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Enredos e práticas urbanas auto organizacionais no tempo-espaço presente

RC: 76962
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/praticas-urbanas

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

BAGGIO, Ulysses da Cunha [1]

BAGGIO, Ulysses da Cunha. Enredos e práticas urbanas auto organizacionais no tempo-espaço presente. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 02, Vol. 11, pp. 108-138. Fevereiro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/geografia/praticas-urbanas, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/praticas-urbanas

A única coisa da qual podemos ter certeza é que haverá mudança, a vida encontrará um caminho, muito provavelmente sem precedentes e imprevisto pela maioria. (Sérgio Abranches)

RESUMO

O artigo em tela busca analisar e problematizar  o uso e a apropriação de espaços na cidade, abordados à luz da vida cotidiana no tempo presente, levando-se em conta os influxos e condicionantes representados pela urbanização expansiva em curso. Do ponto de vista metodológico, a abordagem empreendida é essencialmente qualitativa, fundamentada em pesquisas empíricas em lugares de interesse, envolvendo práticas observacionais ao rés do chão, e levantamento e avaliação de fontes bibliográficas selecionadas. Nesse estudo, conferimos ênfase a práticas e expressões urbanas dotadas de um traço auto organizacional, conduzidas pelos próprios interessados em torno de demandas e necessidades. Temos o entendimento que elas sinalizam à constituição de  espacializações e ambiências influenciadoras e estimulantes, objetivando-se em explorações e experiências mais inventivas a formas possíveis de apropriação social de espaços. Nesse sentido, tais práticas não se apresentariam, pela nossa compreensão, como meras expressões idealizadas ou mesmo residuais, como não raro são consideradas. A pesquisa se realizou num contexto anterior a epidemia do coronavírus, e se apoiou em referências empíricas consideradas relevantes no contexto brasileiro, dadas pela cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, com maior destaque, mas também de situações verificadas na municipalidade paulistana.

Palavras-chave: cidade, apropriação e uso de espaços, práticas auto organizacionais, bairro de Santa Tereza – Belo Horizonte, Centro-Antigo de São Paulo.

INTRODUÇÃO

Este artigo se orienta à problematização de um tema recorrente em nosso horizonte de pesquisa, isto é, o uso e a apropriação social de espaços na cidade, com ênfase aos tempos hodiernos. Ele será aqui explorado sob os influxos da vida cotidiana no tempo presente.

Metodologicamente, a abordagem realizada possui um traço marcadamente qualitativo, envolvendo a perspectiva dialética e interfaces com a fenomenológica, valendo-se, ademais, de pesquisas de campo em lugares e espaços urbanos previamente selecionados e de interesse da pesquisa. Nesses âmbitos geográficos foram realizadas explorações observacionais in loco, bem como levantamento e estudo de fontes bibliográficas selecionadas. É preciso salientar que o artigo em tela é um desdobramento de nossas pesquisas de doutorado (2005) e de pós-doutorado (2013), realizadas junto ao Departamento de Geografia da USP. Elas contaram, respectivamente, com trabalhos de campo em Belo Horizonte e em São Paulo.

O presente estudo se vale de explorações feitas em ambas as pesquisas, mas também incorpora novas abordagens em termos de pesquisa de campo, bem como o acréscimo de  novas fontes bibliográficas e atualização de informações e dados. Nesse artigo a ênfase maior recai sobre o caso de Belo Horizonte, com destaque ao bairro de Santa Tereza, envolvendo, contudo, referências à municipalidade paulistana, especialmente ao Centro-Antigo, também conhecido como Centro-Velho.

Considera-se na análise as interferências de uma urbanização expansiva, que se atualiza na idéia de uma metropolização do espaço (LENCIONI, 2013). Esse processo se apresenta dotado de forte traço privado-corporativo, bastante submetido a grandes negócios em torno do espaço e do urbano, que assinalam novas frentes de valorização do capital (premido por condições de desvalorização). Alguns aspectos podem ser destacados nesse contexto, como o de certo nivelamento redutor nas condições de vida das pessoas pela cultura consumista desenfreada, bem como a competitividade ensandecida e as novas expressões de alienação social, tais como a alienação digital (que dificultam ainda mais a apropriação, tornando-a crítica, mas não inexequível). Por fim, vale apontar o desenvolvimento da banalização da vida cotidiana, recobrindo, assim, à da própria existência. Pela articulação dessas variáveis pode-se reconhecer a constituição de uma espécie de vazio ontológico ou mesmo de rebaixamento qualitativo do ser que marcam os nossos tempos.

Considerando tais aspectos restritivos, conferimos destaque nesse estudo à práticas e manifestações sociais que se mostram reativas a essa condição, representando, nesse sentido, um contraponto a ela. Compreendemos que elas estejam apontem ou sinalizem a conformações socioespaciais dotadas de ambiências socialmente mais desejáveis, que se mostram mais em fase com formas de vida urbana, cotidianamente constituídas, mais plenas, e menos idealizadas.

Não queremos com isso indicar que o espaço se apresente por si mesmo, como uma espécie de base ou condição imprescindível para o exercício da liberdade, pondo-se como seu pressuposto explicativo. Isso configuraria um fetichismo espacial. O que se deseja mostrar aqui é que essas formas de luta e manifestações públicas estariam sintonizadas com a busca de satisfações imperiosas, envolvendo explorações mais inventivas e que configurariam virtualidades a formas possíveis de apropriação social de espaços, de modo a responder melhor às demandas dos próprios interessados (BAGGIO, 2014). No meio de tudo isso há sempre interesses econômicos, sociais e ambientais de seus integrantes. Com isso, é preciso esclarecer que não estamos sugerindo nenhuma utopia socialista ou política imaginativa, como projeções pré-definidas, descoladas de base empírica. Proposições dessa natureza estão em declínio no Brasil e no mundo.

Quando nos referimos às formas adquiridas pela cidade, em espaços centrais ou periféricos, não há como se controlar ou mesmo fazer previsões claras acerca de uma diversidade de situações em curso, submetidas a forças de grande mutação. Estabelece-se, desse modo, uma condição histórica e geográfica marcada por uma expressiva imprevisibilidade. E ainda que se considere certa rigidez nas estruturas urbanas, o componente do imponderável se torna presente no acontecer social. Tanto expressões de relativa liberdade podem ocorrer como situações de limites a ela, tornando os lugares e suas formas de uso bastante diversificadas e mutantes. E a liberdade, pelo nosso entendimento, não é algo dado, pronto e acabado, mas implica em ações permanentes, portanto de um projeto, num mundo em que as pessoas e as sociedades não desfrutam de uma condição de liberdade plena. Elas experimentam cotidianamente condicionamentos e restrições de ordem estrutural, que operam de modo sistêmico. Daí, inclusive, a condição de vazio ontológico assinalada, que recobre, entre outros aspectos, estados de solidão, estresse, ansiedade, impotência, medo, ausência de horizontes, etc.

Ainda assim podemos observar sob a vida cotidiana uma multiplicidade de ações de caráter reativo e dotadas de inventividade, que se apresentam como movimentos sociais, mobilizações públicas em torno de demandas variadas, entre outros exemplos. Elas se orientam à obtenção de melhores condições de vida, à liberdade e à economia. Portanto, a cidade comparece no âmbito dessas práticas como algo que se coloca além dos limites de seu sentido convencional de mero espaço construído, colocando-se também como espaço de realização da reprodução social, da existência e da promoção da vida. O que requer gestão mais rigorosa e democrática da vida urbana como um todo, ampliando-se aqui mecanismos de escuta e consulta social. Isso se coloca como de fundamental importância ao enfrentamento de processos de exploração econômica, injustiça social, corrupção e o recorrente problema representado pelas desigualdades socioespaciais. E não é demais lembrar que tais aspectos guardam estreitas relações com o processo de privatização da cidade, que assume, a passos rápidos, feição corporativa e empresarial. O que nos leva a por em relevo o papel desempenhado pelas instituições no processo social, na formação das cidades e da vida urbana.

Vale dizer que essas ações sociais se entabulam num terreno de forças e poderes que estabelecem componentes limitadores e capazes de produzir desestabilizações. Entretanto, também revelam potencialidades auspiciosas a possíveis transformações e mesmo certas rupturas a situações indesejáveis  à vida das pessoas. O que pode envolver formas mais tensas de enfrentamento ou caminhos mais pactuados.

