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Considerações sobre o personagem mestiço de índio e branco na obra Meu Tio o Iauaretê de João Guimarães Rosa

RC: 46850
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MAGALHÃES, Luiz Claudio Bernardes de [1]

MAGALHÃES, Luiz Claudio Bernardes de. Considerações sobre o personagem mestiço de índio e branco na obra Meu Tio o Iauaretê de João Guimarães Rosa. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 05, Ed. 03, Vol. 01, pp. 165-174. Março de 2020. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/indio-e-branco

RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre a construção do personagem mestiço índio e branco na obra Meu tio o Iauaretê, de João Guimarães Rosa. Levar-se-á em consideração, em primeiro plano, indícios que sugerem uma relação com a teoria do perspectivismo proposta por Castro (2002). A teoria do antropólogo é tomada como base instigadora não limitante, propulsora de um processo investigativo que tenta compreender as indefinições propositais do personagem. A busca tem como objetivo evidenciar o personagem meio indígena, que surgiu no cenário literário brasileiro em 1969, dentro da coleção de contos “Estas histórias”, como possível representante de uma discussão necessária sobre a posição das culturas ameríndias na atualidade.

Palavras-chave: Conto, literatura brasileira, perspectivismo, construção de personagem.

1. INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre a personagem da obra escolhida é necessário admitir, considerar e respeitar a complexidade de Meu Tio o Iauaretê, que, como todo texto de Guimarães Rosa, liberta o observador por oferecer múltiplas possibilidades, mas, ao mesmo tempo, pode fazê-lo perder-se em um mar de veredas longas e inconclusas. Assim dito, a pesquisa objetiva levantar alguns aspectos sobre a construção do personagem meio indígena. Eles se relacionam com os aspectos da teoria do perspectivismo do antropólogo Castro (2002), estudioso das culturas ameríndias, levando em consideração, também, os aspectos que tangem outras teorias.

Espera-se contribuir com a expansão dos conhecimentos sobre este específico personagem roseano, sobretudo no que tange a questão da posição indígena em nossa cultura, pois é um assunto relevante para este momento histórico. Esta narrativa de Guimarães Rosa traz a história de um mestiço[2], filho de uma índia com um português, que foi contratado por um grande proprietário de terras para caçar e matar as onças em seus domínios. O conto constrói-se dentro do diálogo entre o mestiço e um outro personagem a quem os rastros da conversa nos levam a imaginá-lo como um jagunço, um peão que lida com as armas e a morte.

Sem dizer a que veio, o visitante oferece pinga e fumo ao bugre e faz muitas perguntas. A narração é construída a partir da fala do personagem meio indígena. Tudo que o leitor fica sabendo vem dele, inclusive as reações que nos levam a inferir as perguntas do interlocutor. Essa forma de contar, muito usada por Guimarães Rosa, leva-nos à impressão da ausência de um narrador. Roberto Schwarz, num texto de 1960, sobre o “Grande sertão: veredas”, apontou essa maneira diferenciada de construção da narrativa como uma estrutura que esconde o narrador e causa no leitor a sensação de que é testemunha daquele diálogo diferente, pois só se ouve a voz do mestiço.

2. DESENVOLVIMENTO

A escolha do foco narrativo em primeira pessoa é responsável por conduzir o leitor aos meandros da complexa formação do personagem central. Ao ler esse contar com palavras diferentes, carregado de neologismos, regionalismos e dialetos indígenas, o leitor é conduzido a não apenas olhar com os olhos do personagem como também a sentir, como ele, os cheiros, os barulhos, as cores, as texturas, isto é, tudo que é experienciado pelo personagem. Portanto, pode sentir-se incorporado, compartilhando um corpo construído, ou seja, metamórfico.

As pistas que recebemos desse diálogo nos levam à uma difícil formulação de um personagem impreciso, sempre no limiar.  O meio indígena vagueia entre definições e pertencimentos: “Meu pai era bugre índio não, meu pai era homem branco, branco feito mecê, meu pai”. E ainda: “Não quero morar com preto nenhum, nunca mais […] Macacão. Preto tem catinga […]. Mas preto dizia que eu também tenho: catinga diferente, catinga aspra” (ROSA, 1985, p. 162). Percebe-se uma não identificação que alcança, inclusive, sua posição como índio:

Nhennhém? eu cá? Mecê é que tá preguntando. Mas eu sei por que é que tá preguntando. Hum. Ã-hãm, por causa que eu tenho cabelo assim, olho miudinho… É. Pai meu, não. Ele era branco, homem índio não. A pois, minha mãe era, ela era muito boa. Caraó, não.Péua, minha mãe, gentio Tacunapéua, muito longe daqui. Caraó não: caraó muito medroso, quage todos tinham medo de onça. (…) Depois foi que morei com caraó, morei com eles (ROSA, 1985, p. 180)

