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Livros Acadêmicos

2. Joana D’Arc: pensamento medieval e a mulher no filme de Victor Fleming

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Larissa Braz da Silva [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1838

 

“Por disposição da misericórdia divina, foi feito oportunamente que Joana, filha de Deus, filha da França, seja colocada entre inúmeros santos.”

Assim começa o filme Joana D’Arc de 1948, dirigido por Victor Fleming. Já no início, o filme estabelece que a história de Joana será baseada na imagem de santa, uma hagiografia.

Hagiografia:

Biografia de um santo

Estudos dos escritos que contam a vida dos santos

Figurado Biografia elogiosa que exprime grande reverência pelo retratado, abordando apenas aspectos positivos da sua vida e/ou personalidade (Infopédia – Dicionários Porto Editora)

O filme nunca questiona o chamado de Joana, pelo contrário, ele fortifica mais ainda a santidade de Joana, que havia somente 28 anos que havia sido canonizada. O filme é a primeira grande produção colorida sobre Joana, que levava o grande nome de Ingrid Bergman como a protagonista, papel esse do qual ela reprisa após fazer a peça “Joan of Lorraine”, da qual é a base para o filme de Fleming.

Mas, quem foi Joana para despertar tanto interesse tanto na igreja católica quanto no cinema? Joana nasceu na aldeia de Domremy na França em 1412, vinda de uma família do povo, do anonimato; anonimato esse do qual ficaria se não fosse suas visões para ajudar a França derrotar a Inglaterra na Guerra dos Cem Anos e seu chamado para coroar Delfim Carlos (Carlos VII) como rei da França, fato esse que conseguiu alcançar por conta de seus esforços nos campos de batalha. Joana passou por muitos percalços para provar que suas visões vinham de Deus e que não era uma bruxa, mas apesar de tudo, o título de bruxa que a levou a sua morte na fogueira em um julgamento muito duvidoso e posteriormente cancelado pela igreja católica (MACEDO, 2002).

A história e o heroísmo de Joana ganharam as telas no filme de Fleming no contexto do final da Segunda Guerra, um período muito delicado e de grandes mudanças em todos os setores, a retratação de uma pessoa que batalhou e serviu sua missão, se tornou um exemplo e alguém para trazer identificação (SANTOS, 2014).

A história de Joana foi representada nas telas nesse período, apesar de seu fim trágico, se levarmos o sentido religioso, seria até um final considerado agridoce, pois apesar de tudo, mesmo com sua condenação, Joana foi honrada por Deus por ter mantido seus ideais. A história de Joana serviria como uma inspiração para um povo que estava passando por uma guerra (assim como Joana). De acordo com Rosenstone sobre filmes dramáticos históricos (2010, p. 33-34)

Concentrando-se em pessoas documentadas ou criando personagens ficcionais que são colocados no meio de um importante acontecimento ou movimento […] Através de seus olhos e vidas, aventuras e amores, vemos greves, invasões, revoluções, ditaduras […] Ele não apenas fornece uma imagem do passado, mas quer que você acredite piamente naquela imagem – mais especificamente, nos personagens envolvidos nas situações históricas representadas. Retratando o mundo no presente, o longa-metragem dramático faz com que você mergulhe na história, tentando destruir a distância entre você e o passado e obliterar – pelo menos enquanto você está assistindo ao filme – a sua capacidade de pensar a respeito do que você está vendo.

O que torna Joana diferente e o que a fez ser lembrada mais de 500 anos após sua morte são as suas chamadas visões divinas. A vida espiritual era muito importante para os medievais, o medo do pecado e das suas consequências como fome, guerra e morte, a religião era muito presente em suas mentalidades (CAMACHO, 2008). Esse era o contexto em que Joana viveu, para ela, atender ao chamado religioso seria doloroso por conta de todo o julgamento e sofrimento que passaria para tentar provar sua missão. O filme deixa isso claro com cenas no início de Joana clamando ajuda em um altar antes de partir para sua missão e quando chega na cidade, quando tenta falar pela primeira vez com o oficial do exército e é chamada de bruxa e louca.

