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Livros Acadêmicos

5. Mas afinal, é ou não é esporte? A definição acadêmica sobre os e-Sports e a ascensão de uma nova fase dos esportes

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Marcos Henrique Martins Marques [1]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1787

Introdução

Em janeiro de 2023 durante entrevista, a Ministra dos Esportes, Ana Moser, chamou a atenção e causou certa polêmica. Para ela, os esportes eletrônicos ou e-Sports não são esportes e sim uma indústria do entretenimento ao destacar que o segmento não terá investimentos do Governo Federal[2].

A fala da Ministra gerou bastante repercussão negativa e acendeu uma polêmica acerca dos esportes eletrônicos. O que muitas pessoas desconhecem é que essa discussão dentro do mundo acadêmico é bastante antiga com debates até bastante complicados sobre as definições do que é esporte e também dos esportes eletrônicos.

Assim o que se busca destacar é como os estudos na área têm definido os esportes eletrônicos e se de fato eles podem ou não ser considerados esportes. É necessário, sobretudo, colocar esse debate em voga para uma perspectiva que afaste o senso comum sobre um assunto que ganha uma repercussão social relevante para além das cifras que movimenta.

A sociedade mudou e os games também: o professional gaming e o desenvolvimento digital 

Um ponto importante dentro dessa discussão é entender que historicamente os videogames foram evoluindo e mudaram bastante à medida que a tecnologia também evoluiu. Conforme Li (2016), a primeira competição de videogame é datada de outubro de 1972 quando duas dezenas de alunos competiram jogando SpaceWar no Laboratório de Inteligência Artificial da Universidade de Stanford. Para além disso, um dos primeiros torneios competitivos em grande escala foi realizado pela Atari com um campeonato de Space Invaders nos anos 1980 que contou com uma cobertura da imprensa e mais de dez mil participantes (MACEDO e FALCÃO, 2016; BOROWY e JIN, 2013; ELECTRONIC GAMES, 1982).

Conforme Macedo e Falcão (2016, p.251), o professional gaming se desenvolveu de fato com a chegada de inovações tecnológicas e informacionais na década de 1990. Um exemplo são as ferramentas de rede em jogos para PCs. Como destaca Taylor (2012, p.9 apud Macedo e Falcão 2012, p.251) os jogos em LAN foram fundamentais para a formação da comunidade de e-Sports e isso ocorreu na medida em que as tecnologias comunicacionais ofereceram suporte ao jogo como bate-papo em tempo real, canais de transmissão de áudio e vídeo, sites e etc

Desta forma, os jogos de tiro e espaçonaves foram os pioneiros do e-Sport e a criação dos First Person Shooters (FPS) para computador pessoal (PC) um marco no   desenvolvimento do jogo profissional com a contribuição de títulos como Doom (id Software, 1993) e Quake (id Software, 1996).

Atualmente o cenário dos esportes eletrônicos é completamente diferente de uma partida de arcade de outras décadas. Os e-Sports estão em um processo de “consolidação de um fenômeno de profissionalismo dos jogos digitais, além da consequente ascensão do esporte eletrônico como um empreendimento ao qual se agrega uma dimensão do esporte” (MACEDO e FALCÃO, 2019, p. 247).

O clássico esporte tradicional x e-Sports: a definição de esportes eletrônicos e uma polêmica desgastada

O fato é que o termo “esporte eletrônico” ou e-Sport vem do final dos anos 1990 encontrado em que uma das primeiras fontes confiáveis sobre o termo que é um comunicado sobre o lançamento da Online Gamers Association (OGA) em 1999 na Inglaterra (WAGNER, 2006).

Diversos autores destacam que a busca por uma definição exata de e-Sport é dificultosa. Para Jin (2010), ao contrário dos esportes tradicionais, o e-Sport é uma interconexão de diversas plataformas, então ele é computação, jogos, mídia e um evento esportivo.

É necessário destacar que uma das definições mais utilizadas é a de Wagner (2006) que afirma que o e-Sport é: “uma área de atividades esportivas na qual as pessoas desenvolvem e treinam habilidades mentais ou físicas no uso de tecnologias de informação e comunicação”. Como aponta Li (2016), o e-Sport pode ser mais comumente conhecido como videojogos competitivos. Já Macedo e Falcão (2019, p. 248) o definem como:

(…) uma propagação legítima do esporte convencional enquanto modalidade esportiva. Nele, o competidor encontra-se conectado a uma máquina que trata de desenvolver grande parte do trabalho, a competição tem vencedores e   perdedores e é essencial muita habilidade corporal e um engajamento cognitivo complexo para participar dessas disputas como jogador (MACEDO e FALCÃO, 2019, p. 248).