Nessa mesma perspectiva, é preciso considerar ainda que as desigualdades sociais e econômicas, aprofundadas por políticas neoliberais, produzem um duplo efeito articulado, isto é, tanto engendram a crise social urbana como afetam negativamente as instituições democráticas. E a própria política dá mostras de estar se transformando na contemporaneidade, no sentido da sociedade gravitar politicamente mais em torno de si mesma do que do Estado (e da estadolatria), não o tomando como mediação única ou exclusiva nas questões sociais.

No entanto, isso não significa a desqualificação ou mesmo a revogação do Estado, ou recusa de alguma forma de autoridade válida e legítima. As instituições contam e é preciso que elas sejam ou se tornem fortes e democráticas, portanto, submetidas à participação e ao controle social. Esse ínterim também não significa que a vida política se torne cooptada/dirigida pelo Estado. Trata-se, mais propriamente, de uma via norteada por uma inserção social efetivamente participativa e diversificada na vida política, que envolve formas mais diretas de participação na vida política, sob o sentido de uma maior autonomia em relação ao Estado. O que, pela nossa perspectiva, aponta ao desenvolvimento da democracia como um todo, não tão somente da democracia representativa, coibindo, assim, posições políticas extremadas, tanto de direita como de esquerda. Os extremismos políticos, tanto de direita como de esquerda, põem em risco a própria democracia, não contribuindo em nada, aliás, para eventuais projetos de superação do capitalismo e da criação de uma sociedade supostamente melhor ou mais avançada.

Novos arranjos e melhorias institucionais se fazem imprescindíveis, e aqui a reforma política (que deve interagir com a sociedade) apresenta-se como um imperativo. Para além de combater problemas relativos à corrupção (tornada sistêmica e bastante sofisticada no país, instaurando-se uma verdadeira cleptocracia), ela se orientaria também ao equacionamento da crise de representatividade e do aperfeiçoamento/ampliação da participação da sociedade, em sua diversidade, no cotidiano político, desestimulando o aparelhamento e loteamento do Estado. Ao lado desta, outras reformas se tornam também indispensáveis para dar impulso ao desenvolvimento econômico-social, tais como a reforma tributária e previdenciária, priorizando políticas de redução das desigualdades e ampliação/aprofundamento de direitos sociais.

Acrescentaríamos, ainda, a necessidade de se imprimir maior amplitude e profundidade à desburocratização da máquina pública, que, apesar de revelar certos avanços nos últimos tempos, ainda requer ações mais efetivas e melhorias nos mais variados setores. O Brasil ainda é um país insuportavelmente burocrático. O excesso de burocracia, num país de amplas proporções, complexo e profundamente desigual como o nosso, dá margem ao ilícito e à corrupção, gerando grandes perdas econômicas, sobretudo de dinheiro público, além de impor grande morosidade ao seu funcionamento, dificultando a fluidez e a eficácia dos processos.

Embora não possam ser desconsiderados os efeitos deletérios das crises, as quais, aliás, “não podem mais ser consideradas temporárias”, uma vez que se tornaram um “status permanente, endêmico, no mundo líquido” (BAUMAN; BORDONI, 2016, p.74), com suas implicações socioespaciais, é preciso que tenhamos em mente a premissa de que as soluções sejam buscadas sob as condições e os meios do regime democrático, porém, com a renovação e maior transparência das instituições públicas. Portanto, sob a prevalência da vontade coletiva (valorizando-se lideranças e porta-vozes legítimos), da negociação e da tolerância (dentro de certos limites, é claro, pois nem tudo é socialmente tolerável).

A POLITIZAÇÃO NA VIDA COTIDIANA

A despeito de utopias políticas, temos a chance de construir uma vertente democrática mais ampliada, capaz de promover articulações mais eficazes e ações compartilhadas entre Estado e sociedade. O que propicia maiores limites ao poder dos governantes e o escrutínio das ações dos poderes instituídos (que vão para além dos poderes do Estado), resguardando a expressão das minorias e das diferenças.

Nesse sentido, acreditamos que a emergência e a difusão de uma pluralidade de formas de luta e de manifestações públicas na vida cotidiana poderiam anunciar um novo ciclo da vida política nas cidades. Elas conferem maior visibilidade e publicização de situações indesejáveis na urbe, como o problema da qualidade de vida na metrópole, ou, ainda, o modo como se processa a construção e a organização da cidade (com muitos projetos questionáveis ou mesmo equivocados, do ponto de vista do interesse público), entre outros aspectos. Essas forças, que se inscrevem nos interstícios da vida cotidiana, impulsionam questionamentos diversos e forjam relações que vão se tornando territorializadas, e que se inscrevem no mundo. Produzindo pulsões socioespaciais, elas delineiam vetores de transformação que envolvem conquistas e apropriações possíveis.

A politização constituída em torno de questões e demandas urbano-sociais sinaliza para uma situação crítica na vida cotidiana urbana, que expõe uma ampla privatização/segregação da sociedade e do espaço. Sob níveis inauditos de concentração da riqueza, o urbano vem se constituindo num foco conspícuo de disputas cada vez mais acirradas, em face de uma condição socioespacial bastante compressiva e coercitiva, impondo-nos situações restritivas de vida urbana. E é precisamente na esfera do acirramento dessas contradições urbanas que se precipitam e se irradiam pelos meandros das cidades um conjunto de práticas, manifestações e lutas sociais. Pela nossa compreensão, elas representem certas descontinuidades à unidade indissociável dos poderes hegemônicos público-privados, suscitando um maior recobrimento social e político em torno do uso e de apropriações possíveis, ou talvez de ações de caráter apropriativo (BAGGIO, 2014).

Recentemente temos notado certa retomada (bem-vinda) ou reocupação de lugares públicos nas cidades por uma miríade de blocos carnavalescos, como se pode observar, por exemplo, em Belo Horizonte e São Paulo. Possuindo origem espontânea, familiar ou tribal, eles se capilarizam pelos meandros da urbe, incitando comportamentos sinérgicos ao uso compartilhado dos lugares e da cidade, evidenciando que os agentes governamentais precisam favorecer mais, bem mais, em suas ações urbanísticas a mobilidade de pessoas na urbe, revalorizando, assim, o espaço público, hoje bastante submetido à interesses privados e ao emprego quase que generalizado de veículos automotores.

A expansão de grupos carnavalescos, para além deles, a constituição desse cenário de “festa no pedaço” (MAGNANI, 1999) reflete a atuação de movimentos estudantis e socioculturais que defendem a ocupação de espaços públicos na cidade, que vêm se consolidando ao longo dos últimos anos. Suas ações dão indícios insinuantes quanto à formação de novas situações político-sociais na cidade (portanto espaciais), que têm grande suporte em redes virtuais, e que são, indubitavelmente, um componente importante de sua socialização. Eles alimentam, dentro de certos limites, relações em uma dimensão mais pública da cidade, redefinindo espaços que, em larga medida, tornaram-se reduzidos à condição de lugares de passagem e fluxos de mercadorias, conformando-os, por ações deliberadas ou espontâneas, em cenários ou ambientes socialmente mais desejáveis, voltados a demandas um tanto que abandonadas/reprimidas pelos poderes públicos.

Em Belo Horizonte, antes da pandemia do coronavírus, ocorreram mobilizações públicas que reuniram milhares de pessoas em sua área central, especialmente na Praça da Estação. O mesmo se pode dizer de outros lugares da cidade, notadamente no bairro de Santa Tereza, tais como a Praça Duque de Caxias, passeios e extensões junto à Parada do Cardoso, ao Bar do Orlando, a pontos diversos ao longo da Rua Mármore, entre outros.

Acresce considerar ainda as ações cicloativistas em São Paulo e Belo Horizonte, como de resto em boa parte das cidades do país. Tornou-se notória a ampliação de movimentos de ciclistas, adquirindo cada vez mais adeptos e capacidade organizacional. Indubitavelmente, o movimento cicloativista hoje no Brasil desponta como uma força social e política da maior importância, não apenas em relação ao problema da mobilidade urbana, como da própria qualidade de vida  em nossas cidades.

Especialmente nesses grandes centros urbanos é flagrante a atuação de movimentos em prol do uso da bicicleta como forma alternativa de transporte e também como modo de vida mais saudável, ambientes marcados por constrangimentos diversos à saúde pública. E como bem se sabe outros grandes centros urbanos do país, tais como Brasília e Salvador, também enfrentam sérios problemas relacionados à insuficiências/deficiências de serviços de transporte público, recaindo-lhes o peso representado pelo tamanho de suas populações e a densidade/complexidade de seus espaços construídos.

