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A música popular amapaense como elemento de representação do espaço geográfico: uma leitura sobre paisagem e identidade

RC: 96034
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/paisagem-e-identidade

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PUREZA, Benedita Machado [1], SANTOS, Marco Antonio Moura Dos [2], FERNANDEZ, Pablo Sebastian Moreira [3]

PUREZA, Benedita Machado. SANTOS, Marco Antonio Moura Dos. FERNANDEZ, Pablo Sebastian Moreira. A música popular amapaense como elemento de representação do espaço geográfico: uma leitura sobre paisagem e identidade. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 08, Vol. 06, pp. 138-152. Agosto de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/geografia/paisagem-e-identidade, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/geografia/paisagem-e-identidade

RESUMO

O presente artigo trata do uso da Música Popular Amapaense (MPA) como elemento na representação do espaço geográfico, a partir da leitura da paisagem e identidade, destacando a MPA como um instrumento bastante útil para uma análise no âmbito da Geografia, pois serve como ferramenta alternativa de novos olhares e leituras do espaço. Este estudo tem como questão norteadora: A Música Popular Amapaense pode ser vista como elemento na representação do espaço geográfico? Respondendo a esse questionamento a pesquisa tem como objetivo analisar a MPA como elemento que permite a representação do espaço com um olhar a partir da paisagem e identidade. Partindo do pressuposto buscou-se realizar a pesquisa em três etapas. Na primeira realizou-se a busca por fontes bibliográficas especializadas, de estudos geográficos a partir da música. Foram desenvolvidas pesquisas por consultas à internet, através de sites de notícias culturais, levantamento discográfico de diversos artistas, jornais impressos, entrevistas com compositores e músicos, redes sociais como forma de contato com os artistas e entrevistas realizadas pessoalmente. Na segunda etapa, fez-se necessário outro levantamento bibliográfico a respeito dos conceitos utilizados para a pesquisa. A terceira e última etapa teve por foco a audição das músicas, leitura e compreensão das letras, e a busca por estabelecer associações das composições a partir das articulações teóricas e conceituais elaboradas nas etapas anteriores, de modo que as escolhas das músicas analisadas fossem interpretadas com base nos conceitos utilizados. Como resultado, identificou-se que as músicas analisadas são fontes para a observação do espaço vivido.

Palavras-chave: Música Popular Amapaense, Identidade, Paisagem, Espaço Geográfico.

1. INTRODUÇÃO

A música está inserida no cotidiano das pessoas, e relaciona-se com memórias e histórias de vida. Expressa visões de mundo e serve como espelho da sociedade e de suas relações com o meio. Com suas letras, construções sonoras e seus instrumentos, nos fala muito além dos simples estereótipos ou pré-conceitos. Pode ensinar e levar as pessoas a vivenciar sentimentos e experiências. É uma manifestação cultural capaz de transmitir diferentes mensagens, de traduzir as relações sobre o espaço ao qual pertencemos. A construção e o fortalecimento de identidades são possíveis por meio dela.

Os geógrafos Corrêa e Rozendahl (2009, p.7) afirmam que, assim como o cinema, a música expressa visões de mundo, sentimentos diversos e como criações sociais podem ser vistas sob a ótica da espacialidade. Conforme Panitz:

A diversidade de interesses apresentada pela geografia brasileira, e a indiscutível riqueza musical do país, fazem deste campo de estudo um lugar fecundo para explorar o espaço geográfico em suas mais diversas abordagens e já tem oferecido, sem dúvidas, novos olhares para as relações entre espaço e cultura. (PANITZ, 2010, p. 73).

Deste modo a ideia apresentada acima mostra como a música pode ser um instrumento valioso para a compreensão do espaço geográfico. Ela também está presente na formação histórico-cultural do Estado do Amapá, levando em consideração as diferentes etnias que o compuseram (indígena, negra, europeia), contribuindo para a formação musical e cultural do nosso Estado. Como exemplo, considera-se o Marabaixo, expressão de memória da resistência negra, uma manifestação contra o poder dominante na época em que os negros foram remanejados para as regiões periféricas da cidade de Macapá, no séc. XX, logo após a criação do Território Federal do Amapá em 13 de setembro de 1943. Este então, se tornou uma manifestação folclórica genuinamente amapaense.

