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Os impactos da reforma da lei de falências e recuperação judicial na responsabilidade dos administradores das sociedades empresárias em recuperação judicial

RC: 146005
301
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/recuperacao-judicial

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

PIMENTEL JUNIOR, Washington Luiz Dias [1], COÊLHO, Bruno César de Carvalho [2], OLIVEIRA FILHO, João Glicério de [3]

PIMENTEL JUNIOR, Washington Luiz Dias. COÊLHO, Bruno César de Carvalho. OLIVEIRA FILHO, João Glicério de. Os impactos da reforma da lei de falências e recuperação judicial na responsabilidade dos administradores das sociedades empresárias em recuperação judicial. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 06, Vol. 04, pp. 16-31. Junho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/recuperacao-judicial, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/lei/recuperacao-judicial

RESUMO

A responsabilidade dos sócios e administradores pelas obrigações da empresa no âmbito da Recuperação Judicial e Falência é tema que ganhou contornos específicos a partir da promulgação da Lei n. 14.112/2020, que alterou a Lei n. 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência). Através de uma pesquisa bibliográfica e qualitativa, o presente artigo tem por objetivo avaliar, sob a ótica dos deveres fiduciários, quais os limites da responsabilidade dos administradores perante as obrigações da empresa em recuperação, mediante uma análise das alterações introduzidas pela Lei n. 14.112/2020 e seus efeitos. Razão pela qual entendeu-se que não é o mero inadimplemento ou qualquer “má decisão” que imputará responsabilidade aos administradores, sendo imprescindível haver o descumprimento dos deveres fiduciários de diligência, lealdade e de informação, para a ação de responsabilização ou incidente de desconsideração da personalidade jurídica, sempre de maneira excepcional, privilegiando a independência da administração da companhia, excluindo a aplicação jurisprudencial outrora vigente.

Palavras-chave: Insolvência empresarial, Recuperação judicial, Responsabilidade dos sócios e administradores, Desconsideração da personalidade jurídica.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo traz como foco o impacto da nova lei de falências e recuperação judicial quando da análise da responsabilidade dos administradores das sociedades empresárias especialmente quando submetidas à situação de recuperação judicial.

O instituto da Recuperação Judicial pode ser definido como o movimento e a convergência de uma série de ordenamentos, como sociais, econômicas e jurídicas, para reorganizar e aproveitar, da melhor forma possível, a estrutura e a capacidade produtiva de uma empresa.

Nesse quadro, a Recuperação Judicial visa o soerguimento da atividade empresária, não considerando apenas o aspecto financeiro envolvido, uma vez que há um viés social, em que são partes interessadas os funcionários, credores, consumidores, sócios e administradores.

O papel dos administradores da sociedade empresária, que se difere daquele exercido pelo administrador judicial, é o de representar os interesses da própria empresa em recuperação, gerir e implementar medidas para superação da crise.

Exposto o ambiente da recuperação judicial e definido o sujeito sob análise, tem-se presente pesquisa se volta a avaliar sob a ótica dos deveres fiduciários, quais os limites da responsabilidade dos administradores perante as obrigações da empresa em recuperação, através de uma análise das alterações introduzidas pela Lei n. 14.112/2020 e seus efeitos.

O presente artigo se utilizará de uma pesquisa bibliográfica e qualitativa, visto que, em um primeiro momento, a problemática será observada através do estudo de diversas concepções e teses, analisando as suas diversas variáveis, para, então, ser utilizada uma abordagem qualitativa de validação das hipóteses apresentadas. Tal método é essencial para que se tenha uma compreensão da trajetória do problema apresentado, suas possíveis consequências e resoluções.

2. A ADMINISTRAÇÃO DAS SOCIEDADES E OS DEVERES DOS ADMINISTRADORES

Os administradores ocupam um importante papel na companhia, na medida em que atuam como órgão de gestão de negócios e seus deveres abrangem os interesses de todos os stakeholders, buscando harmonizá-los sempre em atenção à função social da sociedade empresária.

