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Estudos sobre construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória: uma análise teórica e interdisciplinar na contemporaneidade da linguística aplicada

RC: 143382
726
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/construcao-da-identidade

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

 OLIVEIRA, Daniane Rafaela de [1]

OLIVEIRA, Daniane Rafaela de. Estudos sobre construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória: uma análise teórica e interdisciplinar na contemporaneidade da linguística aplicada.  Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 04, Vol. 04, pp. 39-49. Abril de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/construcao-da-identidade, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/letras/construcao-da-identidade

RESUMO

Este artigo resulta de um conjunto de textos teóricos refletidos sobre as temáticas neoliberalismo, modernidade, cronologia racial, construção de memória, entre outras, as quais estão inseridas nesta narrativa de modo a relacioná-las ao tema de relações-étnico raciais na sociedade e desenvolvimento de suas identidades. Esta contribuição tem como objeto de estudo as relações étnico-raciais, e o objetivo do trabalho é analisar a construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória por meio de algumas teorias importantes para a compreensão do desenvolvimento social. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa de cunho exploratório. Ressalta-se que não há, neste estudo, o desvelamento de verdades essenciais e generalizações sobre o fenômeno de pesquisa em questão, mas a utilização dos textos teóricos para o movimento de soma de forças com a finalidade em problematizar relações existentes matizadas por discursos e fatos que naturalizam o racismo no Brasil e no mundo e sustentam a enganosa democracia racial.

Palavras-chave: Identidade, Racismo, Tempo, Memória.

1. INTRODUÇÃO

A construção da identidade étnico-racial no tempo e na memória é um tema de suma importância para se compreender a formação das estruturas sociais, assim como para se fazer questionamentos acerca dos conceitos estabelecidos e justificados que acontecem em todas as áreas da convivência humana. Analisar a performance das relações étnicas no Brasil, na contemporaneidade ou em outro momento da história faz com que as pessoas vejam além das aparências e percebam que, muitas vezes, por trás de uma convivência aparentemente harmoniosa pode ocorrer relações racistas.

Neste debate, busca-se corresponder à perspectiva interdisciplinar de uma teoria racial crítica descrita por Ferreira (2015) como um estudo que se estende para além das fronteiras disciplinares para analisar raça e racismo no contexto de outros domínios como a sociologia, história, psicologia, entre outros, ao permitir, assim, uma abrangente e multifacetada análise de como a raça, o racismo e a (des)igualdade racial se manifestam. Para tanto, este estudo traz reflexões de diferentes autores sobre como o tempo e a memória geram posicionamentos raciais.

Desse modo, ao conceber a linguística como ciência aberta à história, enfatizando a relevância crítica do tempo e do espaço para a compreensão da vida humana e nos modos de teorizar da linguística aplicada, contemplando a vida social, cultural, política e histórica, este trabalho dialoga com teorias que podem levar a uma profunda compreensão de formas de investigação da sociedade.

Os estudos presentes na contemporaneidade trazem à tona pesquisas sobre questões identitárias, atingindo diversas áreas, entre elas, a da linguagem. Essa preocupação com as questões identitárias é um resultado do crescimento de manifestações em prol das minorias nos diversos âmbitos sociais, fato que impactou a academia, levando a reflexões importantes sobre as questões relacionadas a gênero, raça, sexualidade, educação, entre outros. A busca por conhecimento, hoje, leva em consideração os diversos grupos socioculturais dos cenários públicos em suas tentativas por diálogo e negociação, tais como negros, feministas e LGBTQI+ (LOPES, 2020).

Nessa perspectiva, a história destaca o movimento negro, pois trouxe, a partir do ano 2000, reivindicações que influenciaram “o governo brasileiro e os seus principais órgãos de pesquisa, tais como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).” (GOMES, 2011, p. 134-135). Assim, é possível perceber a importância do movimento negro para o desenvolvimento do conhecimento.

O amparo legal para revisão da atuação do negro e do indígena na história brasileira e na memória nacional, com a finalidade de combater o preconceito e a discriminação étnico-racial e gerar a conscientização da sociedade sobre as contribuições das culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, que aconteceu a partir de 1980, em especial com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, faz da educação e da história importantes instrumentos de promoção da sujeicidade histórica e cidadania ativa dos negros e indígenas brasileiros (ALVES; CARVALHO; COELHO, 2018).

