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O delírio primário de Karl Jaspers no documentário Estamira

RC: 148280
906
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/documentario-estamira

CONTEÚDO

ENSAIO TEÓRICO

VENTURA, Leonardo de Souza Lima [1]

VENTURA, Leonardo de Souza Lima. O delírio primário de Karl Jaspers no documentário Estamira. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 09, Vol. 01, pp. 113-129. Setembro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/documentario-estamira, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/documentario-estamira

RESUMO

A presente análise do discurso no documentário Estamira sob a ótica das descrições fenomenológicas do delírio primário realizadas por Karl Jaspers, fundador da psicopatologia fenomenológica, visou explicitar os delírios e seus mecanismos de formação como forma de contribuição para o ensino e a pesquisa em psicopatologia. Pelo método fenomenológico, a análise demonstra que os delírios em Estamira estruturam-se como o delírio propriamente dito de Jaspers. Evidenciamos as experiências delirantes com suas visões de significado na forma de percepções, significações, ideias e conhecimentos delirantes, demonstrando também a perda da referência no discurso psicótico.

Palavras-chave: Psicose, Percepção delirante, Fenomenologia do delírio, Psicopatologia do delírio, Perda da referência.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho é consequente à dissertação de mestrado (VENTURA, 2008) que investigou o discurso psicótico sob três óticas: da psiquiátrica clássica, da linguística (referência e referenciação) e da semiótica de Greimas (semântica macro-estrutural). Expandiremos a primeira abordagem: o delírio que se observa no famoso e premiado “Estamira” (ESTAMIRA, 2007), um reality show conduzido espontaneamente pela personagem principal que dá forma ao documentário discursando em suas genuínas palavras, sem encenação ou roteiro prévio. Espontaneamente, fala de seu mundo metafísico. Prado (diretor), cativado, entendeu que “existia uma predisposição de dona Estamira a querer contar a vida dela” (PRADO, 2007, DVD2, t: 4min30s) e se pôs a filmar tudo o que ela tinha a dizer. O resultado foi o registro fidedigno do comportamento e da fala de Estamira, protagonista do documentário de 115 minutos com valor inestimável para o ensino e pesquisa em psicopatologia. Suas frases não foram montadas nem editadas e todos os discursos são contínuos, disse Prado (RJ, 2011). O consentimento para publicizar a sua vida foi dado por ela mesma: “já estava esperando por isso há muito tempo!” (PRADO, 2007, DVD2, t: 4min).

Estamira Gomes de Souza (1941-2011) protagonizou o documentário entre seus 60 e 63 anos ao trabalhar como catadora de lixo no lixão de Jardim Gramacho, município de Duque de Caxias (RJ), o maior da América Latina (JARDIM GRAMACHO, 2023). Conhecida entre os catadores como “bruxa do lixo” (PRADO, 2007), suas falas impressionaram na dimensão metafísica e profética, “era quase que uma profetisa dos dias atuais, uma pessoa muito legítima”, disse Prado (RJ, 2011). Após seu apedrejamento, antes das filmagens, Estamira foi diagnosticada com psicose e usou antipsicóticos (pimozida, 04mg; e olanzapina, 10mg) (VENTURA, 2008). Era dezembro de 2000. Tinha diabetes e faleceu aos 70 anos, em 28/07/2011, no Hospital Miguel Couto, na Gávea (RJ), por sepse após infecção no braço (O DIA, 2011).

