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Descolonizar o pensamento: sobre a colonialidade da psicologia

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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/colonialidade-da-psicologia

CONTEÚDO

ENSAIO TEÓRICO 

MOURA, Eliana Perez Gonçalves de [1], TEIXEIRA, Luiza Figueiró [2]

MOURA, Eliana Perez Gonçalves de. TEIXEIRA, Luiza Figueiró. Descolonizar o pensamento: sobre a colonialidade da psicologia. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 12, Vol. 07, pp. 98-111. Dezembro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/colonialidade-da-psicologia, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/colonialidade-da-psicologia

RESUMO

O presente artigo aborda o tema da colonialidade/descolonização, problematizando o lugar da descoloniadade dos saberes na produção do conhecimento na área da psicologia, no Brasil. A questão norteadora indaga: qual o lugar da descolonização dos saberes no campo da psicologia no Brasil? Trata-se de um ensaio teórico-conceitual cujo objetivo geral é problematizar a influência do projeto colonizador em diversas vertentes teórico-metodológicas da psicologia brasileira. Elaborado a partir da metodologia da revisão narrativa, efetuamos buscas nas bases de dados Scielo e BVS, usando as palavras-chaves: psicologia; colonialidade; estudos decoloniais, para localizar a produção científica da área da Psicologia, publicada nos últimos cinco anos. Os resultados das análises apontam o predomínio de pesquisas, na área da psicologia, baseadas no paradigma científico positivista proveniente do norte global tomado como superior e universal. Conclui-se que a colonialidade da psicologia se manifesta no caráter eurocêntrico do conhecimento produzido. E também, que a forte presença de teorias psicológicas de inspiração colonial impõe o fenômeno do epistemicídio na psicologia brasileira.

Palavras-chave: Psicologia, Colonialidade, Teorias decoloniais.

1. INTRODUÇÃO

Nos anos recentes vimos eclodir inúmeras manifestações populares de protesto em diferentes países do continente latino-americano que, a despeito das diferenças nacionais, questionavam alguns dos pilares sobre os quais foram construídas as sociedades latino-americanas: o racismo, o patriarcado, as monoculturas transgênicas e a exploração e destruição da biodiversidade ambiental.

Tais manifestações vêm anunciando o esgotamento de um modo de vida construído por meio da exploração e domínio do território latino-americano, pela maximização dos lucros e pela manipulação e colonização das subjetividades. Segundo Rozas (2022), a colonização das subjetividades, pode ser definida como um mecanismo de opressão secular que se “entranhou” na subjetividade latino-americana e se expressa por condutas machistas, individualistas, homofóbicas, xenófobas e predatórias da natureza. Um processo no qual a lógica do modo de vida e dos valores (estrangeiros) do Norte Ocidental invade nossas mentalidades promovendo separações, levantando muros, produzindo exclusões e desigualdades sociais; marginalizando e separando para dominar subjetivamente.

Apesar disso, muitas questões históricas que aparentemente haviam sido superadas foram revisadas, a partir dos questionamentos levantados pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano. Com efeito, o referido autor operou uma revolução nas ciências sociais ultrapassando as fronteiras da América Latina. Em sua crítica contundente sobre os efeitos deletérios dos tempos coloniais sobre os modos de vida latino-americanos, ele chamou de colonialidade a herança mais profunda deixada pelos colonizadores que, segundo ele, se instalou na própria alma do povo. Trata-se de uma categoria teórica que impõe o reconhecimento das profundas deformações existentes na constituição das subjetividades individual e coletiva, que impedem a livre e ampla expressão do humano latino-americano em todas as suas potencialidades.

Com efeito, a colonialidade implica compreender que a maioria dos problemas sociais e, em especial, dos problemas de saúde mental estão associados a constrição neoliberal da vida na sociedade latino-americana, que empurra os sujeitos para o desgaste e para a deformação psicológica, a fim de satisfazer um estilo de vida colonizado, baseado no individualismo, no consumismo desenfreado, orientado por valores de prestígio material e financeiro.

