso é o que podemos chamar de impasse do sujeito do significante” (SOLER, 1997, p. 62).

E mais “(…) a separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no Outro” (SOLER, 1997, p. 65).

Podemos dizer que a ocorrência das operações alienação e separação é o objetivo de uma análise que só ocorre dentro de uma relação transferencial com o analista.

A criança chega até o psicanalista, geralmente, identificada ao que seus pais falaram dela, aos significantes utilizados, definindo um lugar específico para aquela criança.

O que escutamos tanto na fala dos pais como nos sintomas da criança é que o lugar que a criança ocupa para aqueles pais muitas vezes traz adoecimento e sofrimento para a criança.

Sendo assim, em transferência serão operadas a alienação e a separação para a constituição desse sujeito, quando ele poderá dialetizar com esses significantes que o determinam. A criança deve ser vislumbrada em sua capacidade de criar a sua própria demanda de análise, sair do lugar de objeto e entrar no lugar de sujeito. A família que traz a criança tem um discurso sobre ela, mas a criança tem o direito de criar seu próprio discurso.

Importante dizer que para que esse trabalho ocorra de forma eficiente os pais devem estar inseridos em trabalho analítico. Neste sentido introduziremos o capítulo dois a seguir, que fala sobre a criança em análise e a criança como um sintoma familiar e/ou petrificada aos significantes provindos dos pais. Veremos que a nós analistas foi dado um lugar muito importante para ajudá-las neste processo de encontrar o seu lugar, trazendo suas próprias questões e sintomas, descolando-se destes pais.

4. A CRIANÇA EM ANÁLISE

“A separação supõe uma vontade de sair, uma vontade de saber o que se é para além daquilo que o Outro possa dizer, para além daquilo inscrito no Outro” (SOLER, 1997. p.62).

4.1 A CRIANÇA COMO SINTOMA DA ESTRUTURA FAMILIAR

Lacan (1969), no seu texto: “Duas notas sobre a criança” indica que a criança pode se posicionar em duas vertentes diferentes; ou ela responde ao que há de sintomático na estrutura familiar, ou o sintoma corresponde à subjetividade da mãe, obturando a sua falta. Em cada uma das possibilidades existem diferenças pontuais na forma como essa criança irá se constituir enquanto sujeito. Falaremos neste capítulo sobre a primeira posição, ou seja, a criança que responde ao que existe de sintoma na estrutura familiar. (LACAN, 1969/1986)

O autor afirma que o sintoma pode representar a verdade do casal parental, e que este é o caso mais complexo e mais aberto às intervenções.

Dolto (1923/2004), em seu prefácio do livro de Mannoni: A primeira entrevista em psicanálise, afirma que a criança presentifica as consequências de um conflito familiar ou conjugal, sendo assim, o sintoma que a criança manifesta é uma ressonância das angústias de seus pais.

“A criança trazida até mim está situada numa família e carrega o peso da história de cada um de seus pais” (MANNONI, 1923/2004, p. 36).

Checchinato (2007), afirma que Manonni vê a doença não através da classificação psiquiátrica, mas sim como um sintoma que denuncia como o sujeito foi gerado, concebido. O autor continua dizendo que este processo começa antes mesmo do sujeito vir ao mundo, já está posta antes mesmo de seus pais se conhecerem, e conforme os pais traçam projetos, a sorte destes filhos já está lançada.

Checchinato (2007), afirma que Mannoni propõe então o tratamento dos pais da criança, pois ainda que a criança seja tratada no consultório, ao voltar para casa irão se deparar com esse “feixe de palavras parentais” que sustentam e causam o sintoma da criança. Trataremos mais disso a seguir.

4.2 A IMPORTÂNCIA DOS PAIS NO PROCESSO ANALÍTICO DA CRIANÇA

Falaremos sobre a importância dos pais no processo analítico da criança trazendo o caso do “Pequeno Hans” descrito por Freud. Através deste caso podemos verificar nuances da sexualidade infantil e a relação da criança com os pais como produtores de um sintoma trazido ao analista.

