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SILVA, Flávio Marcus. Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII, in As Minas Setecentistas –Vol. I. Autêntica Editora e Companhia do Tempo, 1ª. ed. 2007. p. 359-376 – 1º.v.

RC: 23725
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/praticas-comerciais

CONTEÚDO

RESENHA

MOURÃO, Maria da Graça Menezes [1]

MOURÃO, Maria da Graça Menezes. SILVA, Flávio Marcus. Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII, in As Minas Setecentistas –Vol. I. Autêntica Editora e Companhia do Tempo, 1ª. ed. 2007. p. 359-376 – 1º.v. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 03, Ed. 12, Vol. 03, pp. 62-73 Dezembro de 2018. ISSN:2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/praticas-comerciais , DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/praticas-comerciais

O autor do ensaio “Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII”, Flávio Marcus da Silva, detém uma posição científica no meio acadêmico a partir do momento em que introduziu uma nova abordagem historiográfica a respeito do abastecimento e a produção alimentar nas Minas. É coordenador e professor do curso de História da Faculdade de Pará de Minas (FAPAM). Doutor em História pela UFMG com a defesa da tese Subsistência e poder: política do abastecimento nas Minas Setecentistas (2002). Publicou Subsistência e poder – a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas. Belo-Horizonte: Editora UFMG, 2008; e, entre outros, os artigos: “Economia moral e abastecimento alimentar em Minas Gerais no Século XVIII”; “O Senado da Câmara e o pequeno comércio nas Minas Setecentistas”; “Roceiros, comissários e atravessadores”; “Teoria e verdade histórica” e “Os engenhos e o poder”.

Em nova abordagem historiográfica, Flávio Marcus da Silva identifica no início da formação social de Vila Rica, a existência de um abastecimento alimentar produzido internamente na região. Até então, vigorava a posição da historiadora Mafalda Zemella (1951), cuja tese demonstrava “o gigantesco esforço despendido pelas regiões vicentinas a fim de transformar a zona de fraca produção em grandes mercados fornecedores das Gerais”. Apontando o problema geológico do solo, a “zona de xisto”, responsável pela pobreza do solo na região das lavras, como uma das barreiras que se opuseram ao desenvolvimento dos núcleos de produção agrária, Mafalda mencionava que a questão do abastecimento interno nas Minas foi superada somente na segunda metade do dezoito, “através de esforço próprio como quando São Paulo se aparelhou para abastecer as Minas e, que esta aos poucos, diante da inexorável realidade foi obrigada também a fazer o mesmo” (ZEMELLA, 1951: 50).

No entanto, o historiador Flávio Marcus da Silva, através de uma farta documentação, diverge da posição de Mafalda Zemella e comprova a existência de uma produção alimentar de grande porte em Vila Rica, sendo necessário que as autoridades urbanas regulamentassem a dinâmica que ali se formou. Este é o assunto do ensaio que deu origem a essa resenha que mostra de forma intrínseca e pontual, a normatização que controlava não só o abastecimento e as melhores condições de escoamento entre as vilas e paragens circunvizinhas, como também o esforço das autoridades para garantir à população, alimentos com qualidade, com preços accessíveis e até a facilitação, isto é, mais próximos para a sua aquisição.

Dentro desse contexto, o autor expõe o seu artigo em três partes:

Na primeira parte, ele aponta a fiscalização e controle do comércio de víveres, através de uma importante pesquisa documental, como os editais normativos, as diligências fiscalizadoras que procuravam regular o mecanismo complexo da sociedade que se formava e a preocupação da Câmara com relação ao sustento de todos e a sua acessibilidade aos menos favorecidos.

Refutando Caio Prado Junior que subordinava a trafegabilidade das estradas coloniais internas segundo o sabor da natureza, na segunda parte do texto, Flávio Marcus da Silva aponta uma política de garantia e conservação da comunicação interna. Comprova, portanto, o interesse das autoridades urbanas em manter as estradas adequadas preocupadas com a circulação da produção interna para os centros urbanos.

Essas atitudes e as medidas tomadas para garantir a exequibilidade da comunicação interna comprovam que houve uma estimulação da produção interna, isto é, o abastecimento nas Minas com alimentos produzidos ali mesmo, era meta e intenção das autoridades e por isso mesmo, estimulado. O incentivo ou a estimulação para que houvesse uma produção farta constitui a terceira parte do artigo.