Partindo do interesse de relacionar música e Geografia, cultura amapaense e sua música popular, buscou-se refletir e indagar sobre os sons, letras, ritmos e modos de cantar dos artistas, em busca por reconhecer os apelos, sentimentos e valorizações, e o que estes querem dizer. O interesse por essa temática se dá por todo o valor simbólico contido na MPA como fonte de representação deste espaço.

Esta pesquisa está estruturada em três capítulos. No primeiro far-se-á uma inter-relação entre a Música Popular Amapaense e espaço, apresentando a música como um meio de produção e criação do espaço. No segundo capítulo, serão trabalhados os conceitos de paisagem e identidade, construindo uma relação entre ambos, pois os respectivos conceitos são categorias de análises importantes nos estudos das representações espaciais e culturais. No terceiro capítulo, serão selecionadas letras musicais para a análise e reconhecimento das representações do espaço amapaense, com base nos conceitos de paisagem e identidade.

2. MÚSICA POPULAR AMAPAENSE E ESPAÇO

Para uma análise da Música Popular Amapaense como ferramenta alternativa de novos olhares e leituras do espaço, faz-se necessário, primeiramente, entendermos que a música é um rico campo de estudos para a Geografia, é um instrumento valioso para a compreensão do espaço geográfico. Ela está inserida no cotidiano das pessoas, expressa visões de mundo, relaciona-se com memórias e histórias de vida que dá sentido aos lugares.

A Música Popular Amapaense (MPA) é um meio de produção e reprodução histórico e social do Amapá e tem importante contribuição para a construção e fortalecimento identitário regional.

É importante ressaltar como a canção está presente na formação histórico-cultural do Amapá. Traços musicais carregados de elementos (sonoros e falados) provenientes da mistura indígena, negra e europeia contribuíram e contribuem para a etnicidade musical e cultural amapaense. O que aponta para este entendimento é o Batuque e o Marabaixo, músicas que representam a alegria e os lamentos negros na Amazônia.

O Marabaixo e o Batuque podem ser considerados um embrião da atual Música Popular Amapaense de raízes urbanas. Albin (2003), diz que “a consolidação da música popular constitui uma criação que é contemporânea ao aparecimento das cidades. E deve-se deixar claro também que música popular só pode existir ou florescer quando há povo”.

Kong (2009) diz que a música é um agente ativo na produção e reprodução social e espacial da vida cotidiana. Relata ainda que a música de um determinado local pode trazer imagens dele.

Diante disso, podemos abordar a Música Popular Amapaense como uma expressão identitária construída a partir dos textos poéticos que relatam as experiências do cotidiano do povo. Carrega consigo uma variável riqueza, no ritmo, nas letras e nos estilos, através da valorização aos elementos regionalistas. A ocupação territorial, as experiências vividas, o pertencimento ao se sentir e fazer parte do lugar cantado são marcas expressadas nos sons e letras que se transformam em poesias em suas mais variadas vertentes.

3. CONCEITOS DE PAISAGEM E IDENTIDADE

3.1  PAISAGEM

Para conceituação de paisagem, parte-se do conceito elaborado por Dardel (2011, p. 30) que compreende a mesma como um conjunto que une todos os elementos. A paisagem não é meramente feita para se olhar, o homem está inserido no mundo e se relaciona com o outro. Como reforço, deve-se citar as concepções de Tuan (1965), onde diz que a paisagem é o campo estruturador da relação do eu com o outro, onde as nossas histórias acontecem. Ela dá sentido à existência, pois é a grafia que marca o encontro entre o homem e Terra, quando esta é tida como lugar, base e meio de sua realização, imprimindo na natureza, um mundo carregado de ações, percepções, sentimentos, expressões e representações.

Para Cosgrove (1998) a paisagem é uma nova maneira de ver o mundo. Representar a paisagem não é meramente ilustrar de forma romântica a realidade, é demonstrar que os significados vindos da paisagem são inerentes à realidade. Conforme o autor, a paisagem reproduz mensagens por meio da imaginação humana que captura imagens, sons, cheiros e sabores, e os apresenta como elementos do mundo natural no qual o homem pertence e se identifica. A música quando canta um lugar, torna-se uma reprodução que ao ser ouvida emoldura a conjunção dos olhares do compositor e o ouvinte sobre a paisagem e os significados atribuídos a ela.