Parte de seu sucesso como documentário muito premiado[2] foi o discurso filosófico, “uma mistura de extrema lucidez e loucura, que abrangia temas como: a vida, Deus, o trabalho e reflexões existenciais acerca de si mesma e da sociedade dos homens” (MASKALENKA, 2022). Ela acreditava “ter a missão de trazer os princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo” e que “o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade” (RJ, 2011). Essa “loucura lúcida” encantou as platéias brasileiras e fez de Estamira uma pessoa conhecida. Por trás de seu sofrimento psíquico, explicitou visão de mundo encantadora sensibilizando seus ouvintes ao evocar sentimentos profundos. Falou do descaso e do descuido que esteve submetida até se refugiar no lixão, a periferia da sociedade. Movida por missão de revelar a verdade, capturar a mentira e ensinar o que inocentes não sabem, disse que o “trocadilo” mente para os homens, seduz, depois os joga no abismo (PRADO, 2007). Do sofrimento, nasceu nela a lei do “homem como o único condicional”, único que não deve ser traído e humilhado, mas conservado, protegido, cuidado (PRADO, 2007, t: 11-15 min) em contraposição ao “deus farsário” (ESTAMIRA, 2007), à quadrilha, à armação, ao dopante, que cega os homens e os impede de enxergar a verdade por trás do abuso sofrido em seus relacionamentos. De tão vívido sofrimento, surgiu uma certeza pessoal inabalável anunciada profeticamente: a ética do bem do homem como única condição primordial e inegociável. Não se deve oprimi-lo, calá-lo e impedi-lo de manifestar seu sofrimento em detrimento de normas opressoras religiosas, culturais ou econômicas.

Estamira também é fonte preciosa para o ensino e aprendizado da psicopatologia porque seu discurso espontâneo revela o pensar esquizofrênico, algo incomum de se testemunhar tão rica e intensamente.

Estamira foi encaminhada para o tratamento de um recém diagnosticado transtorno mental (dezembro/2000). Foi assistida pela Dra. Alice (Centro de Assistência Psicossocial José Miller (CAPs), Nova Iguaçu, RJ), que atestou: “portadora de quadro psicótico de evolução crônica, alucinações auditivas, ideias de influências, discurso místico” (PRADO, 2007, DVD1, t: 1h37min48s).

2. O DELÍRIO PRIMÁRIO EM ESTAMIRA

Nossa tese é que o documentário Estamira pode ser usado para exemplificar conceitos importantes em psicopatologia e até servir de caso-exemplo para debates e demonstrações de teorias e pontos de vista. Utilizando Jaspers, evidenciaremos o delírio propriamente dito e suas bases: experiência delirante e seus conteúdos (percepção, significação, ideia, conhecimento) e a perda da operação de referência.

2.1. O DELÍRIO E O PENSAMENTO PSICÓTICO EM JASPERS.

Para Jaspers (1997), o delírio revela-se em juízos, evidenciando-se no processo do pensar e do ajuizar (p. 95), algo para mais além do que apenas a convicção extraordinária, a impenetrabilidade e insusceptibilidade a experiências e ao contra-argumento e o conteúdo impossível (p. 95-96). É visto também como uma experiência (fenomenologia); um distúrbio do pensamento; uma criação mental; um conteúdo dinâmico e motivado; e uma ruptura na vida normal ou parte do continuum da personalidade (JASPERS, 1997, p. 97-98). Ele destacou a diferença entre a “experiência” e o “julgamento” baseado nela (p. 96), permitindo a evidenciação dos diversos delírios.

2.2. OS TIPOS DE DELÍRIO

Jaspers (1997) cita dois tipos de delírios: as ideias delírio-símile[3] e o delírio propriamente dito (delusion proper) (p. 96). Esse, chamado de primário (p. 98), tem a experiência delirante como elemento patológico essencial, de onde o juízo é extraído, enquanto aquelas nascem inteligivelmente de afetos antecedentes, experiências devastadoras, mortificantes ou indutoras de culpa, de falsas percepções ou experiências de desrealização em estados alterados da consciência (p. 96). O primário é indutor da mudança da personalidade (p. 106) por implicar em transformação na consciência total da realidade e na consciência secundária manifestada como julgamentos da realidade (JASPERS, 1997, p. 95).

Jaspers (1997) considerava o delírio propriamente dito como incompreensível (p. 98), mas descreve sua formação de forma inteligível. O considera como “psicologicamente irredutível” (p. 96), referindo-se, acreditamos, não à sua impossibilidade explicativa, mas à impossibilidade de redução eidética. Descreve o fenômeno em fases: (1) a estranheza (atmosfera delirante), (2) a experiência de significado (experiência delirante) e seus conteúdos (percepções, significação, referência, ideia, memória, conhecimento etc) e a decorrente (3) alteração na personalidade.