Sua conclusão, Flávio Marcus da Silva a estabelece detectando queas autoridades não pouparam esforços para estabelecer um controle sobre aqueles que eram considerados os principais responsáveis pelo comércio de bebidas e comestíveis nos morros, sem, contudo, colocar obstáculos à continuidade das atividades que eram realizadas dentro das regras estabelecidas”.

Na construção da sua narrativa, o autor de Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII se baseia em Ferdinand Braudel (1966, p.160) que, analisando o grande volume de trocas conhecidas das sociedades do Antigo Regime, escreveu que tal situação exigia medidas de organização das autoridades urbanas. Identificando este mesmo contexto nas práticas comerciais que ocorreram com o abastecimento alimentar em Vila Rica, Flávio Marcus da Silva analisa o cotidiano das autoridades urbanas preocupadas em criar medidas de controle e organização para a sociedade que ali se constituía, bem como, as providências para formação de uma demanda e ao mesmo tempo proporcionar satisfatoriamente aos demais centros urbanos adjacentes e afastados, a circulação daqueles produtos.

Naquele primórdio nas Minas, o trânsito de viandantes era enorme: os que chegavam e os que saíam e viviam a procura de ribeiros para mineração de aluvião, dentre outras atividades. A mera existência física de caminhos não garantia a circulação de pessoas e de mercadorias. Era necessário que neles existissem locais capazes de fornecer aos viandantes, um lugar onde fossem possíveis o abastecimento, o descanso e a troca de animais. Isto garantiria a subsistência do próprio ocupante de terras, porquanto, através daquela prestação de serviço [hospedagem e alimentação do viandante e da tropa], ocorreria o escoamento da produção agropastoril (GUIMARÃES e REIS, 1987:91).

Além dessa visão no atendimento dos viandantes, a alimentação era necessária a todos os moradores e principalmente a sede fixa do potentado com a sua fábrica, cujo maior contingente era a escravaria. Na Colônia, desde o seiscentos, já se encontrava literatura de informação que preocupava com o abastecimento em áreas de mineração. Sobre o assunto, Antônio Fernandes Ambrósio Brandão em “Diálogo das Grandezas do Brasil” formulou orientações e advertiu que se devia fazer antes de se bulir nas minas, depois de estarem certos de que eram de proveito, houvera de plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio, onde elas estão e como os houvesse em abundância tratar-se-ia da lavoura das minas (BRANDÃO,1618).

Tais orientações e medidas eram seguidas, pois no final do século XVII, a partir dos núcleos mineradores, “o caráter dominante (mas não exclusivo) do acesso a terra foi a posse pelo título de se fabricar os sítios”, ou seja, lavorá-los como recomendava Brandão. (CARRARA, 1999, p.14).

Com a descoberta das minas de ouro e o grande fluxo de pessoas para a região pôde-se perceber, desde então, como era feita a releitura das orientações de Brandão. A política era voltada para o abastecimento interno, cuja ordenação se encontrava redigida na Ordem Régia de 22.10.1698. O Alvará de 18.04.1701 do governador-geral Artur de Sá e Menezes é uma dessas iniciativas. Na sua segunda vinda ao sertão das minas ele concedeu aos bandeirantes arranchados, o uso de terras para lavorar e criar gado. (RAPM, III: 253).

Em 1709, chega às Minas o governador Antônio de Albuquerque, confirmando as terras apossadas em cartas sesmariais com obrigação de que fossem aproveitadas para cultivo e povoação. Com essas obrigações pré-definidas, após confirmação de suas posses nos registros sesmariais, os mineiros acabaram se transformando em homens de negócio, pois além da mineração, estabeleceram atividades de agricultura e pecuária. Construíram engenhos, abriram “lojes”, compraram e venderam escravos, aumentando suas divisas. Inúmeras foram as redes privadas de comércio que se formaram através de lucrativas rotas ligadas aos portos da Bahia e do Rio de Janeiro, que com a mineração nas Gerais se tornou o principal centro urbano da Colônia. Quanto a esse aspecto, faltou a menção no ensaio de Flávio Marcus da Silva, cuja extrapolação seria interessante comentar a respeito das atividades dos homens de negócio que se formaram nas Minas. Pois, após a crise no abastecimento das minas do Tripuí e Ribeirão do Carmo (1698-1704), arranchados mineiros como Manuel Nunes Viana, Antônio Francisco da Silva, Matias Barbosa da Silva, já haviam se transformado em grandes potentados da economia mineira com reserva ou capital acumulado de forma tão peculiar, como o último, estabelecendo seu empório com a formação de sociedades e entrepostos. O primeiro provou ser “viandante do caminho da cidade do Rio de Janeiro que vai à mesma comprar cargas de molhados as quais envia nas suas bestas para estas Minas e que nelas as vende fiado e à vista a quem as quer comprar”. (Casa Setecentista, 390-8526).

