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Livros Acadêmicos

1. Upcycling: processo de reutilização criativa

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Gislaine Nascimento da Silva Perez [1]

 José Amálio de Branco Pinheiro [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1828

Introdução

O termo Upcycling, título do livro de edição alemã, publicado pela primeira vez em inglês por Gunther Pauli e Hartkemeyer (1998), foi incorporado por William McDonough e Michaek Braungart no livro “Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things” (2013), no qual eles afirmam que o objetivo do Upcycling é evitar o desperdício de materiais, reduzir o uso de energia, água e diminuir o efeito estufa. O estudo empírico sobre o tema, direcionou a linha de pesquisa acadêmica no doutorado em Comunicação e Semiótica, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP. Este capítulo visa apresentar o estado da arte do objeto de estudo Upcycling.

O presente estudo versa pela perspectiva do pensamento complexo tendo como bases teóricas a semiótica de Lótman (2021), a complexidade sob o ponto de vista de Morin (2015), os processos culturais para discutir memória sob o ponto de vista de Pinheiro (2013), e os procedimentos de criação em redes na apropriação do ensino, na obtenção e divulgação do conhecimento sob o ponto de vista de Salles (2008).

A pesquisa tem como objetivo: fazer uma reflexão teórica no âmbito do Upcycling no contexto do pensamento da imprevisibilidade e complexidade; discutir memória a partir dos procedimentos de criação e dos materiais por meio do DIY – Do It Yourself, também conhecido como faça você mesmo; propor um debate sobre o papel das redes (Youtube e Instagram) na apropriação do ensino, na obtenção do conhecimento dos procedimentos e da divulgação. O estudo empírico sobre Upcycling me direcionou à modalidade de pesquisa segundo a abordagem qualitativa, de natureza aplicada, bibliográfica e participante.

Desenvolvimento

O Upcycling é um processo pluridisciplinar, inserido no campo do conhecimento das artes visuais. No século XX, bem antes do surgimento do termo Upcycling, artistas plásticos utilizavam materiais e objetos, em suas produções e criações, dando aos mesmos outras funções e inserindo-os em um novo contexto. Essa prática se fazia presente nas artes plásticas como forma de expressão e comunicação. Segundo Strickland (1999, p. 148) o artista francês Marcel Duchamp (1887 – 1968), uma das figuras mais influentes na arte moderna, além de lançar os movimentos artísticos dadaísmo e surrealismo, e inspirar a pop arte e o conceitualismo, também se interessava por ideias e não simplesmente pelos produtos visuais, para ele a concepção de obra de arte era mais importante que o produto acabado.

Em 1913, Duchamp inventou uma nova forma de arte chamada readymade (arte pronta) fazendo a composição de uma roda de bicicleta sobre um banquinho de cozinha. Seu readymade mais polêmico foi um urinol com a assinatura R. Mult, que ele chamou de “Fonte” (1917). Já o artista americano Robert Rauschenberg (1925 – 2008) iniciou a arte pré-pop contribuindo para liberar o artista da compulsão de registrar as próprias emoções. Antes mesmo da reciclagem se tornar uma tendência, Rauschenberg vasculhava as ruas de Nova York à procura de sucata, lixo, sinais de trânsito enferrujados… para compor uma forma híbrida de arte, meio pintura e meio escultura, a que ele chamou de “combinação”.

Em sua obra “Monograma” (1955-56) Rauschenberg montou um bode angorá envolvido por um pneu de carro, sobre uma base de colagem de tela, para mostrar que todos os materiais têm igual valor na arte. Numa declaração que explica sua apropriação de objetos perdidos, Rauschenberg disse: “Pintar tem relação com a arte e com a vida…tento atuar na lacuna entre as duas. Um quadro é mais parecido com o mundo real quando é feito de mundo real” (STRICKLAND, 1999, p. 172).

No design podemos citar o trabalho dos irmãos Fernando e Humberto Campana, com trajetória iniciada em 1.989 na exposição “Desfavoráveis” em São Paulo, com uma série de cadeiras construídas em ferro bruto e sem acabamento. Originalidade é a característica dessa dupla, que busca transformar o uso e a função de materiais inusitados como o papelão ondulado, os barbantes de algodão, o plástico bolha, os espaguetes de borracha e os componentes pré-fabricados para criar móveis e objetos que algumas vezes nos lembram os readymade de Duchamp.

Considerados criadores de vanguarda produzem peças com raízes brasileiras, mas que falam uma linguagem internacional. A pesquisa de materiais é feita sem limitações, o encaixe de elementos e materiais díspares favorece simultaneamente a inserção da natureza na cultura, desde o artesanato doméstico até os grandes espaços urbanos (PINHEIRO, 2013).

Na moda, o Upcycling surgiu como uma tendência, uma inovação para suprir a necessidade do ser humano e da indústria serem sustentáveis. Também conhecido como movimento slow fashion ou movimento maker consiste na remodelagem, customização, e na forma de costurar as peças do vestuário que seriam descartadas, transformando-as em peças únicas, de maior valor e ou qualidade: “O Upcycling como alternativa para uma moda mais sustentável” é tema de um artigo de 2018 desenvolvido, por estudantes da Universidade Federal de Santa Catarina por meio de estudo de caso da marca Céu Handmade que inseriu o processo Upcycling no desenvolvimento dos seus produtos.

