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Livros Acadêmicos

3. O sistema de escrita alfabética e a sua relevância

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Indianara Aparecida Cavalcante Lourenço [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1871

INTRODUÇÃO

O fato de as crianças estarem inseridas em uma cultura grafocêntrica[2], não garante (embora auxilie) a apropriação das relações existentes entre o que falamos e o que escrevemos. Estas apropriações são oriundas de um trabalho explícito realizado com intencionalidade e sistematização, pois contrário ao aprendizado da fala que é natural (salvo exceções), a escrita é um produto cultural inventado pela humanidade (NAVAS e SANTOS, 2002).

Considerada a sua complexidade, alguns questionamentos se fazem presentes em sala de aula quando o objetivo é trabalhar o aprendizado inicial da leitura e da escrita com as crianças: De onde partir? Quais letras utilizar? Em que etapa escolar iniciar?

O alfabeto é o conjunto de letras que corresponde à pauta sonora dos falantes de uma língua. O Português do Brasil é estruturado com 21 consoantes e 5 vogais, sendo que a maioria das palavras seguem predominantemente a estrutura CV (consoante/vogal) e todas contêm pelo menos uma vogal (MORAIS, 2012). Logo, podemos inferir que, para escrever o que falamos ou pensamos precisamos utilizar letras de um repertório específico e finito.

Segundo Morais (2012) o alfabeto é também denominado de SEA (Sistema de Escrita Alfabética), escrita alfabética, ou ainda, sistema alfabético, e é por meio dele que nos tornamos alfabetizados.

Em síntese, a alfabetização é o processo de aprendizagem do sistema alfabético e de suas convenções, ou seja, a aprendizagem de um sistema notacional que representa por grafemas, os fonemas da fala (CEALE, 2004). Dito de outra forma, é a aprendizagem inicial da leitura e da escrita.

O dicionário Houaiss (2001, p. 678), apresenta duas definições sobre a palavra sistema que, a priori, converge com o contexto que abordamos:

1) Conjunto de elementos, entre os quais haja alguma relação, e

2) Disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que formam uma estrutura organizada.

Assim, o SEA envolve prioritariamente uma série de propriedades (relação/estrutura organizada) específicas de ordem conceitual e convencional. Conceitual porque estabelece questões que envolvem a essência do sistema de escrita que é a representação simbólica/notacional (grafema/fonema). E convencional porque está no âmbito das convenções, que se configuram nas regras estabelecidas:  direcionamento da escrita – escrever de cima para baixo, da esquerda para a direita e com segmentação entre as palavras – e a aquisição de suas regras morfológicas.

A partir deste momento, elencaremos de forma contextualizada as dez propriedades do SEA escritas por Morais (2012), para que as indagações realizadas no início deste trabalho possam ser respondidas e compreendidas por todos que trabalham com a alfabetização.

ESCREVE-SE COM LETRAS QUE NÃO PODEM SER INVENTADAS, QUE TÊM UM REPERTÓRIO FINITO E QUE SÃO DIFERENTES DE NÚMEROS E DE OUTROS SÍMBOLOS

No início da alfabetização é natural que as crianças encontrem dificuldades para se registrarem de forma convencional. Isso ocorre porque não compreendem a essência do sistema de escrita. Assim, para compreenderem esta propriedade, é necessário discernir entre números, letras e outras formas gráficas. Para isso, o professor pode levar para a sala de aula diversas imagens, letras e números, e solicitar que as crianças as separem classificando-as por meio de alguns critérios estabelecidos: conjunto de desenhos, conjunto de números ou, conjunto de letras. Assim, além de tornar o aprendizado mais interativo e lúdico faz com que as crianças compreendam a diferença, e a funcionalidade de cada um dos símbolos no seu cotidiano.

AS LETRAS TÊM FORMATOS FIXOS E PEQUENAS VARIAÇÕES PRODUZEM MUDANÇAS NA IDENTIDADE DAS MESMAS (p q b d), EMBORA UMA LETRA ASSUMA FORMATOS VARIADOS (P p P p)

Estamos acostumados a olhar os objetos e, ainda que estejam em posições não convencionais, os identificamos exatamente como são. Um copo não deixa de ser copo apenas por estar de cabeça para baixo. O mesmo, porém, não acontece com as letras. Se tomarmos como exemplo a letra “W” colocando-a em uma posição contrária teremos como resultado a escrita da letra “M”. O “P”, também passa por essa questão quando não posicionado de maneira correta: ora vira b, ora vira d.

Por isso, estimular as crianças a representarem as letras com o próprio corpo, e traçá-las em distintos suportes como caixas de areia, pátio da escola, quadro da sala, etc., além de proporcionar momentos de destreza no manuseio dos registros, auxiliará na compreensão acerca dos formatos e a sua posição nas palavras.

A ORDEM DAS LETRAS NO INTERIOR DA PALAVRA NÃO PODE SER MUDADA

Os grafemas são letras que representam os fonemas (os sons da fala). Assim, podemos considerar que as palavras possuem um repertório estável de letras que não podem ser modificadas para não alterarem o seu significado. Por exemplo, na palavra CURSO, se a criança porventura colocar a letra C após a letra O, terá escrito outra palavra: URSOC, inviável à compreensão no nosso idioma.

