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Livros Acadêmicos

4. A construção de um novo fenômeno religioso no ambiente virtual

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Carla Viana Dendasck [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1783

 

Este capítulo tem como objetivo apresentar o contexto desenvolvido na tese de doutorado em Comunicação e Semiótica realizada na Pontifícia Universidade de São Paulo, orientada pelo Professor Doutor Rogério Costa.

O Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica (COS), da referida instituição, possui três linhas de pesquisas: 1) Regimes de sentidos nos processos comunicacionais; 2) Processos de criação na comunicação e na cultura; 3) Dimensões políticas na comunicação.

A linha de pesquisa apropriada na realização deste estudo é: Dimensões políticas na comunicação. A tese original é intitulada: Jesus Demodê e a construção da Ciberfé: Evidenciação da Teologia Líquida na apropriação da Cabala.

Desta feita, investigou-se como o fenômeno religioso está sendo construído no ambiente virtual pelos “comunicadores da fé”, tendo como foco a análise do contexto teológico dogmático trazido pelos Rabinos Judeus Ortodoxos, na propagação da Cabala. E, como os adeptos de outras religiões, que propagam dogmas aparentemente contraditórios aos ensinos cabalísticos estão construindo um ambiente de “ciberfé”.

Alguns apontamentos iniciais são necessários para a compreensão deste estudo. Primeiramente, não há dúvidas de que o contexto religioso foi, e ainda é, um dos grandes responsáveis pela criação da sociedade ocidental em seus amplos aspectos, norteando de forma direta as mentes, a conduta ética e moral, direito, economia, dentre outros aspectos. Essa constatação é evidenciada como foco de preocupação, análise e discussões de praticamente todos os grandes pensadores do Ocidente, perpassando diversas áreas como política, comunicação, antropologia, filosofia etc.

Desta forma, compreender a construção de novos fenômenos religiosos nos possibilita traduzir e nortear discussões em diversas áreas, sendo indubitavelmente um estudo de ampla aplicação.

Assim, a problemática do que chamamos de “teologia líquida ocidental”, produzida como consequência de sua própria construção, e dos meandros que foram ocorrendo no decorrer da história, acabam agora por desembocar no que parece ser uma busca pela reterritorialização da fé.

Expliquemos um pouco melhor este ambiente. A doutrina cristã tem como base a figura de Jesus Cristo, um Rabino Judeu que construiu seu discurso propagando a união de pessoas, a conduta moral, a ética, a fé, o amor, a humildade, o não julgamento, a autorreflexão, e, a vida simples como uma dádiva, já que os outros critérios envolviam especialmente a transformação interna do ser humano. O maior exemplo de seu discurso de fé pode ser apontado como sendo o “Sermão da Montanha” (N.T- Mateus 5).

Seu ministério durou apenas 3 anos, e grande parte das discussões de sua teologia, conduta e pregação eram direcionadas a questionar os ensinos judaicos, inclusive quebrando a crença de que apenas os judeus nascidos de ventre de mãe judia seriam passíveis de serem os herdeiros de Deus, incluindo todos os humanos que aceitassem seu discurso como merecedores do “Reino dos Céus”. Sendo essa uma das justificativas de sua morte, já que o Império Romano, nesta época, já passava por problemas que levariam sua decadência não queriam se indispor com os Judeus, que representava uma forte parcela da sociedade, inclusive sendo a maior parcela de intelectual e econômica (ROLIM, 2000).

Após sua morte, o discurso de Jesus Cristo foi sendo apropriado por diversos grupos sociais, inclusive por grupos filosóficos, sendo espalhado de uma forma mais filosófica de estilo de vida, conduta, crença moral e de fé, do que propriamente uma religião organizada. Foi apenas, após 300 anos, com a “conversão” de Constantino, imperador do Império Romano, que a busca por unificar uma única fé foi executada.

Constantino, reuniu os maiores líderes da fé cristã para formatar uma única religião e teologia. O grande marco, foi o Concílio realizado em 327, onde foi decidido que a teologia e dogmática cristã deveria seguir as compreensões a partir do discurso de Jesus Cristo, e das orientações da igreja. Foram realizados diversos Concílios posteriores onde as compreensões e dogmas foram sendo reformuladas, como por exemplo: a crença em reencarnação, casamento de líderes religiosos, conduta sexual, dentre outros fatores que, como já aludimos anteriormente, foram modulando a construção social, inclusive disparando o movimento da inquisição que punia de diversas formas, inclusive com tortura e morte, quaisquer pessoa que apresentasse discordância com a teologia e dogmática Católica Apostólica Romana (ROLIM, 2000).