Na primeira (estranheza senso-perceptiva), brotam sensações primárias, sentimentos vitais, humores e a consciência de algo (p. 98). No exemplo: “algo está acontecendo; diga-me o que está acontecendo na terra?” (p. 98), vê-se uma certeza (afirmação) e uma incerteza (pergunta). O certo de antes, contido indiretamente em “algo está acontecendo”, é substituído pelo incerto de agora, expresso na pergunta, que indica a busca de novo significado. Esse espanto é signo da mudança do habitual para o novo. Procura-se esse “algo” que está no “ar”, movido pela alteração do habitual. A busca da causa é movida pela estranheza que expressa a certeza de algo suspeito acontecendo. Esse estado é referido como atmosfera delirante, na qual o pensamento delirante pode encontrar algo válido e objetivo (JASPERS, 1997, p. 98). A atmosfera delirante representa a ruptura entre as experiências habituais do sujeito e sua nova vivência subjetiva. Apresenta-se como estado de sofrimento por alteração da experiência de realidade.

A repercussão dessa alteração da relação entre o mundo e a mente do sujeito do delírio primário é a vivência de sofrimento, beirando o insuportável. Um sofrer decorrente da ruptura da díade (intencionalidade e seu objeto), reflexo da vaguidade, ou seja, uma intencionalidade sem objeto. Enquanto a intencionalidade não encontra esse objeto-síntese, o sujeito vivencia a imprecisão, o descontrole, a incerteza. Jaspers explica que a intencionalidade precisa realizar-se para o sujeito obter conforto.

Essa genérica atmosfera delirante com toda a sua vaguidade de conteúdo deve ser insuportável. Os pacientes, obviamente, sofrem terrivelmente sob isso e, finalmente, alcançar uma ideia definida é como ser aliviado de um fardo enorme. Os pacientes sentem como se ‘tivessem perdido o contato com as coisas, sentem uma incerteza grosseira que os leva instintivamente a procurar algum ponto fixo ao qual possam se agarrar. A realização disso traz força e conforto, e só é conseguida pela formação de uma ideia, como acontece com pessoas saudáveis ​​em circunstâncias análogas. […] Experiências como estas dão origem a convicções de perseguição, de ter cometido crime, de ser acusado ou, pelo contrário, de alguma idade de ouro, transfiguração, santificação, etc. (JASPERS , 1997, p. 98).

Carolina, filha de Estamira, relembra um acontecimento da fase inicial do adoecimento de sua mãe. Relata a alteração de significação do início do delírio, embora não fale da atmosfera delirante “per se”. Primeiro, Estamira percebeu uma ruptura da habitualidade e algo deixou de ser como antes. A nova atmosfera gerou incertezas e mal estar e desembocou em uma experiência delirante, numa visão de significado, o delírio de auto-referência (persecutório).

Começou a alucinação assim: ela começou a chegar em casa… e falou assim: “Dona Maria”, que é minha sogra… “Você sabe que, quando eu cheguei lá no meu quarto hoje pra trabalhar… tinha feito um trabalho de macumba pra mim. Agora você vê se eu acredito nessas coisa, nessas palhaçadas danada… o pessoal, em vez de trabalhar, né, pra adquirir as coisa…” Aí pisou na macumba, jogou a tal da macumba fora… fez não sei o que lá mais… “Eu vou acreditar nessas coisa nada… que Deus me protege, Deus é… é tudo… é Deus que me guia e me guarda”. Tá bom. Aí um mês depois começou, ó: “Tem gente… tem… eu tenho a impressão que tem gente do FBI atrás de mim… Eu tenho a impressão que tem pessoas que tá no… eu tô… quando eu pego o ônibus, tem pessoas que tá me filmando dentro do ônibus… eu não sei pra quê. Um tipo com câmara escondida” (VENTURA, 2008, anexo A, linhas 376-388).