Logo, atividades em que as crianças possam brincar de inserir letras em palavras de destaque como os nomes dos colegas e da professora lhes proporcionarão a segurança necessária para compreenderem o sentido desta propriedade.

UMA LETRA PODE SE REPETIR NO INTERIOR DE UMA PALAVRA E EM DIFERENTES PALAVRAS, AO MESMO TEMPO EM QUE DISTINTAS PALAVRAS COMPARTILHAM AS MESMAS LETRAS

Estabelecer estratégias lúdicas para que as crianças percebam que a letra B de bola faz parte também do nome do Bruno e está presente nas palavras: cambalhota, cabide, etc. Para isso, o jogo palavra puxa palavra[3] (MACACO – CACO – BONECA – BONÉ – SERPENTE – PENTE – CAMALEÃO – LEÃO) é um excelente recurso, pois auxilia sobremaneira nessa percepção.

NEM TODAS AS LETRAS PODEM OCUPAR CERTAS POSIÇÕES NO INTERIOR DAS PALAVRAS E NEM TODAS AS LETRAS PODEM VIR JUNTAS DE QUAISQUER OUTRAS

O sistema de escrita do português brasileiro apresenta muitas regras que devem ser trabalhadas com as crianças por meio de jogos para facilitar as descobertas necessárias e assim, compreenderem, por exemplo, que nenhuma palavra pode ser iniciada com RR ou Ç e que antes de P e B só se escreve o M.

AS LETRAS NOTAM OU SUBSTITUEM A PAUTA SONORA DAS PALAVRAS QUE PRONUNCIAMOS E NUNCA LEVAM EM CONTA AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS OU FUNCIONAIS DOS REFERENTES QUE SUBSTITUEM

Não obstante, o português brasileiro seja mais transparente do que opaco (Soares, 2020) não há linearidade absoluta entre fala e escrita. Logo, nem todas as palavras que escrevemos têm exatamente o som das letras que pronunciamos, como táxi, exame, casa, etc. Nesse sentido, um ótimo recurso para se trabalhar estas complexidades linguísticas denominadas por Sônia Moojem (2015) de irregularidades da língua, é o gênero textual lista de palavras, em que por meio de brincadeiras o (a) professor (a) juntamente com as crianças irá classificá-las objetivando a compreensão da consciência das regras que possuem a escrita convencional.

AS LETRAS NOTAM SEGMENTOS SONOROS MENORES QUE AS SÍLABAS ORAIS QUE PRONUNCIAMOS

Algumas letras possuem um som mais perceptivo (audível) que outras como no caso das vogais e de algumas consoantes como V/F, ou seja, são letras que não competem seus sons com outras. Sendo assim, brincar de cruzadinha, de bingo ou outras situações lúdicas que evidencie o som das letras auxiliará no trabalho de percepção da relação existente entre os grafemas (letras) e fonemas (sons) de uma palavra.

AS LETRAS TÊM VALORES SONOROS FIXOS, APESAR DE MUITOS TEREM MAIS DE UM VALOR SONORO E CERTOS SONS PODEREM SER NOTADOS COM MAIS DE UMA LETRA

Atividades que envolvam músicas, parlendas e trava-línguas auxiliarão na tomada de consciência pela criança de que muitas palavras começam, terminam ou possuem em seu interior sons semelhantes.

ALÉM DE LETRAS, NA ESCRITA DE PALAVRAS USAM-SE ALGUNS ACENTOS QUE PODEM MODIFICAR A TONICIDADE OU O SOM DAS LETRAS OU SÍLABAS ONDE APARECEM

O nome próprio é a primeira referência significativa de palavra estável que as crianças reconhecem. Assim, utilizá-los para que compreendam as diferenças existentes entre um som/pronúncia, irá permitir a compreensão de que certos acentos nos seus nomes, e também nos nomes dos seus colegas são importantes na concepção de diferenças de sons e, por consequência, nas pronúncias de palavras que lemos ou falamos.

AS SÍLABAS PODEM VARIAR QUANTO ÀS COMBINAÇÕES ENTRE CONSOANTES E VOGAIS (CV/CCV/CVV/CVC/V/VC/VCC/CCVCC) MAS A ESTRUTURA PREDOMINANTE NO PORTUGUÊS É A SÍLABA CV (CONSOANTE/VOGAL) E TODAS AS SÍLABAS DO PORTUGUÊS CONTÉM AO MENOS UMA VOGAL

Construir com as crianças uma lista de palavras partindo de uma história contada ou de seus próprios nomes, auxiliará na percepção de que há, no nosso idioma, uma série de palavras que possuem diferentes combinações de letras, como pode ser visto no quadro abaixo.

Quadro 1- Demonstrativo de uso das consoantes/vogais

CV BALA
CCV PRATO
CVV PAI
CVC PORTA
VC AMAR
VC ESQUILO
VCC INSTAGRAM
CCVCC TRANSFORMAÇÃO

Fonte: a autora.