Apesar de todas as lutas e movimentos, ainda vive-se em uma sociedade que não contempla os negros com os seus benefícios, pois existe a prática do apagamento da população negra, mesmo que seja evidente a participação ativa dessa população na construção histórica da sociedade. A realidade é de exclusão da população negra. O acesso aos benefícios produzidos por essa mesma população é considerado muito difícil (PEREIRA, 2013).

A distribuição da ilusão de uma realidade sem racismo continua sendo real na sociedade. Esse tipo de racismo, além de não contribuir em nada para a população negra, também deslegitima sua história e memória de lutas. O racismo aversivo é uma manifestação racista que pessoas bem-intencionadas, que veem a si mesmas como educadas e progressistas, estão inclinadas a exibir (DIANGELO, 2020).

De acordo com Lima (2008), existe uma dicotomização racial no Brasil, herdada do colonialismo, resultando em valores, sociabilidades e políticas – ou falta delas – na sociedade brasileira. Esta dicotomização é orientada pelo racismo, gerando relações sociais e institucionais, dividindo a população entre brancos (descentes de europeus e, logo, “raça superior”) e as outras “raças inferiores” (negros e indígenas). Baseando-se nesse fato, é preciso levar a discussão sobre as relações raciais à sociedade e desenvolver uma contribuição para a diminuição das diferenças sociais relacionadas à etnia e à raça.

A partir dessas observações preliminares, o presente trabalho pretende, com caráter provisório e inicial, oferecer algumas aproximações à problemática das relações étnico-raciais, no tempo e na história, ao mostrar como a memória social pode ser um grande fator para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, uma vez que a questão, para muitos pesquisadores das ciências sociais, tem sido a possibilidade de inaugurar um novo paradigma tanto social e político quanto epistemológico (SANTOS, 2004).

2. CONSTRUÍDO O MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO

O mal-estar contemporâneo está constituído pelas imposições do capitalismo no mundo, e essas são baseadas nas relações de dominação. A modernidade é produzida pelo capitalismo contemporâneo e dominada pelo princípio do desempenho, pois sua temporalidade não é a da experiência, do conhecimento e da felicidade. Nesse âmbito, é institucionalmente organizada, e esse é o atributo importante da dominação, pois apaga e silencia as experiências na vida social e de liberdade; liberdade de acesso ao passado e ao futuro como construção de uma subjetividade democrática (MATOS, 2008)

Quando se pensa no mal-estar contemporâneo, é importante avaliar a posição que o neoliberalismo ocupa na vida social, uma vez que pode ser pensado como forma de vida, conjunto de práticas que forjam o sentido da existência. De acordo com Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo pode ser entendido como “racionalidade”. Esta racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação.

Segundo Dardot e Laval (2016), a definição do neoliberalismo pode ser descrita como um conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. Os autores citam Foucault e sua definição de racionalidade política como uma racionalidade “governamental”, no entanto, a noção de governo não é restrita à instituição “governo”, mas à forma como a conduta dos homens é regida no interior de um quadro e com instrumentos de Estado.

As reflexões sobre o neoliberalismo de Dardot e Laval (2016) podem dialogar com as ideias de Bauman (1997) sobre o sonho de pureza, pois ambas transmitem posições sobre o individualismo e as práticas orientadoras de modos de ser, dizer, pensar, perceber, valorar e fazer.  Bauman (1997) traz o sonho da pureza e o coloca como um ideal a ser conquistado e algo que precisa ser preservado e protegido contra o considerado impuro. Ainda segundo o autor, há um conceito social de que aquilo que não é representado como pureza deve ser varrido da ordem estabelecida pelas condições da modernidade, ou seja, deve ser retirado do contexto social. Bauman (1997, p. 13) afirma que:

A pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas. Sem essa visão, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a distinção entre pureza e impureza pode ser sensivelmente delineada.

Bauman (1997), com sua visão de direção política e social da significação da pureza, possibilita que se perceba uma corrente que leva às numerosas corporificações da “sujeira”, a qual é capaz de minar padrões e fazer com que determinados seres humanos sejam concebidos como um obstáculo para a apropriada organização do ambiente. Em outras palavras, para o autor, é outra pessoa ou, especialmente, certa categoria de outra pessoa que se torna “sujeira”, sendo tratada como tal. O modelo de pureza de uma determinada ordem apresenta sua própria sujeira que precisa ser varrida. Ou seja, aquilo que foge à ordem de determinadas construções deve ser eliminado e retirado para não interferir na limpeza.