2.3. A APRESENTAÇÃO DIRETA DO SIGNIFICADO E A EXPERIÊNCIA DE REALIDADE

A segunda fase (experiência delirante) só é possível, porque “todo pensamento é um pensamento sobre significados” (JASPERS, 1997, p. 99) e as percepções nunca são reflexos diretos de estímulos sensórios. Sempre há, simultaneamente, percepções de significados. Vemos um contêiner de vidro e, instantaneamente, um copo para beber. Perceber o vidro é diferente de perceber o significado (apercepção). Uma criança não saberia o que aquilo é, pois o conhecer implica a significação. Mas, se o significado desse objeto (seu affordance[4] e suas significações secundárias) for percebido diretamente pelos sentidos, o significado terá a característica de realidade (p. 99) e será confundido com o objeto e intuído, em si mesmo, como o seu significado. Para Jaspers, as “experiências do delírio primário são análogas a essa visão de significado” (p. 99), mas que a consciência do significado transforma-se radicalmente. “Há um conhecimento imediato, intrusivo, do significado e é isso que é, em si mesma, a experiência delirante” (p. 99). O delírio propriamente dito nasce dessa experiência delirante, condição essencial para que haja a alteração típica e duradoura de consciência que caracteriza a esquizofrenia.

Jaspers diferencia os tipos de dados sensórios nos quais significados diversos podem ser experimentados como uma experiência delirante: a percepção em si mesma, ideias, memórias, um conhecimento (awareness[5]), etc. Baseado nessa redução fenomenológica, há vários exemplos de delírios possíveis fundados na possibilidade de uma “experiência” sensória ser significada e este significado ser vivenciado como uma experiência sensória real, desde que, no nível do significado, a consciência do significado seja vivida como experiência direta: as percepções delirantes, a significação delirante, os delírios de referência, ideias delirantes e conhecimento delirante (JASPERS, 1997, p. 99).

As percepções delirantes podem variar desde uma experiência vaga a um significado claro, uma observação delirante, e expressar delírios de referência (JASPERS, 1997). Embora a percepção do objeto seja realizada, sua significação não é tratada como uma mera interpretação ou possibilidade, mas, ao contrário, é vista como uma realidade concreta. A significação ganha o estatuto do fenômeno primário, como a realidade. Ou seja, a significação é vivida da mesma forma que a realidade é experimentada, como (1) uma concretude perceptual, diferentemente da imaginação ou memória, (2) uma existência objetal, um “Ser enquanto tal”, algo que é, existente; e (3) como uma imediata certeza de realidade apesar de ser uma significação (JASPERS, 1997). Normalmente, a realidade como algo que resiste a nós, que tem uma existência material e que nos impõe um desvio corporal, aquilo que nos objeta, é rapidamente conceptualizada e, na prática, ela é “sempre interpretações, um significado, o significado das coisas, eventos ou situações” (JASPERS, 1997, p. 94). Há vários exemplos possíveis. Acredita-se que o tempo exista, mas, no entanto, não existe (VIEL, 2017), é apenas um significado (ideia) que damos à sequenciação e à passagem dos eventos num ritmo objetivável. Não tem resistência. Não é uma coisa. No entanto, sua ideia é vivida como realidade, como uma concretude perceptual, uma existência enquanto “Ser em si mesmo”, como uma imediata certeza de realidade. É apenas significado, sem concretude, sem resistência, sem referente concreto, mas que evoca uma experiência de realidade. Não é delírio compartilhado, pois podemos separar sua visão de significado em julgamento de realidade e desenvolver novas conceptualizações sobre o assunto. O mesmo se dá com o dinheiro. Concretamente, é apenas um papel. No entanto, é vivido como existente, real, de valor concreto. Nunca é visto somente como um papel, apenas pelas crianças até certa idade. Mas, é apenas uma significação imediata, culturalmente instituída e compartilhada.

Há que se diferenciar a “imediata certeza de realidade” do “Julgamento-de-realidade”, resultado do pensar digestivo de experiências diretas (JASPERS, 1997, p. 95). Metaforicamente, da digestão de experiências e/ou ideias. Um julgamento de realidade pode, em si mesmo, ser transformado em uma nova experiência direta. Criamos continuamente um conhecimento do real que não é totalmente explicitado na forma de juízos. Tal conhecimento do real é uma realidade diferente, pois não é algo “per si”, “por si mesmo”, como o real é. O julgamento de realidade “está lá no contexto da experiência e, no fundo, na experiência como um todo” (JASPERS, 1997, p. 95). O conhecimento do real surge quando a realidade revela-se em si mesma e pode se alterar após uma nova revelação do real. Tal conhecimento do real não depende da concretude nem da imediaticidade da experiência do real em si mesma. A realidade de nosso julgamento-de-realidade é uma realidade flexível — um movimento de nossa razão (JASPERS, 1997, p. 95).