O presente artigo aborda o tema da colonialidade/descolonização, problematizando o lugar da descolonização dos saberes no campo da psicologia no Brasil. Tem como objetivo discutir a herança da colonialidade nos referenciais teórico-metodológicos da psicologia brasileira. Trata-se de um estudo teórico-conceitual, elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica, do tipo revisão narrativa, da produção científica da área da Psicologia, nos últimos cinco anos. As buscas foram efetuadas em bases de dados de publicações científicas latino-americanas, como Scielo, BVS, usando as palavras-chaves: psicologia; colonialidade; estudos decoloniais.

2. SABERES PSI E COLONIALIDADE 

De modo geral, os modelos teóricos e metodológicos advindos de correntes teóricas europeias e estadunidenses ainda exercem forte influência no pensamento psicológico brasileiro que não dão conta das inúmeras e graves questões sociais e psíquicas próprias das características das sociedades latino-americanas, nomeadamente, a brasileira. Com efeito, a psicologia brasileira nasceu e se consolidou a partir da importação de modelos teóricos desenvolvidos, principalmente, por pesquisadores de universidades norte-americanas, operando uma mera transposição de postulados teóricos universalizantes para analisar e intervir na realidade brasileira marcada pela desigualdade social.

Conforme Menezes; Lins e Sampaio (2019),

a Psicologia como profissão foi regulamentada em 1962, pela Lei N. 4.119/1962, e desde então o Ministério da Educação (MEC) institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para formação dos futuros psicólogos, estabelecendo normas para o projeto pedagógico dos cursos de graduação (MENEZES; LINS; SAMPAIO, 2019, p. 02).

Contudo, a partir deste ordenamento jurídico, são os cursos de graduação que definem suas grades curriculares e as vertentes teóricas e autores que serão trabalhados. Por um lado, as instituições de ensino superior brasileiras possuem autonomia para eleger as referências teóricas que serão trabalhadas em seus cursos. Mas, por outro lado essa autonomia abre espaço para a colonialidade do saber se instalar, desde cedo, no modelo de formação dos/as psicólogos/as brasileiros/as. De acordo com Lander (2000),

A colonialidade do saber estaria representada pelo caráter eurocêntrico do conhecimento moderno e sua articulação às formas de dominação colonial/imperial. Essa categoria conceitual refere-se especificamente às formas de controle do conhecimento associadas à geopolítica global traçada pela colonialidade do poder. Nesse sentido, o eurocentrismo funciona como um locus epistêmico de onde se constrói um modelo de conhecimento que, por um lado, universaliza a experiência local europeia como modelo normativo a seguir e, por outro, designa seus dispositivos de conhecimento como os únicos válidos (LANDER, 2000, p. 05)

Com efeito, a psicologia brasileira nasceu e se consolidou tomando por base as vertentes teóricas provenientes, principalmente, dos EUA aplicando-as tanto na clínica como em inúmeros contextos institucionais. Opera-se nisso uma articulação entre a colonialidade do saber e a colonialidade do poder. No entanto, esse processo não ocorre sem enfrentar resistências; Santos; Araújo; Baumgarten (2016), denominam “epistemologias do sul”, todas as formas de pensamento consideradas “subalternas”, que se insurgem contra o pensamento sustentado em valores colonialistas, patriarcais, machistas que se expressam como o paradigma hegemónico

Vale ressaltar que a colonização não se refere apenas ao domínio político e econômico do território, mas implica a imposição de uma mentalidade calcada nos valores e padrões do norte global compreendidos como superiores e universais. De acordo com Quintero; Figueira; Elizalde (2019) foi a categoria analítica “colonialidade”, enquanto o reverso da modernidade, que impulsionou as transformações teórico-conceituais na América Latina.

Nesse sentido, vale ressaltar que Quijano (2014) define a noção de “colonialidade”, como uma espécie de “matriz cognitiva” que impregna nossas subjetividades colonizadas e nos força pensar de modo binário, tomando as categorias classe social, gênero e raça como critérios universais de valoração e classificação social. De acordo com Souza; Alves (2017), Quijano faz uso do conceito de colonialidade como algo que vai além dos limites e particularidades do colonialismo histórico; como algo que não desaparece mesmo após uma suposta independência; a colonialidade é a introjeção, por parte dos povos da América Latina, dos valores eurocêntricos entendidos como universais e superiores a tudo o que é “não europeu”.