3.2 IDENTIDADE

O conceito de identidade vem causando várias discussões em diversos campos das ciências humanas, mas, talvez o campo que mais tenha se destacado e se preocupado com essa questão é o dos estudos culturais. A identidade cultural refere-se ao saber, no sentido de que o indivíduo não só vive a identidade, mas se reconhece nela. Temas como raça, etnia, cultura popular, gênero, lugar, são discutidos nestes estudos, o que é de fundamental importância para compreensão da construção das identidades.

Tomaz Silva (2000, p.73) afirma que identidade e diferença mantem uma dependência estreitada. A existe sem diferença, identidade não sua construção se dá pelas diferenças. Sua ideia está relacionada com a de Silva (2006), que relata que a identidade é um processo que traz consigo o outro.

Partindo dessa ideia, afirma-se que a identidade não se esgota em si, necessitamos do outro para compreendê-la. Uma identidade não faz sentido se todos compartilharem da mesma identidade, mas se torna compreensível à medida que a relacionamos com outra. Só precisamos, por exemplo, afirmar que somos amapaenses, porque existem outras pessoas que não são amapaenses.

A formação de identidade tem que levar em conta o contexto social, coletivo e histórico de cada localidade. As características e valores próprios de cada lugar em contraposição a outras culturas é que vão dar personalidades aos lugares. O Estado do Amapá, por exemplo, se difere dos outros, pelos seus hábitos, costumes, culinária, povo, história, cultura, música, localização geográfica, assim como os outros se diferem do nosso por suas características e valores particulares.

4. A REPRESENTAÇÃO DO ESPAÇO AMAPAENSE NAS MÚSICAS POPULARES

A intenção neste capítulo é analisar geograficamente algumas músicas do gênero MPA, considerando a subjetividade que as noções de paisagem e identidade podem revelar. Como propostas de análises, delimitou-se a utilização de apenas cinco canções: “Meu Endereço”, “Zulusa”, “Vida Boa”, “Tarumã” e “Jeito Tucujú”, que serão respectivamente apresentadas em formas textuais e por consequência analisadas.

4.1 MEU ENDEREÇO – A PAISAGEM DO LUGAR

Meu endereço é bem fácil

É ali no meio do mundo

Onde está meu coração

Meus livros meu violão

Meu alimento fecundo

A casa por onde paro

Qualquer carteiro conhece

É feita de sonho e linha

Que brilha quando anoitece

Na minha casa se tece

Mesura na luz dia

Pra afugentar quebranto

Na hora da fantasia

É fácil meu endereço

Vá lá quando o sol se pôr

Na esquina do rio mais belo

Com a linha do equador (CANTO E MIGUEL, 2004)

Esta composição de Fernando Canto e Zé Miguel imprime a imagem do lugar como endereço, morada. Traçando um paralelo entre letra e melodia, observa-se uma linguagem simples que apresenta os significados de forma poética, alegre, romântica e lança convite a quem desconhece sua terra natal. O sujeito dialoga com quem lhe ouve, apresentando a singularidade e a realidade do lugar. “O espaço geográfico tem nome próprio e é a mão do homem que dá nome para as diferenças do espaço” (DARDEL, 2011, p.2).

Dois planos se cortam. É onde o ser poético se encontra e quer ser explorado a partir da imaginação. Desse modo observamos, respectivamente, as imagens a partir da concepção de endereço e da concepção de casa. Quando a música diz “é fácil meu endereço”, faz indicação a um sistema de localização referente ao Amazonas (rio mais belo) e a Linha do Equador (meio do mundo), que são vias de encontro que formam uma “esquina”. Os advérbios “ali” e “lá” se remetem para um sujeito que por algum motivo se encontra fora de seu território e de forma saudosista aponta para uma combinação subjetiva de localização que reflete as suas experiências.

É nessa esquina que as coisas acontecem, se constroem e trazem inspiração para a produção musical, pois as concepções de mundo como afirma Almeida (2011, p. 108), surgem do território, quando este é visto como objeto de operações simbólicas. Dessa forma também se compreende com Saquet e Briskeivicz (2009), quando dizem que o território é fundamental para construirmos nossa identidade. Ter um território e nos identificarmos como parte deste a partir de referenciais espaciais, o lugar torna-se capaz de agregar elementos materiais e simbólicos. Portanto, é possível ver nesta canção um referencial, um marco zero, capaz de mapear na memória do povo, suas histórias e seus apegos.