Isso porque, nas palavras de Uinie Caminha (2017), os administradores são “aqueles que manifestam a vontade da sociedade anônima, não como representantes, mas como a própria sociedade”. Existe, portanto, uma relação jurídica orgânica entre a sociedade e o administrador, na qual este não é um simples mandatário daquela, mas sim é um meio de manifestação de vontade (GATAZ, 2016, pp. 53-70).

O conceito de deveres e responsabilidades dos administradores vem com a determinação de um comportamento ativo e probo (BRASIL, 2002), indicando o dever de agir na condução dos negócios com diligência, observando sempre o dever de atuar com base nas atividades indicadas no objeto social da companhia, perseguindo a obtenção de lucro para posterior distribuição para os sócios e acionistas (SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, 2019, p. 115).

A ideia de probidade a ser empregada aqui merece atenção, pois a referência que se faz ao conceito do direito romano do bonus pater familiae (MAGALHÃES, 2014, p. 167) indica a necessidade de um comportamento diligente do administrador para além de preservar o patrimônio social, de exercer o objeto social e obter lucro para o sócio/acionista, tendo como objetivo claro a multiplicação do patrimônio sob sua administração (EIZIRIK, 2015, p. 117), o que, por óbvio, pressupõe a assunção de riscos inerentes à toda e qualquer atividade empresarial.

Nada obstante as Leis 6.404/76 e 10.406/2002, tragam os conceitos dos deveres e responsabilidades do administrador, nota-se que não há uma delimitação devido à  multiplicidade de situações que são postas diariamente para decisão e condução da administração, servindo os deveres fiduciários como verdadeiros nortes na condução do negócio pelos administradores (SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, 2019, p. 115).

Marcelo Vieira Von Adamek (2010, p. 113) leciona que o legislador pátrio foi feliz ao conferir conceitos gerais e abstratos à conduta e atuação dos administradores, pois, caso fosse diferente, teria contribuído pela geração de mais situações ineficazes, através de um sistema inflexível.

Avançando no tema, é possível dividir os deveres fiduciários dos administradores em três: dever de diligência (BRASIL. Lei 6.404, 1976, art. 153 e Lei 10.406, 2002, art. 1.010), dever de lealdade (BRASIL. Lei 6.404, 1976, art. 155) e dever de informar (BRASIL. Lei 6.404, 1976, art. 157). Tais deveres decorrem da finalidade das atribuições dos administradores por sua natureza fiduciária e organicista, sendo um “direito função” (BULGARELLI, 1998, p. 158).

Quanto ao primeiro, o dever de diligência, é possível afirmar que o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios. Esse é o conceito legal do dever de diligência, o primeiro dos deveres, ao que tudo indica é o mais relevante, o que supostamente garante os demais (BULGARELLI, 1998, p. 120), mas de difícil caracterização.

O dever de diligência, como apontado, indica uma obrigação de meio, o cuidado que deve anteceder à tomada de decisão, o preparo constante para ocupar a posição de administração. Tal dever implica na atenção ao desenvolvimento do negócio, a análise cuidadosa dos dados e informações da companhia, a intervenção quando necessária para o bem dos propósitos sociais.

O dever de lealdade, por sua vez, expresso no art. 155 da Lei. 6.404 (BRASIL, 1976), determina que o administrador deve servir com lealdade à companhia, trazendo algumas vedações, sempre no sentido de não permitir que o administrador utilize da sua posição para alcançar privilégios pessoais em detrimento dos interesses da sociedade.

Por último, o dever de informar preceitua que o administrador deve prestar informações sociais da companhia aos investidores, empregados, acionistas, parceiros comerciais, enfim, à comunidade, além de quaisquer fatos relevantes que tenham potencial de interferir nos negócios da sociedade (BITTAR, 2010, p. 159). Estas informações são necessárias para o controle do mercado da real situação das companhias que nele figuram.

Esses deveres não são regras fechadas, funcionando muito mais como guias das atividades da administração, estabelecendo princípios claros e expressos de como tomar as melhores decisões, privilegiando sempre os interesses da companhia.