O tratamento do pequeno Hans é realizado pelo próprio pai que segue as orientações de Freud.  Freud (1909) nos conta que Hans aos três anos demonstrava profundo interesse pelo seu “faz pipi”, tocava nele diversas vezes e era ameaçado por sua mãe de ser levado para o médico para que o mesmo o cortasse fora, caso continuasse mexendo. Num determinado momento em que observa sua irmã tomando banho percebe que ela não tem “pipi” e percebe que sua mãe também não tem, e então seu medo de ter seu “pipi” cortado se concretiza. – Medo de Castração. Então, Hans desenvolveu um quadro de fobia de cavalos, deslocando toda a sua angústia para este substituto.

O pequeno Hans também, ocasionalmente, dormia na cama dos pais o que facilitava a intensificação do amor edipiano pela sua mãe e hostilidade com o pai. Frequentemente também desejava que seu pai caísse do cavalo e morresse se sentindo culpado por este desejo, daí a correlação falo-cavalo.

O desejo erótico de Hans pela sua mãe tinha que ser reprimido por conta da ameaça da castração, então o sintoma se forma deslocando a angústia e o medo de Hans para um substituto: o cavalo.

Lacan (1956-1957/1995) em sua releitura do caso Hans, afirma que o menino era muito feliz e não era frustrado de nada. Era nutrido pelos cuidados mais ternos tanto do pai quanto da mãe, os quais não imaginavam a aparição do quadro de fobia no menino.

A mãe de Hans admitia que em todas as manhãs Hans se deitasse no leito dos pais, mesmo que o pai não quisesse. O pai de Hans estava sem qualquer controle da situação, pois apesar de ele se opor e dizer a sua vontade, isto não mudava em nada os fatos, pois a mãe de Hans fazia o que bem entendia.

Hans não era frustrado, e nem mesmo privado de nada, a não ser de se masturbar, pois quando sua mãe o via se masturbando o ameaçava dizendo que o doutor viria cortar o seu faz-pipi. Entretanto, o autor afirma que esta proibição por si só não foi responsável pelo surgimento do quadro de fobia no menino.

Analisando o caso de Hans, Lacan fala sobre o período pré-edipiano, e neste momento a mãe é o objeto de amor da criança. “A mãe existe como objeto simbólico e como objeto de amor” (LACAN 1956-1957/1995, p. 229).

Faz-se necessário que a criança se inclua como objeto de desejo materno. A criança se identifica com o falo, com o que falta à mãe. Inclusive o autor afirma que Hans fica às voltas com o falo, pois só se fala de falo, se questiona sobre a presença do falo na mãe, no pai e nos animais.

Usando as palavras de Lacan, ainda neste período pré-edipiano, a criança encontra-se no paraíso da cilada. A criança tenta responder exatamente do lugar em que a mãe a convoca ou a coloca, se moldando neste lugar. Todavia, não consegue escapar das suas próprias pulsões sexuais, que o levam a se masturbar, aparecendo então como algo miserável diante desta mãe, que passa a repreendê-lo e ameaçá-lo de castrá-lo.  Hans se torna passivo diante das significações do Outro.

“A criança é então colocada diante dessa abertura de ser o cativo, a vítima, o elemento apassivado de um jogo onde vira presa das significações do Outro” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 232).

O pai não intervém, deixando-o a mercê das significações da mãe, que em momento algum se demonstrava faltosa. Sabemos que a castração tem papel fundamental na constituição, pois o falo precisa assumir uma existência como objeto simbólico, pois somente desta forma que a criança pode conceber que este objeto lhe será dado um dia.

Hans desenvolve um quadro de fobia de cavalos aos quatro anos e meio em resultado de uma angústia, pois como afirma Lacan: “Se existem aí duas coisas que se sucedem, não é sem razão: uma vem em socorro da outra, o objeto fóbico vem preencher sua função sobre o fundo da angústia” (LACAN, 1956-1957/1995, p.211).

A cura satisfatória de Hans, segundo Lacan, se deu com a intervenção do pai real que só foi possível através do pai simbólico, que era Freud.