4.2 ZULUSA – A PAISAGEM A PARTIR DO SUJEITO

Cafuza sim, confusa não

Nasci do Plim duma fusão

Fuzarca em mim, não confusão

Eu sou Tupi lá do Sudão

Lá do sul dão vivas pra mim

Vi, vais me ver em Mazagão

Ou me verás bem no Benin, bem no Benin,

Ou lá pras bandas do Elesbão

Olá me espere ó curumim sim

Em baixo do caramanchão

Cara machão não toca em mim não

Nem beija o M em minha mão

Em minha mão de deus Tupi

Pintou estampas de canção

E a dica é tudo esculpir aos moldes da dedicação

Cafuza sim, confusa não

Nasci do plim duma fusão

Cumpre-se em mim uma missão

Zulusa assim luze paixão (GOMES E VIÁFORA, 2013)

Canção de Joãozinho Gomes e Celso Viáfora, especialmente composta para fazer parte do projeto musical da cantora Patrícia Bastos, cujo nome do disco, lançado em 2013, também é Zulusa. Ao ouvirmos a canção, destacamos as raízes e influências musicais africanas, principalmente pelos instrumentos de percussão, como a caixa do Marabaixo e Batuque, que se juntam aos sons e batidas eletrônicas, construindo uma sonoridade musical contemporânea, mas em conectividade com suas raízes culturais. A expressão zulusa é resultado da junção de zulus que representa as nações africanas, mais a palavra lusitana que faz referência aos portugueses. Nessa junção, ainda é somado o indígena, que é a ancestralidade nativa do povo amapaense.

A partir das paisagens textuais e rítmicas da composição, identifica-se uma linguagem que permite reconstruir a imagem da formação e configuração étnica do Amapá. Remetem a fatos históricos, que estão ligados ao encontro dos povos no espaço, primeiramente aos índios, como os primeiros povos a habitarem a Amazônia, posteriormente à chegada dos povos europeus em buscas de exploração de matérias primas e que por consequência trouxeram os negros para utilizarem como mão de obra escrava. O sujeito que se movimenta nos lugares descritos, faz lembrar também dos povoados que serviriam de apoio para a expansão territorial portuguesa, como exemplo Mazagão, a cidade que atravessou o Atlântico, assim definida na obra de Laurent Vidal (2008), que descreve a odisseia da cidade, fundada no Marrocos pelos portugueses, que foi obrigada a ser transferida para o território português em virtude da guerra entre mouros e cristãos.

Zulusa imprime uma linguagem de sons, tons, costumes e significados, a partir de suas origens e suas matrizes, o que poderia parecer confusão na verdade é uma fusão etimológica ou como a própria música diz, é fuzarca, é festa. O sujeito oferece a sua imagem com o intuito de quebrar o estereótipo de exótico, “cafuza sim, confusa não”, busca valorizar a sua diferença aos outros. Cumpre uma missão de construir em suas imagens, valores de sua própria história, suas crenças, que só fazem sentido em seu contexto e suas percepções de mundo.

4.3 VIDA BOA – O COTIDIANO DA PAISAGEM MARCA-MATRIZ

O dia nos chega toda manhã

Com nuvens de fogo pintando o céu

Um ventinho frio sopra sim e assim

Vez em quando se escuta o canto do japiim

A canoa balança bem devagar

A maré vazou, encheu, é preamar, eh

O Zé vai pro mato apanhar açaí

Maria pra roça vai capinar

A vida daqui é assim devagar

Precisa mais nada não pra atrapaiá

Basta o céu, sol, o rio e o ar

E um pirão de açaí com tamuatá

Que vida boa sumano

Nós num tem nem que fazer planos

E assim vão passando os anos

Eita! Que vida boa

Que vida boa suprimo

Nós só tem que fazer menino

E assim vão passando os anos

Eita! Que vida boa (MIGUEL, 1991)

O cantor e compositor Zé Miguel, considera essa canção como um marco em sua vida e a descreve como o cantar da simplicidade e o cotidiano do ribeirinho em meio a beleza e o sustento que a natureza oferece. Em uma entrevista[4] cedida a Elton Tavares (2014), ele disse que a música surgiu por acaso, durante uma viagem de barco para Laranjal do Jarí, cujo objetivo era a apresentação de show da banda Setentrionais naquele município e da qual ele fazia parte como guitarrista. Em detalhes, ele acrescentou, que após uma noite sem sono viu o dia amanhecer e a imagem observada era a de um rio calmo, superfície acompanhada de neblina, junto a isso, avistou um caboclo em uma canoa, acompanhado de uma zagaia e outros aparatos para a pescaria. Sua observação entusiasmada foi expressa na seguinte frase: “Meu Deus, que vida! ”.