3.A RESPONSABILIZAÇÃO DOS ADMINISTRADORES E O BUSINESS JUDGMENT RULE

Diante do exposto, é possível observar que a administração possui deveres claros perante a companhia, deveres estes que são balizados pelos parâmetros de diligência, lealdade e necessidade de informar. Assim, nas situações em que os administradores descumprirem esses deveres, haverá sua responsabilização pelos danos causados.

A responsabilidade civil do administrador se insere, inicialmente, no contexto maior da responsabilidade civil em geral (ADAMEK, 2012, p. 94), devendo também ser observados regramentos específicos das sociedades limitadas, sociedades anônimas, em conta de participação e comandita simples, especificidades que não são objeto da presente análise.

De todo modo, existe a previsão no ordenamento jurídico de que a responsabilidade dos sócios constituídos com responsabilidade limitada e dos administradores dependeria de casos extremamente específicos com instauração de um procedimento próprio, o que traz a ideia do Business Judgment Rule, importante regra de decisão empresarial acolhida pelo Direito brasileiro, que será tratada a seguir.

3.1 BUSINESS JUDGMENT RULE

O Business Judgment Rule é uma regra criada nos Estados Unidos que busca limitar a análise do mérito das decisões dos administradores, mesmo quando estas se mostraram prejudiciais à atividade empresária, nos casos em que forem respeitados os deveres dos administradores (VERGUEIRO, 2015, p. 29).

O primeiro apontamento que se faz aqui é que esta regra não é um salvo conduto, mas um standard de análise de condutas que, por mero engano e erro de julgamento honesto, não podem ser qualificadas como negligentes (MAGALHÃES, 2014, p. 166), ficando a responsabilidade do administrador subordinada à análise das cautelas adotadas de forma precedente à tomada de decisão, presumindo, para todos os fins, que a sua administração se desenvolve sempre com a boa-fé e no melhor interesse da companhia.

Assim, para a aplicação dessa regra, como explica Eizirik (2015, p. 125), foram desenvolvidos os seus requisitos: (i) a ocorrência de uma decisão, não estando protegidas pela regra as condutas omissivas; (ii) a inexistência de qualquer interesse financeiro ou benefício pessoal na matéria por parte do administrador; (iii) o cumprimento da obrigação de se informar antes de tomar a decisão; (iv) ter o administrador perseguido o interesse social; e (v) ter o administrador agido de boa-fé.

Verificados, os elementos indicados, a decisão tomada pela administração, ainda que dela tenha decorrido danos à companhia, está protegida pela Business Judgment Rule, pois o racional decisório sofre interferência de variáveis subjetivas que reivindicam a análise do seu momento, as tendências de mercados e os participantes do ato (MAGALHÃES, 2014, p. 172).  Se a sociedade estiver em um período de solvência, o foco será nos sócios e/ou acionistas, bem como na maximização dos lucros. No entanto, tratando-se de uma empresa em situação de insolvência, principalmente em processo de Recuperação Judicial ou Falência, o foco deverá estar nos credores.

4. OS DEVERES DO ADMINISTRADOR NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Em uma perspectiva contratualista, os deveres dos administradores estão relacionados para com os sócios e acionistas, em uma visão interna corporis, ou ab intus (FRANÇA, 2014, p. 58). Todavia, buscando expandir o seu alcance, é possível afirmar que estes merecem uma leitura um pouco mais ampla, uma vez que pouco se indica quanto aos interesses de outros stakeholders como os credores, empregados, fornecedores e toda a comunidade em que a empresa está inserida.

Assim, mesmo que os acionistas ou sócios sejam o foco do cumprimento de determinados parâmetros pelos administradores, eles não são os únicos, como já consignado anteriormente (CEREZETTI, 2012, pp. 41-58), ainda que existente entendimento diverso (ADAMEK, 2012, p. 144).