Parece claro para Jaspers, que a REALIDADE, a EXPERIÊNCIA DO REAL e o CONHECIMENTO DO REAL são fenômenos diferentes. A realidade é externa, objetável e objetivável e se apresenta na consciência como uma percepção concreta, uma realidade em si mesma, carreando uma convicção por ser um fenômeno de presença singular, a realidade “per se”. A experiência do real é aquilo que se objeta quando a intencionalidade é direcionada para o sensório. Tem característica de presença nítida, vivaz, clara, passiva (o sujeito não é o agente, mas sim o paciente da experiência; recebe a ação do sensório) e certeza vivencial. O conhecimento do real insere-se apenas na etapa posterior, pois é uma espécie de significação, um julgamento-de-realidade, que nasce posteriormente e tem um caráter contextual e de interação entre o sujeito e o todo da experiência, podendo ser alterado à medida em que é vivenciado de outras maneiras.

2.4. A PERCEPÇÃO DELIRANTE

Encontramos uma referência indireta da vivência de uma percepção delirante em Estamira. É possível verificar a “visão de significação” (o poder; o poder real) como representante direto e imediato do objeto perceptivo de consciência “coqueiro” ou “palmeira real”:

(Carolina, filha) — Um dia, sentou… lá no quintal da minha sogra… aí, olhou pros pés de coqueiro… olhou, olhou, olhou, olhou… aí, virou pra minha sogra e falou assim: “olha, isso aqui é o poder… é… isso que é… que é tudo que é real… isso é que é real”. Naquele dia, eu acho que ela [Estamira] desistiu mesmo de Deus e… “agora é só eu e eu… e o poder real e acabou” (VENTURA, 2008, anexo A, linhas 390-394).

Estamira reage com uma convicção extraordinária, uma imediata certeza de realidade, intuindo uma nova significação existencial. Sofre uma mudança de curva de vida e da personalidade. Rompe com o passado (“agora é só eu e eu…”) e faz novo compromisso com a nova significação (“o poder real”). Vivencia tudo como realidade, experiência delirante na forma de percepção delirante com “visão de significado”. Para Carolina, a vivência de Estamira marcou sua memória a ponto de reconhecer tal episódio como evidência da ruptura de Estamira com Deus. A nova Estamira, a Estamira, como passou a se chamar, ergueu-se com uma nova consciência e nova personalidade. Esse exemplo representa, no contexto da história e discurso de Estamira (VENTURA, 2008), o que Jaspers bem afirmou: o “delírio propriamente dito (…) implica a transformação em nossa total consciência da realidade (incluindo aquela consciência secundária que aparece na forma de julgamento-de-realidade)” (JASPER, 1997, p. 95). Esse relato ilustra bem o que Paim (1993) descreve sobre a percepção delirante: (1) dar um significado anormal a uma percepção real, (2) um significado motivado pela auto-referência, (3) uma vivência como imposição e numinosidade e (4) uma vivência como um “aviso”, através do qual se expressaria uma realidade superior (PAIM, 1993, p. 96).

2.5. A IDEIA E CONHECIMENTO DELIRANTES

Quando a experiência delirante tem como conteúdo uma ideia (ideia delirante), a pessoa experimenta aquela ideia como uma nova “visão de significado”, que se apresenta à consciência com um significado novo que é vivido como intrusivo, uma imediata certeza de realidade, dativo de qualidade experiencial e que se apresenta “na forma de uma noção súbita” (JASPERS, 1997, p. 103), diferente da qualidade experiencial da ideia normal. O novo significado, delirante, é capaz de alterar a direção de sentido do pensamento do psicótico a ponto de em torno dessa nova ideia se construir um novo sistema de pensar, baseado em uma nova noção ideativa irreal. A consequência é a construção de uma nova certeza sobre o real, uma nova imagem de si mesma, com a consequente alteração da personalidade e do estar-no-mundo. O novo delírio resulta de, e serve de base para, a estruturação de um novo frame, ou seja, de “uma nova esquematização da experiência, uma nova estrutura de conhecimento, que é representada a nível conceitual e que relaciona elementos e entidades associados a uma determinada cena, situação ou evento culturalmente incorporado da experiência humana.” (Evans, 2007, p. 85).