Partindo do pressuposto que o aspecto da linguagem é abordado no campo de experiência Escuta, fala, pensamento e imaginação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[4] para o público da educação infantil, e que o princípio alfabético (SEA) faz parte do conjunto das habilidades a serem desenvolvidas no ciclo inicial da alfabetização (1º/2º) também proposto por este documento, concluímos que, desde os primeiros dias do ano escolar de uma criança o alfabeto deve fazer parte da rotina didática em múltiplas e diversificadas situações.

Logo, saber como direcionar esse trabalho é de suma relevância para o bom desenvolvimento do aprendizado do SEA, visto que suas propriedades descritas e contextualizadas acima denotam um aspecto rigorosamente complexo e necessário para que ocorra uma alfabetização eficiente e adequada para as nossas crianças.

Quanto à escolha da letra ao iniciar o trabalho, como pudemos observar ao descrever as propriedades de número 2/3, o formato das letras carrega em si uma especial exigência quanto aos seus traçados. Pensando nessa complexidade, a escolha do tipo de letra tem uma importante conotação. Temos uma infinidade de fontes, porém as quatro utilizadas em sala de aula para o ensino da língua, são: imprensa maiúscula (bastão), script e cursiva (maiúsculas e minúsculas).

A respeito da letra cursiva no trabalho inicial da alfabetização, Luzia Bomtempo explica em seu livro “Alfabetização com Sucesso” que esta letra deve ser inserida com as crianças quando elas estiverem no nível alfabético[5]. Morais (2012, p. 79) amplia a discussão enfatizando que as letras de imprensa maiúsculas/bastão são “especialmente adequadas para as atividades de reflexão sobre as palavras e atividades, pois auxiliam as crianças a compreenderem as propriedades do SEA”. Assim, este autor recomenda a utilização desse tipo de letra, no trabalho inicial da alfabetização pelos seguintes motivos:

– Apresenta menos desgaste cognitivo para o seu aprendizado, pois possui um traçado considerado simples e limpo; “o que permite ao aprendiz concentrar-se melhor na tarefa de refletir sobre quais e quantas letras vai pôr e em que ordem vai dispô-las, ao escrever” (MORAIS, 2012, p. 142).

– Como as letras de imprensa maiúsculas se apresentam de maneira delimitada (uma separada da outra), a criança visualiza melhor onde começa e onde termina cada uma favorecendo, portanto, a percepção da “identidade de cada letra da palavra, a ordem em que as letras aparecem, quantas letras compõem a palavra, e, também, quais são iguais e quais são diferentes” (MORAIS, 2012, p. 143).

Contudo, Bomtempo (2003) e Morais (2012) advertem que, embora se privilegie o trabalho com as letras de imprensa maiúsculas no início do processo da alfabetização, familiarizar os outros tipos de letras nos momentos oportunos se faz relevante, uma vez que fazem parte do universo cultural das crianças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com a UNESCO (2006), a alfabetização é o processo de apropriação de habilidades cognitivas específicas, e uma delas é a apropriação do sistema de escrita utilizado no idioma falado. Porém, como visto nos escritos desta pesquisa, esta apropriação não é natural, ou seja, não basta estar envolto a diferentes materiais escritos, é necessário um ensino explícito, intencional e sistemático. Por isso, concluímos que dotar os professores que trabalham com este público de sugestões práticas, interativas e significativas, irá auxiliá-los em suas práticas pedagógicas, favorecendo, assim, a aquisição desta habilidade cognitiva pelos estudantes.

REFERÊNCIAS

BOMTEMPO, Luzia. Alfabetização com sucesso. Contagem: Oficina Editorial, 2003.

HOUAISS. Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MORAIS, Artur. Sistema de Escrita Alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012.

MOOJEN, Sonia Maria Pallaoro. A Escrita Ortográfica na Escola e na Clínica. Teoria, Avaliação e Tratamento. São Paulo: Ed: Casa do Psicólogo, 2015

SANTOS, Maria Thereza Mazorra dos; NAVAS, Ana Luiza G. P. Distúrbios de leitura e escrita: teoria e prática. São Paulo: Manoele, 2002.

SOARES, Magda. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2020.

[1] Mestranda em Educação. ORCID: 0000-0003-4484-8866.

[2] Cultura centrada na escrita.

[3] Jogo proposto na caixa amarela do PNAIC – Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa, implementado pelo governo federal em 2012.

[4] Documento normativo homologado no ano de 2017 para direcionar (aprendizagens essenciais) todas as escolas do país.

[5] O nível alfabético diz respeito a um dos estágios descritos pela Psicogênese da escrita proposta por Emília Ferreiro e Ana Teberosky em suas pesquisas.

Indianara Aparecida Cavalcante Lourenço

Indianara Aparecida Cavalcante Lourenço

Mestranda em Educação. ORCID: 0000-0003-4484-8866.

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Linguística Letras e Artes Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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1871

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