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História oral e o ofício do historiador: análise histórica do Instituto de Filosofia e Teologia – IFT

RC: 129795
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/historia/oficio-do-historiador

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL 

PAULA, Sérgio Peres de [1], FRAGA, Estefania Knotz Canguçu [2]

PAULA, Sérgio Peres de. FRAGA, Estefania Knotz Canguçu. História oral e o ofício do historiador: análise histórica do Instituto de Filosofia e Teologia – IFT. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 10, Vol. 05, pp. 37-63. Outubro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/historia/oficio-do-historiador, DOI: 10.3279/nucleodoconhecimento.com.br/historia/oficio-do-historiador

RESUMO

O Instituto de Filosofia e Teologia, IFT, consistiu numa instituição católica intercongregacional que existiu entre 1965 e 1969. Para compreender sua trajetória histórica, a História Oral se torna um dos gêneros possíveis de se trabalhar no ofício do historiador. A realização de quatro entrevistas com três estudantes e um professor que atuou no IFT levanta várias questões metodológicas que envolvem a oralidade, a transcrição, a relação entre o entrevistador e os entrevistados, e o uso da fonte oral, transmutada em texto escrito, como fonte, apresentando-se como um recurso metodológico capaz de preencher possíveis lacunas deixadas pela falta de documentos, ou outras evidências. Uma das contribuições relevantes da oralidade refere-se ao fato de não se perder de vista o caráter humano, existencial, por vezes dramático, outras vezes trágico, da História, enquanto conhecimento da ação humana no tempo.

Palavras-chave: Instituto de Filosofia e Teologia, História da Igreja Católica no Brasil, História Oral e entrevistas.

INTRODUÇÃO

O Instituto de Filosofia e Teologia, IFT, existiu em São Paulo entre os anos de 1965 e 1969, inicialmente sediado no Colégio Des Oiseaux, das Cônegas de Santo Agostinho, na Rua Caio Prado, esquina com a Rua Augusta, região central da Capital de São Paulo- Brasil.  A partir de 1968, passou a funcionar no Convento dos Carmelitas, na Rua Martiniano de Carvalho, no bairro Bela Vista, também na região central.

A iniciativa de sua criação deveu-se à Conferência dos Religiosos do Brasil, CRB, regional São Paulo. Seu objetivo era fornecer uma formação religiosa e sacerdotal atualizada em relação aos documentos do Concílio Vaticano II em diálogo com o mundo moderno. Várias ordens e congregações religiosas compunham sua estrutura institucional, administrativa, corpo docente e discente. Sua extinção está diretamente relacionada a um conflito com o então Cardeal Arcebispo D. Agnelo Rossi e uma progressiva politização da instituição, mormente do diretório acadêmico representativo de seus estudantes, o Diretório Acadêmico Onze de Outubro, D.A.XI.X., num contexto de regime militar com medidas progressivas que o caracterizaram como ditadura. Através dele, os estudantes mantiveram contatos e realizaram ações conjuntas com o movimento estudantil e protestos contra o regime militar. Alguns foram presos e, dentre estes, alguns sofreram torturas.

A História Oral é um dos gêneros que o pesquisador escolheu como forma de aprofundar a construção de uma narrativa histórica do IFT. A pesquisa faz parte do Programa de Pós-graduação em História, Doutorado, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, sob a orientação da Professora Dra. Estefania Knotz Canguçu Fraga. O pesquisador realizou quatro entrevistas, que foram transcritas e analisadas através de sua respectiva oralidade.

A primeira abordagem, de cunho teórico metodológico, se refere à História Oral como gênero válido para a escrita da História; e  traz à tona algumas questões que envolvem a realização das entrevistas, o processo de transcrição e o seu uso como fonte histórica.

Após mostrar os procedimentos para a realização de cada entrevista e suas respectivas transcrições, foram tratados alguns elementos presentes na relação entre entrevistador e entrevistados. Elementos comuns entre eles, como a linguagem própria da vida religiosa, mesmo que de ordens e congregações diferentes, facilitou o entendimento do objeto de pesquisa. Em graus diferentes, criou também uma relação em que a memória fluiu e as falas emergiram com bastante naturalidade e confiança.

Como se trata de um mesmo objeto sob perspectivas diferentes nos entrevistados, vários elementos comuns apareceram nas entrevistas, sobretudo nos três que foram estudantes do IFT, como é o caso de nomes de colegas e de professores que marcaram suas vidas.

As singularidades de cada entrevistado, seja em relação ao IFT, seja quanto a suas trajetórias pessoais nas respectivas ordens e congregações religiosas, e nas suas vidas até o momento da entrevista, se fizeram presentes nas falas. Elas são perceptíveis nas transcrições, que, no entanto, não conseguem abarcar toda expressividade emocional que dá sentidos bastante específicos ao que é dito naquele momento.

A realização de entrevistas e o uso de suas transcrições como fonte histórica supõe desafios ao historiador e podem enriquecer a narrativa histórica com o caráter humano, existencial e dinâmico quanto ao drama e, às vezes, à tragédia vividos por pessoas que sonham, têm um projeto de vida e sofrem com as expectativas frustradas, num momento de profundas e rápidas transformações culturais, os anos de 1960.

HISTÓRIA ORAL COMO GÊNERO E A METODOLOGIA DAS ENTREVISTAS

Para a escrita da história na pesquisa sobre o Instituto de Filosofia e Teologia, IFT, uma das ferramentas metodológicas bastante pertinente ao objeto é a História Oral. Para a pesquisa, foram utilizadas entrevistas com pessoas que foram membros do IFT, seja no seu quadro docente ou discente. Com estas entrevistas, é possível construir uma narrativa sobre a instituição e perceber vários outros elementos comuns dado a escassez de fontes diretas.

A História Oral como gênero histórico teve muitas contribuições apresentadas pelo historiador Alessandro Portelli (2001), que aponta em suas obras, vários elementos presentes no processo que envolve a entrevista, o historiador, a fonte histórica oral e vários outros que precisam ser considerados na narrativa construída com base na oralidade. Para ele, a História Oral é uma forma específica de discurso, pois, enquanto narrativa do passado, inscreve-se no âmbito da História que tem a oralidade como meio de expressão. Trata-se de um discurso dialógico entre entrevistado (“que diz”, fala, narra, lembra e relembra) e historiador (que ouve e escreve); um discurso marcado por uma “heteroglossia”. A História Oral constitui-se assim como um gênero específico e como um discurso histórico (PORTELLI, 2001, p. 10).

Fontes escritas e fontes orais não são mutuamente excludentes, mas possuem características autônomas, funções específicas e requerem instrumentos interpretativos diferentes (PORTELLI, 1997, p. 26). A entrevista supõe um roteiro, meios de gravação, um entrevistador com determinados interesses no conteúdo da fala do entrevistado, portanto, uma situação com algumas predisposições. Segundo A. Portelli (2001), aquilo que é falado na entrevista, normalmente não é contado dessa forma, mas no cotidiano, em fragmentos, pedaços, episódios, repetições e “ouvir dizer”. Uma história de vida como narrativa completa e coerente não existe na natureza.

A entrevista realça a autoridade e autoconsciência do narrador ante um ouvinte e questionador especial, tendendo ser uma história não contada antes, ao menos dessa forma. É um discurso em elaboração, no qual há um esforço pessoal de composição da performance. Nele, emergem usos de linguagem socializada (clichês, fórmulas, folclores, anedotas e lugares comuns) e até gêneros escritos (novela, autobiografia, livros de história) ou da comunicação de massa. Tais falas formam uma espécie de “roteiro” seguro. Assim, faz-se necessário entender como a narrativa é formada, considerando os materiais formulados, os materiais aparentemente sem conexão e suporte, o papel dialógico e corretivo do historiador (PORTELLI, 2001, p. 11-13). Enquanto gênero de expressão, a História Oral, segundo A. Portelli, se inicia na oralidade do narrador, sendo encaminhada e concluída rumo ao texto escrito do historiador.

“Podemos definir a História Oral como gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem conjuntamente, de forma a cada uma falar para a outra sobre o passado” (PORTELLI, 2001, p. 13).