Especialmente por essa perspectiva, o posicionamento da administração deve necessariamente ser alterado quando se depara com uma sociedade em Recuperação Judicial ou Falência. Para compreender esta mudança de posição, ou seja, a transferência do foco dos acionistas e/ou sócios para os credores, uma vez que a própria legislação determina deveres fiduciários dos administradores perante os credores, em que pese entenda-se majoritariamente pela manutenção da administração empresarial, conforme será visto a seguir.

4.1 MANUTENÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO DO DEVEDOR DA COMPANHIA EM RECUPERAÇÃO

A empresa devedora pode continuar no controle das atividades por meio de seus administradores, medida que funciona como um incentivo para utilização do instituto da Recuperação Judicial.

Aliás, essa é uma das premissas utilizadas pelo modelo de lei para tratamento da insolvência empresarial disponibilizado, desde 2013, pela United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL) onde trata especificamente das obrigações dos diretores e administradores em períodos de pré-insolvência (UNCITRAL, s/d).

Há uma clara preocupação na lei modelo da UNCITRAL em não criar contingências exageradas para os administradores, de modo que seja possível inseri-los no processo de construção da solução para enfrentar a crise empresarial.

4.2 OS DEVERES E RESPONSABILIDADES DOS ADMINISTRADORES PERANTE OS CREDORES

A Lei n. 11.101 (BRASIL, 2005) estabelece que será decretada a falência do devedor que transferir estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento de todos os credores e sem ficar com bens suficientes para solver seu passivo, salvo se previsto em plano de Recuperação Judicial (BRASIL. Lei 11.101, 2005, art. 94, III), tratando-se de claro exemplo de deveres fiduciários perante os credores em estado de insolvência, conforme também se observa no art. 1.145, da Lei n. 10.406 (BRASIL, 2002).

Em outro dispositivo, a Lei de Recuperação e Falência expõe que são ineficazes em relação à massa falida, ainda que o contratante desconheça o estado de crise, a venda ou transferência de um estabelecimento sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores existentes naquele momento, quando o devedor não possui recursos suficientes para quitar suas dívidas, será válida somente se, dentro do prazo de 30 (trinta) dias, não houver objeção dos credores após serem devidamente notificados, seja por meio de notificação judicial ou pelo oficial do registro de títulos e documentos (BRASIL. Lei 11.101, 2005, art. 129, IV).

Dado ao dever de informar aos credores, que parece claro nos dispositivos ora analisados, para que o negócio seja considerado eficaz, há aqui um indicativo de que existe um dever de diligência e de informação dos administradores para com os seus credores quando as suas decisões forem impactar os direitos destes, e a eles causem risco no adimplemento dos seus créditos.

O mesmo racional é identificado na legislação tributária, que em dois momentos distintos indicam a sucessão dos seus débitos, ou a invalidade dos negócios jurídicos, quando os atos importarem violação ao seu direito de ver satisfeitos os créditos tributários. O primeiro é indicado no art. 133 e o segundo no art. 185 e seu parágrafo único, ambos do Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172 (BRASIL, 1966).

Observa-se aqui, mais uma vez, o dever de agir de forma diligente inerente ao administrador da empresa devedora, que pretende alienar ou onerar bens, bem como o de informar ao fisco/credor, sob pena de transferir para um terceiro a sua obrigação de pagar o tributo, ou ver considerada fraudulenta tal alienação ou oneração de seus bens e renda, salvo tenha reservado bens ou rendas suficientes para o pagamento total da sua dívida.

O conceito, neste particular, guarda correlação com a sistemática da insolvência e, quando o devedor opta pela não declaração de sua insolvência, ou não se vale dos sistemas de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, e passa a alienar ou onerar seu patrimônio ao arrepio dos interesses dos credores, passa a se sujeitar a estruturas de repreensão à fraude a credores, responsabilização civil e, possivelmente, criminal.

Frost e Campbell (2006, P. 499), ao analisarem a estrutura legal do direito norte-americano quantos aos deveres fiduciários dos administradores, esclarecem que em períodos de saúde financeira – normal and solvent periods – os deveres estarão vinculados ao melhor interesse e na maximização dos resultados patrimoniais para os sócios/acionistas.