A canção incorpora a vida de um ser ligado à natureza a partir de seu cotidiano. Esta vida é também carregada de proezas, atividades e costumes peculiares do caboclo amazônico, como vemos nos versos “o Zé vai pro mato apanhar açaí” e “Maria pra roça vai capinar”, e retiram da própria natureza o que é necessário para sua subsistência. Nas frases “a vida daqui é assim devagar” e “precisa mais nada não pra atrapaiá” observa-se o lugar como segurança, em um movimento equilibrado e preciso, sem pressa, tudo em seu devido tempo. É como Tuan (1980, p. 91) afirma que nas sociedades não tecnológicas, o ambiente físico do povo é o teto protetor da natureza e de seu universo de conteúdo. O trabalho, ferramentas, construções, os seus afazeres, costumes e a visão de mundo, refletem as limitações do meio ambiente natural.

O modo de falar, o sotaque, mostra que a língua também se adapta ao meio e ao cotidiano de cada povo no espaço, pois a língua se reconstrói e cria laços com o lugar através da apropriação de seus habitantes que a reinventa, é como vemos nas expressões “atrapaiá”, “sumano”, “suprimo” e “nós não tem que fazer menino”, que expressa o modo caboclo de falar. Fica evidente a idealização de um ser cheio de pureza e satisfeito como o que a natureza lhe proporciona, sem precisar de planos e elementos artificiais vindos de um mundo externo.

Os costumes do homem da cidade se diferem dos costumes do ribeirinho, mas entende-se que os dois sujeitos estão ligados dentro do mesmo território. A essência refletida na paisagem é percebida como uma aproximação entre o ser urbano e o ser rural, pois mesmo que o compositor tenha uma visão externa do mundo observado, ele busca absorver e internalizar em si a valorização de um modo de vida que expressa identificação ou admiração. Além disso, entendemos que a paisagem é simultaneamente um reflexo da existência e ações do homem no espaço vivido. Na canção é possível ver a paisagem como meio simbólico (marca) para expressar seus sentimentos e valores, e também como meio funcional, condicional e determinante (matriz) para a existência do indivíduo e de suas ações no espaço representado.

4.4 TARUMÃ – A PAISAGEM COMO SÍMBOLO DE IDENTIDADE

Minha história é que nem uma história

De um moço que se encantou, se encantou…

Nas águas do rio Calçoene

Virou pau madeira de amor

E eu fui parar noutro rio

Atrás do meu grande amor

Nas águas do Araguari

Meu coração se encantou

É um rio encantado

O Araguari, o Araguari, o Araguari

É um rio do passado

O Araguari, o Araguari, o Araguari

Vou contar pra você essa história

De um moço que se encantou, se encantou

Vou contar pra você essa glória,

De ser pau madeira de amor

Tarumã, Tarumã e a gente subia o rio

Tarumã, Tarumã se agente morreu foi de amor

Tarumã, Tarumã e a gente descia o rio

Tarumã, Tarumã o rio que nos separou ( CASTRO JÚNIOR, 1996)

Tarumã é de autoria de Osmar Júnior e interpretada na voz de Amadeu Cavalcante, especialmente feita para o segundo disco do cantor, produzido no ano de 1996, que leva o mesmo nome da canção. A musicalidade é fruto de uma forte influência dos ritmos caribenhos em junção dos ritmos regionais do Amapá. Essa mistura de ritmos torna-se coerente devido a proximidade geográfica entre Amapá e região do Caribe, particularmente Guiana Francesa, o que consolida uma territorialização, onde ocorre relações fronteiriças, circulação de produtos e pessoas. Como afirma Andrey Lima (2015), em seus estudos sobre a fronteira caribenha e seus ritmos, ele considera que a música caribenha se reproduziu na paisagem regional amazônica através da relação entre músicos, produtores, radialistas, meios de comunicação, ou seja, há um intercambio musical entre Amazônia, mais precisamente Amapá, Pará e Caribe.