A cena de Joana partindo escondida para sua missão depois de ouvir de seu pai que não a deixaria ir, nos mostra como as mulheres eram presas em suas famílias, as solteiras obedeciam a seus pais e depois de casadas seus maridos. “Como filhas, esposas ou viúvas, as mulheres estavam presas nas malhas das relações familiares” (MACEDO, 2002, p. 14). Sendo assim, Joana ainda adolescente cometeu um ato de rebeldia contra seu pai e sua família.

No filme, após uma profecia de Joana sobre uma batalha se concretizar, um padre foi enviado para sua casa para verificar se não era uma bruxa. Somente após a liberação do padre Joana é autorizada a ir se encontrar com Delfim. O medo e a “caça às bruxas” da Igreja Católica podem ser explicados por uma mudança de pensamento ocorrida por conta de novos acontecimentos. Para Macedo (2002, p. 54)

Uma transformação difícil de ser explicada em poucas linhas, alterou o posicionamento dos religiosos. A partir do século XIII o ponto de vista das autoridades mudou. A crise política que envolveu as lideranças da Igreja nos séculos XIV e XV, a crise moral revelada pela proliferação de inúmeras heresias e, finalmente, as crises sociais e econômicas constantes nesse período trouxeram consigo uma nova visão de mundo, de Deus, do Diabo e dos males praticados em seu nome […] o medo do Diabo gerou o medo das feiticeiras. O medo de ambos gerou a perseguição e o extermínio do inimigo invisível: as bruxas.

Indiscutivelmente esse período da Igreja Católica teve influência na história de Joana, visto que culminou em sua morte na fogueira com acusações de herege e bruxa. No filme, todas as vezes que Joana é chamada com esses dizeres, Ingrid Bergman interpreta como uma profunda tristeza para a personagem.

Como já dito, o filme seria uma hagiografia, uma biografia que retrata um santo canonizado sem questionar a sua santidade. Um dos aspectos principais de uma hagiografia é o paralelo de determinados aspectos da história do santo com a história e vida de Jesus (SANTOS, 2014) e, durante o filme, é apresentado vários aspectos disso. Uma das cenas mostra quando Joana chega no acampamento dos soldados, onde ela diz para que larguem os jogos, bebidas e mulheres e que se confessem antes de partir para a batalha. A personagem diz isso com autoridade e demonstra indignação com o cenário que se encontra os soldados. Podemos fazer um paralelo dessa cena com a passagem bíblica de Jesus no templo de Jerusalém, do qual ele se revolta com a situação do templo 

13 E estava próxima a páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém.
14 E achou no templo os que vendiam bois, e ovelhas, e pombos, e os         cambiadores assentados.
15 E tendo feito um azorrague de cordéis, lançou todos fora do templo, também os bois e ovelhas; e espalhou o dinheiro dos cambiadores, e derrubou as mesas;
16 E disse aos que vendiam pombos: Tirai daqui estes, e não façais da casa de meu Pai casa de venda. (João 2:13-16)

Em determinadas cenas, o filme deixa claro a intenção hagiográfica de fortalecer a imagem de santa de Joana, além de fortalecer a imagem de mártir da jovem que se doou pelo país e que ouviu seu chamado divino. Um desses exemplos é um longo take no final do filme após seu julgamento antes de sua execução, onde Ingrid Bergman toma feições angelicais e divinas ao representar Joana aceitando seu destino.

Figura 1.  Joana indo para sua execução na fogueira

Joana indo para sua execução na fogueira.
Fonte: FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

Um outro aspecto é a mudança da postura de Joana antes e depois de cumprir com o chamado de suas visões. Antes, uma moça tímida que morava com os pais e muito dedicada à Igreja, depois de partir sua missão sua interpretação muda, se torna uma mulher decidida, isso se mantém na cena do julgamento do qual, apesar de toda a situação hostil, Joana se mantém centrada na interpretação de Bergman. 