Nesse sentido, é importante destacar o desejo de apagamento de determinados grupos da sociedade. De acordo com Nogueira (2006), no Brasil, há uma expectativa geral de que o negro e o indígena desapareçam como tipos raciais, pois o processo de branqueamento constituirá, em uma noção geral, a melhor solução possível para a heterogeneidade étnica do povo brasileiro. Dessa forma, existe um movimento de purificação de raças pautado na tentativa de criar uma nova ordem, um novo começo. Bauman (1997, p. 20) ainda argumenta:

Essa grave mudança no status da ordem coincidiu com o advento da era moderna. De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de vida, em que a colocação em ordem depende do desmantelamento da ordem ‘tradicional’, herdada e recebida; em que ‘ser’ significa um novo começo permanente.

Percebe-se que as mudanças trazidas pela modernidade, tal como a mentalidade ocidental de ordem econômica, científica, social e religiosa, produzem ordens e desordens, e as desordens devem ser varridas.  Para Bauman (1997), a modernidade produziu a aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente com uma destruição criativa, ou seja, demolindo, mas, ao mesmo tempo, construindo, mutilando, mas corrigindo.

Todas as sociedades produzem estranhos (BAUMAN, 1997). São pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo moral ou estético do mundo e que geram a incerteza, logo, dando origem ao mal-estar de se sentir perdido. De acordo com Bauman (1997), foi o Estado que deu a importância de a ordem aparecer, aliás, sua constituição foi uma guerra de atrito empreendida contra estranhos e diferentes. Em consequência, estratégias antropofágicas (de assimilação) e antropoêmica (de exclusão) foram usadas para causar a destruição dos estranhos e diferentes.

Para Bauman (1997), o projeto moderno fazia a promessa de liberar o indivíduo da identidade herdada, porém, sem uma firme posição contra a identidade. O referido projeto só transformou a identidade em realização, tornando-a uma tarefa individual e de responsabilidade do indivíduo. A identidade do indivíduo foi lançada como um projeto, o projeto social e a ordem individual, ambos vistos como projeto, estavam inteiramente ligados.

Compreender tais conceitos discutidos nessa narrativa e relacioná-los a questões raciais é importante para a construção do entendimento de que as identidades são elementos políticos e históricos, constituídos a partir de vivências mediadas pelas organizações sociais. Com Gaspar (2020), aprende-se que o racismo estrutural pode vir de uma cultura organizacional e atinge a comunicação da organização ao envolver a necessidade de entendimento ou negligência de demandas de sujeitos que compõem ou se relacionam com a organização.

Em síntese, nesta seção, foram pontuados os conceitos pertinentes à constituição do mal-estar contemporâneo sob uma ótica sócio-histórica. Complementarmente, a próxima seção visa traçar uma análise dos aspectos que envolvem raça e memória social, bem como seus propósitos na construção da identidade étnico-racial.

3. RAÇA E MEMÓRIA SOCIAL

Pollak (1989), ao falar sobre memória, cita Halbwachs (1968), cuja análise da memória coletiva enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam as memórias das pessoas e se inserem na memória coletiva a qual pertencem, tais como o patrimônio arquitetônico e seu estilo, as paisagens, as datas e os personagens históricos, as tradições e os costumes, certas regras de interação, o folclore e a música e até mesmo as tradições culinárias. Também pontua que, na tradição metodológica durkheimiana, diferentes pontos de referência, como indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo, estruturados por hierarquias e classificações são abordados, representando uma memória que, na definição sobre o comum a um grupo e aquilo que o diferencia dos outros, transmitem o pertencimento e as fronteiras socioculturais.

De acordo com Pollak (1989), Maurice Halbwachs (1968) cita, além da seletividade de toda memória, o processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e memórias individuais, pois, para uma memória ser beneficiada com a memória dos outros, não basta que esses tragam seus testemunhos, é necessária a concordância dessas memórias e a existência de pontos de contato, de modo que a lembrança trazida por outros seja reconstruída sobre uma base comum. Pollak (1989, p. 4) afirma que:

Esse reconhecimento do caráter potencialmente problemático de uma memória coletiva já anuncia a inversão de perspectiva que marca os trabalhos atuais sobre esse fenômeno. Numa perspectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar, portanto, pelos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.

Para tanto, segundo o autor, a memória é um terreno em disputa, no qual se deve analisar de qual ponto se está tratando acerca de um dado tempo e espaço onde essas memórias foram consideradas e reconhecidas (POLLAK, 1989).

