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A dignidade humana, a luta por reconhecimento e a precarização das relações de trabalho no Brasil

RC: 145166
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/trabalho-no-brasil

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

MORAES, Gerson Leite de [1], MENEZES, Daniel Francisco Nagao [2]

MORAES, Gerson Leite de. MENEZES, Daniel Francisco Nagao. A dignidade humana, a luta por reconhecimento e a precarização das relações de trabalho no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 05, Vol. 01, pp. 137-157. Maio de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/trabalho-no-brasil, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/trabalho-no-brasil

RESUMO

O presente trabalho pretende fazer uma investigação histórica e filosófica do conceito de dignidade. O termo latino dignitas sempre esteve vinculado às ideias republicanas desde a Roma Antiga, mas foi na Idade Média, que a ciência jurídica estreitamente vinculada à teologia formulou um dos pilares da teoria da soberania, a saber, o caráter perpétuo do poder político. A dignidade então emancipou-se do seu portador e converteu-se em pessoa fictícia, uma espécie de corpo místico que se põe junto do corpo real do magistrado. Na Modernidade, a partir de Kant, a dignidade baseia-se na autonomia, pressupondo a presença de uma vontade legisladora moral, na qual cada ser humano precisa se sentir submetido a exigências morais razoáveis e internamente coercitivas. Desde então, o conceito de dignidade aparece em Constituições de muitos países, inclusive, na Constituição Federal em vigor no Brasil desde 1988. Apesar de consubstanciada na legislação nacional, a dignidade acaba sofrendo reveses por interferência do mundo político, neste sentido, a Reforma Trabalhista de 2017, com suas promessas de melhoria do emprego e da renda no Brasil, acabou ferindo os princípios básicos da noção de dignidade. A Teoria Crítica e os trabalhos de Axel Honneth são fundamentais para se pensar a precarização das relações de trabalho no Brasil e a possibilidade de superação destes obstáculos pela classe trabalhadora através da luta por reconhecimento.

Palavras-chave: Dignidade Humana, Luta por Reconhecimento, Relações de Trabalho, Axel Honneth, Teoria Crítica.

1. O CONCEITO DE DIGNITAS E SUAS RAÍZES

Pode-se dizer, logo de início, que o conceito de dignidade tem sua origem vinculada à estrutura jurídica, mais especificamente à esfera do direito público. Vale lembrar que os romanos dividiam o Direito (Ius, termo de onde provém Justiça) em duas frentes, a saber:

São duas as posições deste estudo; o público e o privado. Direito público é o que se volta ao estado da res Romana, privado o que se volta à utilidade de cada um dos indivíduos, enquanto tais. Pois alguns são úteis publicamente, outros particularmente. O direito público se constitui nos sacra, sacerdotes e magistrados. O direito privado é tripartido, coligido ou de preceitos naturais, ou civis, ou das gentes (Digesto Justiniano, 2013, pp.20-21).

Mesmo que a citação acima seja de um período posterior, ou seja, do período medieval, no contexto do Império Bizantino, pode-se afirmar que a distinção entre direito público e privado é oriunda desde a época Republicana na Roma Antiga, afirmação esta que cabe também ao conceito de dignidade. O termo latino dignitas, indicava a classe e a autoridade que competiam aos cargos públicos da época. Por isso, era comum se falar em dignitas equestris, regia, imperatoria. Neste sentido, é muito importante e ilustrativo verificar o que diz o Código de Justiniano, datado do mesmo período do Digesto acima mencionado. Vale lembrar que o Código de Justiniano (Codex Iustinianus) é uma parte do Corpus Iuris Civilis. Pode-se dizer que esta obra é uma coletânea de leis promulgadas pelos Imperadores Romanos. O estatuto mais antigo e preservado do código, foi promulgado pelo Imperador Adriano; o último pelo próprio Justiniano. Os compiladores do código foram capazes de construir sua redação a partir de obras anteriores, como o oficial Codex Theodosianus e de coleções particulares, como o Codex Gregorianus e o Codex Hermogenianus. Devido às reformas legais feitas por Justiniano, o trabalho precisou ser atualizado, de modo que a segunda edição do Codex, que leva o seu nome, foi publicada em 534, após o Digesto.

A questão da dignidade era tão importante para o contexto da época que o Codex Iustinianus dedicou um livro específico para tratar o assunto. O livro XII do Codex tem por título De dignitatibus.  

Ele preocupa-se com que a ordem das diferentes ‘dignidades’ (não só das tradicionais, dos senadores e dos cônsules, mas também do prefeito do pretório, do preposto do sagrado cubículo, dos guardiões das armas públicas, dos decanos, dos epideméticos, dos metates e dos outros graus da burocracia bizantina) seja respeitada nos mínimos detalhes e com que o acesso aos cargos (a porta dignitatis) seja proibido para aqueles cuja vida não corresponda à classe alcançada (quando, por exemplo, foram objeto de uma nota de censura ou de infâmia). (Agamben, 2008, p.73)

Na sequência histórica, sem dúvida a temática da dignidade foi alvo de muitas preocupações por parte de juristas e canonistas na Idade Média, transformando-se então, num objeto que merecia a atenção de várias áreas do saber. É importante reconhecer aqui que o nascimento do Direito Medieval é alvo de disputas entre “romanistas” e “germanistas”. Os primeiros estão convencidos de que o sistema institucional legado por Roma jamais desapareceu por inteiro na Idade Média, mesmo sendo esta, durante boa parte de seus dez séculos, tipicamente marcada pela oralidade. Os documentos escritos no período medieval são verdadeiras ilhotas perdidas no oceano da oralidade, no contexto do modo de produção feudal, o que valia era o gesto, o ritual, o símbolo. Nas palavras de Jacque Le Goff, “o feudalismo era o mundo do gesto, não da escrita” (2005, p.85). Mesmo assim, grandes pensadores do Iluminismo profundamente vinculados à ideia do Código Civil, defendiam o conceito de herança romana que estaria na base de organização do Direito.