Figura 2. Joana no início do filme sofrendo para ouvir seu chamado

Joana no início do filme sofrendo para ouvir seu chamado
Fonte: FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

 Figura 3. Joana em campo de batalha

Joana em campo de batalha
Fonte: FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

 Figura 4. Joana na cena de seu julgamento

Joana na cena de seu julgamento.
Fonte: FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

Segundo Santos (2014 p. 63)

Neste filme de Fleming, podemos observar que Joana d’Arc é representada de maneira angelical em alguns momentos em outros uma personagem cheia de elementos que reforçam a sua autoridade de liderança, com armadura e discurso rebuscado de engajamento […] A construção de Joana como heroína e líder do exército que segue em batalhas pela França é construída a partir dos elementos visuais para tal representação.

O filme retrata muito bem o aspecto de que o julgamento já iniciou com a intenção de a condenar culpada. No filme podemos ver as articulações que ocorreram debaixo dos panos para que Joana tivesse seu fim. Um dos principais aspectos que lhe foi questionado e que mais pesou em sua condenação foram suas vestes ditas como masculinas, da qual lhe perguntaram se queria ser um homem, se os santos a tivessem pedido para se vestir dessa forma. Primeiramente sua sentença seria prisão perpétua, mas por conta de ter quebrado o acordo de parar de usar vestes masculinas, quando a encontraram na cela com as vestes, foi condenada a fogueira (MACEDO, 2002). No filme, Joana se arrepende de ter abjurado e assinado a sua submissão pelos inquisidores, por conta disso que, após ouvir as vozes novamente, Joana se veste com os trajes masculinos. Sendo assim, no filme Joana aceita seu destino em nome das suas visões, nunca as negando ou as desobedecendo.

Com Joana aceitando a sua morte, em nenhum momento renuncia a Deus ou ao seu rei Carlos VII. Sua cena final é clamando por Deus e por uma cruz para que possa ser morta segurando uma. Em suas últimas cenas, Ingrid Bergman interpreta Joana olhando para os céus e aceitando seu destino final, com gritos da população que se tumultuam para ver sua execução, seja para clamar pela sua vida ou para humilhá-la. Após sua morte, a cena final do filme é a de um céu azul, deixando mais clara a santidade de Joana, representando assim um final de vida de uma mulher incompreendida pelos pecadores que não ouviram uma chamada por Deus.

Figura 5. Cena final do filme

Cena final do filme
Fonte: FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

 A Idade Média por muito tempo e talvez até hoje, tem o estigma da “Idade das Trevas”; a Inquisição da Igreja tem uma grande influência nisso. A queima de bruxas como o destino de Joana d’Arc é uma das principais características que colaboram para esse pensamento. Para os pensadores Iluministas, a Idade Média representava um período obscuro, sem a ciência e baseado somente na religião e desprezando o uso da razão (LE GOFF, 2007). Esse estereótipo da Idade Média também ainda é presente inclusive nas salas de aula, mas hoje em dia essa visão e a nomenclatura “Idade das Trevas” está caindo em desuso após os medievalistas mostrarem como foi um período rico em todos os aspectos para a humanidade.

Um aspecto importante do período do qual o filme retrata é o de que Joana era apenas uma jovem camponesa anônima. Sua família trabalhava no campo, se não fosse tudo que aconteceu, Joana provavelmente se casaria com um rapaz e trabalharia com ele no campo já que esse era o destino das moças com a mesma vida que a sua (MACEDO, 2002).

Joana encontrou na religião a sua missão, o filme mostra as aflições de Joana sobre se devia partir ou não, como foi rejeitada primeiramente, depois como foi abraçada pela população que viram nela uma esperança, suas dificuldades quando estava em frente ao exército e, apesar de Ingrid Bergman ser mais velha do que a idade da qual Joana fazia tais coisas, mostra como uma jovem mulher foi depois abandonada pelos quais ela tanto ajudou, sendo então morta e deixada de lado, tendo a sua história honrada somente séculos depois, canonizada e estabelecida como padroeira da França, país esse do qual deu a sua vida.