Certamente, os molhados como o vinho do Porto e algum seco como a farinha do reino (a do trigo), Manuel Nunes Viana os comerciava direto com a Metrópole; muita mercadoria em grãos, que depois se chamou “os secos”, ele a levava das alterosas para comerciar no litoral.

O ouro em pó era a moeda necessária e tais divisas se formavam para constituir engenhos, embora proibidos em 1715, como foram também, os muares pouco tempo depois. Também se adquiria escravos, cavalos, e “ferramentas de roça”, como os possuía José Duarte de Andrade no Engenho Grande do Ribeirão do Carmo. (Casa Setecentista, 40-925-1722).

As pesquisas de Carrara, sobre o espaço agrário das minas no século XVIII, nos mostram que não era só de mineração que vivia a população estabelecida nos termos de Vila Rica e Ribeirão do Carmo. Eram inúmeras as roças e, “roças grandes”, que se formavam neste espaço, entre 1710 e 1738. (CARRARA, 1999).

Ao analisarmos alguns inventários de proprietários da região, menos abastados, em 1713 já apontava na lista de bens, além de uma chaleira de prata e quatro armas de fogo, “uma roça de mandioca, uma enxada e duas foices”. (Casa Setecentista, 118-24-64-1713).

As Minas haviam se transformado na capitania de todos os negócios, equivalendo dizer que o comércio era diversificado; que o que se produzia, vendia e era rendoso, transformando-se em ouro. De fato, como o ouro era a moeda corrente do mercado, isto fazia com que os agricultores e comerciantes fossem estimulados, cada vez mais a diversificarem para abastecer um mercado que era determinado pelas variações daquela moeda instaurando-se a abertura de rotas, de novos descobrimentos, de um setor mercantil na economia e o desenvolvimento de um setor urbano na sociedade. (NOVAIS, 1977, pp. 22-23).

A exploração econômica e a penetração rumo ao interior da America portuguesa principalmente com a descoberta das Minas e o crescimento da sua população, com Portugal abrindo novas rotas comerciais que ligassem o litoral e os seus portos de abastecimento ao sertão, acabaram por definir a forma de ocupação da capitania mineira, principalmente no que concernia ao abastecimento de suas paragens, arraiais e vilas. Ela, a capitania, não só se ocupou de mineradores, mas as Minas se fizeram, principalmente, e ou de produtores rurais circunvizinhos aos centros urbanos e às zonas mineradoras, fornecendo suprimentos à população, cujos agentes mais importantes foram as negras de tabuleiro e os negros de ganho.

Para o mister dos mineiros-produtores-rurais, estes podiam contar com os comerciantes da própria região que os sortiam de equipamentos para a mineração e instrumentos agrícolas, além de artigos de luxo, conservas importadas do reino e, outras utilidades domésticas. Tal assunto se caracterizou com os estudos de Júnia Ferreira Furtado e Cláudia Maria das Graças Chaves em “Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas” e “Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas”, respectivamente. Obras estas que fizeram o pano de fundo para as abordagens historiográficas que hora constituem os estudos acadêmicos em função de uma nova ordem econômica nos primórdios do século dezoito que não somente a mineradora.

Tais análises estenderam caminhos com direções para a existência de um vigoroso mercado interno, abastecedor e articulado aos demais mercados regionais na época. Essas direções apontadas encontraram ao final de pesquisas argutas e intensas, um mercado produzido no interior das Minas, suficientemente capaz de garantir a circulação dos produtos importados vindos do mercado europeu. Mercado capaz até mesmo de preparar o terreno para suplantar a situação no meado de século XVIII que muitos definiram como decadente com a crise que se estabeleceu na extração do ouro.