O que existe frequentemente no meio acadêmico são preconceitos em relação às fontes históricas orais, fruto de uma credibilidade factual com o monopólio dos documentos escritos (PORTELLI, 1997, p. 32). Alega-se que a memória oral é imperfeita e distorce os fatos, quando, no entanto, “a fala e a escrita, por muitos séculos, não existiram separadamente: se muitas fontes escritas estão baseadas na oralidade, a oralidade moderna, por si, está saturada de escrita” (PORTELLI, 1997, p. 33). A memória é sempre um processo ativo de criação de significações. As mudanças forjadas, assim, são muito significativas para o historiador, pois revelam o esforço em buscar sentido no passado e dar forma às suas vidas e, durante a entrevista, colocar a narração em seu contexto histórico (PORTELLI, 1997, p. 33).

Como ato de fala, implica um processo quintuplicado: quem diz o quê, em qual canal, para quem, com que efeito (PORTELLI, 2001, p. 13). O assunto da entrevista torna-se uma combinação da forma narrativa, a biografia e experiência individual, e as transformações na sociedade. “…a história oral expressa a consciência da historicidade da experiência pessoal e do papel do indivíduo na história da sociedade em eventos públicos…” (PORTELLI, 2001, p. 14). Existe aí um movimento de equilíbrio entre o pessoal e o social, a biografia e a história.

A entrevista é uma interrogação e diálogo denso; um encontro entre duas pessoas diferentes: uma com uma história para contar e outra com uma história para reconstruir. Nesse diálogo, é o entrevistador quem define e estabelece a base da autoridade narrativa (o direito de falar do entrevistado, estimulado pelo entrevistador). Estabelece-se um processo de legitimação bastante complexo: o narrador se sente autorizado a falar somente devido ao mandato do entrevistador (PORTELLI, 2001, p. 18). Emerge uma “negociação” que pode variar de assuntos irrelevantes, monólogos sem rodeios a narrativas dialógicas técnicas; de um questionário de mão única a diálogos densos, onde se manifesta a individualidade e subjetividade tanto do narrador entrevistado como do historiador, que está ali para ouvir. Nessa relação, passa a existir uma “temerosa” simetria entre as ideias do entrevistador e o relato do informante; pode se estabelecer um apego a camadas superficiais de consciência, a aspectos oficiais e públicos da cultura do entrevistado, como pode revelar camadas menos facilmente acessíveis de conhecimento pessoal, crença e experiência (PORTELLI, 2001, p. 20-22).

Existe um mito da não-interferência do historiador na passagem do testemunho de campo para o texto publicado, dirigido ao público. Pode existir também a tendência de se apagar a presença do historiador na situação de campo e no texto publicado, criando-se uma ficção de que o informante está falando diretamente ao leitor. Existe, no entanto, um escritor, que é o intermediário responsável pela mudança do destinatário determinado para o não-determinado (PORTELLI, 2001, p. 23).

A História Oral conta mais sobre significados do que sobre eventos, mostrando assim a subjetividade do expositor e os custos psicológicos de sua relação com os eventos narrados, de forma que aquilo que ele acredita é em verdade um fato histórico tanto quanto aquilo que realmente aconteceu. Esta é a base daquilo que A. Portelli chama de “complexo legendário”. Assim, a credibilidade das fontes orais pode perfeitamente ser aceitável como “diferente”, podendo não estar muito aderido ao fato, mas como emergência da imaginação e do simbolismo. As afirmativas factuais “erradas” são, na narração, “psicologicamente corretas” e isto pode ser tão importante quanto os registros factuais confiáveis (PORTELLI, 1997, p. 31-32).

As fontes orais não são objetivas, o que pode ser igualmente aplicável a qualquer outra fonte histórica. O que pesa aí normalmente é a “sacralidade da escrita”. A fonte escrita requer um texto estável; a fonte oral, por sua vez, requer a transmissão a partir de questões, diálogos e relações postas pelo historiador. As distorções possíveis podem acontecer quando os entrevistados contam ao entrevistador aquilo que eles creem que ele queira ouvir e revelam, assim, o que pensam ser o pesquisador; e quando as entrevistas são rigidamente estruturadas, podendo excluir elementos cuja existência e relevância seriam desconhecidas previamente para o entrevistador e não contempladas nas questões colocadas (PORTELLI, 1997, p. 35).

Diferentes linguagens corporais e expressões faciais tornam-se presentes nas entrevistas: desde a apresentação pública consciente de si à expressão oral espontânea. Como a História Oral se difunde mais por escrito, existem muitas maneiras de traduzir o oral em escrito, como a transcrição e a edição. A “exatidão” é uma meta ao se transcrever e editar, no entanto, “toda tradução é uma traição”. Faz-se necessário considerar três parâmetros: a finalidade da narrativa, a representação e continuação da experiência dialógica e da performance oral, e a audiência pretendida (PORTELLI, 2001, p. 24-27).

A transcrição transforma objetos auditivos em objetos visuais, o que implica mudanças e interpretação. “A mais literal tradução é dificilmente a melhor, e uma tradução verdadeiramente fiel sempre implica uma certa quantidade de invenção. O mesmo pode ser verdade para a transcrição de fontes orais” (PORTELLI, 1997, p. 27). Tornar a transcrição legível é uma adição arbitrária do transcritor, pois mudanças de ritmo na narração, que normalmente são muito significativas, só são perceptíveis quando se ouve. A velocidade do discurso e suas mudanças durante a entrevista se caracterizam por mudanças rítmicas, constituindo-se como norma do discurso oral, enquanto a regularidade é norma da escrita e as variações, a norma da leitura, que, por sua vez, são introduzidas pelo leitor e não pelo texto em si. As mudanças rítmicas revelam as emoções do narrador, sua participação na história e a forma pela qual a história o afetou. As fontes históricas orais são fontes narrativas. Por isso a velocidade da narração indica uma proporção entre a duração dos eventos descritos e a duração da narração, o quão significativas são as oscilações e se relacionam com a intenção do narrador (PORTELLI, 1997, p. 28-29).

Não se pode descuidar na construção da narrativa em História Oral da apresentação das “vozes”: quem fala, quantas vozes, monólogo ou polifonia. Frequentemente, a estratégia da objetividade silencia a voz do entrevistador. Não se pode descuidar da relação da voz do entrevistado com a do entrevistador. O entrevistado, de certa forma, é também um historiador, assim como o historiador é, algumas vezes, parte da fonte. A História Oral, assim, está centrada na reconstrução da subjetividade. O esforço para apresentar a realidade factual e dispensar as decepções ideológicas pode estar presente nos relatos assim como na construção da narrativa escrita, da qual o historiador não é um “narrador onisciente”. O sujeito em História Oral não é unificado: pode existir a parcialidade inconclusa do narrador, a confrontação como “conflito” ou a confrontação como “busca pela unidade” (PORTELLI, 2001, p. 28-30).

As reticências indicam um “não dito” igualmente importante a ser considerado e, nelas, podem estar as informações mais preciosas. Tão importante quanto o fato narrado é o fato que levou o entrevistado a não dizer uma informação (PORTELLI, 1997, p. 34).

As entrevistas visam uma audiência maior. Falar depois a especialistas exige uma linguagem mais técnica, com enfoque interpretativo; enquanto falar para a comunidade ou ao público em geral, uma linguagem mais voltada à comunicação com enfoque narrativo (PORTELLI, 2001, p. 31).

A História de vida possui duas bases de legitimação: a vida significativa e a História bem contada. Às vezes, importa mais a beleza e o prazer da narrativa e não tanto a verdade ou o rigor dos fatos. O historiador também visa um efeito na relação entre a factualidade material e o valor estético (PORTELLI, 2001, p. 32-35).

“Algumas vezes, esta verdade contada com beleza pode também espargir luz por meio de símbolo e sentimento de nosso entendimento de história” (PORTELLI, 2001, p. 34).