Já os germanistas, eruditos da escola do direito, geralmente associados a Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), na Alemanha,

[…] acreditavam ver nas leis da Alta Idade Média uma manifestação brilhante, viva, dos costumes e das comunidades bárbaras, muito distante, por consequência, da legislação e das pesadas construções romanas (muitas das quais lhes recordavam, sem dúvida, A Revolução Francesa…), ou, se se preferir, o produto mais puro, mais recente, de um ‘espírito do povo’ (Volkgeist) inventivo e mesmo poético, simples e eficaz. É também ‘esse espírito do povo’ que eles viram em seguida nas cartas de liberdade e nas coleções dos costumes dos séculos XII-XV (Chiffoleau, 2006, p.335).

Independentemente de se adotar uma linha ou outra na interpretação do direito medieval, é importante reconhecer que o conceito de dignidade emerge e perpassa o sistema jurídico. É mister reconhecer também que o sistema normativo medieval só alcançou êxito numa estreita relação com o sistema político e teológico da época.

Do ideal de conciliação entre o direito comum (ius comune), ele próprio frequentemente originário do encontro entre direito romano e direito canônico, e o direito próprio (ius proprium), isto é, o direito consuetudinário de cada região, que só pode ser feito sob a autoridade de um verdadeiro soberano, emerge todo o sistema normativo do fim da Idade Média e início da época moderna (Chiffoleau, 2006, p.347).

Ernst Kantorowicz (1895-1963), em seu livro, já clássico, “Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval”, mostra como essa evolução da ciência jurídica no contexto medieval acabou se associando à teologia e construindo um dos pilares da teoria da soberania, na qual o poder político adquire um caráter perpétuo.

O princípio dos juristas da era Tudor, entretanto, definitivamente se agarrava à linguagem paulina e seu desenvolvimento ulterior: a passagem do corpus Christi paulino para o corpus ecclesiae mysticum medieval, e daí para o corpus reipublicae mysticum que era igualado ao corpus morale et politicum da república, até que, finalmente (ainda que confundido pela noção de Dignitas), surgiu o slogan dizendo que todo abade era um ‘corpo místico’ ou um ‘corpo político’ e que, consequentemente, o rei também era, ou tinha, um corpo político que ‘nunca morria’. Não obstante, portanto, certas similaridades com conceitos pagãos desvinculados, os DOIS CORPOS DO REI constituem uma ramificação do pensamento teológico cristão e, consequentemente, permanece como marco da teologia política cristã (Kantorowicz, 1998, pp.305-306).

Giorgio Agamben comentando o livro de Kantorowicz, diz o seguinte:

A dignidade emancipa-se do seu portador e converte-se em pessoa fictícia, uma espécie de corpo místico que se põe junto do corpo real do magistrado ou do imperador, da mesma forma como em Cristo a pessoa divina duplica seu corpo humano. Tal emancipação culmina no princípio, reiterado inúmeras vezes pelos juristas medievais, segundo o qual ‘a dignidade nunca morre’ (dignitas non moritur; Le roi ne meurt jamais) (2008, p.73).

A dignidade enquanto pessoa fictícia nasce de uma tradição política, pois os reis na Idade Moderna conseguiram gradativamente através de leis, assegurar a existência de seu nascimento. Várias sentenças de juízes ingleses demonstram isso.

E a causa disso é que o Rei é um Corpo político, e quando uma lei diz ‘o rei’, ou diz ‘nós’, isso é sempre dito na pessoa dele como Rei, e em sua Dignidade real e, dessa forma, inclui todos aqueles que desfrutam de sua função. […] E Rei é um nome de continuidade, que sempre perdurará como a cabeça e o governante do povo, como supõe a Lei […], e nisto o Rei nunca morre. […] porque, com ela, ele transmite o reino a outro e deixa que outro desfrute das funções, de sorte que a Dignidade sempre continue (Kantorowicz, 1998, pp. 246-247).

Se por um lado, os juristas conseguiram garantir mediante leis a perpetuação da dignidade no campo político, de outro lado, os canonistas ofereceram subsídios que a referendassem no campo teológico.

Paralelamente a dos juristas, desenvolve-se a obra dos canonistas. Eles constroem uma teoria correspondente às várias ‘dignidades’ eclesiásticas, que culmina nos tratados De dignitate sacerdotum, usados pelos celebrantes. Neste caso, por um lado, a condição do sacerdote – enquanto seu corpo durante a missa se torna o lugar da encarnação de Cristo – é elevada acima daquela dos anjos; por outro, insiste-se na ética da dignidade, ou melhor, na necessidade de que o sacerdote mantenha uma conduta à altura de sua excelsa condição (que se abstenha, portanto, da mala vita e que, por exemplo, não toque no corpo de Cristo depois de ter tocado as partes pudendas femininas). E assim como a dignidade pública sobrevive à morte na forma de uma imagem, também a santidade sacerdotal sobrevive por meio da relíquia (‘dignidade’ é o nome que, sobretudo na área francesa, indica as relíquias do corpo santo) (Agamben, 2008, p.74).

A junção dos campos político e teológico acaba criando aquilo que pode ser denominado de teologia política e o conceito de dignidade tem um papel fundamental na articulação destas duas áreas. Se por um lado, a dignidade enquanto pessoa fictícia emerge de uma longa tradição no Ocidente, é preciso reconhecer que ela sofreu transformações a partir do século XVIII, e neste sentido a obra de Immanuel Kant exerce uma poderosa influência.