José Newton Coelho Meneses comunga com as mesmas idéias de Flávio Marcus da Silva, quando menciona que “as atividades diversificadas desse mundo rústico formavam complexo sistema agropecuário mercantil voltado para o abastecimento do mercado colonial interno”. Sua análise, estendendo o rumo para uma complexidade maior que normalmente a historiografia colonial mineira vem percebendo, procura articular a esse mercado e aos comerciantes e tropeiros que dele faziam parte ativa, a vigorosa produção agrária, cujas regulamentações e medidas de estímulo foram o tema do artigo resenhado. Para ele, José Newton Coelho Meneses, havia “uma dinâmica interna peculiar e que seguindo os conselhos de Fragoso (1992) deve ser entendida como uma ‘formação econômica e social’ que incorpora segmentos outros, além de escravos e senhores. Essa agricultura de abastecimento alimentar participou de forma fundamental do processo endógeno de acumulação, vinculando-se à economia mineradora de exportação de forma a dividir com ela o espaço geográfico e a mão de obra escrava” (MENESES, 2008.357).

Tanto essa “formação econômica social” de que fala Meneses, como o contexto das historiadoras citadas, os três formam o pano de fundo para o estabelecimento de um novo olhar sobre as Minas. Olhar esse que Flávio Marcos da Silva captou e emoldurou com suas pesquisas, estudos e narrativas, identificando a peculiaridade da economia mineira apontando-as em “Práticas comerciais e o abastecimento em Vila Rica na primeira metade do século XVIII”, além de preconizar que o abastecimento dos mineiros era “condição para a permanência da própria estrutura administrativa e fiscal portuguesa nas Minas”. Para justificar essa sua proposição, o historiador busca em Liana Reis o referencial que o faz caminhar por entre os esgares, teias e meandros dos sistemas mercantis, quando ela aponta no dia a dia nas Minas, uma política flexível de controle para as atividades das vendas, vistas como locais de brigas, mortes e até contrabando e o comércio de quitandas, carnes cozidas e outros fazeres tão saborosos das negras de tabuleiro. Como nas vendas, elas também eram sempre responsabilizadas pelas autoridades de perturbar a ordem.

Porém, como as “lojes” e principalmente as vendas e as negras de tabuleiro eram o veículo que garantia o fluxo das mercadorias da produção interna, não podiam sofrer represálias que os isolassem daquele contexto. Eram peças fundamentais na estruturação do comércio que ali se praticava. Por isso, as autoridades contornavam tais situações e baixavam medidas, para evitar os conflitos e as desordens, sem, contudo, prejudicar o abastecimento dos centros urbanos. Diante da complexidade dessa realidade econômica e social das Minas no século XVIII, ela tinha que ser regulada por autoridades conscientes. Só por esse modus vivendi era possível o controle da população e o estabelecimento da governabilidade. Assim, para evitar as assuadas, os conflitos, os motins e as revoltas, os governantes da época estabeleceram uma política de abastecimento para manter a região em paz diante da frágil defesa da administração colonial para controlá-la.

As medidas citadas só ganham interpretação ou significação a partir da compreensão do sentido da colonização portuguesa na América. Vila Rica evidencia na primeira metade do dezoito, a transição de uma economia monocultora de exportação, o ouro e um conjunto de atividades econômicas diversificadas e destinadas ao atendimento dos interesses metropolitanos, formando uma demanda interna vigorosa. Essa transição, estimulada pela mineração, se tornou, conseguintemente, responsável pela produção agropastoril, o artesanato, a manufatura e uma economia diversificada, cuja destinação era atender o mercado interno. Com a escassez de mão de obra toda voltada para a mineração, foi necessário buscar aquela mais acostumada ao serviço do campo, aos labores do engenho e da roça, aumentando-se o contingente servil, ou seja, de escravos.

Portanto, tendo em vista os três fatores de produção, terra (latifúndio), trabalho (mão de obra escrava) e capital, nos reportamos a Fernando Antônio Novais (1977) quando ele elege a acumulação primitiva de capital como o conceito-chave para analisar o período colonial do Brasil, enfatizando o fator capital como o “Sentido da Colonização”. O nível de riqueza de uma nação era medido pelo montante de metal nobre que ela possuísse.

Ao usar Braudel (1949), “nas traições” que o quadro apresenta, ele, Novais, esclarece que “a estratégia nem sempre é explícita no nível da consciência individual… Em meio às contradições em que se desenvolve a expansão capitalista e ascensão burguesa, ‘perpassa aquele mecanismo de fundo, subjacente a todo processo’”. Como ele citou, no curso da abertura dos novos mercados para o capitalismo mercantil, as terras americanas foram encontradas e a primeira atividade foi o escambo com os produtos naturais dos aborígenes; para não abrir mão do novo continente sobreveio o povoamento e a conseqüente produção que ali se estabeleceu, por exemplo: o açúcar no nordeste do Brasil, tornou rentáveis esses domínios. […] Imperceptivelmente, do comércio para a colonização, esse desdobramento, envolvia de fato uma nova atividade… E aí ele, Novais, cita o “Diálogo das Grandezas do Brasil”, quando o autor compara os que têm e os que não têm bens de raiz, os homens das Índias e os moradores do Brasil, estes os ditos detentores de reserva de mercado (Brandão,1618. In Novais,1977).