Cria-se, então, alguém que fica no espaço entre culturas, transitando entre o ser e o não ser. Algo que facilitaria suas metamorfoses, ou seja, sua capacidade de circular entre formas e existências diferentes. A inconstância é a principal marca do mestiço e ela o coloca numa certa condição livre entre formas de existência e culturas. A nomeação desse personagem vem, mais uma vez, confirmar seu estado de possibilidade, de não classificação. Sobre sua nomeação, a personagem reponde:

Nhem? Ah, eu tenho todo nome. Nome meu minha mãe pôs: Bacuriquirepa. Breó, Beró, também. Pai meu me levou pra o missionário. Batizou, batizou. Nome de Tonico; bonito, será? Antonho de Eiésus… Despois me chamavam de Macuncozo, nome era de um sítio que era de outro dono, é – um sítio que chamavam de Macuncozo… Agora, tenho nome nenhum, não careço. Nhô Nhuão Guede me chamava de Tonho Tigreiro. Nhô Nhuão Guede me trouxe pr’aqui, eu nhum, sozim. Não devia! Agora tenho nome mais não… (ROSA, 1985, p. 42).

Como se pode notar, ele recebe vários nomes aos quais não se vê ligado e que não parecem representá-lo. Bacuriquirepa, Breó, Beró são nomes indígenas, portanto pertencentes a uma cultura na qual o mestiço já não se integra. Antonho de Eiésus, nome do batismo cristão, recebido por imposição e não assumido. Macuncozo nome de um lugar onde viveu por um tempo. Tonho Tigreiro alcunha carimbada pelo patrão. Sabe-se, logo no início, que ele está só, não há pessoas ao seu redor, pois as que havia ou morreram ou foram embora, segundo nos conta o mestiço. Vai a diante revelando que o rancho onde mora não é seu e que quando partir irá incendiá-lo para que ninguém more sobre seu cheiro.

Nhem? Rancho não é meu, não; rancho não tem dono. Não era do preto também, não. Buriti do rancho tá pôdre de velho, mas não entra chuva, só pipica um pouquim. Ixe, quando eu mudar embora daqui toco fogo em rancho: pra ninguém mais poder não morar. Ninguém mora em riba do meueiro.  (ROSA, 1985, p.97)

O personagem principal parece distanciar-se dos objetos, dos costumes e dos nomes que representam culturas diferentes presentes em sua formação. Visto assim, encontra-se em uma outra dimensão, um lugar entre o humano e o não-humano. O que pode nos remeter à teoria do perspectivismo de Castro (2002). Nela, os ameríndios acreditariam que existem seres humanos, animais e espíritos e que todos possuem uma essência humana, ou seja, todas as criaturas e espíritos tem um ponto em comum que é a humanidade e o que faria a diferença entre um e outro seria a forma assumida na dimensão física. Essa forma traria as suas exigências culturais, biológicas e individuais. Tendo uma essência humana, os animais teriam, a partir dessa perspectiva, uma concepção dos homens.

Tomemos a onça como exemplo mais que adequado ao nosso caso. Ela tem sua sociedade e seus costumes e vê o homem como alimento, como presa. O sangue humano para ela é cerveja. O que é cultura para a onça, para o homem é natureza. Assim, o lugar comum entre todos os seres naturais não é o homem como espécie, mas sim a sua condição humanizadora. A relação que o meio índio estabelece com as onças parece indicar uma tomada de posição que parte do animal. Nota-se que ele não só nomeia todos os felinos que conhece, como, também, descreve o caráter e gostos de cada um. Percebe-se, então, que a partir de uma perspectiva que toma o comportamento humano para localizar e nomear o animal, é possível notar, também, a compreensão íntima dos animais. É como se o personagem estivesse revelando a essência humana das onças.