 E no geral é assim que ficou conhecido como uma forma de competição esportiva que envolve jogos eletrônicos, mas o debate se ele pode ser definido ou não como um esporte é antigo e ainda perdura mesmo que para alguns autores seja assunto resolvido.

Jenny et al (2016) em sua pesquisa julgaram a necessidade de trazer algumas definições e compreensões da natureza e definições históricas do esporte. Assim elencando características do esporte estudadas por autores como Guttmann (1978) e Suits (2007), os autores concluíram as características do esporte: deve incluir brincadeiras (atividade voluntária e intrinsecamente motivada), ser organizado (regras), incluir competição (deve ter um vencedor e um perdedor), ser composto de habilidade, incluir habilidades físicas (uso hábil e estratégico do corpo), ter muitos seguidores e uma estabilidade institucional que o torne uma prática social importante.

Jenny et al (2016) definiram os esportes eletrônicos como “competições organizadas de videogames”, mas afirmam que os e-sports deixam de incluir algumas características que são importantes para serem definidos como esportes, como a ausência de fisicalidade.

Na diferenciação entre os esportes e as demais atividades lúdicas existe uma prioridade dada ao corpo e ao físico em diversas literaturas sobre a temática. É essa relação corporal-motora que molda o que se entende culturalmente como esportes (MACEDO E FALCÃO, 2019 p. 248). Contudo, como destacam Kane e Spradley (2017), existem ligações entre esforço físico, videogames e habilidade onde se percebem diferenças cada vez maiores entre os jogadores profissionais e os que não são, denotando que o domínio do corpo é fundamental tanto no e-Sport como nos esportes tradicionais.

Reitman et al. (2020) realizando uma busca pela literatura acadêmica sobre os e-Sports destacando que eles costumam ser definidos como jogos, esportes ou entretenimento de massa. São definições válidas que decorrem de diferentes estruturas na tentativa de entender os esportes eletrônicos. Borowy e Jin (2013) destacam justamente que o e-Sport combina diferentes elementos com uma economia emergente, práticas de consumo, crescimento do marketing, entre outros.

E-Sports: antes de tudo um objeto interdisciplinar e fruto do seu tempo 

E nessa rixa entre os que acham que os esportes eletrônicos não devem ser englobados dentro do mesmo lugar que os esportes tradicionais, o cenário é que a pasta dos esportes recriada pelo Governo Federal é fundamental[3], o crescimento do e-Sport é notório e o interesse que ele tem gerado maior ainda[4].

A discussão acadêmica sobre se ele é um esporte ou não ainda persiste, mas veja que as ciências sociais no Brasil demoraram anos para, por exemplo, entender o futebol como um objeto de estudo relevante e deixar de lado a perspectiva pessimista do “ópio do povo”[5]. Já os esportes eletrônicos parecem passar por seus próprios dilemas.

É necessário entender o dinamismo de conceituar esporte, pois como observado por Macedo e Falcão (2016 p.264), o entendimento do conceito de esporte implica em perceber que ele é fruto de uma construção social reflexo de uma cultura que lhe dá origem, por isso historicamente datado e situado. Assim concordo fundamentalmente com os dois autores que observam o e-Sport como uma entidade social híbrida interdisciplinar que une esporte, tecnologia, jogo digital, mídia e entretenimento. Vivemos em uma sociedade diferente de outras épocas e com o desenvolvimento do e-Sport é necessário refletir acerca do conceito de esporte envolvido também com as características de uma cultura digital.

Mas como toda a comunidade que forma o esporte eletrônico já sabe, não é preciso o reconhecimento se eles são ou não esportes por parte do Governo Federal. O famoso streamer do mundo dos e-Sports, Alexandre “Gaules” destacou justamente sobre o assunto. “A gente nunca precisou e nem vai precisar dessa galera para ficar dizendo se é esporte ou não é. A gente nunca precisou desse pessoal, nem nunca vai precisar”[6].

Em entrevista ao Globo, a mesma ministra Ana Moser destacou querer fazer esporte para todo mundo[7]. O que fica claro é que não é bem assim, a pasta do esporte ainda não pensa o esporte à luz da cultura digital e por isso mesmo parece ultrapassada logo no seu início.