Passaremos para um segundo caso em que é demonstrada a importância dos pais na participação do processo analítico da criança.

Pinto (2010), no artigo intitulado: Sobre o tratamento de um menino de sete anos: Reflexão sobre inibição e angústia, escreve sobre o caso Pedro, menino de sete anos levado ao Serviço de Psicologia Aplicada e após inúmeras idas a médicos distintos para identificar uma justificativa para o fato de Pedro não conseguir escrever. Após tentativas frustradas de resolução deste problema, a mãe leva para o SPA onde Pedro passa a ser atendido.

O início do artigo traz algumas transcrições da entrevista realizada com a mãe de Pedro. Na entrevista são destacadas falas importantes do discurso materno sobre Pedro identificando-o como muito “fraquinho”, com muitas dificuldades, dificuldades de ordens diversas. Relatou neste primeiro contato uma série de dificuldades do filho.

A autora/terapeuta destaca que de fato a primeira impressão foi de uma fragilidade muito grande em relação ao menino e que ao ser questionado se sabia o que estava fazendo ali numa sessão de psicoterapia, sua resposta fora a seguinte: “(…) Digamos que eu sou um menino que já tem sete anos e ainda não sei escrever direito, não consigo me sair bem na escola, todo mundo sabe escrever e eu não, eu sou muito hiperativo também” (PINTO, 2010, p. 364).

Inicialmente ele traz exatamente uma fala da mãe, no entanto, posteriormente, quando a terapeuta diz para Pedro que ele poderia dizer o que ele quisesse dizer, ele começa a se sentir a vontade, e começa a fazer alguns desenhos nesta sessão e nas sessões seguintes. Tais desenhos eram realizados em cores escuras, em sua maioria o preto, e tinha sempre conteúdo agressivo e ameaçador, isso ficava claro quando Pedro contava sobre seus desenhos. Ao desenhar Pedro demonstrava estar sempre angustiado. Pedro referia-se a si próprio como “menino fraquinho” e sempre começava as sessões trazendo a expressão “digamos que”. Tal expressão era sempre sucedida pelas falas da mãe.

A autora conta de uma sessão em que faz uma intervenção quando Pedro entrega o pote de tinta para que ela pudesse abrir já que dizia ser fraco. Algo se operou naquela sessão quando a terapeuta se recusou a abrir o pote, dizendo que ele mesmo o fizesse. A partir desta intervenção Pedro não iniciava mais sua fala com a expressão “digamos que”. Configura-se novo momento na sessão onde Pedro não trazia mais falas vazias, mas falava sobre seus sentimentos sobre seus pais. Dizia que seu pai não servia para nada, que os meninos de sua escola o agrediam e que seu pai não fazia nada.

Outra intervenção importante relatada no texto trata-se de quando a mãe veio falar com a terapeuta que Pedro apresentou melhoras, mas continuaria em tratamento, pois ainda possuía algumas dificuldades, era manhoso e infantil para sua idade. A terapeuta ao suspeitar de que Pedro dormia na cama da mãe, já que o pai trabalhava a noite, disse para a mãe que ele não poderia mais continuar dormindo com a mãe. A mãe acatou.

No decorrer das sessões foram observadas mudanças no comportamento de Pedro, o mesmo passou a trazer nas sessões assuntos novos, passou a vestir-se com roupas que pareciam menos infantis, sem falar que o sintoma trazido pela mãe de que o filho não conseguia escrever, isto fora solucionado logo no início do acompanhamento.

A autora descreve que pôde deduzir que Pedro já sabia escrever quando iniciou o tratamento, pois se não soubesse ou se tivesse algo neurológico impedindo que o fizesse, não teria conseguido este efeito terapêutico logo no início das sessões. Nas primeiras sessões este sintoma já havia sido removido.