Como existe uma íntima relação entre história oral e poesia, ouvir o depoimento requer tê-lo como representação poética, ritual, do significado de uma experiência histórica, baseada na materialização de metáforas. Narrativas históricas, poéticas e míticas sempre se misturam na oralidade. Em tais discursos, pode-se notar com frequência os descompassos entre a linguagem padrão e a linguagem informal, cotidiana, bem como os regionalismos (PORTELLI, 1997, p. 30).

Alessandro Portelli considera a História Oral um gênero muito apropriado para tratar a história de grupos não hegemônicos, uma vez que dá voz àqueles sobre os quais as fontes são mais escassas (PORTELLI, 2001, p. 9-36; PORTELLI, 1997, p. 25-39; PORTELLI, 2016).

Assim, em relação ao IFT, a História Oral é um instrumento bastante apropriado, uma vez que alguns membros da instituição se dispuseram a ser entrevistados. Tais entrevistas se tornaram fontes históricas, sobre as quais é necessário ter todo o cuidado e tratamento, cujos critérios são muito bem apresentados por Alessandro Portelli ao avaliar a validade, a credibilidade da fonte histórica oral, ao considerar as relações psicológicas e linguísticas presentes no processo de entrevista e de transcrição desta para se tornar parte da narrativa histórica.

AS ENTREVISTAS

Foram realizadas quatro entrevistas, sendo três que foram estudantes e uma com um professor no IFT. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética da PUC-SP através da Plataforma Brasil e, conforme o “Parecer Consubstanciado do CEP”, aprovado no dia 28 de setembro de 2020, CAAE: 37784920.5.0000.5482, número do Parecer: 4.303.763. Todos os arquivos se encontram em posse do pesquisador. Os entrevistados, cujos nomes serão grafados aqui apenas em siglas por questões éticas, foram:

1)Alunos:

a)R. L.

b)Padre P. H. G.

c)Padre L. R. B.

2)Professor:

a) A. R. N.

As entrevistas com R. L., Padre P. H. G. e Professor C. A. R. N. foram realizadas presencialmente. O senhor R. L., ex-frade agostiniano recoleto, dispôs-se a ir até a residência do pesquisador. Ele mantém uma proximidade com a Ordem e em diversas ocasiões se hospedou numa das residências dela. Com Padre P. H. G. e Professor C. A. R. N., o pesquisador foi até suas residências. Padre L. R. B. se dispôs a conceder entrevista gravada via plataforma Skype.

Todas as entrevistas foram realizadas ao longo do primeiro semestre de 2021, no período da “segunda onda” da pandemia de COVID-19. Por isso mesmo, nas entrevistas presenciais, foram tomadas as medidas prudenciais exigidas pela vigilância sanitária, tais como uso de máscaras e distanciamento. Para as entrevistas, os entrevistados preferiram permanecer sem a máscara, por isso, o pesquisador se manteve mais distante e não aparece nas gravações.

Terminadas as entrevistas, o pesquisador iniciou o trabalho de transcrição delas e edição. Para a edição da gravação, o pesquisador contou com a ajuda de Davi Roberto Borges, especialista na área. Em três entrevistas, Sílvia Regina Borges, irmã de Davi, colaborou na transcrição. O pesquisador realizou as revisões, as correções e edições para tentar expressar as reticências e os movimentos das falas; e, por fim, um restante da transcrição da entrevista com o Padre L. R. B.

Encerrada a fase da transcrição, o pesquisador fez um trabalho em notas de rodapés, nas quais expôs alguns esclarecimentos, uma vez que os entrevistados frequentemente se utilizavam de uma linguagem muito própria da vida conventual e religiosa; situou e confrontou algumas informações apresentadas pelos entrevistados; apresentou dúvidas e hipóteses ante informações que pareceram confusas ou equivocadas. Para isto, as ferramentas de pesquisa oferecidas pela internet foram de grande auxílio. As informações pesquisadas e comparadas esclareceram, referendaram ou expuseram alguns equívocos e confusões próprias de um relato mnemônico.

Em seguida, o pesquisador fez uma síntese de cada uma das entrevistas, destacando as informações consideradas mais relevantes aos propósitos do projeto.

O ENTREVISTADOR E OS ENTREVISTADOS

Na entrevista, estabeleceu-se uma relação entre entrevistador e entrevistado com um fim específico: buscar as memórias de experiências pessoais numa instituição eclesiástica sob perspectivas diversas, seja como docente ou discente, seja como membros de distintas ordens e congregações religiosas que compuseram essa instituição. Três foram alunos; um, professor. Dos quatro, um fora frade agostiniano recoleto, como o entrevistador; outro, sacramentino; o terceiro, camiliano; e o professor, frade dominicano. Todos os entrevistados estavam com a idade entre 70 e 80 anos, lúcidos, boa memória, com lapsos comuns em qualquer pessoa. Todos os entrevistados se sentiram muito felizes por poder falar do IFT. O momento de isolamento, devido à pandemia da COVID-19, possivelmente aguçou essa vontade de falar e conversar com alguém.

É pertinente salientar que o entrevistador não é jornalista, tampouco, profissional na área de entrevistas, mas sim, um historiador em busca de fontes orais para sua pesquisa; além disso, é sacerdote católico, frade agostiniano recoleto. Existe, portanto, um vínculo comum, sob prismas diferentes, entre o pesquisador, os entrevistados e o próprio objeto da pesquisa, o Instituto de Filosofia e Teologia. Entre os entrevistados havia um ex-frade agostiniano recoleto que não foi padre (Entrevista com o Sr. R. L.), um ex-frade e ex-padre dominicano (Entrevista com Professor C. A. R. N.), e dois sacerdotes atualmente seculares que foram membros de congregações religiosas, um sacramentino (Entrevista com Padre P. H. G.) e um camiliano (Entrevista com Padre L. R. B.). De formas distintas, existem aí experiências e linguagem em comum.

O senhor R. L.[3], já conhecido do entrevistador enquanto ex-frade agostiniano recoleto que manteve contato com a Ordem à qual pertencera, como que “se sentia em casa” para expor suas memórias, mesmo aquelas que lhe foram bastante dolorosas. Entre estas, a incompreensão em relação a um trabalho missionário realizado no Acre em 1967 e as repercussões negativas de uma entrevista que dera ao Jornal do Brasil, diretamente ligadas à sua saída da ordem (Entrevista com Sr. R. L.). De Franca, interior paulista, viveu sua formação religiosa no Seminário Nossa Senhora Aparecida (Entrevista com o Sr. R. L.). O entrevistador e pesquisador viveu parte de sua formação nesse mesmo seminário e foi “prior” nessa casa por oito anos. Sua entrevista, a primeira a ser realizada, ocorreu no dia 15 de fevereiro de 2021, no Seminário Santa Mônica, Vila Hamburguesa, São Paulo (Entrevista com o Sr. R. L.). Ele fez um retrospecto, uma revisão, uma avaliação de sua experiência passada e quase que um “acerto de contas” com relação às decisões passadas que implicaram profundamente toda sua vida (Entrevista com Sr. R. L.). Com uma vivência religiosa, da qual não se afastou depois de se retirar da ordem à qual pertenceu, marcadamente sob um viés mais tradicional e conservador, continua atuante em sua participação na Igreja e com vínculos de amizade e respeito pelas autoridades eclesiásticas, como o bispo de sua diocese. Na sua vida familiar, expôs as dificuldades de alguém que teve uma expectativa cortada repentinamente como frade, o despreparo para enfrentar o relacionamento familiar, a luta sofrida para manter a família e o próprio casamento (Entrevista com Sr. R. L.). Tornou-se assessor de deputado estadual, com presença constante na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e foi vereador em sua cidade de residência diversas vezes, a saber, Bragança Paulista. Um homem, portanto, que conhece bem os meandros e articulações da vida política (Entrevista com Sr. R. L.). Essa experiência, obviamente, pesa na sua leitura, revisão e reinterpretação das experiências vividas como frade e aluno do IFT. Ao longo de sua vida, procurou manter-se em contato com os antigos colegas e com os frades conhecidos seus da Ordem dos Agostinianos Recoletos (Entrevista com o Sr. R. L.).