A linguagem poética da canção aflui como as águas dos rios, o que faz pensar sobre a importância do espaço aquático exposto por Dardel (2011), onde indica que os homens e seus habitats afluem ao longo dos vales, margens e ambientes úmidos. O rio coloca em movimento o espaço e a vida, o mundo aquático ora é torrente e alegre, ora é calmo e reservado. Dentro da música observa-se o encantamento, o homem expressa carinho, afeto, descreve mensagens e significados que emergem das profundezas das águas.

O compositor menciona em sua canção dois rios, o Calçoene que faz alusão de sua história com a lenda do tarumã e o Araguari, que para o músico é carregado de sentimentos e apegos, a ponto de realocar o fato lendário para as águas do seu rio querido. Osmar Júnior faz referência também a dois amores. O amor que pode ser relacionado a outra pessoa, semelhante ao amor retratado na lenda do Tarumã, e o amor que ele sente pelo Araguari.

A palavra tarumã significa “o tronco que se move”, e segundo os relatos populares, quando alguém se depara com um amor impossível, basta fazer uma promessa a tarumã, deixando sobre ele alguma oferenda quando estiver subindo rio, se no retorno a oferenda não estiver no tronco, é porque a promessa foi atendida e em breve se cumprirá.

Na crença indígena existe a possibilidade de transformação dos seres em outros seres como afirma Lagrou (2007), por isso é necessário destacar a maneira mítica de estabelecer relações de igualdade entre o humano e não humano, entendida como uma reciprocidade e uma identidade com o outro. Analisando a letra da música em paralelo à lenda do tarumã, observamos que essa relação é evidenciada, pois na canção os espaços mencionados são concebidos como lugares de acontecimentos, aventuras, imaginações e paixões carregados em sua memória. Segundo Simões (2010, p. 10), para o amazônida a paisagem, composta e emoldurada por rios e florestas, significa não apenas o espaço de vida e trabalho, mas também o meio de ligação com o maravilhoso e o fantástico.

Dessa forma, há um mundo encantado onde habita o homem e todos os seres que dão vida a cultura e o lugar. Os rios não projetam apenas a realidade de uma bacia hidrográfica, ou então, um meio de locomoção, mas também por ser o espaço onde se constitui uma identidade a partir de suas crenças religiosas e lendárias.

4.5 JEITO TUCUJÚ – O RIO COMO PAISAGEM E IDENTIDADE DE RESISTÊNCIA

Quem nunca viu o Amazonas

Nunca irá entender

A vida de um povo

De alma e cor brasileira

Suas conquistas ribeiras

Seu dom milagroso

Não contará nossa história

Por não saber e por não fazer jus

Não curtirá nossas festas tucujus

Quem avistar o Amazonas nesse momento

E souber transbordar de tanto amor

Esse terá entendido o jeito de ser do povo daqui

Quem nunca viu o Amazonas

Jamais irá compreender a crença de um povo

Sua ciência caseira

A reza das benzedeiras

O dom milagroso (GOMES E MILHOMEM, 2012)

Composição de Val Milhomem e Joãozinho Gomes, foi criada para o primeiro disco do Grupo Senzalas. É ritmada pela tradicional caixa do Marabaixo, demonstrando uma cadência que inspira reflexão sobre laços que envolvem o indivíduo e o espaço. Joãozinho Gomes[5] afirma que a motivação para criar foi a necessidade de se ter uma música capaz de transmitir a identidade do povo do Amapá, algo que viesse dar brilho ao contexto do grupo, que é a valorização do mundo vivido, além disso, objetiva criar uma imagem como ponto inicial de investigação para o entendimento das coisas que dão sentido ao lugar e a sua existência. Para ele, a música tem um texto do cotidiano, que faz referências naturais, culturais e sociais ao Amapá.

A canção inicia dizendo que “quem nunca viu o Amazonas, nunca irá entender a vida de um povo”, ouvimos a música enaltecer um encontro visual com o rio, transformando em uma unidade visível e simbólica do que realmente é o Amapá. O rio transforma-se em um campo estruturador da relação do eu com o outro, ou seja, através da paisagem é que a identidade se reforça. Os compositores dizem que para se entender a vida do amapaense é preciso olhar para a paisagem, pois os significados da paisagem são intrínsecos à realidade, pois é ela que dá sentido ao jeito de ser do amapaense.