Para a conclusão do seguinte caso podemos afirmar que se tornou claro para a autora que Pedro ocupava um lugar de “fraco”. Segue:

Outro ponto importante chama atenção nesse caso. A partir do discurso inicial apresentado pela mãe de Pedro, tornou-se claro que ela o alocava no lugar de “fraco”, o que, aliás, parecia estar intimamente relacionado ao fato de Pedro, também segundo a mãe, sempre ter tido “muitas dificuldades”. Assim, enunciado como fraco no discurso da mãe era justamente daí que ele parecia responder. Desse modo, sua impossibilidade de escrever apresentada estava relacionada também ao lugar do qual ele era chamado a responder em sua relação com a mãe. Resumindo, sua mãe o alocava no lugar de fraco e de quem tinha muitas dificuldades; ele, por sua vez, respondia desse lugar, fosse apresentando muita dificuldade e até mesmo incapacidade de escrever, fosse não podendo lidar com os meninos que o agrediam na escola, ou até mesmo alegando que era fraquinho demais para abrir o pote de tinta no consultório (PINTO, 2010, p. 371).

Pedro era enunciado como fraco no discurso da mãe e respondia deste lugar, à medida que as intervenções foram realizadas com Pedro, a partir das escutas feitas pela terapeuta do discurso materno, as melhoras no quadro trazido inicialmente foram se apresentando.

Em relação à angústia de Pedro vemos que ela tem relação com a o desejo materno que o ameaçava constantemente já que o pai, conforme Pedro afirmava: “Não servia para nada”.

Ele “não servia”, por exemplo, para dizer não à esposa quando esta colocava Pedro para dormir com ela, ocupando justamente o lugar que deveria ser do marido. Foi justamente aí que eu entrei, enquanto um terceiro que – com a autoridade a mim outorgada pela mãe de Pedro – disse não a ela; disse a ela que não mais poderia continuar a colocar o filho para dormir com ela (PINTO, 2010, p. 376).

A partir deste caso podemos perceber a importância do contato frequente do analista com os pais da criança, bem como a importância das entrevistas preliminares para que o analista possa intervir de forma assertiva. Percebemos também que a análise de Pedro transcorreu e à medida que a relação transferencial foi estabelecida com a terapeuta, ele pôde se separar dos significantes da mãe, aos quais estava submetido/alienado.

Tanto no caso do pequeno Hans trazido por Freud e relido por Lacan, quanto no caso do menino Pedro, perceberam-se pontos comuns que são importantes para análise de uma criança.

Perguntas que são fundamentais que o analista se faça no decorrer das entrevistas preliminares. Que lugar está criança ocupa no desejo dos pais? O que os pais falam desta criança? Que sintoma ela traz? Este sintoma diz sobre a estruturação subjetiva destes pais, ou sobre a história do casal parental? Que verdade é esta que a criança traz através do seu sintoma?

Dito isto, introduziremos o último capítulo que trará a importância da função e do desejo do psicanalista no trabalho com crianças e de seu instrumento que são as entrevistas preliminares.

5. PRIMEIRAS ENTREVISTAS E A FUNÇÃO DO PSICANALISTA

Freud (1913) escreveu sobre algumas recomendações aos psicanalistas para o início do tratamento. O autor afirmou a no caso de conhecer pouco sobre algum determinado paciente, neste caso, deve-se aceitá-lo a princípio provisoriamente a fim de conhecer o caso e decidir se ele é apropriado para a psicanálise.

De início essa primeira recomendação de Freud nos faz ficar alertas para não aceitarmos qualquer um de antemão sem ao menos conhecer a história daquele paciente. Este procedimento é o único que se encontra disponível para os psicanalistas a fim de conhecer o paciente.

Outra recomendação que Freud faz aos psicanalistas trata-se de deixar o paciente falar quase o tempo todo e não explicarmos nada mais que o explicitamente necessário para fazer o paciente progredir no que está dizendo. Longos debates preliminares antes do início do tratamento ou conhecimento anterior entre o médico e o paciente devem ser analisados.

Quinet (1991), afirma que a expressão entrevista preliminar corresponde em Lacan ao tratamento de ensaio em Freud. O autor afirma que a entrada em análise é totalmente distinta da entrada pela porta do consultório do psicanalista. O que separa a entrada pela porta e a entrada em análise é a ocorrência das entrevistas preliminares.