Em 1517, ocorre o Movimento Protestante, encabeçado por Martinho na Alemanha e João Calvino na Suíça. Esse movimento criou a abertura para outras diversas compreensões e formatações teológicas, descentralizando a fé e a religião. No entanto, a base de sua teologia e liturgia ainda prevaleceram no cristianismo.

Durante esse período a Cabala, pertencente a mística judaica era mantida não apenas em sigilo, mas de possível acesso apenas a uma camada de Judeu, os Rabinos, e mesmo assim, seus ensinos eram criticados e até mesmo rejeitado por uma parcela de judeus. Spinoza foi um dos primeiros judeus cabalistas a encontrar nesta filosofia uma certa explicação para uma conduta social adequada, e de uma fé que não fosse baseada em guerras e normas opressoras. Apontando então o grande problema da religião manipuladora. No entanto, a filosofia cabalista de Spinoza foi considerada não apenas inadequada, mas afrontosa na exposição de um conhecimento que deveria manter-se velado (LALIGA, 2011).

A insistência de Spinoza em propagar tal filosofia, o levou a expulsão do judaísmo, e, uma tentativa de assassinato, que desembocou em uma vida reclusa, onde dedicou-se a trabalhar no polimento de lentes para sua sobrevivência financeira, e na propagação de sua filosofia, que foi sendo apropriada rapidamente por grandes e influentes intelectuais, dentre eles Leibniz (LALIGA, 2011).

Nota-se, portanto, que a Teologia Cristã foi construída em uma associação entre o discurso de Jesus Cristo e as compreensões que os líderes religiosos foram se apropriando, por outro lado, a Cabala, faz parte do conhecimento místico judaico, sendo por muitos anos acessada apenas por algumas classes de rabinos, e apontadas por muitos, inclusive pela igreja católica e, posteriormente o movimento protestante como sendo uma filosofia herege e demoníaca.

Nadler (2013) traz de forma muito rica a repulsa que a filosofia de Spinoza ocasionou quando foi publicado seu livro, “Tratado Político e Teológico”, em 1670. Nota-se que Spinoza apenas desenvolveu uma filosofia com influências cabalistas, não expôs a mística cabalista em nenhum instante. Ainda assim, seu livro levantou inúmeras discussões e críticas, levando o teólogo, filósofo e professor um universitário, e alemão Jakob Thomasius a desenvolver uma campanha contra Spinoza, escrevendo diversas cartas públicas, acusando seu livro como: “Um livro Forjado no Inferno”, indicando que “o livro ímpio” deveria ser removido de todas as nações. Thomasius, foi apoiado por muitos outros atores influentes como, seu colega neerlandês Regnier van Mansvelt, professor da Universidade de Blijenbergh, que asseverou que o livro era contra todas as religiões.

Desta forma, vamos ter uma formação histórica contraditória, dicotômica entre quaisquer resquícios da Cabala e da Teologia Cristã, sendo católica ou protestante, que se consolidou de forma generalizada até o ano 2000.

Costa (2009) ao descrever sobre a vida e obras de João Calvino, aponta, que o próprio Calvino no final de sua vida, reconheceu que o movimento protestante pode ter ocasionado uma abertura para desfragmentação teológica cristã. De certa forma, foi o que a história apresentou, especialmente na criação de inúmeras vertentes teológicas, hibridizações, movimentos pentecostais e neopentecostais, que emergiram após a década de 1920, explodindo no Brasil após a década de 1960.

O movimento neopentecostal mostrou-se cada vez mais distante da construção da teologia com base no discurso de Jesus Cristo, incorporando o capitalismo, e consequentemente, diversos mecanismos para abarcar a “clientela”. Assim, dentro de um mundo neoliberal surgem movimentos como: teologia da prosperidade, teologia da libertação, dentre outras discussões teológicas, adotadas pelas mais variadas formas de religiões que tinham como objetivo manter: o interesse, a atenção, fidelização, os dízimos e ofertas de seus adeptos. Construindo assim, diversas formas de consumo e experiências religiosas, ou seja, apropriando-se das tendências de mercado para ajustar suas respectivas teologias a “gosto do cliente” (PEREIRA, 2012).

As igrejas começam então a trabalhar com diversos mecanismos, como forte exposição na mídia, shows, sermões que introduzem a prosperidade como recompensa por agradar a Deus, e elementos do Antigo Testamento, que trazem o símbolo de Israel em seus anos de prosperidade, começam a ser incorporados como vitória que deve pertencer apenas ao “povo de Deus”.

Desta forma, a apropriação do termo: “Teologia Líquida”, justifica-se pela desconstrução da teologia cristã responsável por criar e solidificar o próprio contexto ocidental, mas que agora, se distancia do discurso de Jesus Cristo, pois pensar em uma vida simples, em uma reforma interior, e uma mentalidade voltada “Reino dos Céus” não é mais passível para o capitalismo, que promete a riqueza financeiras e todas os demais prazeres como sendo algo que todo cristão deve almejar. O discurso de Jesus Cristo, tornou-se então demodê.