Graças à construção do conceito de dignidade há pouco mencionado, nas sociedades europeias aristocráticas e estratificadas socialmente, era possível dizer que a dignidade podia ser habitualmente reconhecida nos indivíduos em virtude da função pública que ocupavam, por isso se podia falar na dignidade de uma profissão venerável, na dignidade da nobreza e dos cargos nobilísticos ou eclesiásticos. Kant rompe com essa ideia quando defende que cada ser humano é dotado de dignidade (Würde), simplesmente pelo fato de possuir uma natureza racional. É bom enfatizar que ele não foi o único e nem o primeiro a propor essa ideia, mas a colocou como o centro de sua teoria política e moral.

Kant usa de várias fontes para construir seu conceito de dignidade, entre elas pode-se perceber a influência do estoicismo, do pensamento cristão e da obra de Jean Jacques Rousseau.

Segundo um tema habitual entre os estoicos, por exemplo, é preciso atribuir um valor supremo à formação e ao uso da capacidade racional, permitindo o seu domínio e a superação das avaliações parciais e míopes suscitadas por nossas inclinações naturais e pela opinião do outro. Esses ideais de ‘vontade’ e de comportamento estão, segundo os ensinamentos dos estoicos, ao alcance de toda pessoa racional, quaisquer que sejam seu status social, seus talentos individuais e sua riqueza material (cf. a diferença que os estoicos estabeleciam entre os axían échonta- o que tem valor – e os agatá – bens -, traduzido por Sêneca como diferença entre o prêmio/pretium e a dignidade/dignitas. Em consequência disso, independentemente dos fatores externos, o homem pode e deve sempre, por meio de uma disciplina racional, levar uma vida impregnada de racionalidade e de autodomínio, uma vida digna de sua situação de ser humano vivendo em um universo que é bom, afinal, e no qual é inconveniente que ele se preocupe excessivamente com as perdas e ganhos, os sofrimentos e prazeres pessoais. É preciso atribuir um valor primordial não ao que diferencia os indivíduos, mas ao que lhes é comum: a possibilidade de fazer uso da razão nos julgamentos e comportamentos que dependem deles (o que não é o caso dos fatores externos). A dignidade é aqui um ideal, e não um dado, mas é um ideal que supera as distinções sociais convencionais (Hill, 2013, p.291).

No cristianismo, talvez a expressão mais concreta do valor e da dignidade dos seres humanos, seja encontrada em São Tomás de Aquino. O Aquinate trabalha com a ideia de que Deus dá aos humanos a razão que lhes permite compreender e seguir as leis naturais universais, fato este que os diferencia de todo o restante da obra criada, conferindo aos homens um status, por exemplo, superior aos animais. O ser humano, mesmo que corrompido pelo pecado, é ainda assim, amado por Deus de forma gratuita e a consequência moral disso, manifesta-se no princípio de cada ser humano precisa amar e respeitar aos outros seres humanos como criaturas racionais, independentemente de seu status social e suas conquistas. Percebe-se claramente que a posição de Kant está profundamente relacionada à posição cristã, mas o que o diferencia é o fato dele fundamentar suas ideias sobre dignidade fugindo das pressuposições teológicas.

Outra fonte muito importante para Kant foi a obra de Rousseau.

Kant foi igualmente influenciado pelas críticas de Rousseau, que denuncia o caráter superficial das distinções sociais em comparação com a ‘bondade’ natural do homem, assim como pela célebre distinção que Rousseau estabelece entre as ‘vontades privadas’ e a ‘vontade geral’. O que Kant acha intrinsicamente bom na natureza humana não é, todavia, o sentimento pré-social (‘não corrompido’), mas a capacidade racional que temos de impor a nós mesmos uma obrigação moral. Em sua opinião, quando os seres humanos adquirem uma maturidade suficiente para ser considerados agentes morais, são dotados de uma disposição profunda e inevitável para reconhecer a autoridade da lei moral. Expressa de maneira metafórica, essa disposição é a sublime ‘vontade legisladora’ da razão prática, cujos ‘mandamentos’ não são percebidos como sendo impostos por uma fonte ‘estrangeira’, mas como emanado de si mesmo (e de outras vontades racionais), em consideração a si mesmo e ao outro. Assim como a ‘vontade geral’ de Rousseau no domínio político, essa ‘vontade legisladora’ no domínio moral tem relação com o bem comum, e não simplesmente com os interesses particulares do agente. Quando uma pessoa fraca e imoral desobedece às exigências dessa vontade legisladora, sua vontade particular (Willkür) de satisfazer um desejo passageiro entra em conflito com sua vontade legisladora invariável (Wille), que exige um comportamento moral. É assim que uma má ação intencional reflete sempre um conflito interno à vontade e até mesmo uma ausência do verdadeiro respeito de si, o que se manifesta naturalmente por sentimentos de remorso e de insatisfação diante de si mesmo (Hill, 2013, p.291).

Como Kant necessitava fundar seu conceito de dignidade longe da esfera teológica, procurou deixar claro que a dignidade baseia-se na autonomia. A dignidade pressupõe a presença de uma vontade legisladora moral, ou como se diria hodiernamente, uma consciência, onde cada ser humano se sinta submetido a exigências morais razoáveis e internamente coercitivas. Esse valor moral particular, que poderíamos chamar de dignidade deve ser atribuído a todos os agentes morais, envolvendo inclusive aqueles que através de suas ações, tornam-se indignos. Em sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, ocorre a formulação do imperativo categórico que melhor exprime essa relação, a saber, “age de tal forma que trates a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais simplesmente como um meio”.

Dignidade então para Kant é uma espécie de valor invariável atribuído a pessoas, também podendo ser afirmado que a dignidade possui um valor incondicional e incomparável, isto equivale a dizer que a dignidade de uma pessoa independe de seu estado social, da sua popularidade ou da sua utilidade para os outros.