Como já observado, o uso da bicicleta e os movimentos cicloativistas têm crescido pelo país afora, e em diversas partes do mundo, promovendo ações em prol de sua efetiva integração ao sistema e vida urbanos, contribuindo para a constituição de ambientes urbanos de uso coletivo, que sejam socialmente mais desejáveis e saudáveis.

Em São Paulo, mais especificamente, o uso da bicicleta apresenta-se de forma crescente como uma busca alternativa para se contornar essa condição adversa, que tem contado, nos últimos tempos, com o apoio do poder público municipal. Este não apenas tem investido na criação de ciclofaixas como também na implantação de ciclovias, prevendo-se uma expansão significativa do sistema cicloviário na cidade.

Todavia, chame-se a atenção para o fato de que o problema da mobilidade urbana na metrópole paulistana (como também em outras cidades, sobretudo as de grande porte) dificilmente será equacionado à revelia de uma ampla reestruturação de seu sistema de transporte público; além, é claro, de medidas mais efetivas a usos mais arrazoados do automóvel em nossas cidades, restringindo, entre outras coisas, o emprego massivo de veículos particulares, como ocorre já há algumas décadas e, sobretudo, nos dias atuais. As cidades vêm se transformando sobremaneira em função do atendimento a demandas de circulação de automóveis, muito mais do que em decorrência de solicitações e necessidades outras da população. Ruas alargadas, passeios estreitados, praças reduzidas, entre outros topocídios verificados, tornaram-se comuns em nossas cidades. Mas, felizmente, movimentos no sentido contrário, que indagam e reagem a esses cenários de constrangimentos urbanos, têm emergido e atuado expressivamente ao desenvolvimento de debates e ao estabelecimento de certos limites a esses problemas da vida urbana. Esses problemas, ao lado de outros tantos, como o da brutal insuficiência sanitária em boa parte de nossas cidades, comportam inteiramente o sentido de uma anti-cidade, de uma cidade que revoga, em larga medida, demandas e necessidade da maioria da população para se pôr em fase com os interesses do grande capital, ou ainda, com os interesses corporativo-empresariais que comandam a reprodução urbana na contemporaneidade, e o Brasil figura, seguramente, como um caso emblemático dessa condição espacial. A verdadeira cidade, vale dizer, é aquela que valoriza, antes de tudo, as pessoas, colocando a escala humana no centro de preocupações das políticas públicas, especialmente as de planejamento urbano.

É flagrante o uso abusivo e excessivo de meios de transporte motorizados particulares em nossas cidades, que não apenas faz acentuar a privatização do espaço urbano como também lhe dá contornos de um problema de saúde pública (estresse e acidentes de trânsito, poluições atmosférica, sonora e visual etc., hostilizações, etc.). Esse estado de coisas comporta, reiteradamente, a idéia de uma anti-cidade, marcada, entre outros aspectos, por atmosferas compressivas e coercitivas no âmbito da vida cotidiana, permeadas pelo recrudescimento de situações de alienação socioespacial (BAGGIO, 2014).

Mais do que nunca se coloca na ordem do dia a ênfase necessária à melhoria das condições de vida em nossas cidades. Elas também demandam atos práticos e projeto por parte dos interessados, melhorias capazes de estabelecer outra lógica ao planejamento urbano, que ponha em seu centro a escala da vida humana (GEHL, 2014), promovendo o encontro e a sociabilidade nos ambientes urbanos, de modo a torná-los mais suscetíveis a apropriações sociais. Oferecemos como exemplos as experiências de Curitiba, a partir de Jaime Lerner, na década de 1970, e de Bogotá (Colômbia), com Henrique Peñalosa, a partir do final dos anos 1990.

ESPACIALIZAÇÕES AUTO-ORGANIZACIONAIS

Com este estudo intentamos lançar luz e dar projeção a ações socioespaciais dotadas de certo traço auto organizacional e espontaneidade, conduzidas pelos próprios interessados, que sinalizam certo empenho em assumir sua própria soberania em face de necessidades vividas cotidianamente. Essas ações socioespaciais se processam com maiores níveis de autonomia em relação ao Estado.

Sob a atuação dos próprios interessados, tais ações, em sua diversidade, suscitam situações político-sociais irrequietas na vida cotidiana das cidades. Em boa parte, estas ações inscrevem-se no âmbito do uso do espaço, entabulando pelos meandros da cidade conformações socioespaciais diferenciais, que vão, progressivamente, adquirindo projeção e visibilidade política. Eventos sociais diversos no Centro-Antigo de São Paulo, bem como em Belo Horizonte, a exemplo do que se observar na Praça da Estação e no bairro de Santa Tereza, entre outros lugares, constitui evidências auspiciosas nesse sentido. Estas práticas revelam, ainda, um caráter propositivo, cujo sentido apontaria para a revogação ou neutralização de estruturas funcionais de condicionamento e enquadramento da vida urbana, sinalizando a formas mais intensas e desejáveis de vida societária, forjando brechas e situações no intrincado enredo socioespacial da vida cotidiana. De certo modo, elas representam um contrapoder, que contrasta e conflita com orientações/práticas hegemônicas de apropriação e estruturação da cidade, da vida urbana.

Possuindo um traço auto organizacional e dotadas de certa espontaneidade, essas ações remetem a certa valorização do princípio político da autogestão. Isto é, forjando condições a que as pessoas possam fazer valer seus próprios desejos, aspirações e projetos, protagonizando práticas mais descentralizadas, que refletem as demandas e situações efetivas que mais diretamente repercutem no cotidiano de suas vidas. Tanto sob uma ação politicamente mais organizada ou sob um agir mais espontâneo, os agentes sociais assumem maiores responsabilidades em relação à tomada de decisões políticas e à suas vidas privadas.

Entretanto, a noção de autonomia subjacente a essas práticas precisa ser relativizada, não sendo razoável atribuir-lhe o sentido de uma autonomia absoluta, que, em realidade, não encontra condições de realizar-se plenamente sob a lógica e as características da sociedade moderna. A idéia de autonomia aqui empreendida é a de uma autonomia relativa, possível, e não absoluta. Do mesmo modo, e de forma relacionada, de autogestão, também compreendida num sentido relativo. É preciso, pois, ter-se clareza de que nenhuma “solução” é definitiva, sendo cada conquista sempre parcial. É um processo em permanente construção, sujeita a avanços e recuos.

Nesse sentido, compreendemos que muito da expressividade e importância dessas práticas concerne à sua vitalidade e versatilidade. Elas respondem pela constituição de ambientes empíricos ruidosos e prenhes de paixões subversivas, com elaborações socialmente atrativas e influenciadoras, capazes de produzir novas e melhores ambiências na cidade. Criando contrapontos político-qualitativos a possíveis reinvenções e redefinições dos modos de se experienciar cotidianamente a cidade, elas oxigenam, de certo modo, a vida pública urbana. Acerca disso, veja-se, entre outros exemplos, a retomada de espaços diversos das cidades por blocos carnavalescos e manifestações políticas da população. Estando no mundo e nos meandros das cidades, nos centros e nas periferias, essas práticas sinalizariam a uma possível nova filosofia da vida. Ou talvez uma filosofia espacial da existência no fulcro de uma geografia urbana mais sensível a eventos dotados de potencialidades a certo reencantamento do mundo e dos sujeitos.

Nossa aposta é a do desenvolvimento de uma nova sensibilidade geográfica, que não se contenta com explicações do mundo centradas em estruturas, as quais não explicam tudo, não raro incorrendo em generalizações e até mesmo em distorções quando contrastadas com situações observáveis da realidade; que se ponha em maior sintonia com as novas configurações de organização societária do mundo contemporâneo e, de modo relacionado, com emergentes modos territoriais de interatividade social e comunicação, que vêm suscitando modalidades outras de sociabilidade e de experiências para com o espaço (MAFFESOLI, 2007; ALMEIDA e TRACY, 2003; BAGGIO, 2005; BAGGIO, 2013).

Estamos falando, portanto, da formação gradativa de uma condição socioterritorial que emerge em meio e sob interferências de uma situação de crise/transformação da sociedade, que apontaria, teórica e praticamente, para uma possível transformação dos modos de vida na cidade.