Padre P. H. G., paulistano, sempre bem-humorado, foi professor de “Ecumenismo” do entrevistador e pesquisador no início dos anos 1990, quando este era estudante de Teologia no Instituto Salesiano Pio XI, no Alto da Lapa, em São Paulo. Nas suas memórias como religioso sacramentino deu uma ênfase especial à pessoa de D. Joviano, seu colega, também estudante do IFT, que faleceu como arcebispo de Ribeirão Preto, SP (Entrevista com o Padre P. H. G.).  Quando estudante no IFT, Joviano participava do diretório acadêmico e secretariou algumas assembleias[4]. O fato de residirem na época na Igreja Santa Ifigênia facilitava para eles o acesso ao IFT, tanto quando funcionou no Colégio Des Oiseaux como quando passou para o convento carmelita na Bela Vista (Entrevista com o Padre P. H. G.). Os projetos pessoais de se especializar em Ecumenismo e Missiologia no exterior, em Genebra, Suíça, o fez mais reticente em participar das manifestações promovidas pelo diretório acadêmico (Entrevista com Padre P. H. G.), do qual participou como “desenhista” para o Jornal “Opinião” (Entrevista com Padre P. H. G.). Seu nome está na lista dos estudantes em assembleia quando da fundação do D.A.XI.X. [5]. A formação recebida no IFT despertou-lhe o interesse pelo Ecumenismo e por uma Teologia e Liturgia mais participativa e popular, menos formal e institucionalizada. Atuou na arquidiocese de São Paulo como assessor na área do diálogo ecumênico e foi professor de Teologia, sobretudo em suas especializações, em diversos institutos de formação religiosa, sacerdotal e pastoral (Entrevista com Padre P. H. G.). Na entrevista, estava bastante à vontade e feliz por ver um aluno seu fazendo uma pesquisa sobre a instituição na qual fizera seus estudos teológicos. A entrevista foi interrompida por duas vezes por um dos seus cães, que quase derrubou os instrumentos de filmagem. A relação entre entrevistador e entrevistado não só se deu no plano de um professor com seu ex-aluno, ou de um pesquisador em busca de fonte oral, mas tocou em outros pontos comuns, como a figura de D. Joviano. O entrevistador, enquanto sacerdote e religioso agostiniano, fora pároco da Igreja São José, em Ribeirão Preto, a partir de 2012, quando o arcebispo já se encontrava bastante debilitado, vindo a falecer poucos meses depois. Infelizmente, não foi possível conversar com ele sobre o IFT.

A terceira entrevista foi concedida pelo Professor C. A. R. N. O contato com ele se deveu à colaboração de Frei Márcio Couto, dominicano, responsável pela Biblioteca Pe. Lebret, no convento dominicano em Perdizes, São Paulo, que indicou vários contatos de ex-confrades que estudaram no IFT. Das indicações dadas por Frei Márcio, o único que se dispôs foi o Professor C. A. R. N. A entrevista ocorreu na sua residência, no bairro de Pinheiros. Extremamente gentil, afável, com um fino humor, um toque de alegria e descontração, fez uma trajetória de sua vida como frade dominicano, realçando os dois momentos em que fora professor no IFT: no primeiro ano de suas atividades, em 1965, com o Concílio Vaticano II ainda em andamento; e no seu último ano, em 1969 (Entrevista com Professor C. A. R. N.), quando o contexto cultural e político no Brasil encontrava-se bastante diferente. Destacou as profundas transformações na juventude, nos jovens formandos do IFT e até mesmo no modo de dar aulas entre esses dois momentos (Entrevista com Professor C. A. R. N.). Sem envolvimentos políticos, administrou disciplinas pouco atrativas aos estudantes naquela ocasião pelo seu caráter “tradicional”, como Lógica e Metafísica, no curso de Filosofia, e “De Deo Uno”, uma das disciplinas da área mais sistemática e teórica no curso de Teologia (Entrevista com Professor C. A. R. N.).

Na sua perspectiva, enquanto docente, mostrou como a administração de uma disciplina passou de um método mais tradicional e expositivo, na relação vertical entre professor e aluno, para um método mais participativo e investigativo, por parte dos alunos, sob sua orientação (Entrevista com Professor C. A. R. N.). Depois da entrevista, muito gentilmente ele cedeu ao pesquisador um pacote que guardara, como ele disse: “não sei por quê”. Neste pacote, uma jóia preciosa para um historiador, vários papéis como uma lista de alunos, um esquema de trabalhos solicitados a eles, uma relação de notas e vários trabalhos manuscritos e datilografados de alguns alunos. Todos, do ano de 1969. Graças a esse material, foi possível sondar algumas das ideias que circulavam e eram debatidas naquele momento e como os estudantes se posicionavam em relação a elas. Tais trabalhos mostram também a alteração na pedagogia e na didática daquele momento, incluindo algumas pesquisas de campo[6].

Por fim, o quarto entrevistado, Padre L. R. B., residente em Campinas, cedeu a entrevista via Skype. Devido à pandemia e às restrições impostas pelo momento, ele achou mais conveniente utilizar este instrumento midiático e digital. O contato com ele foi possível graças ao senhor R. L., que o conhece e mantém amizade com ele. Seu nome consta no Livro de Atas do D.A.XI.X. [7]. Suas memórias se compõem de um misto de sofrimento e dor devido à rigidez institucional da Igreja (Entrevista com Padre L. R. B.), por um lado, e alegria e gratidão, sobretudo pelos excelentes professores, grandes “luminares” (Entrevista com Padre L. R. B.), que marcaram sua vida e lhe deram uma orientação intelectual, teológica e pastoral. Foi a entrevista mais longa, que demandou um período largo de transcrição, e a mais analítica.

Padre L. R. B., habituado como o ambiente acadêmico além do eclesiástico, não se fixou apenas na lembrança de fatos passados, mas fez muitas comparações e análises de cunho sociológico, antropológico e teológico entre aquele momento e outras fases posteriores da Igreja Católica[8]. Ítalo-descendente tanto pelo lado materno quanto paterno, filho de imigrantes (Entrevista com Padre L. R. B.), originário de Amparo (Entrevista com Padre L. R. B.), interior paulista, sentiu a rigidez familiar estendida depois nas estruturas eclesiásticas. Sob a ideia de “clima”, realçou o ambiente contestador, tanto intra como extra eclesiástico, e em busca de uma nova orientação para a Igreja e sua prática pastoral, menos institucionalizada, mais simples e informal. As falas do entrevistado reforçam a tese do pesquisador de como em um curto espaço de tempo o ambiente geral na Igreja passou de um otimismo conciliar com expectativas profundas de transformação eclesiástica imediata para uma crise sem precedentes, expressa no abandono generalizado da vida religiosa e sacerdotal e no sentimento de frustração ante a lentidão ou medidas do Magistério e da hierarquia eclesiástica consideradas um “retrocesso” nesse processo.

A procedência de cada um dos entrevistados é reflexo de uma situação comum na Igreja Católica: as vocações normalmente procediam das regiões sul e sudeste e o recrutamento dos candidatos, de famílias de cultura católica mais tradicional; eram numerosas entre imigrantes, sobretudo italianos; vinham com mais frequência de cidades do interior e do ambiente rural; poucas procediam das grandes metrópoles e, nestas, geralmente eram de bairros mais periféricos (SERBIN, 2008, p. 111-112). Dentre os entrevistados, há 01 paulistano, Padre P. H. G., de bairro periférico, região norte de São Paulo; 03 do interior, sendo 02 do interior de São Paulo (Entrevista com o Sr. R. L. e Padre L. R. B.) e 01 do interior de Minas Gerais (Entrevista com Professor C. A. R. N.); 02 são ítalo-descendentes (Entrevista com Padre P. H.G. e Padre L. R. B.); 01 de classe média do meio industrial e operário (Entrevista com Professor C. A. R. N.); 02 de ambientes urbanos, 01 de cidade industrial operária e manufatureira (Entrevista com Sr. R. L.), 01 de metrópole diversificada e da área dos serviços e comércio (Entrevista com Padre P. H. G.); 01 de ambiente rural e camponês (Entrevista com Padre L. R. B.).