A lá… os morros, as serras, as montanhas… paisage e Estamira… esta… mar… esta… serra… Estamira está em tudo quanto é canto… tudo quanto é lado… até meu sentimento mermo veio… todo mundo vê a Estamira! (VENTURA, 2008, anexo A, linhas 31-33).

“Eu, Estamira, sou… a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim… Ninguém pode viver sem Estamira. (…) A criação toda é abstrata, os espaços inteiro é abstrato, a água é abstrato, o fogo é abstrato, tudo é abstrato. Estamira também é abstrato” (VENTURA, 2008, anexo A, linhas 51-56).

Acreditamos ser possível seguir o processo de construção do delírio em Estamira. Ela mesma explica. Olhando a paisagem, faz uma associação entre aquilo que ela pode ver e denotar (esta… mar… esta… serra) e ela própria (Estamira), cujo nome se assemelha, por similaridade do significante, ao que vê (esta serra, este mar). Se serra e mar estão diante dos olhos, Estamira, entendida como “Esta mira”, é a própria visão que vê e pode se ver. Disso deriva a ideia seguinte: “sou a visão de cada um” (VENTURA, 2008). Se “Esta mira é o mesmo que Estamira”, então todos podem ver Estamira que é também a “visão de todos”. As significações delirantes e as ideias delirantes ganham estatuto de realidade, imediata certeza de realidade, desencadeando novas ideias e servindo de base para a criação de novas identidades de sentido e de nova identidade para a própria pessoa. A nova Estamira é abstrata, está em tudo quanto é canto, pode ser vista por todo mundo, é a visão de cada um, ninguém pode viver sem ela.

A experiência delirante é o elemento patológico básico do delírio propriamente dito. Se o conteúdo é uma percepção, será chamado de percepção delirante. Se um significado, significação delirante. Se uma ideia, ideia delirante. Se um conhecimento, mesmo de conteúdo abstrato, vago, de difícil ideação como um acontecimento, uma experiência sensória, emoção ou sentimento profundo, conhecimento delirante. Uma vez experimentado, o conteúdo da experiência transforma-se em experiência de significado (visão de significado).

A característica básica da primeira experiência do significado delirante é o estabelecimento de uma referência infundada. A significação aparece inexplicavelmente, intrometendo-se subitamente na vida psíquica. Posteriormente, a experiência idêntica de significação é repetida, mesmo que em outros contextos. A trilha é aberta e a preparação para a experiência significativa então permeia quase todos os conteúdos percebidos. O, agora, delírio dominante motiva o esquema aperceptivo[6] para todos os futuros perceptos[7] (JASPERS, 1997, p. 103-104).

2.6. A PERDA DA REFERÊNCIA

Operar a referência significa estabelecer a relação entre a linguagem (o léxico) e o objeto que ela visa, o referente (CARDOSO, et al., 2003). No delírio, a operação de referência é alterada. O referente original é substituído por outro, de forma infundada. Posteriormente, ele é repetido em outros contextos e uma trilha é aberta permeando todos os conteúdos percebidos, dominando e motivando o esquema aperceptivo e os futuros objetos.

Por isso é que eu tô revelando que o cometa tá dentro da minha cabeça. Sabe o que que significa a palavra cometa? Comandante, comandante natural… comandante. E, então, conforme eu tav… A constelação… Todo o meio… eles ficou com raiva do cometa. (…) porque o cometa achava… que ele não deveria procurar uma carcaça como a minha. Aí, volta lá. Procurar uma carcaça como, sabe? Maria relense, mãe de Jesus! Que concedeu Jesus! Jesus filho de Davi carvalhense! Ái… Mantenha o controle, mantenha o controle! (VENTURA, 2008, anexo A, linhas 642-653).

O novo léxico (cometa), representante da nova significação, é usado como representante do referente perdido e que em nada, aparentemente[8], se assemelha a ele. A partir do novo significante (cometa), abre-se uma trilha de novos significados que reestruturam o novo esquema aperceptivo (referente-significante-significado). O cometa passa a ser também o mesmo que comandante, ligado a cometa por visão de significado, pois o andante que estuprou Estamira, por contiguidade, cometeu o abuso do estupro. O novo esquema aperceptivo (cometa) motiva novos perceptos (comandante) construindo uma trilha de novas significações, que por similaridade e contiguidade, são reunidas e construídas até à sistematização do delírio propriamente dito.