Portanto, fazendo a leitura atenta do texto de Novais (1977) e o mesmo com as “Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII” pode-se abstrair das linhas que compõem o primeiro, o visante que nos obriga olhar para o surgimento de uma sociedade nova para o contexto dos arraiais mineradores, especificamente Vila Rica, que parte para a comercialização dos produtos, não mais como gêneros de subsistência, mas como de abastecimento. Ou seja, tal situação configura a conclusão de Novais quando “a colonização guardou na essência o sentido de empreendimento comercial, donde proveio: a não existência de produtos comerciáveis levou à sua produção e disto resultou a ação colonizadora”. E acrescenta usando Prado Junior: “o sentido da colonização tem natureza essencialmente comercial.” Na medida em que a comercialização se torna permanente destaca-se um setor da sociedade que passa a dedicar-se exclusivamente à circulação dos bens econômicos, acumulando capital nesta atividade […] e, produzindo para a troca” (NOVAIS, p.30) a produção se especializa. E por aí vai. Da acumulação de capital provém a divisão de trabalho, a mercantilização dos bens produzidos, a especialização da produção… É um pulo do artesanato para a manufatura, porta aberta para o fabril. Da acumulação do capital sobrevém o surgimento da burguesia…

Diante dessa exposição, concluímos que o mecanismo de ajuste e flexibilidade nas relações sociais em Vila Rica, a produção interna, a criação de bens de raiz através da fixação do homem na terra resultou no processo histórico concreto de constituição do capitalismo e da sociedade burguesa. Este mecanismo ou este processo histórico foi a peça de um sistema, instrumento da acumulação primitiva (Marx) como ocorreu na época do capitalismo mercantil (NOVAIS, p.33). Sendo assim, o sistema colonial é, portanto, o conjunto de relações entre as metrópoles e suas respectivas colônias em uma determinada época histórica e faz parte do Antigo Regime da época moderna. Segundo o seu modelo teórico típico, a colônia deveria ser um local de consumo (mercado) para os produtos metropolitanos, de fornecimento de artigos para a metrópole e de ocupação para os trabalhadores da metrópole. Em outras palavras, dentro da lógica do “Sistema Colonial Mercantilista” tradicional, a Colônia existia para desenvolver a metrópole, principalmente através do acúmulo de riquezas, seja através do extrativismo ou de práticas agrícolas mais ou menos sofisticadas.

Para um texto que compõe o corpo da coleção História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas”, composto com a participação de mais de 40 profissionais, é quase impossível certa unicidade de análise. O número tão grande dos produtores do conhecimento acaba permitindo a concentração de cada pesquisador nas suas áreas de pesquisa apresentando quase sempre uma síntese de suas produções individuais. Isto torna impossível, como dito, manter a unidade em toda a referida coleção e algumas perspectivas analíticas. Há alguns que ainda resistem em entender a história da Minas Colonial mediante a dicotomia colônia-metrópole, característica que se perde ao se privilegiar determinados aspectos, como somente o da produção interna, sem a percepção da rede intercontinental que se estendeu na América portuguesa no século XVIII. Existência esta que se deu quando passou a existir a interiorização da economia de que cita Flávio Marcus Silva. É necessário estar atento que as trocas inter-regionais no interior da colônia mantiveram conexões com as trocas efetuadas através do Atlântico, dando origem a uma “economia colonial” capaz de compor uma acumulação primitiva de capital para alavancar o capitalismo rumos à industrialização européia, mais propriamente, a inglesa. Por isso, a análise da economia colonial deve ser realizada a partir da relação metrópole-colônia, e não das relações de produção. As relações sociais de produção na Colônia aparecem como resultado do sistema, tornando-se impossível explicar de outro jeito a formação social colonial.