ELEMENTOS COMUNS NAS ENTREVISTAS

Os entrevistados fizeram menção, com destaque, ao ambiente mundial e eclesiástico em transformação na década de 1960. O Concílio Vaticano II, as manifestações culturais e estudantis no mundo e no Brasil, como as de “Maio de 68”, e a resistência ao regime militar foram eventos que repercutiram no meio eclesiástico e na formação filosófica e teológica proposta pelo IFT (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Professor C. A. R. N.; Entrevista com Padre L. R. B.).

As novidades num mundo metropolitano e urbano como São Paulo afetaram a visão tradicional e a “ingenuidade” de jovens acostumados a um ambiente tradicional, com disciplina religiosa e eclesiástica rígida. A imersão na diversidade urbana, nos movimentos de juventude e numa cultura de contestação representou um choque, por um lado, uma esperança de uma “Igreja diferente”, por outro, o que se relaciona diretamente à frustração e abandono de muitos da vida religiosa e sacerdotal. O Concílio Vaticano II e figuras como o Papa João XXIII (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Padre L. R. B.) estavam ligadas à esperança de profundas transformações na Igreja. O Magistério do Papa Paulo VI foi encarado por alguns como retrocesso conservador ou dialogal entre tendências diversas, vinculando-se ao estado de frustração e abandono em muitos sacerdotes e religiosos. O Sr. R. L. e o Padre L. R. B. fizeram menção à formação das pequenas comunidades religiosas em casas comuns, como uma das novidades da época. Antes, grandes seminários, “Studium Theologicum” próprio em cada ordem e congregação. Depois, o IFT como centro de formação comum e cada congregação mantendo suas “casas” próprias de residência dos seminaristas (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Professor C. A. R. N.; Entrevista com Padre L. R. B.).

O ambiente urbano e a cultura de contestação sobretudo por parte dos movimentos estudantis e universitários contribuíram para a participação dos jovens estudantes nas manifestações políticas contra o regime militar. Da ousadia, coragem e enfrentamento iniciais, marcadas até por um caráter “festivo”, passou-se à dura repressão e ao ambiente de medo (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Professor C. A. R. N.; Entrevista com Padre L. R. B.).

A figura de Frei Tito Alencar foi um destaque nas entrevistas. Sua personalidade aguerrida, seus gestos fortes, seus argumentos ante um posicionamento político e cultural segundo a esquerda católica refletiam seu espírito de liderança entre os estudantes e no diretório acadêmico do IFT (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Padre L. R. B.).

A figura de Frei Fontanella, frade agostiniano recoleto, foi lembrada pelos três estudantes que foram seus colegas. Artista, cantor, animador com seu violão era um frade que dava um toque de arte e alegria entre os colegas. O fato de o entrevistador ser um frade agostiniano recoleto com certeza fez emergir essa lembrança. No entanto, havia outros frades da mesma ordem no grupo; a emergência de sua figura certamente é pelo destaque de suas características pessoais e seus talentos artísticos (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Padre L. R. B.).

Os “grandes professores”, tais como Pe. Olinto Pegoraro, camiliano, Frei Luciano Parise, Frei Gilberto Gorgulho, Frei “Bernardo” Catão[9], dominicanos, Frei Carlos Mesters, carmelita, agentes marcantes pelos talentos intelectuais, pela ousadia na criação de uma nova pedagogia de reflexão teológica, foram lembrados como personalidades de profundos conhecimentos em suas áreas. Eles contribuíram grandemente não só na formação daqueles alunos, mas foram importantes na reflexão teológica e nas inovações pastorais da Igreja e da Vida Religiosa na década de 1960 e nas posteriores (Entrevista com Sr. R. L.; Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Professor C. A. R. N.; Entrevista com Padre L. R. B.).

O conflito do IFT com o Cardeal Arcebispo de São Paulo D. Agnelo Rossi, visto de perspectivas diferentes, teria sido causa direta devido a sua intervenção, ou indireta, uma vez que ele não tinha poderes sobre a instituição, que pertencia à CRB – Conferência dos Religiosos do Brasil (Entrevista com Padre P. H. G.; Entrevista com Sr. L. R.).

DADOS ESPECÍFICOS DE CADA ENTREVISTA

Um dos desafios do historiador na transcrição das entrevistas refere-se aos sentimentos que perpassam as falas durante a entrevista, expressos nos modos como se fala, nas mudanças de ritmo, velocidade e tons, nos silêncios entre as falas e nas falas interrompidas pela mudança de um assunto no discurso. Tudo isto é carregado de sentidos, contendo-se o dito expressamente, o dito nas entrelinhas, o vacilo entre o dizer e o não-dizer, o não-dito. Como diz Alessandro Portelli (1997, p. 27-28), a transcrição enquanto operação de transformar objetos auditivos em visuais implica necessariamente mudanças, interpretação e certa invenção. Tornar a transcrição legível supõe adições arbitrárias de pontuação pelo transcritor e mesmo assim, muito se perde dos sentidos das falas nessa operação.

As entrevistas tiveram seus aspectos particulares, conforme a situação de cada entrevistado em relação ao objeto de pesquisa, uma vez que três foram alunos e um professor, não envolvido com a administração da instituição. Todos eram de ordens e congregações diferentes, passaram por tempos distintos no período de existência do IFT e fizeram várias digressões conforme suas experiências na instituição e durante a entrevista.

O senhor R. L. estudou durante os anos de 1966 e 1967 no IFT, quando funcionava no Colégio Des Oiseaux, na Rua Caio Prado e já contava com um ano de existência. Viveu o período do entusiasmo inicial do IFT como um projeto novo de formação intercongregacional e os momentos de progressiva politização da instituição, quando se realizaram as primeiras manifestações dos seus estudantes contra o regime militar.

Nas suas falas existe um tom de saudade das tradições pré-conciliares e da figura de autoridade do bispo, como o caso de D. Agnelo Rossi, a quem conhecera antes de ser arcebispo de São Paulo e em relação ao qual se surpreendera com as atitudes resistentes e agressivas de seus colegas do IFT. O tom respeitoso para com as autoridades eclesiásticas está sempre presente na forma como se refere a elas, usando sempre os pronomes de tratamento formais.

O desejo de manter o círculo de amizades construído nesse período de vida conventual e de estudos teológicos no IFT depois de sua retirada da ordem, os esforços de manutenção de contatos posteriores com os antigos colegas e a preocupação e incerteza quanto ao destino do colega que desaparecera devido a sua atividade política radical se apresentaram nas suas falas. Há certa insatisfação pelo acento progressista na formação teológica do IFT, mesmo que dada por excelentes professores.

A sua postura de discordância quanto à participação dos religiosos nos movimentos políticos e estudantis, como a que fora realizada em frente ao DOPS[10] em 03 de agosto de 1967, se expressou quando inverteu o seu costume em relação aos colegas: ele frequentemente usava o hábito religioso, enquanto os colegas já não o usavam mais; na manifestação, os colegas foram de hábito, enquanto ele ficou à paisana observando à distância. Também não apoiava certos posicionamentos dos colegas quanto ao envolvimento em grupos radicais que preconizavam e cogitavam luta armada e guerrilha, como presenciou em reunião de colegas e da qual não participou “por uma questão de princípios” (Entrevista com Sr. L. R.) na casa adquirida pelos agostinianos recoletos no bairro de Santo Amaro.

Destacou as mudanças profundas e rápidas ocorridas com a ida dos estudantes de Franca, interior de São Paulo, para a capital: a novidade da transferência para uma metrópole com seus problemas de trânsito e infraestrutura urbana devido ao crescimento acelerado; a confusão de um colega ao ver a Estação da Luz e pensar que fosse uma Igreja; os contatos com os avanços tecnológicos, sobretudo nos meios de comunicação de forma mais imediata.