Contudo, existe um momento de adequação desses deveres segundo os autores, analisando o posicionamento da Corte de Delaware, na medida em que a proteção dos demais stakeholders não pode mais observar as premissas contratuais, passando a administração da companhia a observar e atuar na proteção dos direitos de credores quando se está diante da insolvência empresarial e crise financeira (CAMPBELL; FROST, 2006, p. 500).

Nem a jurisprudência, nem a legislação brasileira endereçam esse problema, contudo, a legislação falimentar traz um incremento aos deveres fiduciários dos administradores (CEREZETTI, 2012, pp. 393-394) da companhia em Recuperação Judicial, que também se estendem aos interesses das demais partes envolvidas. É dizer, embora o devedor e seus administradores permaneçam na condução da atividade empresarial submetida a uma reestruturação com a intervenção estatal, devem agir considerando os stakeholders.

Assim, delineados os deveres dos administradores e onde eles se localizam no contexto da companhia insolvente, faz-se necessário entender quais os mecanismos utilizados para responsabilizar esses administradores por condutas que vão contra esses deveres.

5. A RESPONSABILIZAÇÃO DOS ADMINISTRADORES E AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI N. 14.112/2020

A Lei n. 11.101 (BRASIL, 2005) representou, à época de sua promulgação, um grande avanço do Direito Brasileiro em direção à uma normatização mais sofisticada, com foco na preservação da empresa economicamente viável, envolvendo seus sócios, credores, funcionários e parceiros comerciais.

Sem nenhum prejuízo das boas mudanças introduzidas no ordenamento pela referida legislação, foi necessário reconhecer que com o passar dos anos muitos aspectos tornaram-se desconexos, tornando a utilização do instituto mais complexa e menos efetiva.

Por este motivo, foi promulgada a Lei n. 14.112 (BRASIL, 2020) que ficou popularmente conhecida como “Nova Lei de Falências’, trouxe significativas alterações no regramento existente, dentre elas a impossibilidade de extensão dos efeitos da falência, que vinha sendo indevidamente aplicada pela jurisprudência pátria[4], com a criação da figura da extensão como forma de instrumentalizar a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo falimentar, mas sem respeitar os requisitos necessários para sua aplicação, importando em enorme insegurança nos processos falimentares.

De forma a superar a situação, foram acrescentados pela Lei n. 14.112 (BRASIL, 2020) os arts. 6º-C e 82-A, pondo fim a esta controvérsia, deixando expresso que é vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, permitida a desconsideração da personalidade jurídica conforme o procedimento determinado pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil, art. 82-A, §1º da Lei n. 14.112 (BRASIL, 2020) restando vedada a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em Recuperação Judicial, art. 6º-A da Lei n. 14.112 (BRASIL, 2020).

A inclusão do art. 6º-C (BRASIL. Lei 11.101, 2005) da mesma lei buscou coibir a responsabilização secundária dos agentes como sócios e administradores pelo mero inadimplemento do devedor em procedimento de insolvência, uma vez que o simples descumprimento de uma obrigação não caracterizaria confusão patrimonial para fins de desconsideração da personalidade jurídica (SACRAMONE, 2021, p. 152).

O art. 82-A da Lei n. 11.101 (BRASIL, 2005), por sua vez, vedou a prática dos tribunais de estender os efeitos da Recuperação Judicial e Falência sem o devido procedimento.

Diante das alterações, torna-se necessário analisar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo de Recuperação Judicial e Falência, bem como as teorias adotadas no ordenamento jurídico brasileiro como forma de identificar os possíveis efeitos das alterações legislativas na prática forense.

5.1 O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA

A fim de evitar situações de abuso da personalidade jurídica, diante de situações em que a pessoa física por trás da pessoa jurídica tenta fazer uso da limitação de responsabilidade para cometer ilicitudes, é que se torna necessária a existência do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, isto porque imaginar que todos os indivíduos farão uso da personalidade jurídica da forma ideal não seria muito factível (TOMAZETTE, 2014. 238).