Desse modo, entendemos que a importação e incorporação de conceitos e modelos psicológicos produzidos a partir da realidade estadunidense e europeia desconsidera as características sócio-culturais, econômicas e políticas de nossa sociedade, excluindo e deslegitimando os processos de subjetivação que se engendram na diversidade que caracteriza a origem indígena e africana da população brasileira.

Nesse sentido, cabe questionar como uma psicologia baseada em evidências cientificas do norte global poderia dar conta de questões tão genuínas e características de um povo que teve sua luta por direitos básicos violada e, até hoje, em pleno século XXI, ainda precisa reivindicar o direito de uma vida digna? Como uma população que tem sua voz silenciada pode se beneficiar de uma psicologia que tem como fundamento principal as motivações individuais e competências e habilidades humanas?

Trata-se de um processo histórico acrítico que impõe uma nosologia à imagem e semelhança da subjetividade do colonizador (VEIGA, 2019). Para Menezes, Lins e Sampaio (2019), a relação poder-saber já se faz presente nas grades curriculares dos cursos de formação em psicologia brasileiros, na medida em que predominam matrizes teóricas coloniais e se consolida em uma rede simbólica de produção e circulação de um suposto modo hegemônico de ser psicólogo/a.

Nesse sentido, a produção do conhecimento baseada majoritariamente em autores eurocêntricos, heterossexuais, brancos, silencia as produções intelectuais do sul global e forja uma noção de saúde mental a partir da abordagem promovida pelas instituições de saúde, em que há grande predomínio da visão psiquiátrica sobre o assunto, passando a enfatizar as causas internas/intimas, de modo que os problemas passam a ser resolvidos em termos de transtornos intra-psíquicos individuais.

Por esse motivo é preciso reconhecer e resistir à colonização dos saberes que são impostos aos países latino-americanos e que são hegemônicos em nossas universidades. É preciso relativizar a herança do pensamento eurocêntrico que limita a nossa compreensão do mundo a partir de nós mesmos. Precisamos questionar os saberes produzidos por homens brancos ocidentais (MENEZES; LINS; SAMPAIO, 2019). Com base nesta consideração, a partir do campo da psicologia, questionamos a legitimidade dos saberes eurocêntricos para oferecer inteligibilidade às questões psicossociais do povo latino-americano em geral, e brasileiro, em especial.

Simone Gibran Nogueira em seu livro Libertação, Descolonização e Africanização da Psicologia, publicado em 2020, a partir da inspiração de autores tais como Nobles e Abkar, defende que a visão de mundo europeia não deve ser ignorada, mas sim, problematizada. De acordo com a referida autora:

[….] a visão de mundo europeia em si não é um problema. Seus princípios orientadores, seus valores e crenças fundamentam a realidade normativa cultural de populações europeias e de seus descendentes no mundo. A problemática aparece quando esta visão de mundo é informada pelo modelo ideológico etnocentrista e racista de supremacia racial branca, ou seja, a perspectiva de que a Europa é o centro do mundo e este é o único modelo válido para normatizar a realidade. (NOGUEIRA, 2020, p. 27)

Com efeito, diversos intelectuais negros, negras, indígenas dedicaram-se à produção do conhecimento na área da psicologia e psicanálise, mas, em geral, esses autores não são, até hoje, suficientemente estudados e debatidos nas universidades brasileiras. A ausência da psicanalista Virgínia Bicudo que, na década de 1930, defendeu sua dissertação de mestrado a partir de um estudo pioneiro desenvolvido com negros, exemplifica a “colonialidade” na psicologia.   Também Neusa Santos Souza, psicóloga e psicanalista brasileira escreveu, nos anos 1980, sua dissertação de mestrado sobre os conceitos da psicanálise a partir da experiência negra, trabalho que resultou no livro “Tornar-se Negro”. Dentre as inúmeras produções intelectuais que são fundamentais para a formação em psicologia estão autores tais como:  Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Grada Kilomba, Gayatri Spivak, Ângela Davis, Franz Fanon, Aimé Césaire, Achille Mbembe. Alguns representantes dos estudos pós-coloniais e outros do pensamento decolonial, propriamente dito. Todos esses/as autores/as são referências fundamentais, ainda que, por vezes, ignorados/as no contexto dos saberes psi brasileiros.