Era inédito e inaudito o fato de morar num seminário de uma outra congregação, conviver com estudantes de outras instituições religiosas e depois residir numa casa comum ao invés de um grande seminário. Foram pontos constantes nas suas falas: a liberdade dos estudantes mais soltos, longe dos olhos dos superiores; a participação direta e ativa no trabalho pastoral com as comunidades locais da periferia de São Paulo e com as atividades missionárias programadas pela CRB, Conferência dos Religiosos do Brasil; a participação em eventos e manifestações estudantis; o relacionamento mais informal com os formadores e as autoridades da Igreja; a flexibilidade das normas e disciplinas internas com apelo maior ao diálogo com os superiores hierárquicos e os choques com o estilo mais tradicional ainda presente; o contato mais frequente com as freiras e estudantes do sexo feminino para quem deu palestras e, mais uma novidade para a época, recebendo cigarros como forma de pagamento. Por fim, destacou ainda o despreparo dos jovens religiosos para enfrentar as novas situações entre a submissão hierárquica; a relação mais participativa de poder e de projeto de vida religiosa. Mesmo a vida como homem comum fora do convento apareceram em momentos distintos e por vezes repetidos durante a entrevista.

A grande crise eclesial, que ele denominou de “diáspora”, quando vários religiosos e sacerdotes abandonaram os conventos e o ministério sacerdotal, coincidiu com sua saída da instituição e está presente na ênfase que ele deu a esse momento crítico em contraposição ao “mundo paralelo da vida conventual” anterior ao Concílio Vaticano II. Há uma ambiguidade de sentimentos que oscila entre a afirmação, a negação, a saudade e a crítica entre as novidades daquele momento e o estilo de vida anterior.

Ele usou com bastante familiaridade muitos termos próprios da vida religiosa conventual e alguns específicos da ordem agostiniana recoleta, pressupondo que o entrevistador, frade agostiniano, também os conhecesse: “breviário”, referindo-se ao livro de oração oficial da Igreja Católica para os religiosos; “corista”, nome dado naquele tempo aos estudantes agostinianos recoletos após o noviciado e antes de receberem as ordens sacras; “Capelinha”, nome pelo qual é conhecido o Seminário Nossa Senhora Aparecida, em Franca, São Paulo; “prior” e “provincial”, formas para designar o superior de uma casa religiosa e o superior de uma porção administrativa da ordem agostiniana. Fez também referência às partidas de futebol entre “Botafogo” e “Comercial”, o clássico “Come-Fogo” de Ribeirão Preto.

Algumas referências a personalidades estão contidas nas suas falas com possíveis lapsos. Quando se refere à reunião clandestina realizada pelo seu colega José Giovane, na qual discutiam sobre guerrilha e guardavam armamentos na casa em Santo Amaro, citou “Paulo Travassos” (Entrevista com Sr. L. R.), talvez confundindo o nome de “Luiz Travassos”, estudante da PUC-SP e líder estudantil da UNE; um dos professores citados foi “Ulhoa Cintra” (Entrevista com Sr. L. R.), talvez querendo se referir ao então padre e teólogo Benedito Ulhoa Vieira, posteriormente bispo auxiliar de São Paulo e arcebispo de Uberaba, Minas Gerais. Quando cita a manifestação dos estudantes religiosos com seus hábitos em frente ao DEOPS, na incerteza da memória do fato, referiu-se ao AI5 (Entrevista com Sr. L. R.). Tal manifestação, no entanto, ocorrera em 03 de agosto de 1967 e o AI5 foi promulgado em dezembro do ano seguinte. Um outro lapso ocorreu quando se referiu ao colega agostiniano que fora preso na manifestação, “Manuel Gaudêncio” (Entrevista com Sr. L. R.). O então frade agostiniano se chamava Gaudêncio Caliman. Um nome semelhante era o de Paulo Gaudêncio, psiquiatra que deu aulas no IFT, conforme entrevista com o Padre P. H. G. (Entrevista com Padre P. H. G.). Segundo Alessandro Portelli, essa “distorção da memória imperfeita” ocasionada pelo distanciamento em relação aos eventos é um dos fatores de preconceito em relação à história oral; no entanto, faz-se necessário considerar que a memória é “também um processo ativo de criação de significações” (PORTELLI, 1997, p. 33).

No processo mnemônico, o silêncio e as reticências, segundo Eni Puccinelli Orlandi, são igualmente carregados de significação (PORTELLI, 2007, p. 12-13 e 27-37). Em alguns momentos da entrevista, é notável a busca cuidadosa de palavras para expressar seus sentimentos em relação ao IFT, colegas, professores e certos fatos. Várias interrupções oscilavam entre o desejo de falar ou o calar-se, como que numa atitude de autocensura. Um momento significativo dessa oscilação foi quando falou das “reuniões de guerrilha” na residência recém adquirida pelos agostinianos no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, em fins de 1967, cuja transcrição não traduz adequadamente os sentimentos daquele momento:

RL: “Então lá́ [na residência em Santo Amaro], José Giovane, o Paulo Travassos … tinha a Rosa, uma japonesa … o Zé Genuíno, na época, eles faziam reunião de guerrilha ali dentro. Então, isso naquela ep… eu morando na mesma residência … Não participava por uma questão de princípios…

SP: Isso em 1967? 68?

RL: Fim de 67

SP: … fim de 67

RL: Então ele fez, fazia reuniões ali pesadas, pesadas, pesadas. Até́ tinha… Punha tudo lá no forro …

SP: … armamento?

RL: Armamento, é… “(Entrevista com Sr. R. L.)

Padre P. H. G., ao fazer a trajetória de sua vida como religioso sacramentino e atual padre secular na arquidiocese de São Paulo, destacou sua especialização em Ecumenismo em Genebra, cujo interesse lhe fora despertado quando era estudante de Teologia no IFT. Como paulistano nato da Região Norte da capital, as figuras dos bispos como D. Paulo Evaristo Arns, inicialmente bispo auxiliar e depois cardeal arcebispo de São Paulo, do atual cardeal arcebispo, D. Odilo, que o recebeu na arquidiocese, e de D. Joel Ivo Catapan, que foi seu colega no IFT e depois bispo auxiliar da região Santana, se fizeram presentes nas suas memórias.

A figura de “Joviano”, seu colega de congregação e de estudos no IFT, depois bispo em São Carlos e arcebispo de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, apareceu com constância não só na memória dos fatos em relação aos tempos do IFT, como também nas digressões referentes a momentos posteriores na sua convivência com ele. Isso  porque as expectativas entre eles se inverteram: ele lhe dera uma cruz de madeira para usar quando ele fosse bispo e, ao final, Joviano se tornaria tal autoridade eclesiástica.

A imprecisão da memória apareceu num momento em que Padre P. H. G. fez referência aos protestos contra a morte do estudante “Vanucchi” e a prisão de padres que estavam no Presídio Tiradentes. Possivelmente, ocorrera aí uma justaposição de camadas da memória por semelhança de alguns fatores. A morte do estudante Alexandre “Vanucchi” ocorreu no início de 1973, em consequência de torturas; fora sepultado como indigente e, uma vez recuperado seu corpo, houve uma missa presidida por D. Paulo Evaristo Arns em 30 de março, sob grandes protestos e indignação (MEMÓRIAS DA DITADURA, s.d.). Por ocasião desse evento, no entanto, o IFT já não existia mais. Cinco anos antes, porém, em data e circunstâncias com algumas semelhanças, em 28 de março 1968, o jovem secundarista Édson Luís de Lima Souto fora a óbito, baleado durante uma manifestação estudantil no Rio de Janeiro, reprimida por policiais militares e sua morte e de outros envolvidos causara grande comoção em todo país (Entrevista com Padre P. H. G.; MEMÓRIAS DA DITADURA, s.d.).

Padre P. H. G., referindo-se ao ambiente de contestação política e hostilidade interna à autoridade eclesiástica na pessoa de D. Agnelo, fez nos seus relatos algumas associações entre a repressão do governo militar e o clima de autoritarismo eclesiástico do arcebispo em relação ao IFT. O ambiente se moldava por uma atitude de desafio e animosidade mútuos: entre seminaristas e autoridade eclesiástica; entre a autoridade dos provinciais e a autoridade do arcebispo; entre estudantes universitários e ditadura militar, simbolizada na figura do general Costa e Silva (Entrevista com Padre P. H. G.). Ao abordar o tema relativo ao conflito entre IFT e o cardeal arcebispo D. Agnelo, o outro tema, a saber, os conflitos com o regime militar, vinha logo em seguida, estabelecendo-se aí uma associação entre ambos.