Desse modo, levando em consideração que nenhum princípio é absoluto, toda vez que o princípio da autonomia patrimonial for um empecilho ou um disfarce para que estes sujeitos cometam ilícitos ou violem direitos da sociedade, ele poderá ser afastado pelo juiz para que responsabilize diretamente os seus participantes (ANDRADE JUNIOR, 2017, p. 2).

Ainda assim, a desconsideração é uma hipótese excepcional, devendo ser utilizada apenas em casos em que restem completamente comprovados que a personalidade jurídica foi utilizada de forma ilícita ou fraudatória (SILVA, 2014, p. 30), mas não somente, uma vez que se tem buscado estabelecer também critérios mais objetivos e seguros para a sua aplicação, como através da análise do desvio de finalidade e a confusão patrimonial (DRESCH; KLOCK, 2016, pp. 177-178).

A desconsideração da personalidade jurídica é prevista no ordenamento jurídico brasileiro com três teorias aplicáveis: a teoria maior, a teoria menor e a desconsideração inversa. É possível afirmar que a primeira se aplica nas relações civis e empresariais, enquanto a segunda se aplica em situações específicas como na legislação consumerista, trabalhista e ambiental.

A desconsideração inversa está prevista no art. 133, §2º (BRASIL. Lei 13.105, 2015), sendo entendida pelo afastamento do princípio da autonomia patrimonial para que a sociedade seja responsabilizada pelas obrigações do sócio, amparando as relações de trabalho, de consumo, o direito tributário e ambiental entre outros, mas principalmente o direito de família, quando há o rompimento do vínculo de casamento ou de união estável, no qual a partilha de bens comuns pode resultar em fraude (COELHO, 2014, p. 68).

A Ministra Nancy Andrighi, em seu voto em sede de Recurso Especial de n. 948.117/MS (BRASIL, 2010), esclarece a importância do juiz agir com cautela ao aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, especialmente na sua figura inversa, devendo sempre ser levado em consideração a interesse social da pessoa jurídica.

Na teoria menor, se a personalidade jurídica representar qualquer tipo de obstáculo, ela será desconsiderada, independente de dolo, abuso de personalidade ou outros requisitos (DINIZ, 2014, p. 594).  Aqui o princípio da autonomia patrimonial é ignorado, sendo mais relevante a proteção daqueles considerados vulneráveis (ANDRADE JUNIOR, 2017, p. 6) e meio ambiente.

Na teoria maior, por sua vez, a medida será excepcional, sendo necessário que se configure o desvio de finalidade (teoria maior subjetiva) ou confusão patrimonial (teoria maior objetiva) (BARROS, 2018, p. 6) e tem previsão no art. 50 do Código Civil de 2002. Caracteriza-se, portanto, por ser regra geral e que exige no caso concreto a configuração de atos ilícitos entre integrantes da sociedade empresária e seus bens, sendo aplicada nos créditos de natureza civil, comercial ou tributária.

A Lei de Liberdade Econômica, Lei n. 13.874 (BRASIL, 2019), que trouxe algumas alterações ao Código Civil, não inovou ao abordar os conceitos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, mas tentou explicar de uma forma mais detalhada em seus parágrafos e incisos os seus significados. O §1º discorre que o desvio de finalidade é “a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”, já o §2º diz que a confusão patrimonial seria a ausência de separação de fato entre os patrimônios da personalidade e dos seus integrantes (BRASIL. Lei 13.874, 2019).

É possível extrair, aqui, dois pressupostos fundamentais para a desconsideração da personalidade jurídica, a fraude e a ilicitude (KOURY, 2020, p. 63). No que se refere à ilicitude, Fábio Ulhoa Coelho alude que tal pressuposto é importante ao distinguir a desconsideração da personalidade jurídica de outros cenários de responsabilização de sócios ou administradores, cenários estes alheios ao uso fraudulento da autonomia patrimonial (COELHO, 2014, p. 68).