3. DESCOLONIZAR OS SABERES 

O pensamento decolonial designa um movimento intelectual protagonizado por intelectuais latino-americanos tais como Edgardo Lander, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, entre outros tantos.  Esses e outros tantos intelectuais, protagonizaram um importante movimento de revisão crítica das matrizes teóricas hegemônicas das ciências sociais na Americana Latina, sob a influência de expoentes do pensamento local. Com efeito, reunidos no grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), tais autores promoveram a renovação das ciências sociais, problematizando questões históricas específicas do continente americano, optando por fazer uma releitura a partir de matrizes teóricas descolonizadas. Não obstante, mais do que uma opção epistemológica trata-se de uma política ousada e necessária na medida em que pretende descolonizar os diferentes níveis da vida pessoal e coletiva latino-americana.

Para Guimarães et al. (2020), trata-se do deslocamento do eixo de referências que, até então, esteve alinhado com o pensamento colonial considerado superior. A partir do giro decolonial, entram em cena no debate contemporâneo latino-americano, os saberes e experiências locais. De acordo com Santos (2007) o giro decolonial rompeu as linhas abissais que marcavam a divisão político-cultural entre colônia e metrópoles, caracterizadas pela tensão entre regulação e emancipação. O giro decolonial propõe romper a referência aos territórios e zonas coloniais, onde predominam a apropriação e a violência

Com efeito, a proposta de outra epistemologia baseada nas experiências do sul global Santos (2007), afirma que a visão de mundo do norte ocidental não se aplica, necessariamente as todas as realidades sociais, culturais e econômicas do planeta. Entende que a compreensão do norte-ocidental precisa reconhecer outras visões de mundo que vem ganhando crescente visibilidade. Trata-se de reconhecer que todos os saberes são válidos e que estão sustentados em pressupostos lógico baseados em outras cosmologias. De acordo com Guimarães et al. (2020), trata-se de uma epistemologia baseada na prática que

produz conhecimentos cuja validação é determinada pela utilidade dos resultados que, por sua vez, estão diretamente referidos ao um contexto sóciocultural específico. Conforme esclarecem Guimarães et al. (2020),

Nessa epistemologia deve-se levar em conta o modo como determinado saber se constitui a partir das experiências e lutas dos oprimidos, ou como é apropriado e afeta essas experiências e lutas, como acontece com diferentes formas de conhecimento científico. Esse é um critério central para a avaliação e validação dos saberes e das práticas que os produzem e mobilizam. (GUIMARÃES et al., 2020, p. 04)

Identificada a lógica de pensamento eurocêntrica que habita nossos saberes é preciso indagar quais as consequências deste paradigma epistemológico sobre os saberes e práticas psi de nosso tempo. Ao questionarem as marcas que o pensamento colonial imprimiu sobre a vida nos países periféricos, afirmam que é preciso reconhecer os estigmas que podem estar enviesando a forma como a psicologia brasileira considera as diversidades.

Nos últimos anos o campo da psicologia no Brasil vem abrindo espaço para debates contemporâneos relacionados aos atravessamentos da colonização. Este espaço, porém, ainda é pouco explorado, especialmente, no que se refere ao debate sobre a colonialidade dos saberes psi e, sobretudo, seus impactos sobre as subjetividades.

Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação, apresenta o conceito de descolonização como o desfazer do colonialismo. Politicamente, o termo descreve a conquista da autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e, portanto, envolve a realização da independência e da autonomia (KILOMBA, 2019). Do ponto de vista prático a descolonização implica não apenas a deslegitimação dos saberes coloniais, mas também a problematização da colonialidade do ser, que é da ordem do ontológico. Trata-se de um processo individual e, também coletivo, de recuperação e valorização da memória histórica das populações, suas experiências e seus saberes constituídos nos processos cotidianos de resistência ao crivo da colonialidade do poder (GONÇALVES, 2016).