Apesar do filme de Victor Fleming abordar Joana e afirmar sua santidade, muitas outras retratações são diferentes. Alvo de inúmeras retratações no cinema e na tv, a vida de Joana continua sendo recontada para um novo público de tempos em tempos, sua figura não é somente a de uma santa, muitas dessas representações inclusive deixam de lado essa parte, mas sim representada como uma mulher com seus objetivos em um período difícil para ser uma mulher e ter esses objetivos. Diferente da década de 40 na qual o filme foi feito, hoje em dia as produções sobre mulheres são baseadas em biografias que retratam mulheres fortes de seu tempo, que tinham sua força por conta de suas determinações.

Um exemplo de filme que foi refeito para a audiência atual é O Homem Invisível de 1933 dirigido por James Whale, no qual o filme foi reformulado e lançado com o mesmo nome em 2020, dirigido por Leigh Whannell, retratando a noiva do cientista como a protagonista e a heroína da história. Isso mostra que um filme muda de acordo com a sua atual audiência.

No filme Joana d’Arc de 1999 dirigido por Luc Besson, Joana é retratada de forma diferente da versão de Fleming. Nesse filme, Joana não é retratada somente como uma santa, mas que talvez suas visões fossem alucinações ou que ela via significado divino em coisas que não havia. Em 41 anos, Joana foi retratada de santa para perturbada. Talvez para um começo de um novo século, não era necessária a imagem de uma mulher santa, mas de uma cheia de conflitos, vingança e ambígua.

Sendo assim, a mesma história pode ser retratada de formas diferentes, assim como Rosenstone diz “Os filmes históricos mesmo quando sabemos que são representações fantasiosas ou ideológicas, afetam a maneira que vemos o passado” (ROSENSTONE, 2010, p. 18). A história de Joana pode ser a mesma, mas representada de formas diferentes de acordo com o público e objetivo. O mundo precisa de uma santa? De uma heroína? De uma mártir? Tudo depende do contexto.

REFERÊNCIAS

BESSON, Luc. Joana D’Arc. EUA/França. Produtora: Gaumont, 1999 (155 min.) Título original: The Messenger: The story of Joan of Arc.

CAMACHO, Carlos Mário Paes. As representações da cidade medieval nos livros didáticos de história do ensino médio brasileiro. Dissertação, Universidade Severino Sombra. Vassouras, 2008. Disponível em: <https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-88080/as-representacoes-da-cidade-medieval-nos-livros-de-historia-do-ensino-medio-brasileiro>. Acesso em: 21 Dec. 2020.

FLEMING, Victor. Joana D’Arc. EUA. Produtora: Sierra Pictures, 1948 (145 min.) Título original: Joan of Arc.

INFOPÉDIA. hagiografia | Definição ou significado de hagiografia no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa. Infopédia – Dicionários Porto Editora. Disponível em: <https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/hagiografia>. Acesso em: 28 Dec. 2020.

MACEDO, José Rivair. A mulher na idade média. São Paulo, Sp: Editora Contexto, 2002.

LE GOFF, Jacques. A Idade Média: explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

SANTOS, Abkeila Cristina dos. Santa Joana de Hollywood: Análise dos elementos hagiográficos nos filmes de Victor Fleming e Luc Besson. Dissertação, Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, 2014.

João 2 – ACF – Almeida Corrigida Fiel – Bíblia Online. Bibliaonline.com.br. Disponível em: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/jo/2>. Acesso em: 29 Dec. 2020.

WHALE, James. O Homem Invisível. EUA. Produtora: Universal, 1933 (71 min.) Título original: The Invisible Man.

WHANNELL, Leigh. O Homem Invisível. EUA/Austrália. Produtora: Blumhouse Productions, (124 min.) Título original: The Invisible Man‌.

[1] Graduação de licenciatura em História pela Universidade de Sorocaba (2019), cursando licenciatura em Pedagogia pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (2020-) e cursando licenciatura em Artes Visuais pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (2021-). ORCID: 0000-0003-4045-9783. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9113867270172228.

Larissa Braz da Silva

Larissa Braz da Silva

Graduação de licenciatura em História pela Universidade de Sorocaba (2019), cursando licenciatura em Pedagogia pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (2020-) e cursando licenciatura em Artes Visuais pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (2021-). ORCID: 0000-0003-4045-9783. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9113867270172228.

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