Em sua Metafísica dos costumes, e enquanto aborda sistematicamente diversas questões políticas e morais, Kant atribui um papel determinante à noção de dignidade humana, ou de humanidade, como um fim em si. Por exemplo, embora afirme que uma pessoa pode perder seu status cívico (ou sua ‘dignidade’ de cidadão) se cometer delitos graves, Kant insiste que essa pessoa não se pode ver privada de todo o respeito enquanto ser humano. Kant acrescenta que, ao praticar a mentira, o alcoolismo e diversos delitos pessoais, a pessoa age de uma maneira que não convém à sua dignidade de ser humano e, zombando dos outros como se fossem seres que nada valem, ela ofende a dignidade do outro (Hill, 2013, p.292).

Essa caminhada histórica e filosófica do conceito de dignidade permite que as legislações modernas de direito internacional, principalmente depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, abordem a dignidade como um valor profundamente associado aos direitos humanos.

A dignidade do ser humano deve ser resguardada independentemente de suas posições na sociedade, ou da utilidade, e é neste espírito que ela aparece na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Pode-se afirmar de maneira contundente que toda ética dos direitos humanos emana diretamente do princípio da dignidade da pessoa humana. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art.1º, inciso III, registra a expressão “dignidade da pessoa humana”. O texto é o seguinte: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana” (Constituição da República Federativa do Brasil, 2012). Este metaprincípio constitucional é a base positiva e racional que acolhe toda discussão e construção normativa dos direitos fundamentais no Brasil.

Dessa forma, o respeito à dignidade da pessoa humana é o primeiro motor de uma cultura constitucional republicana que tem no primado dos direitos fundamentais a orientação de seu modo de proceder à interpretação constitucional, de onde deriva toda a aplicação do direito pátrio. Isso pressupõe o entendimento de que a condição humana deve ser amplamente reconhecida e amparada, e esse escudo social da constituição é de determinante valor para o induzimento social ao respeito à dignidade que os direitos fundamentais procuram contornar (direito à vida, direito de ir e vir, direito à livre consciência, direito à educação, direito ao trabalho, direito à participação política, direito de se expressar etc.) (Bittar, 2016, pp.74-75).

Realizado este inventário histórico e filosófico do conceito de dignidade, a proposta deste trabalho, a partir de agora, é pensar a precarização das relações trabalhistas no Brasil tomando por base alguns recortes epistemológicos da chamada Teoria Crítica. Para tal, as ideias de Axel Honneth, principalmente aquelas ligadas ao ideal de reconhecimento serão trazidas à tona e servirão como suporte para pensarmos a situação das relações de trabalho no país. A reforma trabalhista de 2017 foi uma mudança significativa na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) instrumentalizada pela lei n. 13.467 de 2017. Logo depois do impeachment de 2016, o Ex-Presidente da República, Michel Temer, propôs um projeto de lei que começou a tramitar na Câmara dos Deputados no final daquele ano, sendo aprovado nas duas casas legislativas brasileiras no ano seguinte. A lei foi sancionada em 13 de julho e entrou em vigor em 11 de novembro de 2017. Entre outras mudanças, a reforma instituiu o trabalho intermitente no Brasil e o fim da obrigatoriedade da contribuição sindical.

O objetivo da reflexão que ora se apresenta está estruturado em dois momentos, o primeiro deles pretende expor o pensamento de Axel Honneth no contexto da Teoria Crítica, para isto, alguns comentaristas e principalmente o pensamento do próprio autor, ganharão destaque. Num segundo momento, haverá a necessidade de colocar em diálogo o conceito de luta por reconhecimento, principalmente destacando a noção de dignidade da pessoa humana e as relações trabalhistas no Brasil, após a já mencionada reforma de 2017.

2. AXEL HONNETH E A LUTA POR RECONHECIMENTO

A Teoria Crítica, na clássica definição dada por Horkheimer, apresentada em Teoria Tradicional e Teoria Crítica, ainda na década de 1930, deve ser teórico-explicativa, pois precisa dar conta de descrever as relações causais que permitam explicar/compreender as relações que envolvem os fatos e os processos sociais, mas precisa ser também crítico-normativa, na perspectiva do dever ser, já que este está embutido potencialmente na realidade social.

A Teoria Tradicional teve seu avanço ligado às ciências naturais, como a matemática e a física.

Horkheimer explica que o conceito tradicional de teoria foi definido, de um modo geral, como uma sinopse de proposições ligadas entre si, das quais pode deduzir as demais teorias e cuja validade consiste na sua correspondência com os fatos e em leis de causa e efeito. Se, ao aplicar tais leis em experimentos particulares houver discrepância, deve-se saber que há algo errado com a teoria ou com a experiência. Caso contrário, se ocorrer o fenômeno esperado, a teoria é confirmada. O método dedutivo é o que prevalece na matemática e acaba estendido para todas as ciências, inclusive as ciências humanas, não sem distinção (Carnaúba, 2010, pp.196-197).

A Teoria Crítica, por sua vez, nasce rompendo com tais paradigmas, pois se propõe a reforçar a mediação entre teoria e práxis. Ela tem por finalidade fazer um diagnóstico crítico de época, se propõe a realizar um diagnóstico do tempo presente, que sendo mutável, exige uma renovação constante entre o campo teórico e o campo prático, isto significa que as demandas sociais, políticas e econômicas de cada tempo exigirão do teórico crítico, respostas novas para os desafios daquele momento específico. A Teoria Crítica também tenta criar uma orientação para a emancipação dos seres humanos, além de propor um comportamento crítico frente aos desafios que surgem no contexto histórico.

As novas questões colocadas pelos debates atuais na filosofia política normativa, especialmente aquelas que apontam para a busca de uma sociedade mais justa no contexto das lutas contemporâneas, na esteira do reconhecimento social e jurídico das identidades particulares e das formas de vida culturais, apresentam-se como grandes oportunidades para que a Teoria Crítica continue sua marcha de reflexões e atualizações frente às demandas novas de cada época.