Desse modo, é sobre a imbricação da produção do saber sobre o poder e o ser que a Psicologia deve se reposicionar, revisando suas referências coloniais e para além dele, produzir conhecimentos descolonizados. (FILHO; SILVA, 2018). Nesse sentido, consideramos imperioso que a Psicologia acolha, cada vez mais, as diversidades culturais próprias da população brasileira. Para tanto, é importante reconhecer que teorias universalizantes não contribuem para uma prática voltada às diferenças. Como a Psicologia poderá se aproximar dos povos originários e trabalhar em prol de seu bem-estar se não considerar seus saberes tradicionais e as formas como estes saberes sustentam suas práticas de cuidados? O mesmo questionamento vale para as comunidades negras, as periferias urbanas das grandes cidades, assim como as populações rurais que habitam o Brasil profundo. É preciso reconhecer as formas culturais locais, tradicionais ou não, que produzem saberes, poderes e formas de ser que, ou são invisibilizadas, ou são consideradas excêntricas, rústicas, exóticas pelos poderes coloniais.

Ao importar perspectivas teóricas que desconsideram a diversidade sociocultural da população, a psicologia brasileira reforça o poder/saber colonial e deslegitima formas de sensibilidades e cosmologias próprias da sociedade brasileira, impondo padrões e modelos distantes e descolados da nossa realidade.

Se por um lado, a colonialidade, de forma sutil e por meio de um incessante esvaziamento de sentido das nossas formas de ser, sentir e estar no mundo, produziu subjetividades que naturalizam todas as modalidades de hierarquização colonial: epistêmica, racial, cultural, de gênero etc. Por outro, a psicologia que se ancora em postulados universalizantes próprios do modelo biomédico, opera a perpetuação da subalternidade, engendrando o sofrimento psíquico dos/as exóticos/as.

É preciso considerar a potência de práticas plurais que diferem entre si, mas que se reconhecem e respeitam a diversidade de suas referências culturais e sociais; para tanto é preciso romper o caráter colonial do modelo biomédico e individualizante (GUIMARÃES et al., 2020).  Trata-se do processo de descolonização dos saberes e práticas da psicologia, um processo de desmontagem de concepções coloniais que marginalizam, invisibilizam ou suprimem os saberes do sul impondo sua racionalidade pelo viés do norte. Descolonizar a psicologia, enfim, implica colocar sob suspeita as “verdades” epistemológicas que, provenientes no norte, habitam o campo da Psicologia impondo uma visão individualizada do sofrimento político.

4. OUTRO OLHAR SOBRE O SOFRIMENTO PSÍQUICO, POR UMA PSICOLOGIA DECOLONIAL 

Os estudos acerca da colonização em nossos corpos, saberes e mentes tornam inevitável levantarmos indagações sobre os transtornos mentais e o sofrimento psíquico. Mais do que isso, o chamado giro decolonial convoca problematizar o que atravessa nossa subjetividade, insinuando que o sofrimento psíquico é uma produção da ordem do coletivo que se manifesta em forma de subjetivação individuais.  O sofrimento psíquico se produz no desvio da ordem social e política e tem relação direta com os parâmetros por meio dos quais as sociedades de cada tempo histórico, balizam os modos de ser e viver de cada época

É preciso reconhecer que a psicologia brasileira pelas condições de sua emergência, oficialmente reconhecida como ciência e profissão em 27 de agosto de 1962, traz em si a marca da colonialidade.  A ciência psicológica, acentada na colonialidade do saber produziu e ainda produz discursos universalizantes sobre a subjetividade humana de modo a contribuir com a psicopatologização da diversidade humana (SOUZA; ALVES, 2017). Vale lembrar, como exemplo, o debate sobre a cura gay, defendida por um grupo de psicólogos, apoiado por uma parcela da população representada por uma bancada legislativa conservadora. São esses pensamentos alicerçados em uma lógica conservadora, racista, sexista, machista e patriarcal

que dão margem para as práticas de violência física e psicológica que ainda presenciamos neste país. De acordo com Veiga (2019):

Racismo, machismo, lgbtfobia são produtos da máquina colonial de produção de subjetividade, produtos que operam um corte na realidade e que dividem o mundo num arranjo que compõe quem exerce violência e quem a sofre. Opressão do branco sobre o negro, do homem sobre a mulher, do cis sobre a/o trans, do hétero sobre o homossexual. Este mundo tal como o conhecemos se funda na violência. (VEIGA, 2019, p. 01)