3. CONCLUSÃO

Estamira reúne inúmeras falas que podem ser compreendidas e decompostas pela análise pormenorizada de Karl Jaspers. Ventura (2008) demonstrou em ricos detalhes que o delírio de Estamira é rastreável até sua origem pela análise contextual e linguística (interpretante anafórico, a referência e a referenciação). É um documentário riquíssimo para o ensino da psicopatologia, substituída pelos manuais sindrômicos que não diferenciam “delírio primário” de “ideias delírio-símile”, e deixam se perder o conhecimento da qualidade e dinamismo estruturante do delírio esquizofrênico, bem como seu efeito pervasivo e disruptivo na personalidade e no estar-no-mundo do enfermo.

Na análise do documentário, demonstramos ser possível “dar evidência” aos fenômenos básicos estruturantes do delírio (atmosfera delirante, experiência delirante, significação delirante, delírio de referência, ideias delirantes, conhecimento delirante e a perda da referência). Isso o torna uma fonte exemplar de ensinamento e pesquisa, principalmente porque se pode rastrear esse caminho na história da mesma pessoa.

Estamira, heroicamente, apesar de ter sofrido de uma doença que tende a degenerar pensamento e afeto, foi capaz de explicitar sua visão de mundo e de revelar a verdade por trás dos abusos que sofreu. À ela, devemos render homenagem e agradecimentos. Nos ensinou o valor da ética aos humanos e a considerá-los “os únicos condicionais” de nossas ações, a condição de satisfação que precisa ser preenchida, pois os homens, ou seres humanos, precisam ser o alvo último do nosso princípio da beneficência.

REFERÊNCIAS

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CARDOSO, Silva Helena Barbi. et al. A Questão da Referência: das Teorias Clássicas à Dispersão de Discursos. 1a edição ed. Campinas: Autores Associados, 2003.

DUQUE, Paulo Henrique. De perceptos a frames: cognição ecológica e linguagem. Scripta, v. 21, n. 41, p. 21–45, 30 jun. 2017.

ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: Marcos Prado & José Padilha. Brasil/Rio de Janeiro: Europa Filmes. [Filme cinematográfico].  2007. 116 min. DVD 1 e 2.

ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Produção: Marcos Prado & José Padilha. Brasil/Rio de Janeiro: Europa Filmes. [Filme cinematográfico]. 2005. 112 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-wHISEEXMh4>. Acesso em: 27 ago. 2023.

EVANS, Vyvyan. A Glossary of Cognitive Linguistics. Annotated edição ed. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007.

JARDIM GRAMACHO. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre, 2023. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Jardim_Gramacho&oldid=65245739>. Acesso em: 27 ago. 2023.

JASPERS, Karl. General Psychopathology. Tradução: J. Hoenig; Tradução: Marian W. Hamilton. Revised ed. edição ed. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1997. v. 1.

MASKALENKA, Victor. Estamira. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre, 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Estamira&oldid=63304882>. Acesso em: 27 ago. 2023.

O DIA. Catadora de lixo protagonista de documentário morre no Rio. TERRA, 2011. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/catadora-de-lixo-protagonista-de-documentario-morre-no-rio,04f855e5c56fa310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 27 ago. 2023.

PAIM, Isaías. Curso de Psicopatologia. 11a edição ed. [s.l.] E.P.U., 1993.

PRADO, Marcos. ESTAMIRA. Internet Archive, 2009. Disponível em: <http://archive.org/details/Interativismo_Estamira_Filme>. Acesso em: 4 set. 2023.

RJ, D. G. Morre Estamira, personagem-título de premiado documentário brasileiro.  G1, 2011. Disponível em: <https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/07/morre-estamira-personagem-titulo-de-premiado-documentario-brasileiro.html>. Acesso em: 15 ago. 2023.

VENTURA, Leonardo de Souza Lima. Estamira em três miradas. [s.l.] Universidade de Brasília, 30 ago. 2008. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/handle/10482/3955>. Acesso em: 04 set. 2023.