Sem dúvida, o pensamento de Axel Honneth serve muito bem a este propósito. Sua crítica à teoria de Habermas é um ponto de grande importância nos debates epistemológicos da Teoria Crítica, pois o leva a formular sua própria concepção de Teoria Crítica, cujos pressupostos teórico-explicativos e, também, os crítico-normativos estão ancorados no processo social de construção intersubjetiva da identidade pessoal (no caso, pessoal e coletiva).

Honneth entende que Habermas construiu sua teoria mostrando avanços significativos em relação a Horkheimer e Adorno, pois conseguiu oferecer subsídios para superar o “déficit normativo” que está presente nos pioneiros da Teoria Crítica, contudo, um outro tipo de déficit ainda permaneceu, a saber, o “déficit sociológico” da Teoria Crítica. Pensar os fundamentos normativos da crítica com base na dinâmica social é algo essencial, principalmente aqueles que capturem as experiências de injustiça e consequentemente os conflitos advindos de tais experiências.

A ocorrência emancipatória na qual Habermas ancora criticamente a perspectiva normativa de sua Teoria Crítica absolutamente não se assenta nas experiências morais dos sujeitos participantes enquanto tal, pois estes experimentam um dano àquilo que nós podemos observar como suas expectativas morais, como seu “moral point of view”, não como estreitamento de normas de fala intuitivamente dominadas, mas como ferimento de demandas por identidade levantadas durante a socialização (Honneth, 2018, p.30).

Para Honneth, a distinção feita por Habermas entre “sistema” e “munda da vida” é ambígua, pois oscila entre uma distinção meramente analítica e uma distinção real entre as esferas sociais de ação. É como se Habermas ao aceitar o desacoplamento entre sistema e mundo da vida, tivesse feito concessões em demasia à teoria dos sistemas, o que o teria levado à incapacidade de pensar os próprios sistemas e a sua lógica instrumental como fruto dos conflitos sociais. Este ponto frágil da teoria habermasiana, permitiu a Honneth concluir que os fenômenos sociais e o processo de racionalização do mundo da vida aparecem em tal teoria como algo que “ocorre pelas costas dos sujeitos participantes; seu curso não é nem levado a cabo por intenções individuais, nem é claramente dado à consciência de um único indivíduo” (Honneth, 2018, p.30).

A Teoria Crítica precisa ter um compromisso real com as experiências de injustiças sociais de sujeitos encarnados, na perspectiva de Honneth e, é exatamente aí que teoria habermasiana precisa ser aprimorada, pois nela a dimensão do conflito parece ter sido deixada de lado. Em Honneth, a base de interação social é o conflito e a gramática moral deste conflito é a luta por reconhecimento.

Fosse o paradigma da comunicação expandido dessa maneira para além do quadro teórico-linguístico, vem à vista, no mais, em que medida cada lesão dos pressupostos normativos da interação deve se assentar diretamente nos sentimentos morais dos participantes: uma vez que a experiência do reconhecimento representa uma condição na qual se pendura o desenvolvimento da identidade humana como um todo, à sua denegação, isto é, ao desrespeito, acompanha necessariamente a sensação de uma ameaçadora perda da personalidade. Diferentemente de Habermas, existe aqui uma forte conexão entre os ferimentos que são infligidos à imputação normativa da interação social e as experiências morais pelas quais os sujeitos passam em suas comunicações cotidianas: fossem feridas aquelas condições, quando a uma pessoa é negado o merecido reconhecimento, a isso então a concernida reage, em geral, com sentimentos morais que acompanham a experiência do desrespeito, isto é, vergonha, raiva e indignação. Dessa forma, finalmente, um paradigma comunicativo que é formado não teórico-linguisticamente, mas com relação a uma teoria do reconhecimento também pode fechar o espaço que Habermas deixara em aberto em seu desenvolvimento do programa horkheimeriano, pois aquelas sensações de injustiça que acompanham formas estruturais do desrespeito representam um fato pré-científico ao qual uma crítica das relações de reconhecimento pode socialmente referir sua própria perspectiva teórica (Honneth, 2018, pp.32-33).

Na perspectiva de Honneth, a Teoria Crítica conseguiria fazer um diagnóstico melhor da realidade na qual estamos inseridos, se em vez de focar na tensão entre sistema e mundo da vida, olhasse para as causas responsáveis pelas violações das condições de reconhecimento. “Honneth substitui a reconstrução habermasiana da estrutura normativa da ação comunicativa pela reconstrução da experiência de injustiça” (Bressiani, 2020, p.26).

Este deslocamento que visa enxergar no mundo real, as pessoas vitimadas pela injustiça tentando dar-lhes vez e voz acaba por desembocar em aspectos morais que necessariamente não estão na órbita nem das classes mais altas e nem no horizonte de uma elite intelectual que aparentemente desprezou a lógica dos conflitos sociais.

Honneth defende então que há uma grande diferença entre as ideias básicas de justiça formuladas e defendidas pela vanguarda política e por especialistas da cultura burguesa, por um lado, e a moralidade social das classes dominadas, que possui um caráter fortemente fragmentado, por outro. Enquanto as classes mais altas conseguem articular suas demandas em um sistema coerente de valores e crenças, conferindo a ele uma aparência de universalidade e desconexão com experiências específicas, as classes mais baixas costumam fazer demandas menos sistemáticas, mais próximas das experiências negativas e específicas de injustiça que estão em sua origem. Para Honneth, mesmo que não sejam articuladas em uma concepção positiva de justiça, essas demandas expressam a consciência da injustiça das classes dominadas, que está ancorada em padrões morais complexos e possui potenciais de transformação social. Estes, porém, ainda não teriam sido sistematizados (Bressiani, 2020, p.26).

A tese de livre-docência de Axel Honneth, acabou sendo publicada com o título: “Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais”, nesta obra, o autor tenta “desenvolver os fundamentos de uma teoria social de teor normativo partindo do modelo conceitual hegeliano de uma ‘luta por reconhecimento’” (Honneth, 2009, p.23).