A entrevista com o Professor C. A. R. N. esteve focada na sua trajetória como religioso dominicano e sua atividade como professor no IFT, sem envolvimentos com a direção e a administração do instituto. Seus contatos foram um tanto formais tanto com o corpo docente como com os alunos. O período em que lecionara no IFT compreende os anos de 1965 e 1969, exatamente o primeiro e o último ano de atividades da instituição. Em 1965, o diretório acadêmico dos alunos ainda não havia sido fundado. Entre 1966 e 1968, o entrevistado esteve no Canadá, fazendo mestrado em estudos medievais. No livro de atas do diretório acadêmico não há mais registros de assembleias ou atividades após a fatídica reunião com o Cardeal Arcebispo D. Agnelo Rossi, em 23 de setembro de 1968[11].

Dedicado a disciplinas de cunho mais tradicional, como Metafísica, Lógica e “De Deo Uno”, da área sistemática no curso de Teologia, considerava-se, sob risadas, “um perfeito alienado. Enquanto o país estava pegando fogo eu estava mexendo com Metafísica” (Entrevista com Professor C. A. R. N.). Participou das manifestações em maio de 1968 junto com os estudantes da Universidade de Montreal contra a guerra do Vietnã, dizendo também sob risadas: “e os estudantes gritavam ‘Johnson assassin’. Não era ainda genocida, mas era assassino” (Entrevista com Professor C. A. R. N.). De volta ao Brasil, no entanto, não se envolveu politicamente. Fez breves e reticentes referências às atividades políticas dos estudantes do IFT e dos dominicanos nesse período.

Dos nomes dos estudantes, citou mais uma vez sob risadas apenas o de Frei “Ivo” Lesbaupin, devido às brincadeiras que faziam com seu sobrenome francês (Entrevista com Professor C. A. R. N.)[12]. Enquanto os outros três entrevistados que foram estudantes se recordavam da figura vibrante de Frei Tito, frade dominicano, e os rumos trágicos de sua vida, não houve qualquer referência a ele pelo professor. Como diz Eni Puccinelli Orlandi, “o silêncio não é interpretável, mas compreensível. Compreender o silêncio é explicitar o modo pelo qual ele significa” (ORLANDI, 2007, p. 50). Situações dolorosas frequentemente implicam no não recordar, no silenciar e no direito de não falar sobre o assunto.

Uma das especificidades da entrevista com o Padre L. R. B. está no aspecto analítico na memória dos fatos. Seu olhar para o passado não foi somente de quem os vivenciou e os relembrava, mas buscava compreendê-los à luz de sua formação acadêmica teológica e sociológica. Assim, atribuiu as dores de certos aspectos de sua infância à rigidez do catolicismo tradicional em uma família de imigrantes italianos, continuada em sua formação no seminário menor diocesano em Campinas e na sequência das outras etapas no seminário camiliano em São Paulo. Recorreu a Max Weber, discordando dele, para entender a cultura de trabalho em sua família católica. Expressa, nas reticências, a dificuldade de rememorar os momentos dolorosos de sua infância, adolescência e juventude no seminário.

E você sabe que o noviciado não é como é hoje, não sei como é hoje, mas, é um ano horrível. Não dá pra guardar boas recordações. E também não dá pra guardar boas recordações por que o Seminário Menor, no caso, não o noviciado nesse caso, o Seminário Menor era a continuação da rigidez familiar sem nenhum afeto, nenhum carinho; na realidade um regime militar onde tudo era … tinha aquela coisa horrível … não sei se tinha lá́ no seu seminário, mas o que a gente guardava muito era aquele… aquela … aquele símbolo da Trindade, um triângulo, no meio escrito “Deus me vê”, quer dizer, era uma … foi muito … até é bom falar isto… embora seja da história pessoal, da trajetória pessoal… então o clima era esse, quer dizer, de… até … eu falo… pode ser bobagem, mas eu falo… se você me perguntar “o que que você tem de bom pra contar desses três anos de Seminário Menor?” Eu digo: Você sabe o que é você ter na vida quatro anos e você ter que dizer que não teve nada pra dizer que foi feliz?… (Entrevista com Padre L. R. B.).

Para se referir ao contexto próprio da época tanto eclesial como nos demais ambientes culturais, políticos e sociais, utilizou a categoria de “clima”: “… eu gosto muito de trabalhar com essa ideia de ‘clima’…” (Entrevista com Padre L. R. B.), mostrando familiaridade com a categoria de hegeliana de “espírito do tempo” (Entrevista com Padre L. R. B.). E assim utilizou-a para falar do pontificado de papas como João XXIII (Entrevista com Padre L. R. B.), Paulo VI (Entrevista com Padre L. R. B.), João Paulo II (Entrevista com Padre L. R. B.), Bento XVI (Entrevista com Padre L. R. B.)[13] e o atual Papa Francisco (Entrevista com Padre L. R. B.), realçando as semelhanças entre o primeiro e o último quanto à abertura na Igreja, o caráter conciliador do segundo e conservador nos terceiro e quarto. Para compreender o IFT, usou-a para se referir ao ambiente de contestação à autoridade política e religiosa, a crítica às formas tradicionais de costume familiar e eclesiástico, e busca de inovação, sobretudo na reflexão teológica. Para isto, recorreu a Hannah Arendt (Entrevista com Padre L. R. B.), ao magistério dos referidos papas, a teólogos com os quais mantinha contato, como o Pe. Ivo Storniolo e Hugo Assmann (Entrevista com Padre L. R. B.), a vários outros teólogos como Congar e Hans Küng (Entrevista com Padre L. R. B.), e a artigos da revista “Humanitas” da Universidade Jesuíta de São Leopoldo, UNISINOS, Rio Grande do sul (Entrevista com Padre L. R. B.).

Assim como o senhor R. L. relembrou certa proximidade com as irmãs Cônegas de Santo Agostinho, Padre L. R. B. destacou a participação de alguns estudantes do IFT no grupo teatral do Instituto “Sedes Sapientiae” (Entrevista com Padre L. R. B.) e a formação teológica, catequética e litúrgica delas numa linha mais progressista e politizada, sobretudo daquela, cujo nome não se lembrava, mas que fora apelidada de “Irmã Carcará” (Entrevista com Padre L. R. B.).

Como ex-professor no ITESP, Instituto Teológico São Paulo, pôde perceber a continuidade quanto à reflexão teológica entre esse instituto e o IFT, inclusive com alguns mesmos professores e congregações no seu corpo institucional no início da década de 1970.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As entrevistas realizadas para serem utilizadas como fontes orais, transcritas e escritas para a compreensão do Instituto de Filosofia e Teologia, IFT, na segunda metade da década de 1960, remetem à questão do ofício do historiador. A construção da narrativa histórica faz com que o historiador, no seu ofício, lide com fontes de diversos gêneros para compreender a ação do ser humano no tempo.

Assim, para Marc Bloch (1886-1944), em sua obra “Apologia da História”, a História não remete apenas ao conhecimento do passado, mas à aventura “do homem no tempo” (BLOCH, 2001, p. 52-55). Paul Veyne (1930…) trabalha na História o aspecto narrativo, a relação entre o “evento” e o “documento” e a necessidade de compreensão da “trama” amparada pelos documentos, que lhe dão o caráter de “verídica” (VEYNE, 2008).

Michel de Certeau (1925-1986), na primeira parte de sua obra “A Escrita da História”, aborda sobre o ato de fazer história e em que consiste a operação historiográfica, considerando as relações entre a história, o discurso e a realidade, bem como o lugar institucional do historiador, que condiciona sua perspectiva histórica (DE CERTEAU, 2008).