VIEL, Didier. Time doesn’t exist. And many other things. [s.l.] Lulu.com, 2017.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Mais de 33 prêmios nacionais e internacionais (PRADO, 2009).

3. Embora referido como ideias deliróides, optamos por deixar a tradução literal por acreditarmos que as traduções tendem a desviar os significados. O significado de delusion like ideas é mais fidedignamente representado por “ideias delírio-símile” que por ideias deliróides, porque esse não traz no léxico o significado, enquanto que aquele sim, aponta diretamente para o significado de uma “ideia” que tem alguma semelhança ao delírio, mas que guarda uma diferença.

4. Affordance se refere às possibilidades de ação fornecidas pelo ambiente para um determinado animal. A percepção envolve perceber affordances, ou seja, as possibilidades de ação que são permitidas pelo ambiente (DUQUE, 2017, p. 25) (…) “Portanto, perceber uma affordance é perceber a relação entre uma propriedade e o uso dessa propriedade por um ser vivo.” (DUQUE, 2017, p. 26). Tal conceito focaliza a primeira forma de significação possível que se pode fazer sobre um objeto na interação entre o sujeito e o ambiente.

5. Em psicopatologia, as traduções desse termo não diferenciam awareness de consciousness, traduzindo-os com o mesmo léxico, embora os sentidos difiram. Awareness refere-se a conhecimento, discernimento, vigilância e atentividade. Seria um ter conhecimento por estar ligado em observar ou interpretar o que se vê, ouve, sente, etc. (AWARE, 2022). No entanto, o léxico consciousness ou consciência, embora também seja aplicado à ideia de “consciência de algo”, é muito utilizada de forma geral, como campo ou estado de consciência. Preferimos traduzir awareness por “conhecimento”, pois entendemos que Jaspers focaliza esse significado aplicando-o a ideia de “conhecer algo” que surge na consciência como uma experiência que pode ser um acontecimento, uma experiência sensória ou uma profunda emoção, cujo conteúdo se apresentará em sua maioria na forma de conhecimento (JASPERS, 1997, p. 103): “patients posses a knowledge” (p. 103), diz ele ao explicar o que é delusional awareness. Portanto, traduzimos delusional awareness por conhecimento delirante.

6. Em Jaspers (1997), a palavra apperception pode ser encontrada referindo-se a “reconhecimento de um objeto” (p. 166), “reconhecimento” (p. 171§3), “o processo que traz o acontecimento da absorção de tal conteúdo para dentro do corpo de nossa experiência” (p. 171), algo que “pode ser retardado”, que pode “permanecer em suspenso face a objetos difíceis” e que pode “levar a falsos resultados” (p. 171§4), algo que “requer tempo para acontecer” (p. 171§4), algo que pode ser diferenciado da percepção pela análise objetiva da performance (p. 171§3). Embora ele entenda que percepção e apercepção formem um todo único, ele situa a percepção no processo neuronal de colocar um conteúdo perceptivo na consciência enquanto que a apercepção relaciona-se mais na articulação desse conteúdo com o corpo de nossa experiência (p. 171§3). “Todo ato de compreensão é um modo de apercepção” (JASPERS, 1997, p. 313).

7. Percepto aqui é entendido como o resultado da apercepção, ou seja, o objeto reconhecido.

8. Em trabalho anterior (VENTURA, 2008), foi possível reestabelecer a referência através do método de análise linguística dos interpretantes anafóricos e da transformação do referente por meio da referenciação, e compreender que o novo referente se estabelece não aleatoriamente, mas está subordinado ao contexto, atrelado às experiências vividas em contextos semelhantes por meio do deslocamento e da condensação, e pela lei da similaridade que permeia o significado dos léxicos.

[1] Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura (Strictu senso; UnB, 2008); Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (2009); Psiquiatra do Hospital São Vicente de Paulo de Taguatinga/DF (SES/GDF; 2001 até os dias atuais); Médico pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG; 1992-1998). ORCID: https://orcid.org/0009-0004-8841-858X. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/5316801548891524.

Enviado: 29 de agosto, 2023.

Aprovado: 30 de agosto, 2023.

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Leonardo de Souza Lima Ventura

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