A música estabelece uma relação necessária entre o “ser de fora” em contato com o espaço amapaense. Sabemos que a identidade é um processo que se define pelas diferenças, peculiaridades, particularidades, pelo contato entre o pertencente e o não pertencente. Observa-se que alguns elementos da identidade amapaense são a essência da canção, e os compositores buscam expressar a vida do povo como algo ligado as conquistas ribeiras da história da ocupação amazônica, o encontro entre culturas, a miscigenação, definindo como um povo de alma e cor brasileira que tem estabelecido uma relação cultural e identitária enraizada no espaço.

Assim como na primeira, a terceira estrofe começa remetendo-se ao rio como compreensão para a crença do povo. A crença popular é fruto de uma convivência entre homem e natureza, pois através dessa relação se desenvolve sua ciência caseira, como definem os compositores quando se referem ao uso das plantas amazônicas para fins medicinais e espirituais. Os símbolos mencionados na música representam algo que vai além do campo físico e natural, é transcendente e sobrenatural, como sendo herdado de força superior.

Analisando o refrão (segunda estrofe), é notado o tom reflexivo, um alerta feito ao sujeito desatento e desconhecedor da história do Amapá. Pode-se considerar que a canção é um hino à resistência e luta de permanência de identidade do povo, o que reforça esse entendimento é Rosendahl (2012), para quem as paisagens dominantes exercem um poder capaz de projetar seus próprios valores sobre as paisagens subordinadas ou alternativas. Mas se houver uma inversão na escala de observação, a cultura subordinada passar a ter um papel dominante. Isso se assemelha com Castells (1999) sobre identidade de resistência, que justamente se encontra em situação desfavorável ou estigmatizada pelos grupos dominantes.

Portanto, “Jeito Tucujú” constrói trincheiras de resistência e estabelece uma escala de observação como base de entendimento e de sentimento à cultura amapaense. A fluidez do rio transformada em mensagens e histórias carregadas de sonhos, alegrias, desejos e prazeres que construíram através do tempo sua identidade, é ainda um convite aberto a quem deseja ler e compreender.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo analisar o uso da música popular amapaense como elemento na representação do espaço geográfico, com um olhar para a identidade e paisagem.

Diante dos conteúdos expostos, e visto que a música é um rico campo de estudos para a Geografia, acredita-se que a MPA é uma ferramenta valiosa na representação do espaço e um instrumento bastante útil para uma análise no âmbito geográfico, tendo em vista que a mesma cria repertórios que ligam o espaço à música, nos trazendo a memória de lugares, fazendo-nos ter a compreensão de espaços vividos.

As composições da Música Popular Amapaense carregam consigo a imagem, as histórias e tradições de um povo, serve como ferramenta alternativa de novos olhares e leituras do espaço. As letras são como um espelho da sociedade e de suas relações com o meio, levam as pessoas a vivenciar sentimentos e experiências, transmitem diferentes mensagens.

Conclui-se através deste artigo que a MPA torna possível capturar as relações do homem no espaço geográfico e que ela pode ser uma fonte de representação deste e nos despertar para novas maneiras de observar o lugar.

REFERÊNCIAS

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CASTRO JÚNIOR, O. Tarumã. Disponível em: https://www.letras.mus.br/joaozinho-gomes-val-milhomem/. Acesso em 15 janeiro 2016.

CORRÊA, R. L.; ROZENDAHL, Z. (Org.). Cinema, música e espaço. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009. 176 p.

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LAGROU, E. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2007, v. 50 n. 1.

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APÊNDICE- REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

4. Disponível em: <http://eltonvaletavares.blogspot.com.br/2014/09/em-macapa-cantor-e-compositor-ze-miguel.html> Acesso em 25 Jun 2015.

5. Informação concedida por Joãozinho Gomes através da internet em 11 Jun. 2015.

[1] Graduada em Licenciatura Plena e Bacharelado em Geografia.

[2] Graduado em Licenciatura Plena e Bacharelado em Geografia.

[3] Orientador.

Enviado: Março, 2021.

Aprovado: Agosto, 2021.

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Benedita Machado Pureza

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