O historiador inglês, Robin G. Collingwood (1889-1943), na introdução de sua obra “A Ideia de História”, realça o objeto da história como as “res gestae”, as ações humanas praticadas no passado, atuando como interpretação das “provas”, dos documentos através dos quais se aproxima do passado. Importante também neste autor é seu conceito de “Imaginação histórica”, sobre o qual ele trata na última parte dessa mesma obra (COLLINGWOOD, 2001). Peter Burke (1937…) trabalha a história desde o viés cultural, expandindo o conceito de cultura e sua relação com a antropologia, e da história como narrativa.  François Hartog (1946…) é um autor atualmente fecundo em produções na teoria da história. Na obra “Evidências da História”, o autor discute as diversas formas como os historiadores apresentam a história, desde os clássicos gregos, como Heródoto e Tucídides, aos modernos, como Michelet e Lévi-Strauss. Sua discussão sobre o olhar do historiador nos tempos atuais é interessante dentro do recorte temporal do IFT, a saber, os anos 1960 (HARTOG, 2013).

Todos estes historiadores fazem suas abordagens sobre a História, o ofício, o fazer e o escrever a narrativa histórica, tendo em comum a primazia do documento escrito. Para a História mais recente, um dos recursos possíveis na construção da narrativa histórica é a oralidade, que coloca o historiador perante testemunhas dos eventos em questão e as formas como os vivenciaram. Isto exige tratamentos próprios enquanto fonte histórica. Alessandro Portelli oferece importantes perspectivas sobre a História Oral como gênero válido para a construção da narrativa histórica pelo historiador no seu ofício.

As entrevistas constituem uma das ferramentas metodológicas para se trabalhar com a oralidade. Nessa tarefa, o historiador necessita de solidez conceitual em relação a determinadas categorias como a memória oral, seus limites e condicionamentos, e de clareza quanto ao processo de transcrição, que implica arbitrariedades para traduzir determinados elementos subjetivos nas falas e algumas perdas de sentidos, impossíveis de serem colocados por escrito, mas apenas sinalizados.

Muitos fatores estão presentes na relação entre entrevistador e entrevistado e afetam o que é dito ou silenciado durante a entrevista, cabendo ao historiador a sensibilidade para com os sentidos daquilo que é dito explicitamente, que é “distorcido” ou impreciso, que é falado por entrelinhas, metáforas e associações, que é esquecido ou “não-dito”.

A confrontação com outras fontes se faz necessária ao se deparar com os possíveis lapsos de memória para precisá-los e compreender melhor os fatos rememorados. Mediante dúvidas não sanadas, é possível levantar hipóteses através de outras fontes.

A fonte oral coloca sempre o historiador ante o caráter humano e existencial da História vivida, experimentada, sentida e sofrida em múltiplos aspectos antes de ser rememorada, narrada e interpretada. Cada fato rememorado contém sentidos coletivos permeados de experiências e significados pessoais.

Hannah Arendt, tratando sobre a História, diz que o mundo moderno caracterizado pelo avanço técnico e científico, com experimentações sociais sobretudo em regimes totalitários, reduz o ser humano a objeto e massa. Assim, ela fala de uma dupla alienação do mundo em relação à natureza e à História que conduz o indivíduo ao desespero solitário ou à compressão numa sociedade de massas com a vida organizada e automatizada na qual o relacionamento entre os seres humanos “perderam o mundo outrora comum a todos eles” (ARENDT, 2011, p. 125-126). Na História do IFT, as entrevistas foram importantes para ir além do estudo frio e metódico de uma instituição, sentindo nela o caráter existencial e pessoal daqueles que a vivenciaram entre alegrias e tristezas, dores e angústias, expectativas e frustrações.

REFERÊNCIAS 

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 7. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2011.

ATA DO D. A. X. I. X. Diretório Acadêmico Onze de Outubro.

BLOCH, Marc. Apologia da História. Ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

COLLINGWOOD, Robin George. A Ideia de História. 9. ed. Lisboa: Ed. Presença, 2001.

DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2008.

HARTOG, François, Evidência da História. O que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica Ed., 2013.

MEMÓRIAS DA DITADURA. Alexandre Vannucchi Leme. Memórias Da Ditadura, s. d. Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/alexandre-vannucchi-leme/. Acesso em: 26 ago. 2022.

MEMÓRIAS DA DITADURA. Édson Luís de Lima Souto. Memórias Da Ditadura, s. d. Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/edson-luis-de-lima-souto/. Acesso em: 26 ago. 2022.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. 6.ed., Campinas: Ed. UNICAMP, 2007.

PORTELLI, Alessandro. História Oral como gênero. São Paulo: Editora Científica, 2001. 

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente? Proj. História: São Paulo, 1997. 

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta, São Paulo: Letra e Voz, 2016.

SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social: uma história da igreja católica no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília: Ed. UnB, 2008.

APÊNDICE- REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Seu nome consta na lista da assembleia de fundação do diretório acadêmico, presente no Livro de Atas do D.A.XI.X., p. 18.

4. De acordo com o Livro de Atas do D.A.XI.X., p. 80-83, Joviano Lima Júnior secretariou a assembleia eletiva da nova diretoria nos dia 27 de agosto de 1968 e a assembleia de posse no dia seguinte; foi escolhido como representante da turma do segundo ano (p. 79) e na calorosa assembleia em 20 de setembro de 1968, quando discutiram a polêmica nota de D. Agnelo à imprensa sobre o IFT e os procedimentos a serem tomados para um “diálogo” com ele, há duas falas dele registradas, referentes ao contato entre estudantes e provinciais (p. 93) e no contato entre estudantes e UEE, que em carta se pronunciou “que não levariam o caso à imprensa para não causar celeuma desnecessária” (p. 95).

5. Seu nome consta numa segunda lista de estudantes que estavam presentes no ato da fundação, porém não tiveram seus nomes apontados – Livro de Atas do D.A.XI.X., p. 35.

6. Este material será fonte direta essencial na segunda parte da tese em elaboração.

7. Seu nome encontra-se na lista de estudantes presentes na assembleia de fundação do diretório acadêmico – Livro de Atas do D.A.XI.X., p. 19.

8. Isto ocorreu ao longo de toda a entrevista, em que ele fez algumas digressões analíticas e referências a autores, como Max Weber e Hannah Arendt, a teólogos, como Congar, Ivo Storniolo e Hans Küng, citou obras, como “Igreja, Túmulo de Deus?”, de Robert Adolfs,  e filmes, como “Asas do Desejo”, além de referências e críticas ao Magistério da Igreja, como encíclicas dos papas João XXIII e Paulo VI, e atuação disciplinar e pastoral do Papa João Paulo II, do seu assessor cardeal Ratzinger, e do Papa Francisco.

9. Nome religioso de Francisco Augusto Carmil Catão, teólogo.

10. Há várias formas de se referir ao DOPS conforme a sua organização institucional nos anos de 1960. Pode se referir a ˜Departamento de Ordem Política e Social” ou “Delegacia de Ordem Política e Social” ou ainda, como é o caso em São Paulo: DEOPS – Delegacia Especializada de Ordem Política e Social.

11. Última ata do diretório acadêmico – Livro de Atas do D.A.XI.X., p. 96-98.

12. Trata-se do então frade dominicano Frei Yves do Amaral Lesbaupin.

13. Não cita o nome “Bento XVI”, mas se refere a ele como “Ratzinger”.

[1] Mestrado em História pela Universidade Júlio de Mesquita Filho – Unesp – Campus de Franca/SP. Graduação em História pela Universidade Júlio de Mesquita Filho – Unesp – Campus de Franca/SP. ORCID: 0000-0001-5897-6610.

[2] Orientadora. ORCID: 0000-0001-8261-7685.

Enviado: Julho, 2022.

Aprovado: Outubro, 2022.

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Sérgio Peres de Paula

Uma resposta

  1. Tive acesso a obra do autor Sérgio Peres de Paula sobre o assunto e agora aqui neste artigo. Com excelência e fôlego, o autor descreve a história relevante do IFT, algo muito importante para a compreensão dos debates atuais ideologizados. A sua profundidade, a leitura fácil e a dinâmica escolhida pelo autor fazem deste trabalho leitura absolutamente recomendável, quando não obrigatória, para a compreensão dos tempos passado e presente. Fausto De Sanctis

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