Axel Honneth apresenta uma teoria crítica da sociedade, que pretende ser tanto teórico-explicativa quanto crítico-normativa.

A perspectiva explicativa tem por finalidade apresentar a gramática dos conflitos e a lógica das mudanças sociais, já a perspectiva normativa procura fornecer um padrão que seja capaz de identificar as patologias sociais e avaliar os movimentos sociais em cada tempo histórico. O padrão crítico-normativo é explicitado por Honneth quando diz que:

[…] é preciso clarificar primeiramente o status metodológico que reivindica uma teoria normativa que deve descrever o ponto final hipotético de uma ampliação das relações de reconhecimento: parece-me correto falar aqui de uma concepção formal de vida boa ou, mais precisamente, de eticidade (Honneth, 2009, pp.269-270)

Apoiando-se no jovem Hegel, sobretudo nos escritos do período de Frankfurt e Jena (“Maneiras científicas de tratar o direito natural”; “Sistema de eticidade”; “Realphilosophie”), todos anteriores à “Fenomenologia do espírito”, “com cujo término Hegel encerra sua atividade de escritor de Jena, o modelo conceitual de uma ‘luta por reconhecimento’ já volta a perder seu significado teórico marcante” (Honneth, 2009, p.30), Honneth destaca que os indivíduos só podem construir suas identidades pessoais quando são reconhecidos intersubjetivamente. No contexto de uma comunidade, o reconhecimento é um fator essencial para que o indivíduo possa ter uma relação positiva consigo mesmo, quando tal reconhecimento não ocorre, passa-se a uma luta por reconhecimento na qual os indivíduos procuram estabelecer ou criar condições de reconhecimento recíproco. Neste sentido, é que se pode dizer que Honneth, inspirado em Hegel, afirma que as lutas sociais têm uma gramática moral, pois há um fundo moral que motiva as lutas por reconhecimento. “A reconstrução sistemática das linhas argumentativas de Hegel, […] conduz a uma distinção de três formas de reconhecimento, que contêm em si o respectivo potencial para uma motivação dos conflitos”. (Honneth, 2009, p.23).

As três dimensões de reconhecimento são: “amor/amizade”; “relações jurídicas”; “solidariedade social”. A primeira esfera, do “amor/amizade”, é mais emotiva, é ela que permite ao indivíduo desenvolver uma confiança em si mesmo, algo fundamental para os seus projetos de autorrealização. Na segunda dimensão, estão associadas as “relações jurídicas”, que se vinculam ao campo do direito, essa esfera jurídico-moral garante os direitos que permitem que o indivíduo seja reconhecido como autônomo e moralmente responsável pelos seus atos, algo que possibilita o desenvolvimento dos sentimentos de autorrespeito. A terceira esfera ou dimensão é a da “solidariedade social”, que está vinculada a uma comunidade que cultiva seus valores morais, pois além do desenvolvimento da autoconfiança e do sentimento de autorrespeito, o indivíduo precisa também que seus projetos de realização pessoal possam ser objetos de um respeito solidário no contexto interno de uma comunidade de valores.

Apesar de reconhecer o valor da tese hegeliana, Honneth entende que ela precisa ser atualizada porque ainda está inserida num contexto metafísico.

[…] sua reflexão permanece ligada à pressuposição da tradição metafísica, visto que não considera a relação intersubjetiva como um curso empírico no interior do mundo social, mas a estiliza num processo de formação entre inteligências singulares. (Honneth, 2009, p. 120)

Para que os padrões hegelianos de reconhecimento sejam eficazes dentro do contexto da análise social, Honneth recorre à psicologia social de George Herbert Mead (1863-1931), tendo em vista “que seus escritos permitem traduzir a teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica”. (Honneth, 2009, p.123)

Aprimorando a teoria hegeliana com os estudos de Mead, Honneth procura mostrar que os indivíduos desenvolvem, em cada forma de reconhecimento, uma relação positiva consigo mesmos. Na dimensão do reconhecimento baseado no amor/amizade floresce a autoconfiança, na dimensão jurídica, brota o autorrespeito, na dimensão da solidariedade social, vem à tona a autoestima. Quando há uma ruptura ou violação dessas condições o que se tem é o desrespeito social que leva às lutas sociais e aos conflitos políticos. Ele diz o seguinte: “às três formas de reconhecimento correspondem três tipos de desrespeito, cuja experiência pode influir no surgimento de conflitos sociais na qualidade de motivo de ação”. (Honneth, 2009, p.24)

Para cada forma de reconhecimento há uma forma de desrespeito. A primeira forma de desrespeito que fere a dimensão de reconhecimento baseado no amor e na amizade é a violência física e psíquica.

Os maus-tratos físicos de um sujeito representam um tipo de desrespeito que fere duradouramente a confiança, aprendida através do amor, na capacidade de coordenação autônoma do próprio corpo; daí a consequência ser também, com efeito, uma perda da confiança em si e no mundo, que se estende até as camadas corporais do relacionamento prático com outros sujeitos, emparelhada com uma espécie de vergonha social. (Honneth, 2009, p.215)

A segunda forma de desrespeito manifesta-se na privação de direitos e na exclusão social, que atinge os indivíduos como membros de uma comunidade político-jurídica.

[…] temos de procurar a segunda forma naquelas experiências de rebaixamento que afetam seu autorrespeito moral: isso se refere aos modos de desrespeito pessoal, infligidos a um sujeito pelo fato de ele permanecer estruturalmente excluído da posse de determinados direitos no interior de uma sociedade. (Honneth, 2009, p.216)

Numa comunidade de valores morais, na qual a solidariedade social é uma forma de reconhecimento, o desrespeito manifesta-se na depreciação dos modos de vida individuais ou coletivos.