O título do conto também parece nos remeter a uma visão perspectivista. Meu tio o iauaretê revela, notadamente, um parentesco com o animal segundo conceitos culturais dos homens. A passagem mais reveladora, mais aguda, segundo a linha deste artigo, é a do primeiro encontro do meio índio com a onça Maria-Maria. Nela os limites da linguagem humana são ultrapassados e parece haver a descoberta de um código entre as duas espécies animais ali em diálogo. Tal momento da narrativa nos faz pensar numa cerimônia xamã na qual homem e animal entram em sintonia. Lembrar que os xamãs, segundo as culturas ameríndias, são seres que podem circular entre as dimensões humanas e não humanas é importante neste estudo. Tais observações podem ser observadas na citação a seguir:

Primeira que vi e não matei, foi Maria-Maria. Dormi no mato, aqui mesmo perto, na beira de um foguinho que eu fiz. De madrugada, eu tava dormindo. Ela veio. Ela me acordou, tava me cheirando. Vi aqueles olhos bonitos, olho amarelo, com pintinhas pretas bubuiando bom, adonde aquela luz… Aí eu fingi que tava morto, podia fazer nada não. Ela me cheirou, cheira-cheirando, pata suspendida, pensei que tava percurando meu pescoço. Urucuera piou, sapo tava, tava, bichos do mato, aí eu escutando, toda a vida… Mexi não. Era um lugar fofo prazível, eu deitado no alecrinzinho. Fogo tinha apagado, mas ainda quentava calor de borralho. Ela chega esfregou em mim, tava me olhando. Olhos dela encostavam um no outro, os olhos lumiavam – pingo, pingo: olho brabo, pontudo, fincado, bota na gente, quer munguitar: tira mais não. Muito tempo ela não fazia nada também. Depois botou mãozona em riba de meu peito, com muita fineza. Pensei – agora eu tava morto: porque ela viu que meu coração tava ali. Mas ela só calcava de leve, com uma mão, atofando com a outra, de sossoca, queria me acordar. Eh, eh, eu fiquei sabendo… Onça que era onça – que ela gostava de mim, fiquei sabendo… Abri os olhos, encarei. Falei baixinho: – “Ei, Maria-Maria… Carece de caçar juízo, Maria-Maria…” Eh, ela rosnou e gostou, tornou a se esfregar em mim, mião-miã. Eh, ela falava comigo, jaguanhenhém, jaguanhém… Já tava de rabo duro, sacudindo, sacê-sacemo, rabo de onça sossega quage nunca: ã, ã. Vai, ela saiu, foi para me espiar, meio de mais longe, ficou agachada. Eu não mexi de como era que tava, deitado de costas, fui falando com ela, e encarando, sempre, dei só bons conselhos. Quando eu parava de falar, ela miava piado – jaguanhém… Tava de barriga cheia, lambia as patas, lambia o pescoço. Testa pintadinha, tiquira de aruvalhinho em redor das ventas… Então deitou encostada em mim, o rabo batia bonzinho na minha cara… Dormiu perto (ROSA, 1995, pp. 36 e 37).

Até o momento do encontro com Maria-Maria, o protagonista era o matador de onças, isto é, era aquele contratado para livrar o sertão daquela espécie indesejada. Não há, até então, qualquer afinidade, identificação ou empatia entre este homem/predador e as onças/presas. No entanto, é possível pensar aqui que este homem encontra sua animalidade ao humanizar a onça, o animal. Transmuta-se, então, em caçador e presa de Maria-Maria. Ocorre uma reversibilidade, o mestiço deve seguir o traço-onça despertado em si pelo olhar, ou seja, tornar-se onça numa transfiguração que se opera não apenas no plano da fala, uma vez que esta ultrapassará a língua das palavras. Há, então, uma possibilidade mutacional linguístico-corporal que está para além de apenas uma mudança de forma física e linguística, pois remete à dissolução e à desintegração da identidade humana.

Recordemos, no entanto, um certo número de elementos das novelas animalistas: 1º) não há motivo para distinguir os casos em que um animal é considerado em si próprio e aqueles em que há metamorfose; no animal tudo é metamorfose, e esta é num mesmo circuito devir-homem do animal e devir-animal do homem; 2º) é que a metamorfose é como a conjunção de duas desterritorializações, aquela que o homem impõe ao animal forçando-o a fugir ou subjugando-o, mas também aquela que o animal propõe ao homem, indicando-lhe saídas ou meios de fuga a que o homem nunca teria pensado sozinho (a fuga esquizofrênica); cada uma das desterritorializações é imanente à outra, relança a outra e obriga-a a ultrapassar um limiar; 3º) então, o que conta não é, de modo nenhum, a lentidão relativa do devir-animal; porque, por mais lento que seja e quanto mais lento for, não deixa de constituir uma desterritorialização absoluta do homem, por oposição às desterritorializações relativas que o homem produz sobre si mesmo ao deslocar-se, ao viajar. O devir-animal é uma viagem imóvel e no mesmo sítio que só pode ser vivida ou compreendida em intensidade (ultrapassando limiares de intensidade) (DELEUZE; GUATTARI, 2003, pp. 68-69)