Isto demonstra que a entrada em análise não se dá de forma automática pela simples ida ao psicanalista. Existe algo anterior à entrada em análise e se chama entrevistas preliminares.

Quinet (1991), afirma que as entrevistas preliminares possuem três funções: A função sintomal, a função diagnóstica e a função transferencial. Ao se referir a primeira função (sintomal), ele afirma que a demanda trazida em análise não deve ser aceita em estado bruto, mas deve ser questionada, continua dizendo que a resposta do analista não deve ser imediatamente de firmar um contrato com alguém que chega a seu consultório.

Podemos pensar, por exemplo, nas crianças que nos são trazidas para atendimento. Os pais, muitas vezes, vêm encaminhados de escola, médicos, outros lugares, ou simplesmente trazem a criança por estarem muito agitadas ou qualquer outro sintoma. Palavras como: agressividade, TDAH, déficit de atenção, dificuldade de aprendizagem, ansiedade e depressão são palavras bastante escutadas nos consultórios.

No entanto, Quintet (1991), afirma que devemos questionar a demanda trazida, pois a demanda de análise está ligada à elaboração do sintoma enquanto sintoma analítico, ou seja, a partir das entrevistas preliminares que veremos a analisabilidade do sintoma.

Desta forma é função do analista aceitar ou não a criança em análise e de acordo com a analisabilidade do sintoma. Também é função do analista, através das entrevistas preliminares, fazer o sujeito, ou os pais da criança se questionarem sobre a demanda que levam ao analista, isto é, se colocarem efetivamente em processo analítico.

Dolto (1923/2004), em seu prefácio do livro de Mannoni: A primeira entrevista em psicanálise, afirma que o que faz a especificidade do psicanalista é a sua “escuta”.  Segundo Dolto, o psicanalista receberá pessoas que foram encaminhadas de diversos lugares e pessoas, sabendo apenas a quem se dirigiam. Essas pessoas começam a falar ao psicanalista como falariam com qualquer outro, e a forma de escutar do psicanalista é que faz com que o discurso se modifique, ganhando um sentido novo aos seus ouvidos.

A escuta do psicanalista tem um poder transformador do discurso trazido, pois é somente após o encontro com o psicanalista que a solicitação do paciente pode se transformar em uma questão para o paciente ou para os pais de uma criança levada a atendimento.

O psicanalista permite que as angústias e os pedidos de socorro dos pais ou dos jovens sejam substituídos pela questão pessoal e específica do desejo mais profundo do sujeito que lhe fala. Esse efeito revelador, ele obtém pela sua escuta atenta e pela sua não resposta direta ao pedido feito de agir para fazer desaparecer o sintoma, para acalmar a angústia (DOLTO, in Prefácio MANNONI, 1923, p. 11).

Checchinato (2007), afirma que toda palavra dita ou não dita à criança tem um peso, e que há palavras malditas, e que lançam uma maldição sobre a criança.  Sendo assim, o autor afirma que a arte da análise de pais consiste em detectar essa palavra, que seria o significante que mantém a criança em cativeiro.

Descoberto esse significante devastador do discurso, mais ainda, do desejo dos pais ou de um deles (aquele que é patogênico), o degelo do sintoma na criança é precipitado. Precisamente na proporção em que os pais se desembaraçarem do significante-palavra-mortífera se dissipará na criança o núcleo patógeno e ocorrerá uma desimpressão dessa “marca ao nível do corpo da criança” e o “acesso a um corpo simbólico” será franqueado (CHECCHINATO, 2007, p. 119).

Este significante patogênico, ou seja, esta palavra que é maldita pode ser detectada nos primeiros encontros dos pais com o analista e à medida que esse significante é descoberto o sintoma na criança é precipitado.

Especificamente sobre a função do psicanalista, Checchinato (2007), afirma que os pais nos procuram porque algum médico ou outra especialidade tenha indicado e acreditam que podemos dar alguma resposta sobre seus filhos. É nesse momento, nessa demanda que nos é dirigida que a transferência – condição da análise – começa a ser configurada. Na medida em que os pais vêm ao consultório com uma demanda, e não respondemos a essa demanda, pois ela é imaginária e encobre um real, é que o analista tem a função de fazer os pais vislumbrarem um pra-além da demanda.