Essas sinalizações são positivas quanto a elaboração de novas situações de vida e trabalho (aqui entendido num sentido mais amplo, para além de sua conotação econômica e mercantil) não apenas já acontecem há algum tempo, como se multiplicam. Conquanto estas instâncias se mostrem ainda bastante cindidas na organização social moderna, novas tecnologias e formas menos rígidas e auto-organizacionais encetam novas situações e mudanças. Muitas pessoas, por exemplo, já labutam em casa ou em espaços compartilhados de trabalho.

Não se fazendo tábula rasa do universo dessas práticas, não seria apropriado, ao nosso juízo, atribuir-lhes o sentido de uma ruptura com as condições existentes. Trata-se, mais propriamente, de reconhecer que respondem pela criação de um campo de forças na vida cotidiana urbana marcadamente plural, constituindo um mosaico de sinergias e percursos em face de um cenário de adversidades econômico-sociais e político-institucionais. Estas sinergias e estes percursos parecem, de certo modo, adquirir maior relevância que os próprios objetivos a atingir, pois forjam uma cultura de aprendizado mais distanciada de estruturas de enquadramento/acomodamento, podendo até mesmo representar certas rupturas em relação a elas. Daí a percepção, entre outros aspectos observáveis no mundo atual, de que a política deva girar mais em torno dos próprios sujeitos e interessados do que do Estado, justamente no momento em que se constata certo deslocamento entre ele e a sociedade, parecendo apontar para uma situação-limite.

As novas ambiências que estão sendo cotidianamente constituídas e o sentido das ações encetadas indagam e confrontam a condição atual conspícua de se vegetar numa espécie de sobrevivência hedonista-utilitarista. Sob o sentido de um pragmatismo vulgar e bestial, a política, nesse sentido, é reduzida a um dispositivo para se evitar o pior, e o espaço, precipuamente as cidades, com maior destaque aos grandes centros, vão se transformando em verdadeiras máquinas mortificantes de habitar.

Podemos falar em luminosidades político-espaciais em relação a essas práticas. Dando-se sob o sentido da necessidade, mas também do desejo, elas representam contrapontos e inflexões a uma forma de vida amesquinhada e submetida a compressões e alienações as mais diversas. Temos que essas práticas configurariam uma espécie de geografia urbana (e política) de “baixa” visibilidade, que recobriria uma cartografia de situações intersticiais reagentes. Estes interstícios se dão por onde a vida registra momentos de intensidade e diversidade relacionais, nos quais o condicionamento cede lugar à criação/ experimentação. Ações mais espontâneas são ensejadas sob o fluir do espaço e do tempo não programado, pelos quais a cidade pode revelar o indesejável e o repugnante (a exemplo das cracolândias fragmentadas/dispersas e da violência ampliada), mas também como um ambiente menos previsível e inventivo. Como um ato objetivo ou subjetivo, sob as descontinuidades do espaço e do tempo, essas práticas e manifestações podem suscitar, como se viu, condições a possíveis rupturas, se não a transformações socialmente desejadas em seu transcurso e evolução.

A escala do lugar e, mais especificamente, o interstício, são aqui compreendidos como instâncias locacionais de uma totalidade socioespacial essencialmente contraditória, da qual emergem tanto negatividades incisivas como forças e novas perspectivas que indagam acerca de melhores possibilidades à vida e à existência. São células vivas da realização dialética do cotidiano.

Para uma melhor compreensão de suas virtudes, possibilidades e limites, há que se proceder a desvios e certa ultrapassagem da lógica/racionalidade reinantes para se viver, e melhor perceber o que há de mais luminoso nos lugares em seu enredo socioespacial, palmilhando-os dia após dia, em horários e circunstâncias diferentes, de modo a melhor apreender suas cartografias situacionais em movimento. É, pois, sobretudo através da experiência do corpo ao rés do chão que se produzem prazeres, percepções e conflitos. Os equipamentos digitais, como os smartphones, entram ativamente nas esferas relacionais contemporâneas (GABEIRA, 2017), mas não propriamente a ponto de substituírem aquela, conquanto possam fazer-lhe alguma diferença substantiva. Nesse sentido, é esclarecedora a assertiva de Sérgio Abranches: O “sistema social” ganha duas dimensões interdependentes, uma “física” e outra “virtual” ou “digital”, a socioesfera e a ciberesfera. A interação entre as duas já se tornou decisiva em nossa vida (ABRANCHES, 2017, p.33).

Posto haver também em relação aos lugares certo sentimento de desprezo, indiferença e negação e, por conseqüência,  entre as pessoas, isso faz aumentar situações de anomia social e tensões no urbano, portanto, para além dos limites do espaço edificado das cidades.

A sobrevivência dos lugares encontra nas demandas da vida e da existência forças que lhes dão certa sustentação, e as práticas e experiências neles conduzidas e partilhadas alimentam culturas e narrativas que contribuem sensivelmente à produção do lugar, produção esta que parte de táticas cotidianas de enunciação (SERPA, 2011).

Embora os lugares estejam submetidos à antinomia conflitante entre valor de uso e valor de troca, é necessário, pois, colocar-se em devida consideração o âmbito do vivido, sobre o qual, sabidamente, incidem condições restritivas incisivas, comparecendo como instância da prática imediatamente dada (SEABRA, 1996).

Todavia, o cotidiano também comporta o sentido de uma situação em permanente construção sob a interferência e a inventividade de uma pluralidade de atores sociais, que buscam forjar estratégias próprias, ou roteiros de vida voluntários que melhor possam atender suas demandas e necessidades, fazendo multiplicar campos relacionais de interatividade. À medida que se dão no mundo, espacializam-se como campos experienciais, engendrando, assim, espaços diferenciais ou até imprevistos de certa apropriação ou de apropriações possíveis; como extravasamentos nos contextos de habitabilidade de nossas cidades, a exemplo do que se pode verificar nas culturas jovens urbanas. Aqui as noites e as madrugadas se espacializam através de práxis territoriais, que mesclam, de forma inusitada, lazer e transgressão, mostrando-se, de forma crescente, marcadas por certo nomadismo. Elas se dão por meio de circuitos interativos em lugares os mais diversos, tais como lojas de conveniência, boates, cinemas, lanchonetes em postos de gasolina, shoppings, calçadas junto a bares, etc. (ALMEIDA; TRACY, 2003).

Sob as estratégias do Estado, acólito orgânico do mercado, produz-se estruturas territoriais funcionais e padronizadas, orientadas ao alcance da maior capitalização possível no urbano. Desse modo, elas induzem a certa uniformidade quanto a modos de vida um tanto que estacionários, impondo o ócio rotineiro e tedioso, além do aborrecimento mais paralisante e deprimente, que entorpece a vida e corrompe a coragem. Operando quase que invariavelmente nos limites de uma racionalidade de curto prazo, eles exaurem a economia e, portanto, a sociedade com despesas e custos permanentes, o que praticamente acaba por circunscrever as empresas nos limites de uma forma já bastante desgastada de criação de valor. Com isso, alimentam a bolha financeira e se distanciam cada vez mais das demandas reais da sociedade e das condições de sua realização no longo prazo.

Contudo, essa condição, como já evidenciado, não se apresenta absoluta ou mesmo como uma via de mão única, envolvendo suas próprias contradições, produzindo pontos de inflexão, reações e emergências incontornáveis: da atividade contra a passividade, do ser contra o sofrimento, da vida contra as condições que lhe são estranhas. Esse contexto recobre sujeitos que, de um modo ou outro, vão buscando e forjando novos meios de difusão das condições desfavoráveis a que estão cotidianamente submetidos. O que, pela nossa compreensão, não representa a resolução mais efetiva dos problemas de fundo dessa sociedade, mas que suscita, auspiciosamente, a abertura de brechas e virtualidades ao seu tratamento no fluxo descontínuo/dialético da história.

Não pretendemos aqui perturbar ou contaminar a nossa abordagem tecendo considerações em torno de aspectos que privilegiam as negatividades da sociedade capitalista. Não raro elas enaltecem ou dão demasiado relevo ao deletério, o que acaba por dificultar, ou mesmo interditar, a possibilidade de reinvenção dos sujeitos e do mundo. Desse modo, sufocam-se possibilidades factíveis e até mesmo a esperança, ainda que se tenha em conta problemas e riscos de governança, questões sanitárias e de saúde pública urgentes, presença de grandes estruturas de poder e comprometimentos da democracia, entre outros. No entanto, alimentar vazios ontológicos e desprezar sinalizações sociais valorosas do presente, nos torna prisioneiros do que está dado, reforçando distopias em relação ao mundo e à realidade.