Deleuze e Guattari (2003) reiteram que há uma substância teórica para o devir-animal e o devir-homem de nosso personagem. As ações do personagem se aproximam do que os autores nomeiam de devir-animal, relacionadas à sua construção pela linguagem de meios de fuga e dos diversos momentos em que ele ultrapassa o limiar humano, com o intuito de atingir seu objetivo que seria assumir o viver animal. “Eh, eh, eu fiquei sabendo… Em: Onça que era onça – que ela gostava de mim, fiquei sabendo […]” (ROSA, 1995, p.36) temos o exato momento em que o mestiço assume o eu/onça. Dá conselhos e olha a felina de uma maneira amigável, talvez sensual. Ocorre a mudança do homem para o animal/homem. Ele deixa de ser o onceiro e passa a ser o parente das onças. A teoria da literatura, entretanto, considera outros aspectos do personagem chave do conto analisado que podem ser mencionados.

É importante considerar a personagem do mestiço, segundo a teoria literária, como uma criação literária, o que implica na mudança de uma abordagem antropológica, isto é, perspectivista, para uma literária. Dito isto, pode-se lançar mão da teoria sobre as funções da Literatura criada por Antônio Candido, segundo a qual a literatura desempenha uma força humanizadora, sobretudo quando ajuda o homem a definir-se e a encontrar seu processo formador (CANDIDO, 1972 p. 82). A criação de um Antonho Eiésus, personagem que, como vimos, trafega entre o ser e o não ser, faz-nos caminhar para um campo fantasioso situado entre o mito, a fábula e a tradição oral.

É como se estivéssemos sentados ao lado dos interlocutores e mantidos num estado de encantamento e perplexidade. As imagens e a linguagem, reinventadas por esse modo de contar, nos conduzem para uma reflexão sobre a condição humana. A dor, a miséria, o abandono, a exploração e a dominação são questões que, inevitavelmente, preenchem o pensamento do leitor durante essa leitura. Guimarães Rosa faz uso de uma imaginação mirabolante e, principalmente, sedutora, que causa um misto de identificação, estranheza e assombro. Esse processo de envolvimento do leitor nos leva pensar na presença da função psicológica proposta por Antônio Candido:

Um certo tipo de função psicológica é talvez a primeira coisa que nos ocorre quando pensamos no papel da literatura. A produção e fruição desta se baseiam numa espécie de necessidade universal de ficção e de fantasia, que dê certo é coextensiva ao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida, como indivíduo e como grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais elementares. E isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no adulto, no instruído e no analfabeto. A literatura propriamente dita é uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal, cujas formas mais humildes e espontâneas de satisfação talvez sejam coisas como a anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifão (CANDIDO, 1972, pp. 82 e 83)

A estratégia narrativa de Rosa faz o leitor caminhar sobre uma superfície movediça, a qual pode transformar-se a qualquer momento, embora possua marcas fortes de uma realidade definida. Essa conformação entre imaginação literária e realidade concreta do mundo vem a demonstrar o uso da função integradora e transformadora da criação literária, sobretudo em relação aos seus pontos de referência na realidade, segundo Antônio Candido. Em Meu tio o iauaretê encontramos a história de um homem classificado como mestiço de índio e branco, que vive integrado ao natural, quase sem contato com o mundo dito civilizado. Esse homem, segundo a cultura dos civilizados, é miserável, solitário, abandonado e descartável. Porém, sob seu próprio olhar, ele não precisa de nome, de lugar, de posses.

Fazendo esta escolha ele se coloca contra o processo civilizador. Essa oposição, a qual o mestiço se aferra, de certa maneira evidencia a crueldade do processo civilizatório. O conflito entre o narrador e o visitante configura-se, desde o início, brutal, violento, longe de qualquer possibilidade de confluência. Essa literatura, segundo esse ler, parece assumir uma função transformadora, pois a contundência do conflito obriga-nos a questionar a validade do processo civilizatório. Considerando tal conflito, entre não civilizado (mestiço) e civilização (visitante), ainda dentro das teorias de Antônio Candido, podemos analisar o personagem mestiço de outro ângulo. Segundo Candido, a relação com o natural/natureza determina o grau de civilização, ou seja, quanto mais próximo da natureza menos civilizado, quanto mais distante, aumenta o grau de civilidade.