Outro artigo, escrito por Lima (2015), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, apresenta o referencial teórico, as etapas do processo Upcycling, e a forma como foi implementado na marca de moda feminina Comas, que reutiliza camisas masculinas da indústria. O Upcycling também faz parte do tema de pesquisa de graduação, do núcleo de design e comunicação, da Universidade Federal de Pernambuco, que desenvolve uma coleção de moda sustentável por meio da reutilização de sobras de tecido e a técnica do crochê.

Na moda existem vários profissionais trabalhando com Upcycling, porém ressalto aqui o trabalho de Nara Guichon, tecelã, artesã, artista plástica e ambientalista. Ela recolhe redes de pescas que são abandonadas à beira mar, para fazer roupas e objetos artísticos com a técnica do tricô. Nara nasceu próxima à fronteira do Uruguai, onde os invernos eram rigorosos e passados em frente ao fogão a lenha, onde avós e tias lidavam com as finas lãs gaúchas adquiridas no país vizinho, fazendo casacos e cobertas em tricô, a técnica que a encantou e que ela aprendeu a manusear aos seis anos de idade, para fazer suas roupas e de suas bonecas. Aos nove anos vendeu sua primeira peça feita sob encomenda.

Além do tricô com redes de pesca, Nara trabalha com tingimento natural, e eco print com folhas e flores. “Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual” (SALLES, 2008, p. 24).

Destaco também o trabalho de Upcycling realizado pela pesquisadora e artista visual, Gislaine Nascimento da Silva Perez – Gigi Perez (2004), com início durante sua pesquisa de mestrado, que deu origem a Dissertação em Comunicação e Semiótica, que tem como tema: “A Linguagem do Eco Design no Brasil”. Durante esse período experimentou possibilidades que transformaram os seus hábitos e costumes, a sua rotina diária e processo criativo, encontrando no lixo doméstico a matéria-prima necessária para suas criações e produções.

Por meio do Upcycling e do DIY ela transforma seu resíduo doméstico em produtos de maior valor e ou qualidade, sem passar por processos químicos de reciclagem, aplica a esses materiais procedimentos artísticos, que resultam em peças com singularidade e identidade: objetos decorativos e utilitários, roupas customizadas, acessórios de moda, e obras de arte.  Ao observarmos suas postagens no Instagram @gislaineartemidia e no Youtube https://www.youtube.com/c/GigiSPerez-Designer iremos constatar um trabalho de artemídia que ressalta o ODS 12: consumo e produção responsáveis.

Pinheiro (2013, p. 100) relata que

O saber não se encontra apenas arquivados em escolas, museus e bibliotecas, mas em todas as práticas resultantes das trocas entre coisas e homens, natureza e cultura, mundo e linguagem. O humano, a cultura, a linguagem são participantes colaboradores de uma estrutura complexa.

Conclusão

Podemos observar que o processo de criação, Upcycling (reutilização criativa) está presente em diferentes manifestações artísticas, porém os procedimentos de construção são variados e instigantes. O Upcycling também tem sido utilizado na arquitetura, no design de interiores e na moda, para suprir a necessidade da indústria de ser sustentável, evitando assim o desperdício e o consumo excessivo, resgatando memórias a partir de procedimentos de criação.

Referências

LIMA, Bruna Lemmertz. Reaproveitamento de Camisas Masculinas nas Marca COMAS: uso do conceito upcycling. In: 5° Simpósio de Design Sustentável – SDS 15. Rio de Janeiro, 11 de novembro a 13 de novembro de 2015. Disponível em: http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/designproceedings/sbds15/2st603b.pdf. Acesso em: 04 ago. 2020.

LÓTMAN, Iúri. Mecanismos Imprevisíveis da Cultura. 1. Ed. São Paulo: Hucitec. 2021.

MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michael. Cradle to Cradle: Remaking the Way We Make Things. New York: Edição Kindle, 2002.

MORIN, Edgar. O Método 1: a natureza da natureza. Trad. Llana Heineberg. Porto Alegre: Sulina, 2015.

PAULI, Gunter; HARTKEMEYER, Johannes F.  Upcycling. German: Hardcover, 1998.

PEREZ, Gislaine Nascimento da Silva. A Linguagem do Eco Design no Brasil. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. São Paulo, 2004.

PINHEIRO, Amálio. América Latina: Barroco, Cidade, Jornal. São Paulo – SP: Editora Intermeios, 2013.

SALLES, Cecilia A. Redes da criação. Construção da obra de arte. 2ª Ed. Vinhedo: Horizonte, 2008.

STRICKLAND, Carol. Arte Comentada: da pré-história ao pós-moderno. Trad. Ângela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro 1999. 

[1] Doutoranda e Mestra em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP; Bacharel em Desenho com ênfase em Design de Interiores no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, SP; Designer de Interiores na Escola Panamericana de Artes de São Paulo, SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1944-0471. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/69644338310011006.

[2] Orientador. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8381-7304.

Gislaine Nascimento da Silva Perez

Gislaine Nascimento da Silva Perez

Doutoranda e Mestra em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP; Bacharel em Desenho com ênfase em Design de Interiores no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, SP; Designer de Interiores na Escola Panamericana de Artes de São Paulo, SP. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1944-0471. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/69644338310011006.

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Capa do Livro

Linguística Letras e Artes Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1828

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