Diante disso, reportamo-nos, uma vez mais, a uma pluralidade de práticas que medram pelos interstícios da cidade. Elas recobrem, por exemplo, lutas pela obtenção de condições de sobrevivência mais imediatas (tais como trabalho, renda e moradia); atividades de economia solidária e economia colaborativa (em relação à qual, aliás, o Brasil é líder até o presente momento na América Latina); ações cotidianas de uso e apropriações de lugares que partem dos próprios interessados (conduzidas por grupos, tribos, etc., tais como o movimento hip hop e os happers); ações dirigidas a certos problemas da cidade e da vida pública (cicloativismos e luta por espaços públicos, como parques, praças, etc.) e de outros bens patrimoniais de valor histórico e arquitetônico-urbanístico, expressões importantes da memória da cidade.

REFERENCIAIS EMPÍRICOS: CENTRO ANTIGO DE SÃO PAULO; BAIRRO DE SANTA TEREZA, BELO HORIZONTE, MG

Nesse mesmo sentido, falaremos brevemente sobre o caso estudado[2]na cidade de Belo Horizonte, o movimento em defesa do bairro de Santa Tereza, localizado na região leste da capital mineira.

A formação do bairro remonta aos primórdios da construção da cidade planejada de Belo Horizonte, aproximadamente a partir de 1896. Entretanto, este espaço resultou mais propriamente como um espaço periférico, um subúrbio, e não como um produto do plano urbanístico empreendido à construção da nova capital.

A origem do bairro está diretamente relacionada à instalação de uma colônia agrícola de migrantes e imigrantes europeus naquela área, tais como italianos, espanhóis, etc, bem como ao estabelecimento da Formação da 9ª Companhia de Ouro Preto, transferida desta cidade para a nova capital. Há até quem atribua à banda do quartel (que, nos anos 1920 contava com diversas pessoas de sua comunidade) a expressiva vertente musical existente no bairro, e isso até os dias de hoje. Lembremos, oportunamente, que foi em Santa Tereza que surgiu, na década de 1960, o memorável movimento musical Clube da Esquina, com Milton Nascimento, Lô Borges, Marilton Borges e Beto Guedes.

Estando localizado proximamente ao núcleo central da cidade, o bairro foi se constituindo com claras evidências de uma formação comunitária consistente, envolvendo, nesse sentido, a presença de vínculos identitários e topofílicos de seus moradores para com o lugar, aspectos que se mantém vivos, guardadas as devidas proporções, até os dias de hoje, com o bairro mantendo uma expressão urbanística essencialmente residencial.

Em torno desse componente da identidade é oportuno observar que nas práticas contemporâneas a formação localizada de identidades não depende única ou exclusivamente de evidências ou atividades observáveis numa localidade específica, contribuindo à sua construção uma rede de fluxos e mobilidades para além desta (ALMEIDA; TRACY, 2003). Ou seja, as identidades também se dão com o concurso de dimensões subjetivas.

A partir da década de 1980 desencadeou-se no bairro, e em suas imediações, um conjunto de intervenções urbanísticas que reverberou em sua vida cotidiana, como construções de viadutos, obras do metrô, canalização do Ribeirão Arrudas, etc. Com a realização dessas obras o bairro se tornou mais vulnerável aos vetores da urbanização/metropolização, passando a experimentar certas transformações e impactos em sua estrutura e funcionamento. Elas envolveram, entre outros aspectos, uma maior diversidade de suas atividades econômico-comerciais, bem como o aumento da afluência de pessoas e a implantação de alguns edifícios; e, posteriormente, certa proliferação de prédios de baixa volumetria (4 andares) em alguns de seus setores. Tais formas urbanas tornaram-se fonte de grande preocupação por parte de seus moradores, que as percebiam como uma ameaça não apenas ao acervo arquitetônico e urbanístico mais “tradicional” ali presente (compreendendo muitas construções dos anos 1920 e 1930), como também ao modus vivendi de sua comunidade, afetando, portanto, a cultura do bairro.

Em face dessa situação ocorreu em 1996 a maior mobilização de moradores em defesa de Santa Tereza, em que pese o crescimento de interesses por parte do capital imobiliário no bairro, o que deflagrou a formação do Movimento Salve Santa Tereza. O surgimento desse importante movimento de bairro refletiu as preocupações da comunidade em torno das transformações urbanas que já se punham em curso na cidade e na região. Isso ocorreu, mais especificamente, logo após a descoberta por residentes de que o bairro havia sido incluído no novo Plano Diretor como Zona de Adensamento Preferencial (ZAP), o que, certamente, conduziria a mudanças indesejáveis em prol de grandes interesses do capital imobiliário,

A maior e mais decisiva mobilização conduzida pelo Movimento Salve Santa Tereza ocorreu em 21 de abril de 1996, com os moradores fazendo um “abraço simbólico” no entorno da Praça Duque de Caxias em defesa do bairro. Esse evento marcante levou o poder público municipal a conferir ao bairro a condição de Área de Diretrizes Especiais (ADE). Ela foi a primeira a ser criada na capital mineira. Tal conquista representou, indubitavelmente, um dos momentos mais significativos da luta em prol do resguardo de Santa Tereza diante das sanhas do mercado imobiliário. Vale registrar que essa luta também serviu de exemplo e referência a outros movimentos de moradores em Belo Horizonte, inspirando outras práticas na defesa de bairros, em tempos em que os investimentos no mercado imobiliário se potencializam, operando, assim, como novas frentes de valorização num contexto de crise.

Com resoluta determinação de seus moradores quanto à preservação da identidade do bairro, esta ação, como observado, teve fortes ressonâncias na cidade e no poder público municipal, conduzindo à aprovação do Artigo 83 da Lei 7.166/96, mais especificamente em 14 de junho de 1996. Tal normativa evidenciava que o bairro demandava adoção de medidas especiais para o resguardo e a manutenção do uso predominantemente residencial. Desse modo, estabeleceram-se diretrizes especiais para intervenções urbanísticas em seus domínios.

A luta dos moradores teve continuidade. E o Movimento Salve Santa Tereza encaminhou ao poder público municipal, mais  especificamente à Fundação Municipal de Cultura, um abaixo assinado solicitando medidas de proteção ao patrimônio histórico e cultural do bairro, sobretudo considerando a continuidade do avanço da construção de prédios menores em sua área. E em março de 2015, como um desdobramento dessa mobilização popular em defesa do bairro, ocorreu, finalmente, o tombamento de Santa Tereza.

Em boa parte, as diretrizes que foram adotadas no tombamento do bairro já tinham sido aprovadas na Conferência Municipal de Políticas Urbanas, ocorrida em 2014. Dentre elas constava a proibição de construção de muros altos (para que se pudesse resguardar a visibilidade das fachadas de imóveis históricos) e de instalação de antenas para telefonia móvel. Desta conferência resultou o novo Plano Diretor da Cidade de Belo Horizonte.

O tombamento não impede a realização de eventos e festas populares no bairro, dentre eles, o carnaval de rua, que tem muita tradição e mobiliza grande quantidade de pessoas em torno de seus blocos, o que fica na dependência de autorização pela Prefeitura.

Vale registrar que ocorreram certas resistências ao tombamento por parcelas da comunidade; no entanto, houve esclarecimentos no sentido de que o tombamento não concerne, propriamente, ao uso dos imóveis, mas fundamentalmente à edificação e à preservação de suas características histórico-arquitetônicas, entre outros aspectos a serem preservados.

Esse percurso de mobilização e luta comporta inteiramente o sentido de uma oposição e renúncia coletiva à ideia de anticidade em Belo Horizonte conduzida por esse Movimento. A dinâmica da urbanização/metropolização tem se mostrado bastante intensa nesse complexo e diversificado âmbito urbano. Confrontos entre os interesses de grandes capitais imobiliários e as comunidades têm sido frequentes. Trata-se de um processo bastante contraditório e produtor de conflitos e muitas negociações entre os envolvidos. Ao grande capital fundiário as decisões políticas parecem se dar mais em seu benefício do que às demandas da população, o que, de certo modo, nos dá a medida do campo de forças, marcadamente desigual, estabelecido no âmbito da reprodução do urbano e da própria cidade em nossos tempos. Entretanto, é importante não se perder de vista que as lutas urbanas em prol de uma cidade mais digna e justa têm se ampliado sensivelmente, havendo em seu meio uma diversidade de posturas e práticas. Elas variam desde aquelas de caráter mais radical, envolvendo situações de tensão, até às que se alinham ao Estado e interesses corporativos.