Segundo Peralta (2007), é recente a dedicação das ciências sociais com a base social da memória. Durante muito tempo, essa base foi negligenciada, no entanto, apesar do desinteresse pelo assunto ao longo do século XX, é no século XIX que a memória se torna objeto de investigação científica.  De acordo com a autora, Hobsbawm (1983) e Ranger (1983) são os representantes notabilizados por uma perspectiva de estudo da memória que procura, especialmente, analisar quem controla ou impõe o conteúdo da memória social e de que forma esta memória socialmente imposta serve aos propósitos atuais dos poderes instituídos.

Pollak (1989) reflete sobre a existência das lembranças de uns e zonas de sombra e “não-ditos” de outros. Esses “não-ditos”, caracterizados como tipologias de discurso e de silêncios, são moldados pela angústia de não encontrar uma escuta e pelo sentimento de angústia de ser punido por aquilo que se diz ou de se expor a mal-entendidos.

Ao refletir sobre a memória, é importante relacioná-la, especificamente, àquela afro-brasileira, a fim de examinar a importância dessa para a construção ou reconstrução de um povo. Ferreira (2013) escreve sobre a existência de um projeto do colonizador para “apagar” a memória do colonizado para que ele seja o dominado. Ademais, menciona que várias foram as ações para o sucesso desse projeto, entre elas, as formas de esquecimento. O autor ainda esclarece que:

Sabe-se de um projeto do colonizador de ‘apagar’ a memória do colonizado para que este, despido do passado, identidade se tornasse alvo fácil de dominação. Várias foram as ações para o sucesso desse projeto, desde as voltas em torno a uma “árvore do esquecimento”, até a proibição de cultos do candomblé e das demais manifestações culturais de herança africana que surgiram durante o período escravocrata, como a capoeira (FERREIRA, 2013, p. 14).

Ferreira (2013) ressalta que narrar as memórias, o “banzo”, a dor, as lutas dos antepassados é um movimento de resistência, uma resistência contra o apagamento e o “desmemoriamento”, além de uma atitude de sobrevivência diante das condições reservadas pela sociedade pós-colonial ao povo retirado de suas terras, submetido ao ritual da “árvore do esquecimento” e escravizado por mais de 400 anos em terras estrangeiras. Isso mostra a força das memórias no discurso e como estão integradas às ações cotidianas.

Conforme exposto, entende-se que a memória pode contribuir para a visibilidade da história de um povo e para a construção de uma identidade, ponto que, desde o século XX, vem sendo objeto de investigação científica. Em sequência, na seção seguinte, aponta-se os aspectos pertinentes ao tempo, particularmente à cronopolítica e às relações de poder no percurso histórico.

4. CRONOPOLÍTICA DO TEMPO RACIAL

Nesta seção, analisa-se a discussão geral da cronopolítica proposta por Mills (2020), que se baseia na conexão com o conceito de “mapas do tempo” de Eviatar Zerubavel, usando exemplos religiosos, seculares e familiares para ilustrar o conceito. É importante mencionar que, à época, incontroversamente racializada da modernidade branca, forneceu o foco principal.

Mills (2020) descreve cronopolítica como aquilo que tem a ver com as várias maneiras que as relações de poder e materiais entre grupos afetam as relações desses grupos com o mundo em seus aspectos especificamente temporais. Os mapas de tempo podem ser desenhados nos níveis macro, meso e micro, abrangendo a época, a contemporaneidade e o dia a dia. A navegação das pessoas no mundo e as maneiras de darem sentido ao que estão fazendo nele dependem, em parte, desses mapas e de como eles as permitem se localizarem no tempo intersubjetivo de seus grupos.

De acordo com o Mills (2020), o conceito de mapas de tempo é importante para a cronopolítica, pois ajuda a identificar mapeamentos do presente e do futuro projetado. Ou seja, não apenas onde o grupo social em questão tem sido em sua memória, mas para onde está indo. Além disso, relaciona questões sobre modernidade, política e religião aos aspectos temporais.