Em relação aos efeitos da decisão que desconsidera a personalidade jurídica, é importante destacar, que em nenhum momento a sociedade empresária é despersonificada, extinta ou dissolvida, apenas é levantado o véu temporário da pessoa jurídica para que os seus integrantes sejam responsabilizados (DINIZ, 2014, pp. 598-599).

Assim, caso haja necessidade de responsabilização de um sócio no bojo da Recuperação Judicial, será feita de forma excepcional e deverá seguir o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica, respeitando o contraditório e ampla defesa.

6. CONCLUSÃO

Em uma zona de insolvência, exige-se do administrador que passe observar e agir sob o interesse dos stakeholders, não observando apenas o lucro das empresas, e é nesse contexto que serão avaliados o cumprimento dos deveres fiduciários de diligência, de lealdade e informar do administrador.

A quebra desses deveres sob a perspectiva apontada implicará na análise dos atos do administrador em procedimento próprio, por meio da ação de responsabilização prevista no art. 82 da Lei n. 11.101 (BRASIL, 2005) exportando-se aqui a ideia nascida nos Estados Unidos da América do Business Judgment Rule.

Nesse contexto de responsabilização, as alterações legislativas da Lei n. 11.101 (BRASIL, 2005), pela Lei n. 14.112 (BRASIL, 2020), estabelecem que não é o mero inadimplemento ou qualquer “má decisão” que imputará responsabilidade aos administradores. É imprescindível haver o descumprimento dos deveres fiduciários para a ação de responsabilização ou incidente de desconsideração da personalidade jurídica, conforme o caso, mas sempre de forma excepcional, privilegiando a independência da administração da companhia, excluindo a aplicação jurisprudencial outrora vigente.

O artigo busca, portanto, analisar se as condutas dos administradores estão em conformidade com os deveres fiduciários estabelecidos na legislação brasileira, especialmente em relação à proteção dos direitos dos credores. Além de explorar as possíveis formas de responsabilização dos administradores caso esses deveres não sejam cumpridos.

A contribuição científica desse artigo reside na análise dos deveres fiduciários dos administradores de empresas de capital aberto em situação de insolvência, preenchendo uma lacuna na legislação brasileira, que não possui disposições claras sobre como os administradores devem agir diante de um cenário de crise econômico-financeira.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE JUNIOR, Mozart Vilela. A Obrigatoriedade (?) do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Doutrinas Essenciais, Novo Código de Processo Civil. RT, v. 977, mar/2017.

BARROS, André Borges de Carvalho. O atual panorama da desconsideração da personalidade jurídica nas relações privadas (empresariais, consumeristas e trabalhistas) no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, v. 994, p. 411-435, 2018.

BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade dos administradores de sociedades anônimas. Doutrinas Essenciais de Responsabilidade Civil, RT, v. 3, p. 153-173, jan/2010.

BRASIL. Lei Nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Lei de Falências e Recuperação Judicial. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Brasília, 09 de fevereiro de 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em: 15 out. 2021.

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APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

4. A exemplo: REsp 1.266.666/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, DJe 25/8/11; RMS 12.872/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 24/6/02, DJ 16/12/02; e REsp 63.652/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, 4ª turma, DJ 21/8/00.

[1] Mestrando em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Master Business Administrativos (“MBA”) em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, Direito Processual Civil e Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e Graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Estácio de Sá. ORCID: 0009-0003-0429-2397.

[2] Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador/UCSal. Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia/UFBA. Bacharel em direito pela Universidade Católica do Salvador/UCSal.  ORCID: 0009-0003-2193-5470. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2652479313820512.  

[3] Orientador. Doutorado em Direito Público. Universidade Federal da Bahia, UFBA,  Mestrado em Direito Privado e Econômico. Universidade Federal da Bahia, UFBA, Graduação em Direito. Universidade Federal da Bahia, UFBA. ORCID: 0000-0002-9370-7368. Currículo Lattes: Http://Lattes.Cnpq.Br/2865196765668319.

Enviado: 24 de maio, 2023.

Aprovado: 29 de maio, 2023.

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Washington Luiz Dias Pimentel Junior

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