Mais recentemente podem-se constatar intervenções urbanísticas que vêm sendo realizadas no centro da cidade e imediações, melhorando sensivelmente as condições de circulação e uso de espaços abertos à população. Tivemos a oportunidade, em diversos momentos, de percorrer a pé esses espaços, de dia e de noite, e a percepção dessas melhorias foi clara. A mobilidade para pedestres, por exemplo, avançou sensivelmente em relação às condições anteriores, possibilitando atmosferas socioespaciais mais estimulantes.

Em face desse cenário, marcado por expressiva diversidade e complexidade, os desafios à análise são imensos. Entretanto, compreendemos que a perspectiva metodológica mais adequada ao seu tratamento seja a dialética em articulação com a abordagem fenomenológica, mais especificamente no que concerne à experiência humana no âmbito de espaços vividos. Acreditamos que esse horizonte nos permite identificar tanto contradições como possibilidades abertas nos ambientes vividos, por práticas sociais cotidianas, explorando suas virtualidades, significados e orientações. Tal perspectiva, acrescente-se, se mostra convergente à uma compreensão ampliada e sensível à esperança, a partir das próprias virtualidades e sinalizações objetivas do presente e, desse modo, com o desejo. Trata-se, portanto, de um horizonte insubmisso ao espetáculo e ao funcionalismo atuais. E é no desvendamento das situações e enredos constituídos na vida cotidiana que suas expressões podem ser identificadas, trazidas à tona por uma abordagem teórica norteada pela lógica da atenção, isto é, por um olhar mais demorado; e isso junto às inserções do corpo e do espírito no meio ambiente, favorecendo, assim, percepções do vivido. Ou seja, um olhar mais estendido e atento sobre a cidade e o urbano, sobre os movimentos da vida e da existência, logo das experiências humanas, usos e apropriações possíveis de lugares. Para além de explorações intelectuais, esta teoria se desdobra também no mundo prático-sensível, integrando-se a ele como uma força prática.

Essa perspectiva implica também na mobilização do desejo, inserindo-se, assim, numa abordagem mais ampla em torno da vida e do vivido, da existência e do cotidiano. Nesse sentido, o desejo, enquanto algo ainda não realizado, não se apresentaria no sentido de perda ou de descarte do essencial da vida no tempo presente; antes, ao contrário (COMTE-SPONVILLE, 2001), uma vez que se articula a transformações nos modos de ser e estar no mundo, portanto nas formas de experienciar o existente e os lugares.

Desse modo, ruas, praças, becos, entre outros, se colocariam como lugares de experimentação virtuosa, constituindo-se, para além da estrita circulação de indivíduos e mercadorias, em ambientes socialmente mais estimulantes e atrativos, sob solicitações de demandas radicais ou imprescindíveis. Evidências, nesse sentido, já se apresentam sob a vida cotidiana contemporânea, recobrindo uma maior apropriação coletiva de lugares para finalidades as mais diversas, como cicloativismo, manifestações culturais, políticas, lazer, etc. Elas se mostram como práticas socioespaciais dotadas de um traço marcadamente auto organizacional, que se dão em torno de demandas e necessidades dos próprios envolvidos/ interessados, necessidades, não raro, historicamente reprimidas/restringidas. A espontaneidade que as caracterizam, alimenta, por assim dizer, a inventividade de suas ações, que hoje se redimensionam e adquirem maior vitalidade com o emprego de redes virtuais.

Torna-se difícil conceber instituições, quer seja o Estado ou para além dele, com capacidade de neutralizar os interesses individuais no âmbito dessa economia, fonte robusta de desigualdades, sobretudo em espaços periféricos do sistema-mundo, com estruturas concentracionistas historicamente constituídas, como bem revela, por exemplo, o caso brasileiro. A história nos evidencia pressões e práticas sociais dos desfavorecidos ou interessados como limites possíveis, pelas quais se podem repor um mínimo de equidade nas condições sociais, bem como na criação de oportunidades e qualificação para a vida. Esse movimento favorece escolhas, distribuição de recursos e a própria convivência social, com mais condições de autorrealização, o que parece reafirmar o enorme avanço da ciência e da tecnologia nos tempos hodiernos.

APORTES SOBRE A REPRESENTAÇÃO E SITUAÇÕES SOCIOESPACIAIS

É fundamental levar-se em conta na análise as formas pelas quais seus habitantes concebem a cidade e os lugares.

Do mesmo modo que o espaço físico e a paisagem interferem no simbólico, as representações da cidade e do urbano repercutem no seu uso social, podendo até mesmo conduzi-lo, modificando, assim, a própria concepção do espaço (SILVA, 2001). Mais importante do que saber ou ver como o conhecimento representa o real, é aferir e conhecer o que as representações produzem na realidade, que intervenções elas operam no real.

A noção de representação envolve polêmicas e pontos de vista distintos. A cidade e os lugares em suas especificidades e particularidades podem subsidiar a formação de arranjos socioespaciais não institucionalizados (auto organizacionais); do mesmo modo que práticas de gestão de caráter participativo e compartilhado (co-gestão), orientados ao desenvolvimento e ao exercício de ações e políticas devotadas a um melhor desempenho e adequação de processos espaciais, redirecionando-os em bases socialmente mais aceitáveis.

Sob os influxos da modernização e da fragmentação do espaço em curso, avançam formas espaciais sob a marca de certa homogeneidade (aqui compreendida no sentido da difusão geográfica de condições à realização da economia capitalista). Nos lugares, essas expressões se objetivam com o rompimento, a supressão e a transformação de arranjos e estruturas pregressas, realizando estratégias do Estado e do capital. Com isso, criam-se novas funcionalidades e sistemas territoriais, os quais, não raro, suscitam conflitos diversos ao plano da vida cotidiana e da reprodução social, impondo, portanto, dificuldades no próprio processo de integração nessa sociedade, cada vez mais urbanizada. Nesse sentido, torna-se relevante avaliar como moradores da cidade e outros atores sociais percebem/representam o espaço.

Com bastante frequência, as representações socioespaciais se mostram associadas à formação de situações espaciais ou geográficas. As situações espaciais recobririam, então, certas localizações espaciais e inserções relacionais num dado contexto socioterritorial, resultando, mais especificamente, da ação de um conjunto de forças e acontecimentos que se espacializam, conferindo a esse contexto suas características, especificidades e/ou particularidades. Tais traços apontariam a constituição de representações em torno de situações espaciais distintivas ou diferenciais.

Há que se levar em conta que as situações socioespaciais atuais estão, de modo geral, submetidas a uma extrema mobilidade, incidindo-lhes uma extraordinária aceleração de evoluções técnicas e processos históricos, conducentes a um conjunto de transformações nas relações econômicas e políticas. Nesse sentido, pode-se dizer que a situação socioespacial é, em larga medida, movimento. Sob essa perspectiva, o geógrafo Pierre George (1968) assinala que ela compreende, então,

[…] uma soma de dados adquiridos e relações organizadas em ordem sucessiva. Algumas dessas relações continuam a ser funcionais, integradas na evolução atual, enquanto outras pertencem a uma herança que se degrada progressivamente e deixam, ao contrário, de ser funcionais. […] As heranças de situações anteriores não correspondem necessariamente aos mesmos dados espaciais da situação atual e, desembocando em outra situação a curto prazo, pode-se ser conduzido a considerar a posição espacial (GEORGE, 1968, p.22).

A situação socioespacial mantém, assim, estreitos vínculos com o lugar e os contextos históricos em que é construída. Sendo, portanto, completa e ontologicamente uma realidade espaço-temporal, ela está submetida a interferências do movimento contraditório da totalidade socioespacial.

Considerando-se que ela seja constituída no âmbito do uso de espaços, ela recobre formas e expressões da experiência humana, modos de interagir com o mundo e os lugares, modos de ser e agir e, nesse sentido, recobrem possíveis apropriações de espaços.

APROPRIAÇÃO SOCIOESPACIAL: O POSSÍVEL NO TEMPO PRESENTE

Entendemos que a apropriação no tempo presente, mais especificamente em cidades brasileiras, como Belo Horizonte e São Paulo, com casos por nós pesquisados, não se apresentaria como uma expressão tão residual ou demasiadamente recuada como muitos imaginam ou postulam, reduzindo, assim, suas potencialidades sob as circunstâncias compressivas da vida cotidiana contemporânea.