Enfim, todo o texto, – “Práticas Comerciais e o abastecimento alimentar em Vila Rica na primeira metade do século XVIII”, revela preocupação com o rigor acadêmico, destacando nesse aspecto a pesquisa documental, ponto forte do ensaio. Sente-se, no entanto, a ausência da reprodução de tais fontes sem o acompanhamento de uma análise que extrapolasse além do imediato que elas reproduziram; análise esta que pudesse mostrar não só a finalidade dessas práticas comerciais, mas também explicar o “sentido da colonização”, o para que e porquê se comerciava; não se levou em conta que a vida econômica da Metrópole era dinamizada pela produção colonial, ou seja, pelas atividades comerciais da Colônia, “o exclusivo comercial”. Ou seja, muito se esclareceu os mecanismos de regulamentação da Câmara de Vila Rica, as regras que regulavam o seu comércio interno e adjacente. Mas, pouco se explicou e não permitiu entender a relação da Câmara com o centro político além-mar, a metrópole.

No entanto, o ensaio, que agora já se tornou uma obra, – Subsistência e poder – a política do abastecimento alimentar nas Minas setecentistas, publicada o ano passado pela UFMG, é de relevante importância para a história de Minas Gerais dentro da perspectiva historiográfica inovadora e também política, rompendo até então com o quadro que Mafalda Zemella tinha até então descrito para a Capitania das Minas.

Ler o ensaio é considerar a preocupação das autoridades metropolitanas, em relação à política de abastecimento para as áreas mineradoras e constatar que dela se serviam os administradores da Coroa como controle dos motins de fome do que propriamente no provimento de alimentos para os habitantes das Minas. Eles sabiam que a provisão dos mineiros com alimentos a preços acessíveis e de boa qualidade era condição para a permanência da própria estrutura administrativa e fiscal portuguesa nas Minas. Política essa que se iniciou com a distribuição de sesmarias; a confirmação da posse da terra era a condição primeira para a produção de alimentos nos limites da capitania de Minas Gerais e, em conseqüência a função da justiça no controle do suprimento de alimentos. Daí encontrarmos a flexibilidade das autoridades na aquiescência do papel dos atores praticantes comerciais, que tinham como objetivo a venda de alimentos, como os atravessadores, os quilombolas, as negras de tabuleiro.

Se em comparação a situação anterior com a política que se estabeleceu na Demarcação Diamantina, como aponta Flávio Marcus da Silva, – onde não houve o relaxamento das autoridades, onde negros, negras e mulatos forros que vendiam sua produção alimentar eram expulsos, viver no espaço que se chamou as Minas Gerais, banhado pelos ribeirões Tripuí e do Carmo, era viver num paraíso…

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS

Documentos da Casa Setecentista – Mariana-MG

Revista do Arquivo Público Mineiro, Vol.III

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Antônio Fernandes Ambrósio – Diálogo das Grandezas do Brasil. 1618. Rio de Janeiro, Dois Mundos, s.d.

BRAUDEL, Ferdinand. Civilização material, economia e capitalismo:séculos XV-XVII.Os jogos das trocas, São Paulo: Martins Fontes,1996,v.2

BRAUDEL, Ferdinand. La Mediterranéeet Le monde mediterranéen à l’epoque de PhlipeII, s.l,Paris.1949.

CARRARA, Ângelo Alves. Contribuição para a História Agrária de Minas Gerais. Ouro Preto: Editora da UFOP, 1999.

CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos Negociantes: Mercadores das Minas Setecentistas.Editora Ana Brume.1991.

FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de Negócio: A Interiorização da Metrópole e do Comércio nas Minas Setecentistas. SP. hUCITEC,1999.

GUIMARÃES, Carlos Magno; REIS, Liana Maria. Agricultura e Caminhos de Minas (1700/1750).Revista do Departamento de História.Belo Horizonte, n.4, 1987.

MENESES, José Newton Coelho. A terra de quem lavra e semeia: alimento e cotidiano em Minas Colonial. In História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas, Autêntica: Belo Horizonte. 2008.

NOVAIS, Fernando Antônio. A Estrutura e Dinâmica do Antigo Sistema Colonial 6ª. Ed.São Paulo:Brasiliense,1977.

NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808).4ª ed. São Paulo: Editora Hucitec,1986.

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1996.

ZEMELLA, Mafalda. O abastecimento da Capitania de Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: USP, 1951. (Tese de Doutorado). 264p.

[1] Formada em Filosofia; Pedagogia; Pós-graduação em Metodologia do Ensino Superior e em História e Cultura de Minas Gerais, PUC-MG; Pós Graduação em História-ICHS da UFOP como aluna especial.

Enviado: Julho, 2018

Aprovado: Dezembro, 2018

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Maria da Graça Menezes Mourão

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