A ‘honra’, a ‘dignidade’ ou, falando em termos modernos, o ‘status’ de uma pessoa, refere-se, como havíamos visto, à medida de estima social que é concedida à sua maneira de autorrealização no horizonte da tradição cultural; se agora essa hierarquia social de valores se constitui de modo que ela degrada algumas formas de vida ou modos de crença, considerando-as de menor valor ou deficientes, ela tira dos sujeitos atingidos toda a possiblidade de atribuir um valor social às suas próprias capacidades. A degradação valorativa de determinados padrões de autorrealização tem para seus portadores a consequência de eles não poderem se referir à condução de sua vida como a algo que caberia um significado positivo no interior de uma coletividade; por isso, para o indivíduo, vai de par com a experiência de uma tal desvalorização social, de maneira típica, uma perda de autoestima pessoal, ou seja, uma perda de possibilidade de se entender a si próprio como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características. (Honneth, 2009, pp. 217-218)

Apesar de ter mapeado a gramática dos conflitos morais, Honneth entende que nem todas as esferas de reconhecimento contêm em si, de modo geral, o tipo de tensão moral que pode colocar em marcha conflitos ou querelas sociais, pois uma luta só pode ser caracterizada como social na medida em que os objetivos dela são de ordem geral, indo além das intenções individuais. Deixando a forma de reconhecimento do amor/amizade de lado, Honneth diz que:

[…] as formas de reconhecimento do direito e da estima social já representam um quadro moral de conflitos sociais, porque dependem de critérios socialmente generalizados, segundo o seu modo funcional inteiro; à luz de normas como as que constituem o princípio da imputabilidade moral ou as representações axiológicas sociais, as experiências pessoais de desrespeito podem ser interpretadas e apresentadas como algo capaz de afetar potencialmente também outros sujeitos. (Honneth, 2009, p.256)

Como é possível perceber, é na relação jurídica e na comunidade de valores morais, que as finalidades individuais estão abertas para as universalizações sociais. Vale ressaltar que os conflitos sociais nascem de experiências morais que decorrem da violação das formas de reconhecimento. Nos últimos tempos, no Brasil, não somente nele, mas nosso enfoque será em nosso país, a classe trabalhadora tem sido desrespeitada tanto no aspecto jurídico quanto na comunidade de valores morais, num processo que vem se desenhando desde 2016/2017, com a já citada reforma trabalhista. A precarização do trabalho no Brasil afeta a dignidade do trabalhador impedindo-o de ser reconhecido como alguém que possui valor.

3. A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO BRASIL E A NECESSIDADE DE VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

No dia 11 de novembro de 2022, a reforma trabalhista completou cinco anos em vigor, e ao contrário do que se dizia na época de sua implementação, não houve um crescimento de postos de trabalho no país. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) o desemprego hoje está maior. Em termos de comparação, verifica-se que no trimestre que terminou em julho de 2021, a taxa de desocupação ficou em 13,7%. Este número é quase dois pontos percentuais a mais que os 11,8% registrados no último trimestre de 2017, ano em que a reforma trabalhista entrou em vigência. No período em questão, o total de desempregados subiu de 12,3 milhões para 14,1 milhões. Na época da campanha pela aprovação da reforma, de forma ufanista e irresponsável, o governo chegou a falar na criação de dois milhões de vagas em dois anos, e seis milhões em dez anos.

Só para se ter uma ideia, nos anos de 2010 e 2011, foram criados respectivamente, 2.543.177 e 1.944.560 de vagas de trabalho no Brasil, os números de hoje, após a reforma trabalhista, estão muito aquém disso. Em 2018 foram criadas 529.554 vagas e, no ano seguinte, 644.079, sendo que em 2020, o saldo foi negativo, ficando em -558.597 vagas de emprego fechadas. Estes dados são do Ministério da Economia. Com a reforma trabalhista, o que se observa na prática é um processo de precarização dos postos de trabalho formais e aumento do número de trabalhadores informais.

A reforma trabalhista ainda criou a modalidade do trabalho intermitente, que é uma prestação de serviços em períodos alternados, em que o trabalhador é remunerado de forma proporcional, somente pelo período trabalhado. A demissão por acordo foi outra novidade trazida pela reforma trabalhista. Nesta modalidade, o empregado que pedir para se desligar da empresa poderá negociar com o empregador o direito de receber metade da multa dos 40% sobre o saldo do FGTS e metade do aviso prévio. O empregado poderá ainda movimentar até 80% do valor depositado na conta do FGTS. No entanto, quem optar por tal modalidade não terá direito ao seguro-desemprego.

Além destas mudanças todas, ainda há uma burocratização na busca de direitos por parte dos trabalhadores, que ao entrarem na justiça contra o empregador, correm o risco de terem que arcar com os honorários advocatícios da parte vencedora, em caso de derrota. Houve também uma tentativa de desmobilização dos trabalhadores minando as fontes de financiamento dos sindicatos. Vale lembrar que antes da reforma, o recolhimento da contribuição dos trabalhadores aos sindicatos era obrigatório e descontado na folha de pagamento. O valor era equivalente ao salário de um dia de trabalho e era direcionado para a manutenção do sindicato da categoria. Com a nova lei, o pagamento da contribuição sindical deixou de ser obrigatório. A empresa só poderá fazer o desconto com a permissão do empregado. Com isso, a arrecadação sindical (das centrais, das confederações, federações e dos sindicatos) caiu de forma significativa, afetando a representatividade dos trabalhadores e interferindo decisivamente na luta por melhores condições de trabalho para a classe trabalhadora.

Este é o cenário de precarização do trabalho no Brasil. Dentro desse contexto, a luta por reconhecimento é algo de suma importância e se liga diretamente ao conceito de dignidade.