Se a apropriação se encontra bastante atrelada à propriedade, sobretudo à propriedade privada da terra, há que se ponderar, contudo, que a apropriação, a depender do modo como se dá e das características que assume nos lugares, poderá, então, imprimir novas qualidades àquela. É importante esclarecer que a apropriação não se confunde com a propriedade e não a substitui, mas pode ampliar-lhe o significado, tornando-o, assim, mais “elástico”; compreendendo-a para além de sua dimensão econômica, mas isso não significa que a função social da propriedade seja, necessariamente, fixada pela apropriação, a qual, como sabemos, é conferida, principalmente, pelo seu uso econômico nos lugares. Além disso, os atributos qualitativos que a apropriação pode imprimir na propriedade, pelo seu uso social, também não significa que ocorra a revogação de seu significado jurídico-formal, o qual está assentado e salvaguardado no estatuto da propriedade privada da terra.

Acrescentemos-lhe, ainda, alguns aspectos distintivos importantes, quais sejam: “A apropriação está referenciada a qualidades, atributos, ao passo que a propriedade está referenciada a quantidades, a comparações quantitativas, igualações formais, ao dinheiro (que delimitando o uso tende a restringi-lo)” (SEABRA, 1996, p. 71).

Temos, então, pela nossa perspectiva, que a apropriação do espaço pode se realizar mediante ações deliberadas e/ou espontâneas sobre um dado lugar, por estímulos e demandas dos próprios interessados. (BAGGIO, 2013).

Estando inserida no universo da política, a apropriação do espaço é inerente ao processo social. Através dela a sociedade, em sua diversidade, geografiza processos em campos sensíveis de atuação, como bem se pode observar no âmbito embaraçado dos problemas urbanos. Dentre eles as condições adversas de moradia para boa parte da população, insuficiências de serviços e benfeitorias urbanas,  baixa disponibilidade de áreas públicas de lazer e de encontro, problemas de mobilidade urbana, entre outros.

A apropriação nos mostra uma tipologia de situações pelas quais o espaço é ocupado e usado, não sendo nosso propósito, nesse trabalho, proceder a uma espécie de inventário mais circunstanciado acerca delas. Ela se objetiva no mundo prático-sensível tanto por formas materiais (objetos) como por atividades inscritas territorialmente (que configuram os usos da terra) e ainda por indivíduos e segmentos sociais variados, em torno de demandas igualmente diversas (moradia, lazer, meio ambiente, luta pela terra, etc.). Nesse sentido, ela também implica na elaboração de representações e interpretações atinentes aos lugares de sua ocorrência, operações que se dão sob a mediação da técnica, da política e das ideologias. Segundo David Harvey (1992), a apropriação pode conferir atribuições simbólicas e valorativas aos lugares, sendo esses aspectos necessários à própria reprodução da sociedade.

As formas socioespaciais podem, assim, ser ressignificadas por ações voluntárias e espontâneas, de modo a se colocarem ao atendimento de necessidades não previstas e não contempladas pelo Estado ou pela economia.

A apropriação social de espaços se depara com situações restritivas à sua realização, mas não de modo a torná-la inexpressiva ou desacreditada, social e cognitivamente. Sob a socialização capitalista do território, os valores de vida vão cedendo lugar aos valores de utilidade (transformação coercitiva de valor de uso em valor de troca). Pela ação hegemônica do Estado e das empresas se define um sistema (e uma lógica) de dominação/controle, que se põe em confronto com a apropriação social e, desse modo, suscitando práticas reativas ao plano da vida cotidiana. Tal antinomia suscita acirramentos e conflitos cotidianos entre demandas do capital (sobretudo do financeiro-corporativo) e necessidades sociais (estreitamente associadas ao uso do espaço e à reprodução social, que se mostram integradas ao plano do real).

Diante disso, temos que a apropriação possível no tempo presente nos remete àquilo que não está totalmente condicionado, embora o esteja parcialmente, isto é, ao possível constitutivo do real, com suas tendências e delineamentos. Portanto, ela pode ser reconhecida no plano das contradições hodiernas, e não como algo a se dar num campo redentor do futuro, no qual se projetaria como num ato de fé, na superação das contradições e dos problemas do presente. A ideia do “possível” não se apoia em juízos que esconjuram o que suposta e apressadamente se apresentaria às pessoas e mentes como ilusório, miragem, devaneio ou caricatura. O possível retém a imanência do virtualmente factível, distanciando-se de projeções tão somente imaginativas, as quais, não raro, não se metabolizam com o real, incompatibilizando-se com ele.

Sendo ela uma práxis inscrita no social, a apropriação do espaço encerra potencialidades que indagam sua dimensão e seu alcance no tempo-espaço presente. Ela se mostra favorecida e viva por virtualidades sociais de caráter inventivo, que não se confundem com ações estritamente repetitivas. Se, no âmbito do social, se estabelecem certas fronteiras e limites, estes não são automáticos e absolutos, uma vez que o social é, por excelência, a instância relacional e comunicacional na qual são produzidas, permanentemente, proposições de novas possibilidades e ações; as quais, cada vez mais, se dão por redes de conexões as mais diversas, suscitando a constituição de verdadeiros ecossistemas de relacionalidade e até mesmo de inovação e promoção da vida cultural na cidade. Tratam-se, pela nossa compreensão, de vetores de ressignificação apropriativa de lugares, envolvendo a criação de novos espaços culturais, expressiva movimentação de grupos sociais organizados, bem como artistas de variados setores e empreendimentos econômicos de base cooperativa. O Centro Antigo da cidade de São Paulo, por exemplo, bem revela essa condição espacial, socialmente mais dinâmica e virtuosa, favorecendo o encontro e a diversidade.

Sob uma permanente tensão, os influxos incidentes na apropriação não revogariam, propriamente, o seu sentido e importância à realização descontínua da vida. Antes, reafirma-os, efetivamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade comporta o sentido histórico da promoção do encontro e da sociabilidade, portanto de realização da política e da existência. Porém, na medida em que tenha se tornado bastante submetida aos circuitos de valorização econômica, ela se também se consubstanciou como um produto e suporte do trabalho alienado. Esta condição suscita a constituição de espaços e espacialidades alheias aos desejos e necessidades humanas e sociais.

A reprodução contemporânea do espaço urbano, submetida a uma robusta apropriação privada do espaço pelas relações econômicas, podendo-se destacar aqui a atuação de corporações nos negócios em torno da terra urbana e do mercado imobiliário, portanto no âmbito da reprodução da cidade, potencializaria essa condição de alienação na contemporaneidade. Tal recrudescimento envolve, ainda, novas formas de organização do trabalho, a exemplo do estabelecimento de metas de resultados, o que tem conduzido à precarização do trabalho e da saúde do trabalhador. Não por acaso verificamos a ingestão, cada vez maior, de ansiolíticos e remédios para indução do sono, ao lado da multiplicação de problemas de depressão, Síndrome de Bournout e distúrbios psicológicos outros. Outros prejuízos à saúde do trabalhador, tais como problemas cardiovasculares, hipertensão, gastrites, etc., também têm aumentado sob essa condição. Nesse sentido, nos parece bastante perceptível o delineamento de um verdadeiro problema de saúde pública presente nessa situação, quando a alienação se consubstancia com patologias.

Aliás, a alienação do trabalho pode também ser compreendida, ela própria, como uma espécie de “doença do eu”, como uma espécie de psicopatologia, que se mostra como uma modalidade de esquizofrenia (CALDERONI, 2010). Nesse sentido, ela daria forte impulso a uma forma social paranóica, acuada e dissimulada, integrando-se às espacialidades sociais contemporâneas. Como uma expressão histórica do processo social, a alienação se consubstanciaria como uma realidade socioespacial, sob uma vertiginosa e expansiva urbanização da sociedade.

É possível falar, ainda, de mais outra vertente, que é a alienação  digital, que residiria num estado de passividade das pessoas diante de nossos problemas, portando-se mais como espectadoras do que como pessoas ativamente inseridas nos circuitos virtuais de conversação. Ela poderia alimentar situações de despolitização. No entanto, isso não é algo que seja predeterminado. Quando falamos, por exemplo, em certo avanço de formas auto-organizacionais e o uso que fazem de novas tecnologias comunicacionais, a situação inversa pode igualmente ocorrer, ou seja, a politização integrativa entre o social e o mundo digital. E, quanto a isso, as evidências pululam.

Conquanto se leve em conta os efeitos deletérios e expressões da alienação, ela não representaria, propriamente, uma situação na qual estivéssemos imersos numa espécie de degenerescência absoluta e irreversível do espírito e da vida social, portanto do próprio espaço. Este, vale dizer, reflete um estado de metabolismo vivo, dotado de grande mutação, versatilidade e capacidade inventiva.