Nessa escala, o personagem do Rosa estaria em um nível bem pequeno no processo de civilização. Seria ele um homem rústico? (CANDIDO, 1964, pp. 21 a 32). Um olhar mais próximo pode nos mostrar um homem que talvez esteja abaixo da classificação do Candido. Isso porque ele não produz, não modifica a natureza construindo casa ou plantação. Vive em sintonia com a natureza, coletando, dormindo em covas no chão. O lugar onde se encontra, no momento do colóquio, o rancho, não pertence a ele nem ao preto. O bugre afirma que queimará o rancho, apagando seu rastro. A construção desse personagem, como vimos anteriormente, torna sua qualificação quase impossível. Seu desenho tortuoso e o seu discurso impreciso não permite que o coloque como um homem rústico, pois ele aparenta estar mudando constantemente

É possível perceber, também, que os atrativos e símbolos da civilização, representados, sobretudo, pelo relógio, pelo revólver e pela “cachaça boa” são apreciados e negados ao mesmo tempo. A indefinição ou fluidez do personagem principal parece ser sua principal característica. Dentro do universo criado por Guimarães Rosa, o indefinido pode significar liberdade. Estar além das classificações e ao mesmo tempo usufruir de todas elas, circular por entre elas é a grande chave. Assim: “O sertão é um pasto sem porteira”, “o sertão é o mundo”, afirmações como estas, encontradas a todo tempo em sua obra, leva-nos à universalidade de seus personagens falsamente rústicos e dos questionamentos levantados a partir deles.

A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rustico, – tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, jubilo, ódio, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo (CANDIDO, 1964, p.122).

A partir da análise da obra é possível perceber, então, que Rosa oferece, ao leitor, um aumento contundente das possibilidades de interpretação, não só pelo uso inovador das palavras e suas combinações, como também pelas questões permanentemente abertas sobre a vida, o homem, sua alma e suas criações.

CONCLUSÃO

Estudar o personagem principal da obra rosiana, Meu tio o Iauaretê é um desafio sempre compensador. A leitura da teoria do perspectivismo de Castro concomitante com a do conto rosiano suscitou a suspeita da possibilidade de uma relação entre a construção do personagem principal/narrador do conto com a teoria do antropólogo. É importante mostrar o significante olhar do personagem meio indígena que, segundo a teoria do perspectivismo, constrói uma relação diferenciada entre o homem e o animal, o humano e o não-humano. Vislumbra-se, aí, a possibilidade da humanidade como característica ser a essência de todos os seres e espíritos inclusive. Desse modo, haveria uma base formadora comum a toda criatura e espírito. Hoje, no Brasil de 2020, a questão da pertinência das culturas indígenas aparece fortemente.

É, portanto, apropriado estudar esta possibilidade de mostrar, baseado em estudos antropológicos e literários, uma visão diferente e talvez reveladora da relação indígena e branco. A imprecisão do personagem, portanto, pode ser encarada como fator de conciliação entre diferentes culturas e espécies bem como o violento desfecho pode prenunciar o perigo da desconsideração das perspectivas de outras culturas e espécies. Por fim, esse conto revelou-se forte e agressivo, não porque cultiva a violência, mas pelas reflexões sérias e muitas vezes dolorosas que nos impõe. A condição dos indígenas em nossa cultura, a condição do negro, do caboclo dos animais, a relação cruel com o poder estabelecido a partir de um diálogo tenso anuncia e culmina em morte brutal. Assim, mais uma vez, a Literatura nos ensina a refletir sobre nós e sobre o outro.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, H. A linguagem do iauaretê. In: Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica literária. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1970.

CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura, v. 24, n. 9, 1972.1972, v. 24, n. 9.

________________. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 2006.

________________. Os parceiros do Rio Bonito, Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus modos de vida. 1ª. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

________________. Tese e antítese: ensaios. 4ª. ed. São Paulo: T.A. Queiroz, 2002.

CASTRO, E. V. de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. In: Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. São Paulo: Cosac Naif, 2002.

DELEUZE, G; GUATARRI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnic. São Paulo: Editora 34, 1997.

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2005.

ROSA, J. G. Meu tio o iauaretê. In: Estas estórias. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

___________________ . Grande sertão: veredas. 26ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

SCHWARZ, R. Grande sertão: a fala. In: A sereia e o desconfiado: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 23-27.

2. Serão usadas, ao longo do texto, denominações como mestiço, bugre, meio índio e meio indígena para reportar à ideia da não classificação, ou seja, da impossibilidade de rotulação deste personagem.

[1] Pós-Graduação Latu Sensu em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense. Mestrando na Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor de Literatura e Língua Portuguesa para o ensino fundamental e médio no Estado do Rio de Janeiro.

Enviado: Julho, 2019.

Aprovado: Março, 2020.

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Luiz Claudio Bernardes de Magalhães

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