Mills (2020) explica que, na clássica teoria racista, “raça” significava subseções naturais da raça humana, demarcadas por causalidade teológica ou cultural ou biológica (ou, às vezes, de combinações entre elas) e localizadas em hierarquias de habilidade cognitiva, propensão característica, valor estético e inclinação espiritual. Isto é, a raça superior foi considerada mais inteligente, virtuosa, bonita e desenvolvida espiritualmente do que a raça ou raças inferiores. Desse modo, o autor define teoria racista como:

A teoria racista acrítica, também conhecida como teoria racista, está, portanto, comprometida com (i) a realidade da raça e (ii) a existência de uma hierarquia entre as raças. E isso historicamente elaborou mapas de tempo raciais com base nisso, embora seus os contornos têm variado de acordo com a teoria de fundo (teológica / cultural / biológica / combinatória) sendo pressuposta. Pense, por exemplo, quão diferente a suposta temporalidade subjacente será para a teologia teorias de origens poligênicas (as raças inferiores não brancas como resultado de criação sobrenatural separada, seja divina ou diabólica) versus seculares teorias de origens monogenéticas (as raças inferiores não brancas como aquelas mais humanos primitivos mais próximos dos ancestrais símios da humanidade em uma escala social evolutiva darwinista) (MILLS, 2020, p. 7).

Ao citar a modernidade, Mills (2020) volta-se para a conexão com as temporalidades, não apenas religiosas, mas seculares. Para o autor, a branquitude, na modernidade, emerge como a categoria racial hegemônica, projetando a brancura em vez de voltar através dos tempos. O ponto importante apontado pelo autor consiste na brancura não ser monopolística. Distinções intra-europeias são feitas e mapeiam um ranking “racial” interno, assim, o teórico lembra que o racismo se tornou a ideologia política mais importante da modernidade com a sociopolítica europeia, incluindo o liberalismo. Dessa forma, o racismo não permanece isolado, mas molda todas as ideologias reconhecidas, sendo um erro teórico representar políticas como o liberalismo, o conservadorismo e o socialismo como “sem raça”.

Mills (2020) escreve, também, sobre como as pessoas são representadas quanto à raça, de modo que representações importantes colocam pessoas consideradas “de cor” como inferiores. Mills (2020, p. 12) aponta:

Considere algumas das figuras mais importantes do cânone ocidental e as maneiras pelas quais as pessoas de cor aparecem em seus pensamentos como exemplificando uma temporalidade inferior. Hobbes (1996: cap. 13) caracteriza os nativos americanos como ‘selvagens’ incapazes de deixar o estado de natureza e iniciar a transição temporal para a sociedade e tempo histórico. Voltaire (1877) especula que os negros são tão divergentes da humanidade regular (branca), tão claramente inferior, que devem ser o produto de uma criação separada, uma linha do tempo diferente.

Por fim, Mills (2020) coloca a necessidade de uma cronopolítica racial de oposição, guiada não pela raça como racismo, mas pela raça como um reconhecimento da estruturação racial do mundo moderno e pela necessidade concomitante de justiça racial corretiva. Na seção seguinte, apresentam-se as considerações finais acerca do escopo deste trabalho.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho remete a teóricos essenciais para entender, de forma complexa, as relações étnico-raciais presentes nos diferentes contextos sociais. Considera-se que, conforme entende-se os movimentos desenvolvidos na construção da memória social, das relações econômicas e políticas – as múltiplas temporalidades e espacialidades entrelaçadas e pontuadas neste texto -, haverá aptidão para se refletir sobre a complexidade e a relevância do dizer-fazer quando a pauta legitima o combate ao racismo.

Abrir-se às reflexões das humanidades e das ciências sociais, nas quais a pesquisa em linguística aplicada está situada, ajuda a compreender que as teorias discutidas mostram que as mudanças relacionadas à vida sociocultural, política e histórica devem ser consideradas na prática da pesquisa e que a questão racial pode estar ligada a diversas teorias.

REFERÊNCIAS

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DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. Rio de Janeiro: Boitempo, 2016.

DIANGELO, Robin. Não basta não ser racista: sejamos antirracistas. São Paulo: Faro, 2020.

FERREIRA, Amanda Crispim. Escrevivências a lembranças afrofeministas como um lugar da memória afro-brasileira: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Geni Guimarães. 2013. 114f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, 2013.

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MATOS, Olgaria. O mal-estar na contemporaneidade: performance e tempo. Revista Do Serviço Público, v. 54, n. 4, p. 455-468, 2008.

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[1] Mestranda em Linguística Aplicada Interdisciplinar (UFRJ), especialista em Produção Textual (FAVENI), especialista em Letramento e Alfabetização (Faculdade Campos Elíseos), especialista em Língua Portuguesa e Literatura (Faculdade Campos Elíseos), Licenciada em Letras (UFF) e Licenciada em Pedagogia (UERJ). ORCID:  0000-0003-1509-2019. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7194377733266025.

Enviado: 20 de fevereiro, 2023.

Aprovado: 05 de abril, 2023.

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Daniane Rafaela de Oliveira

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