De acordo com o autor, o analista não responde a demanda trazida, no entanto, a partir das intervenções feitas pelo mesmo é que os pais percebem que o sintoma da criança tem uma causa, e um sentido.

Nessa hora, há uma adesão inconsciente ao tratamento, surge o amor de transferência, se desperta um desejo de saber sobre eles mesmos e sobre a relação deles com a criança. Os pais se responsabilizam pelo sintoma da criança. Graças a essa intervenção terciária do analista, os pais mudam totalmente sua perspectiva em relação aos problemas do filho (CHECCHINATO, 2007, p. 131-132).

Não devemos responder a demanda, pois responder a demanda, afirma o autor, acaba com todas as chances de alguma intervenção. Se atendermos a demanda responderemos do nível da necessidade e desta forma não permitiremos que o inconsciente revele as verdades que detém, estaríamos saturando as verdades que advém do tratamento. Existem outros especialistas melhores que o psicanalista para intervirem no nível da necessidade. O analista no lugar de suposto-saber tem a função de despertar desejo no casal parental em descobrir a verdade do sintoma.

Já na primeira entrevista, quando o analista se serve do esquema triangular para situar a relação do casal e a relação edípica, estabelece-se imediatamente uma certeza: compete ao casal descobrir a verdade do sintoma e encontrar as vias para a solução de problemas (CHECCHINATO, 2007, p. 132).

Sendo assim o dispositivo das entrevistas preliminares é o que define para o psicanalista se o paciente é apropriado ou não ao tratamento psicanalítico, é o que torna mais claro para ele sobre a natureza da questão ou demanda trazida, para que assim, o mesmo possa definir as estratégias de intervenção, bem como o manejo clínico necessário para cada caso. É nas entrevistas preliminares que a demanda trazida é questionada, não sendo aceita em seu estado bruto, para que então, através da escuta do psicanalista possa proporcionar um novo sentido para aqueles que se colocam neste processo, fazendo com que os discursos se modifiquem, ganhando um novo sentido aos seus ouvidos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho de conclusão de Curso partiu de uma inquietação própria vivenciada em minha prática clínica enquanto psicóloga no contexto da referida clínica, onde a demanda maior provém de planos de saúde.

Percebemos que este contexto traz inúmeras dificuldades que atravessam a prática clínica do psicanalista. Dentre os diversos aspectos observados, podemos afirmar que a rotatividade de pacientes e a cobrança por resultados rápidos impõem-se como dificuldades da condução clínica sobre a ótica psicanalítica.

Estes aspectos são resultados do contexto de urgência que se faz presente no nosso contemporâneo. Além disso, vimos que o psicólogo tem pouca ou nenhuma autonomia para a condução clínica devido ao fato que legalmente, diante dos planos de saúde, são os médicos que determinam na prática como se dará este acompanhamento.

O número de sessões, por exemplo, é determinado pelo médico através do fornecimento do Código Internacional de Doenças que vem no encaminhamento médico necessário para dar início ao acompanhamento psicológico.

Vimos também que na clínica contemporânea com crianças, recebemos muitos pedidos de resoluções rápidas de problemas, bem como remoção do sintoma que a criança traz. Esta demanda pode ter mais de um demandante, como vimos, pode vir da escola, relatando que a criança não presta atenção, ou não aprende, ou até mesmo pode vir através de um pedido médico de avaliação psicológica.

Algo importante que foi destacado neste trabalho é a compreensão de que nós psicanalistas não visamos a remoção do sintoma, mas trabalhamos no acolhimento deste, e através de uma escuta apurada proporcionamos encontros com estes pais e com as crianças, que permitirão que estes encontrem um novo sentido para o sintoma trazido. Isso se dá de forma muito cuidadosa e depende da relação transferencial desenvolvida com estes pais e com a criança.