É óbvio que se deve entender as carências e as dificuldades de pensar e fazer esporte no Brasil, mas, sobretudo, é necessário exigir que as autoridades se atualizem sobre o assunto ao qual trabalham. Os estudiosos da temática destacam que a prática que envolve o e-Sport é, sobretudo, uma nova fase do esporte, porém em terras brasileiras que até pouco tempo atrás sequer tinha um ministério que pensasse apenas no esporte como desenvolvimento motriz de sua sociedade, parece que vai demorar para seu governo entender que essa nova fase já chegou faz tempo.

Referências 

BOROWY, Michael; JIN, Dal Yong. Pioneering eSport: The Experience Economy and the Marketing of Early 1980s Arcade Gaming Contests. International Journal of Communication, Los Angeles, v. 7, p. 1-21, 2013.

JENNY, Seth MANNING, Douglas R., KEIPER, Margaret C., OLRICH, Tracy W. Virtual (ly) athletes: where eSports fit within the definition of “Sport”. Quest, v. 69, n. 1, p. 1-18, 2016.

MACEDO, Tarcízio; FALCÃO, Thiago. E-Sports, herdeiros de uma tradição. Intexto, p. 246-267, 2019.

JIN, Dal. ESports and television business in the digital economy. Korea’s online gaming empire, Cambridge, MA: MIT Press. p. 59-79, 2010.

KANE, Daniel; SPRADLEY, Brandon Daniel. Recognizing ESports as a sport. The Sport Journal, v. 19, n. 5, 2017.

LI, Roland. Good luck have fun: The rise of eSports. New York, NY: Skyhorse Publishing, 2016.

PLAYERS Guide To Electronic Science Fiction Games. Electronic Games, New York, v. 1, n. 2, p. 35-39, mar. 1982.

REITMAN, Jason G., ANDERSON-COTO, Maria J., WU, Minerva, LEE, Je Seok, STEINKUEHLER, Constance. Esports research: A literature review. Games and Culture, v. 15, n. 1, p. 32-50, 2020.

TAYLOR, T. L. Raising the Stakes: E-Sports and the Professionalization of Computer Gaming. Cambridge: MIT Press, 2012.

WAGNER, Michael G. On the Scientific Relevance of eSports. In: International conference on internet computing, p. 437-442. 2006.

[1] Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-2357-1354. Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/5368803891643679.

[2] Disponível em:  https://ge.globo.com/esports/noticia/2023/01/10/ministra-ana-moser-diz-que-esports-nao-sao-esporte.ghtml. Acesso em 17 de fevereiro de 2023.

[3] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/29/lula-anuncia-ex-jogadora-de-volei-ana-moser-para-o-ministerio-dos-esportes.ghtml. Acesso em 17 de fevereiro de 2023.

[4] Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/12/02/exclusivo-mercado-de-games-e-esports-deve-dobrar-no-brasil-em-quatro-anos.htm. Acesso em 17 de fevereiro de 2023.

[5] Para mais informações, ver HELAL, Ronaldo. Futebol e comunicação: a consolidação do campo acadêmico no Brasil. Comunicação Mídia e Consumo, v. 8, n. 21, p. 11-37, 2011.

[6] Disponível em: https://draft5.gg/noticia/gaules-responde-fala-da-ministra-do-esporte-nunca-precisamos-desse-pessoal. Acesso em 23 de fevereiro de 2023.

[7] Disponível em: https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/01/alto-rendimento-e-para-poucos-queremos-esporte-praticado-por-muitos-diz-ana-moser-nova-ministra-do-esporte.ghtml. Acesso em 17 de fevereiro de 2023.

Marcos Henrique Martins Marques

Marcos Henrique Martins Marques

Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). ORCID:  https://orcid.org/0000-0002-2357-1354. Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/5368803891643679.

Uma resposta

  1. É muito absurdo quando “velhos” podem decidir e definir o que é ou não é algo “moderno/novo”, como eles não tem conhecimento dos Esportes Eletrônicos e não tem informação, simplesmente dizem que não é um tipo de esporte e ponto final.
    Muito bom seu artigo, a melhor forma de mudar isso é espalhando informação e conhecimento.

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Ciências Sociais Aplicadas Atualização de Área janeiro e fevereiro de 2023

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10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1787

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