Abordagens estritamente binárias obscureceriam a questão, levando a generalizações indesejáveis, incorrendo em distorções que nos colocariam quase que em sintonia com a própria alienação. E, ousamos dizer, as alienações e miopias a ela relacionadas frutificam nos ambientes acadêmicos, com discursos demasiadamente distópicos e abstratos, que, em verdade, parecem apenas enxergar um “mundo melhor” e “mais justo” para frente (no futuro), pela superação do capitalismo e do mundo da mercadoria. Experiências em curso, com pessoas de carne e osso, indicativas de esforços positivos e esperança (categoria política de emancipação social), são reduzidas (ou desqualificadas) a algo meramente adaptativo ou resiliente ao capitalismo; escatologicamente tomadas como incapazes de resolver nossos problemas de fundo, cuja efetiva resolução só viria com o fim redentor do capitalismo e do estatuto da propriedade privada. Temos que essa epistemologia bufe muita presunção e sentimento de superioridade cognitivo-intelectual, marcadamente mordaz, intolerante e dogmática.

Somos encorajados a pensar os vínculos sociais e socioespaciais de uma forma tanto menos rígida, quanto menos abstrata, não os restringindo à função de suas relações com o sistema econômico. O que não se confunde reitera-se com uma espécie de artificialismo negligente para com a alienação socioespacial, que difusa e sensivelmente permeia a vida cotidiana no mundo em que vivemos.

Todavia, o sentido que reputamos estar em jogo nesse contexto crítico é o da vida, precipuamente o da vida cotidiana. Ela não se apresentaria como algo pura e simplesmente tributário da razão, não sendo esta a sua “chave universal” ou exclusiva. Daí a necessidade de acrescentar-lhe o componente ativo da paixão, dos sentimentos compartilhados, mobilizando afetos, humores e ambiências, valorizando-se, na relação com a vida, também o lúdico e o onírico, como bem se vê, por exemplo, entre tribos urbanas.

Sem que tenhamos necessariamente consciência disso, foram de fato essa “escrita automática” e essa “deriva psico-geográfica” que se capilarizaram no conjunto do corpo social. “Grande jogo” coletivo no qual desaparecem as rígidas barreiras entre sonho e realidade, seriedade e prazer. Importam apenas as situações, os bons momentos compartilhados intensamente (MAFFESOLI, 2007).

Nosso entendimento é de que os reclamos da necessidade e do desejo contam mais do que as utopias, pulsando a todo o momento. De certo modo, eles têm se colocado sob um sentido de escapar/desviar da rigidez de ordens normativas e manipulações políticas, apesar de certo nivelamento redutor que incide sobre eles.

E aqui intervém a dimensão política do viver e da existência, permitindo e estimulando tanto a crítica ao indesejável como a formulação de alguma forma ou estratégia de intervenção, que podem ocorrer como apropriações possíveis de espaços. Neles, o indivíduo e o individualismo tendem a perder-se sob o desejo da interação grupal, tribal, inclusive. Ainda que possam se objetivar de forma efêmera e descontínua, são capazes, ao menos em parte, de se recomporem, forjando ambiências de uma inegável vontade de vida, cristalizando experiências vividas, ainda que estejam vulneráveis a vetores de interdição e abortamento, inclusive por força do Estado.

As ambiências não são de rigidez, e o tempo de sua objetivação é imprevisto e não linear, correspondendo-lhes certo estado de vacuidade que permite o afloramento de pulsões criadoras e potencialidades diversas. Pode-se falar aqui numa espécie de ontogênese de uma espacialidade mundana, socialmente mais auto-organizacional e empreendedora. Ela aponta para outras e mais desejáveis situações socioespaciais que envolvem o exercício da diferença e modos multiformes e alternativos de usar o tempo e o espaço, recobrindo, assim, apropriações factíveis sob as condições do presente.

Por mais que planejadores, urbanistas do Estado, loteadores e empreendedores imobiliários se ocupem em definir e orientar a forma física da cidade, e suas correlatas funções (as quais não asseguram, plenamente, o que vem após a sua criação), não podem, como vimos, controlar ou prever, eficientemente, certas dinâmicas e expressões adquiridas pelo processo social, e tampouco o que as pessoas pensam ou fazem. Em nossos tempos, marcados por ritmos mais acelerados e de grande imprevisibilidade do futuro, não conseguimos captar devidamente, em meio ao turbilhão dos processos em curso, os modos emergentes de ser e estar no mundo que se precipitam nas culturas urbanas contemporânea. No entanto, em meio à diversidade de expressões, pode-se perceber nelas a presença de um traço marcadamente heterônomo, com maiores sinergias e interdependências entre os sujeitos pelos lugares, projetando espacializações comunitárias dinâmicas e moventes; o que não elimina, por força do desenvolvimento tecnológico, enraizamentos mutáveis.

Em contraste, aplicar políticas dirigistas na vida das pessoas representa um exercício intrinsecamente malogrado; uma espécie de morte anunciada da política. Por uma lente mais fina, a crítica séria em relação aos nossos problemas, principalmente os de ordem estrutural, indica a necessidade de amarrações com instrumentos institucionais e atos práticos capazes de melhor equacioná-los, sob uma perspectiva transformadora. O capitalismo, com suas contradições, clivagens sociais, desigualdades e restrições diversas, não constitui, ao nosso juízo, o maior problema vivido pela humanidade.

É sob essa perspectiva que se nos impõe, como uma necessidade clamorosa, a ampliação de nossos horizontes, mobilizando nossas disposições e capacidades para além do aparente ou do que está próximo, sobretudo num momento em que os enredos nos quais vivemos se “liquefazem” (ABRANCHES, 2017; BAUMAN, 2007), e se transformam. Não o fazer significaria não apenas correr o risco, já acentuado, de nos descolarmos intelectual e politicamente da realidade contemporânea, como, por derivação, não menos alienante, nos afastarmos teórica e praticamente das possibilidades que se abrem no presente à apropriação de espaços-tempos no mundo.

Temos o entendimento que no contexto atual da pandemia do coronavírus, a escala do lugar tende a ser mais valorizada. Os ritmos da vida cotidiana e da globalização ensandecida devem se redimensionar e talvez mesmo desacelerar, ao mesmo tempo em que tendências e mudanças que já estavam em curso no contexto pré-pandemia adquirem maior celeridade. E é provável que essas mudanças nos levem a uma espécie de reposicionamento político e existencial  no sentido de se colocar a vida em primeiro plano, juntamente da necessidade de um enfrentamento mais efetivo e eficaz de diversos problemas que a constrangem e a desafiam. Pode-se destacar, entre outros, a nossa histórica e persistente desigualdade social e espacial, bem como o flagelo representado pela crise sanitária.

Percebemos sinalizações quanto a certo estreitamento de relações entre as pessoas e seus espaços de vivência, no sentido de um maior senso comunitário em bairros e outros âmbitos territoriais. O que nos leva a pensar na ocorrência de uma valorização da escala no lugar.

Afora controvérsias existentes em torno do teletrabalho, hoje em franco crescimento por força das circunstâncias da epidemia – com muitos o encarando como uma precarização ainda maior em nossas vidas -, é plausível considerar, por outro lado, que caminharemos rumo à construção cotidiana de uma (nova) pedagogia do viver e do existir; talvez nos colocando em maior sintonia com cuidados e responsabilidades ao que é comum a todos. E, nesse universo, o espaço, principalmente nos ambientes urbanos, embora também no campo, com seus usos e apropriações, se apresentam como aspectos basilares dessa perspectiva que se abre.  As práticas e experiências auto organizacionais aqui exploradas tornam-se referências ainda mais relevantes em nossos tempos quanto aos modos de ser e estar no mundo, sob uma crise recrudescida e muito provavelmente de maior duração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

2. Este caso foi, inicialmente, estudado em nossa pesquisa de doutorado em Geografia Humana, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, intitulada “A luminosidade do lugar – circunscrições intersticiais do uso de espaço em Belo Horizonte: apropriação e territorialidade no bairro de Santa Tereza” (2005), porém sendo retomado, num novo projeto de pesquisa (na UFV, a partir de 2016), possibilitando incorporar novas inserções e desdobramentos neste artigo.

[1] Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.

Enviado: Dezembro, 2020.

Aprovado: Fevereiro, 2021.

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Ulysses da Cunha Baggio

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