Desta forma, questionou-se sobre a possibilidade da intervenção do psicanalista diante do contexto contemporâneo, pois de um lado temos a demanda de uma rápida resolução do problema para a remoção do sintoma e na contramão disso segue a psicanálise, trazendo a possibilidade para estes pais se implicarem na demanda trazida através de uma cuidadosa escuta e intervenção do psicanalista.

Porém, apesar das dificuldades impostas nesse trabalho, o desejo do analista e sua função possibilita que o trabalho com estas crianças e seus pais seja desenvolvido.

Não podemos deixar de mencionar um dos pontos mais importantes deste trabalho: as entrevistas preliminares. Este é o instrumento que o psicanalista tem em mãos para possibilitar que estes pais se coloquem em trabalho analítico juntamente com seus filhos. A especificidade do psicanalista é a sua escuta, e é ela que proporcionará que o discurso se modifique, ganhando um novo sentido aos seus ouvidos.

O sintoma que recebemos é o mesmo que os médicos ou outros profissionais recebem, a diferença está na nossa escuta. Através da escuta a esses pais e a estas crianças, e após o estabelecimento da relação transferencial estabelecida com eles, é que de fato poderemos possibilitar que estes pais entrem em trabalho analítico e que a criança trazida possa encontrar ali um espaço para trazer a sua própria questão.

Falamos também sobre dois importantes conceitos psicanalíticos para a clínica com crianças: alienação e separação. Vimos que inicialmente a criança deve se alienar aos significantes provindos do Outro para que depois possa se separar deles. Ocorre que a criança, geralmente, chega até nós, identificada ao discurso que seus pais trazem dela, no entanto, este lugar, muitas das vezes, é adoecedor para a criança, trazendo muito sofrimento para a mesma.

Desta forma, a criança encontra junto ao psicanalista, através da relação transferencial desenvolvida, um lugar onde pode ser acolhida em seu sofrimento e mais que isso, possa se separar dos significantes provindos do Outro para encontrar seus próprios.

Podemos dizer que a ocorrência das operações alienação e separação é o objetivo de uma análise que só podem ocorrer dentro de uma relação transferencial com o analista. Para que isso ocorra, os pais também devem estar inseridos no processo analítico e estabelecendo uma relação transferencial com o psicanalista.

Por fim, retomamos a pergunta motivadora deste trabalho: tendo em vista este contexto contemporâneo de exigência de resoluções rápidas, e de padronização do tempo na sua relação com o diagnóstico não considerando o singular de cada sujeito e vislumbrando todo este contexto destas clínicas onde sua forma de funcionar atrapalha o estabelecimento da relação transferencial com o paciente, nos perguntamos então se existe possibilidade de entrada do discurso psicanalítico nestas clínicas? Existe possibilidade de realização de um trabalho orientado pela psicanálise neste espaço?

Podemos concluir que é possível realizar um trabalho orientado pela psicanálise dentro deste espaço. Sabemos que não nos orientamos pelo tempo cronológico, e sim pelo tempo do inconsciente que não pode ser medido através do relógio, e que apesar do tempo do relógio se colocar com certa urgência, nós psicanalistas devemos estar centrados no nosso desejo. Devemos ter uma postura ativa frente a este tempo e decidir de que forma iremos fazer uso do nosso tempo.

Nós psicanalistas nos colocamos numa aposta de acreditar que apesar de todas as dificuldades que se colocam neste contexto, é possível que através do nosso desejo o sujeito se coloque ativo neste processo analítico.

É na aposta movida pelo desejo de analista que uma análise poderá ocorrer, dependerá do modo de resposta do analista à demanda, que se configurará em uma psicanálise ou não.

REFERÊNCIAS

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[1] Graduação em Psicologia (UFF), Pós-graduação: Psicanálise com crianças e intervenção precoce (UCAM), Pós- graduação: Neuropsicologia (UCAM).

[2] Orientadora. Doutorado em Psicanálise.

Enviado: Abril, 2021.

Aprovado: Junho, 2021.

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Raquel Tavares Paiva

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