Viver em um país cercado de desigualdades oriundas dos processos de colonização dos nossos territórios, corpos e subjetividades é uma condição que atravessa todos os campos do conhecimento. A Psicologia enquanto um campo do saber deve assumir um papel ativo no processo de descolonização dos saberes se, efetivamente, quiser estar atento e preocupado com as questões sociais. Isso não significa negar ou anular o conhecimento oriundo e países colonizadores, mas questionar e problematizar se estes saberes dão conta das questões socioculturais e subjetivas dos nossos povos. Considerando que, de acordo com Gonçalves (2016), a colonialidade em nós constitui uma estrutura cindida entre duas matrizes de pensamento: colonizador e colonizado, cabe à Psicologia interferir nessa dinâmica subvertendo suas premissas, seus fundamentos, suas lógicas.

É preciso reconhecer as fissuras deixadas pelos processos coloniais e olhar além desta lógica. Mantermo-nos sensíveis ao que não conhecemos em nossos modos de pensar, sentir, agir e ser psicólogos/as, pois estamos em grande medida aprisionados em trajetórias universitárias brancas, centralizadoras e racionais que tornam invisíveis outros modos de pensar e sentir (CARVALHÃES, 2019).  Estar atento às construções de subjetividades, territórios potentes, lugares de fala que sempre foram silenciados, é oportunidade que a Psicologia deve assumir, objetivando dar sentido àqueles que sempre foram excluídos e estão à margem do poder na sociedade contemporânea. Se a Psicologia é nosso “lugar de fala”, subvertê-la, quebrando as ordens coloniais que ainda a conformam no Brasil e no mundo constitui um dever ético (GUIMARÃES, 2019).

Nesse sentido, a recuperação da memória popular constitui um modo possível de subversão que contribui para a descolonização dos saberes e práticas da Psicologia. Sob esta perspectiva, a Psicologia passa a conferir novos sentidos às experiências e aos saberes populares, construídos nos processos cotidianos de resistência. De acordo com Guimarães (2019), cabe a psicologia sair de seu lugar de conforto e irromper lugares pouco visibilizados pela ciência colonial, a fim de conhecer e considerar os saberes subalternos, compreendendo como as subjetividades colonizadas são por ela sustentadas.  Filho; Silva (2018) advertem que qualquer movimento de afastamento das epistemologias coloniais, não ocorrerá isento de traumas para a psicologia.

Para concluir (ou não) este texto, uma breve reflexão sobre o problema do epistemicídio. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos cunhou o conceito de epistemicídio ao denunciar o efeito de inviabilização e ocultação que o pensamento norte ocidental operou ao negar assimilar as contribuições culturais e sociais dos povos do sul. No Brasil, Sueli Carneiro, aperfeiçoou este tema em sua tese no ano de 2005. O epistemicídio é uma questão que invalida práticas, modos de ser, idiomas e saberes dos povos sob dominação europeia, refutando a legitimidade de cosmovisões africadas e de povos nativos (SANTOS; PINTO; CHIRINÉA, 2018). Quando pensamos em práticas decoloniais dentro do saber psi, como em todas as outras áreas de conhecimento, precisamos reconhecer essas práticas de apagamento simbólico que silenciaram os povos originários, isso significa resgatar a memória da colonização e identificar os traços que foram introjetados nos povos do hemisfério sul por esse sistema. Sueli Carneiro em sua tese, lançou luz a este tema e nos diz:

Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender etc. (CARNEIRO, 2005 p. 97).