É importante recapitular que para Honneth, a segunda forma de desrespeito manifesta-se na privação de direitos e na exclusão social, atingindo os indivíduos como membros de uma comunidade político-jurídica. A reforma trabalhista em vigor no Brasil desde 2017, passou pela burocracia estatal, teve amplo apoio de setores conservadores e empresariais e foi vendida por setores midiáticos como a solução para a crise do emprego no país, inclusive conseguindo apoio de alguns setores trabalhistas, mas na prática, para o trabalhador comum, ela se materializou como uma experiência de rebaixamento que afeta o autorrespeito moral, tendo em vista que muitos trabalhadores foram excluídos da posse de direitos trabalhistas que haviam sido conquistados com muita luta ao longo de muitos anos. Mais uma vez o que se viu foi uma agenda neoliberal sendo emplacada com a conivência dos poderosos e atingindo frontalmente a classe trabalhadora.

Entre as muitas mudanças colocadas em funcionamento pela reforma, talvez a pior de todas seja o desmonte das possibilidades de organização da classe trabalhadora em sindicatos, pois, isso nos leva diretamente à terceira forma de desrespeito apontada por Axel Honneth, aquela em que numa comunidade de valores morais, a solidariedade social é deixada de lado, ocorrendo uma verdadeira depreciação dos modos de vida individuais e coletivos. Ao promover o desmonte das organizações sindicais, a reforma trouxe à tona uma situação perversa para a classe trabalhadora, pois os trabalhadores não conseguem enxergar em outros trabalhadores, seres iguais. A degradação valorativa dos padrões de autorrealização traz como consequência a morte de um sonho coletivo, fazendo com que o indivíduo atomizado sinta a experiência da desvalorização social, perdendo a autoestima pessoal e a possibilidade de se entender como um ser estimado por suas propriedades e capacidades características. O trabalhador é atingido em sua dignidade como pessoa, pois o trabalho deixa de ser visto como algo que traz a possibilidade de reconhecimento no interior de uma comunidade e passa a ser um favor que o empregador promove em direção da classe trabalhadora. Numa sociedade assim, de precarização do trabalho e desmonte do poder de organização da classe trabalhadora, o discurso do “empreendedorismo” aparece como tábua de salvação, o que na prática significa a falência do modelo capitalista em vigor.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quadro apresentado acima é bastante desolador, mas ao mesmo tempo, segundo a lógica da gramática moral dos conflitos sociais descrita por Honneth, está na compreensão do fenômeno, a possiblidade de superá-lo, não de forma individualizada, mas de maneira coletiva, na expectativa de resistir e ao mesmo tempo de superar o desrespeito que se abateu sobre o grupo atingido. Os sentimentos morais, quando percebidos coletivamente e articulados numa linguagem compreensiva para todos os envolvidos, apresentam um potencial enorme para motivar as lutas sociais.

Sentimentos de lesão dessa espécie só podem tornar-se a base motivacional de resistência coletiva quando o sujeito é capaz de articulá-los num quadro de interpretação intersubjetivo que os comprova como típicos de um grupo inteiro; nesse sentido, o surgimento de movimentos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permite interpretar as experiências de desapontamento pessoal como algo que afeta não só o eu individual mas também um círculo de muitos outros sujeitos. (Honneth, 2009, p.258)

É da luta por reconhecimento, da compreensão sobre aquilo que gera o desrespeito e as injustiças sociais é que se poderá chegar a uma concepção formal de eticidade qualificada como vida boa. É neste carreadouro que os trabalhadores vitimados pela atual fase do capitalismo precisam estar, pois somente compreendendo a lógica perversa que os atinge, será possível pensar em mudanças.

A noção de dignidade humana e a constituição econômica através do trabalho e das condições de trabalho, pautadas numa perspectiva coletiva, precisam ser discutidas por patrões e empregados no Brasil, pois o bom andamento da democracia e do Estado de Direito passam por aí.

Democratizar a economia significa romper com a influência dos detentores do poder econômico privado, democratizando-o, ou seja, significa distribuí-lo. O cidadão deve ser, ao mesmo tempo, um cidadão do Estado e um cidadão da economia. A economia deve deixar de ser privada, para ser efetivamente publicizada, ou seja, pertencer a todos e funcionar de acordo com o interesse coletivo. A liberdade e a igualdade políticas da democracia representam também uma exigência material de igualdade e a sua sobrevivência depende de um maior grau de homogeneidade social.  Como já alertava Hermann Heller, não é possível a garantia de sobrevivência da democracia em um país em que imensas parcelas do povo não se reconhecem mais no Estado, pois foram por ele abandonadas. A homogeneidade social é, assim, uma forma de integração política democrática. (Bercovici, 2007, p. 462)

A dignidade humana é um bem e uma conquista da Modernidade, a luta por ela precisa estar na pauta da classe trabalhadora, que ao se rearticular para romper com as imposições do grande capital, poderá também redescobrir sua identidade e sua potencialidade para buscar a justiça social e condições melhores para todas as pessoas. A busca pela dignidade humana passa pela luta por reconhecimento.

REFERÊNCIAS

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[1] Doutor em Filosofia pela UNICAMP, Doutor em Ciências da Religião pela PUCSP. Mestre em Filosofia pela PUCCAMP. Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Bacharel e Licenciado em Filosofia pela USP; Licenciado em História pela UNAR. ORCID: 0000-0002-8464-983X. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5010089030033594.

[2] Pós-Doutor em Direito (USP). Pós-Doutor em Economia (UNESP-Araraquara). Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Especializações em Direito Constitucional e Direito Processual Civil (PUC-Campinas), em Didática e Prática Pedagógica no Ensino Superior (Centro Universitário Padre Anchieta),Graduação em Direito (PUC-Campinas). ORCID: 0000-0001-9151-5699. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4101655062938301.

Enviado: 01 de maio, 2023.

Aprovado: 24 de maio, 2023.

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Gerson Leite de Moraes

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