Enquanto o discurso de Jesus Cristo tornou-se demodê, reverberando em uma Teologia Líquida, os cristãos sentiram a penúria da desterritorialização de um mundo “pós Deus”, como aponta Sloterdijk (2019).

Porém, no final da década de 1990, começam a emergir movimentos cabalistas, e a tradição que era considerada secreta expande-se rapidamente. Um dos propulsores dessa explosão foi a atuação de Karen Berg, uma espiritualista casada com um Judeu Ortodoxo que ganha o interesse de celebridades nos EUA, em especial a cantora Madonna, a atriz Demi Moore, dentre outros que vão ajudá-la na construção da Kabbalah Centre, organização que hoje atua em diversos países, inclusive no Brasil.

Justamente com este movimento diversos rabinos ortodoxos começam a escrever sobre a Cabala em seus mais variados formatos, propagando de forma aberta e massiva diversos conhecimentos cabalísticos.

Aqui no Brasil, no início dos anos 2000 começaram a surgir canais no Youtube de Rabinos Judeus Ortodoxos com diversos conteúdos cabalísticos, propagando muitos conhecimentos e filosofias que ressaltam o que Spinoza já havia preconizado, e ao mesmo tempo se contradiz com a teologia cristã. Inclusive, a própria aceitação de Jesus Cristo como o Messias, e, a despersonificação do Deus construído pela igreja, ressaltando seus diversos atributos e manifestações, inclusive apontando uma das manifestações de Deus como sendo a própria natureza.

Esta tese, apresenta-se justamente na análise dos principais canais do Youtube que falam sobre a Cabala, demonstrando que a maioria dos adeptos que assinam, compartilham e aderem aos conteúdos se dizem cristãos, além disso, analisa os depoimentos, que agora se apropriam do judaísmo como se fosse a base da fé cristã, e defendendo elementos que outrora fora alvo até mesmo de expulsão, prisão, tortura e morte.

Observa-se ainda, que a adesão do conteúdo da Cabala pelos cristãos não parece ocorrer pelo simples reconhecimento do conteúdo ministrado, mas especialmente pelo local de fala que o apresentador representa. Como aponta Katz (2019), o local de fala atua como espécie de autorização que o indivíduo tem para manifestar-se sobre algo. E, só é permitido que esse conhecimento seja reverberado por atores específicos.

Ou seja, em nossa tese observamos que embora o conteúdo da Cabala seja contraditório a teologia cristã, quando esse conteúdo é ministrado por um Rabino Judeu Ortodoxo, é prontamente aceito e incorporado pelos diversos tipos de cristão, porém, se o mesmo conteúdo for ministrado por outro tipo de apresentador, o canal não apenas tem rejeição, como os cristãos que assistem continuam as mesmas acusações que se deram no decorrer da história, como por exemplo, de ser um conteúdo herege.

Por fim, como já aludido, espera-se que este estudo possa fornecer subsídios para que diversas áreas de pesquisas venham compreender e atuar junto aos reflexos da “Teologia Líquida”.

Referências

BÍBLIA. Matheus. Português. In: A Bíblia sagrada: antigo e novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.

KATZ, Helena. Quando o “lugar de fala” se torna “fala do lugar”. In: Moura, G et al. Agora: Modos de ser em dança. Ed. Jogos de Palavras, 2019.

LALIGA, Lourdes Rensoli. La polémica sobre la Kabbalah y Spinoza: Moses Germanus y Leibniz, ed. Nova Leibniz, 2011.

PEREIRA, João Baptista Borges. Religiosidade no Brasil. Ed. Edusp, 2012.

ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano, 2ª edição, ed. Revistas dos Tribunais

SLOTERDIJK, Peter. Pós Deus. Ed. Vozes, 2019.

[1] Doutora em Psicanálise com Ênfase em Neurociência, Doutoranda em Comunicação e Semiótica, Mestre em Psicanálise Clínica, Mestre em Ciências da Religião. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2952-4337. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/2008995647080248.

Carla Viana Dendasck

Carla Viana Dendasck

Doutorado em Psicologia e Psicanálise Clínica. Doutorado em andamento em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestrado em Psicanálise Clínica. Graduação em Ciências Biológicas. Graduação em Teologia. Atua há mais de 15 anos com Metodologia Científica (Método de Pesquisa) na Orientação de Produção Científica de Mestrandos e Doutorandos. Especialista em Pesquisas de Mercado e Pesquisas voltadas a área da Saúde. ORCID: 0000-0003-2952-4337. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2008995647080248

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Ciências Sociais Aplicadas Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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1783

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