Nessa mesma linha, Martin Baró, abriu caminho para um pensamento psicológico latino-americano, defendendo a urgência de abandonar as amarras coloniais da psicologia. É justamente o reconhecimento das práticas colonizadoras que pode nos levar a novos saberes em psicologia, que não estejam amarrados em pensamentos que não condizem com a realidade brasileira. Nesse sentido, Menezes; Lins; Sampaio (2019), lembram que apesar da colonização ter acabado, restou em nosso pensamento, nossa sensibilidade, nosso modo de organização da vida pessoal e coletiva o padrão cultural branco eurocêntrico. Assim, a tarefa a ser realizada passa necessariamente pelo questionamento das formas pelas quais o conhecimento vem sendo elaborado, suas origens culturais, políticas e, principalmente, a quais interesses atende. Não se justifica, nos dias atuais, a omissão de discussões sobre o arcabouço teórico que sustenta a maioria das práticas em psicologia. É preciso refletir acerca dos conhecimentos que importados de contextos socioculturais alheios se tornam “modismos” na psicologia.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Produzir conhecimento a partir de referências teóricas pós-coloniais e decoloniais, é tarefa urgente e fundamental para (re)conhecermos nossa história e, partir disso, dialogar com as práticas coloniais identificando-as e, sobretudo, suplantando sua hegemonia. A colonialidade do saber produziu e continua produzindo discursos e práticas psi desconectados de nossa realidade social, nossa subjetividade. A descolonização legal dos países do sul do globo já ocorreu, porém, a colonização da subjetividade ainda não se esgotou incidindo em nossos modos de ser e estar no mundo e, sobretudo, em nossas formas de produção de conhecimento.

O pensamento decolonial é um movimento intelectual que autoriza abordarmos temas como subjetividade, relações de gênero, racismo e todas as marcas que nos atravessam, enquanto povo colonizado a partir de uma outra cosmovisão. Sabemos que houve a (des)colonização no sentido histórico e político quando das independências dos países colonizados, porém, nossos movimentos e esforços devem dar continuidade ao processo de decolonização, resgatando memórias, nos aproximando dos saberes dos povos originários, consumindo e valorizando estudos e vozes que foram silenciadas.

Encerramos este ensaio cientes de que a questão da descolonização dos saberes não se esgota aqui. Pelo contrário, é um tema plural que deve ser debatido e investigado no campo da psicologia. Reafirmamos que a psicologia pode e deve ser atuante no combate dos efeitos da colonização que ainda reverberam em todos nós, sobretudo, o racismo, o patriarcado, a violência de gênero, as diversas formas de preconceito e a perseguição aos povos originários, questões que se interseccionam e emergem nas desigualdades sociais. Todos esses novos saberes deverão servir de referência para uma psicologia que concorra de forma direta para a construção de relações mais igualitárias e que atue sobre as causas das desigualdades que são urgentes, gerando, desta forma, novas memórias e formas de resistência.

Apostamos em uma psicologia decolonial que favoreça importantes mudanças em nossa sociedade, contribuindo para a revisão do conceito de saúde mental.  Uma nova psicologia que começa por reconhecer que muitos dos atuais problemas de saúde mental não são explicados por causas internas, individuais de transtorno psíquico, mas por uma pesada estrutura social que impõe modelos e valores e disciplina os indivíduos, a fim de moldar um sujeito Moderno, que se adapte ao trabalhar capitalista, estudar, ter uma família clássica e ser produtivo.

Assim, o pensamento decolonial pode contribuir para a promoção de saúde mental, por meio da transformação da mentalidade social que implique novas relações sociais que transformem os pilares de sustentação da estrutura social imposta e, deste modo, opere mudanças psíquicas e subjetivas revolucionárias.

A saúde mental será, então, o resultado da aproximação com novas identidades e a instauração de uma nova cultura relacional que implica o reconhecimento das pessoas e das comunidades em toda sua diversidade. Esse processo nos leva a acreditar na possibilidade de formar uma nova sociedade.

O novo paradigma que aqui está se delineando e em construção aponta para a importância do permanente desdobramento de determinados processos que são prioritários e que caracterizam a dinâmica de uma nova civilização. Os mais significativos são: a interculturalidade, o diálogo de saberes, o diálogo de epistemologias, a recuperação da memória, a plurinacionalidade e a constante decolonialidade.

REFERÊNCIAS

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KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. 1. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

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[1] Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Psicologia Social e Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Pelotas. ORCID: 0000-0001-7106-0770.

[2] Graduada de Psicologia. ORCID: 0000-0002-8300-7421.

Enviado: Julho, 2022.

Aprovado: Dezembro, 2022.

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Eliana Perez Gonçalves de Moura

Uma resposta

  1. Estou extasiada com este texto! Que tema extraordinário que nos leva a refletir quem verdadeiramente somos. As colocações foram muito profundas e, o mais importante, me fez querer ir além. Nem teenho palavras para expressar!
    Obrigada ao autor.

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