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Rancière e a crise na estrutura democrática contemporânea

RC: 141748
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/estrutura-democratica

CONTEÚDO

RESENHA

LUCAS, Luis Felipe Garcia [1]

LUCAS, Luis Felipe Garcia. Rancière e a  crise na estrutura democrática contemporânea. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 03, Vol. 02, pp. 40-49. Março de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/estrutura-democratica, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/filosofia/estrutura-democratica

RESUMO 

Busca-se, através desta resenha, contextualizar a percepção que o pensador Jacques Rancière tem sobre a estrutura política contemporânea e o conceito de democracia. O texto atenta-se em apresentar a crítica que o autor faz sobre as atuais democracias e o modo que os governos demonstram e defendem suas estruturas. O pensador francês mostra-se enfático ao afirmar que a responsabilidade do afastamento dos entes do meio público é resultado de uma ação dos próprios governos, que, para terem maior liberdade, incentivam as massas a viverem apenas sobre a busca do individual e privado, ação essa que geraria aquilo que Rancière chama de ódio à democracia.

Palavras-chave: Jacques Rancière, Democracia, Política contemporânea.

1. INTRODUÇÃO 

Este texto tem por objetivo discutir a perspectiva do filósofo Jacques Rancière sobre a estrutura política, o modo que Rancière descreve o ato político e a ação democrática[2], de forma que possam vir a ser confundidas empírica e ontologicamente. Um ponto de destaque é como o autor irá criticar a estrutura contemporânea de política, na qual os governos são os maiores incentivadores da ação individual e o afastamento do ente do meio público (RANCIÈRE, 2014). Dessa maneira, os Estados modernos, marcados por campanhas democráticas, sustentam sua estrutura oligárquica de poder oculta em meio a uma falsa imagem de democracia. Rancière propõe uma recuperação do conceito de democracia em conjunto com a superação do sentido negativo do conceito de populismo em defesa do individual em meio ao público. A recuperação da essência da política é o método de confrontar a crise da estrutura democrática contemporânea.

2. DESENVOLVIMENTO

Em um primeiro momento, é essencial entender que Rancière relaciona a política, ou o ato político, com a democracia. Na fala do próprio autor : “[…] A política é a atividade que tem por princípio da igualdade, e o princípio de igualdade transforma-se em repartição das partes de uma comunidade ao modo de um embaraço […]” (RANCIÈRE, 1996).

Em Rancière, a democracia nada mais é do que a expressão pura da ação política, está no ato de dar voz aos sem voz, ou a parte dos “sem-parte”. O fundamento da política, por consequência, se encontra no conflito entre essas esferas individuais no meio público, em seu litígio social. É importante entender que, ao falar da relação entre política e democracia, em Rancière, é possível que ocorra a confusão ontológica entre ambas, ideia essa que o pensador não apoia, muito pelo contrário, a relação entre a estrutura política e a política em si vem da causalidade, não dá relação ontológica entre os conceitos. Democracia é o efeito do ato político, não a sua arché (ARDITI, 2019), é o espaço de interação entre os sujeitos sociais. O autor irá identificar a política como a possibilidade de fala e reivindicação de sua parte no meio social (RANCIÈRE, 2001).

Rancière fundamenta seu pensamento na perspectiva de que a sociedade é um grande espetáculo teatral, do qual os homens participam interpretando papéis sociais. Cada indivíduo tem sua função preestabelecida com base em seu “nome”, como diz Rancière:

Isso se deve simplesmente ao fato de que as partes não existem anteriormente à declaração do dano. O proletariado não tem, antes do dano que seu nome expõe, nenhuma existência como parte real da sociedade. Assim, o dano que ele expõe não poderia ser regulado sob a forma de um acordo entre partes. Ele não pode ser regulado porque os sujeitos que o dano político põe em jogo não são entidades às quais ocorreria acidentalmente esse ou aquele dano, mas sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano. (RANCIÈRE., 1996, p. 53).

Ao falar da estética na política, Rancière não tem por objetivo uma “esteticalização da política”, mas, sim, uma ressignificação da relação entre aesthetic e política. Passaría-se a ver a ação da política fundamentada sobre o dissenso, porém, não em um conflito de valores ou interesses, mas de “mundos concorrentes” (RANCIÈRE, 2011). O interessante dentro da perspectiva do pensador francês é que esses “mundos concorrentes” podem ser entendidos como espaços ou partes, caracterizando, assim, um litígio que busca o reconhecimento por parte daqueles que não a possuem, estando presos à obrigação do nominalismo social.

Ao pensar na figura de um açougueiro ou carteiro, atores que cumpririam sua função dentro de seus ambientes de trabalho, no nome de cada um, encontra-se, também, a sua essência teatral e papel social. O ponto que chama a atenção é quando o autor fala da política como um palco à parte, o qual permite que os homens participem do meio social além do seu próprio nome, ou função. Estaria na política a oportunidade dos entes se desvencilharem do seu “nome” e interpretarem outra função[3] ou lutarem para ter reconhecimento no palco. Pensando sobre o carteiro, que antes tinha direito de falar sobre aquilo que representava seu papel, agora, no palco político, ele pode falar, também, por outro. Alguém que não possui uma função específica pode falar sobre e até tomar uma posição no meio político. Dessa maneira, a política se caracteriza como um ato, e não um ambiente. Segundo o citado autor:

Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo “entre” eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada. (RANCIÈRE, 1996, p. 40-41, grifo nosso).

A democracia mostra-se positiva ao ser relacionada à ação política, caracterizada como causa da segunda, porém, mostra- se negativa ao sair da ação e tornar-se um ambiente no qual não há mais luta ou dissenso. Rancière conclui que a política é a constante disputa entre as partes:

Uma greve não é política quando exige reformas em vez de melhorias ou quando ataca as relações de autoridade em vez da insuficiência dos salários. Ela o é quando reconfigura as relações que determinam o local de trabalho em sua relação com a comunidade. O lar pôde se tornar um lugar político, não pelo simples fato de que nele se exercem relações de poder, mas porque se viu arguido no interior de um litígio sobre a capacidade dás mulheres à comunidade (RANCIÈRE, 1996, p. 46).

Desse litígio, ou disputa social, vem a ação política. É importante destacar que não é apenas o ato em si que ganha a qualidade de político, mas também o impacto posterior que virá dele. Rancière destaca o exemplo das greves operárias (RANCIÈRE, 2012), nas quais a característica de ato político não se encontra no protesto por mudanças, mas quando afetam a configuração estabelecida como “normal” (RANCIÈRE, 2011). O ato é político quando interferem na visão do outro sobre aquele que fala, o fazendo ser compreendido, não apenas ouvido. É comum ver atos de protestos que acabam por não resultarem nas mudanças exigidas. Pensando na perspectiva de Rancière, essa falha ocorre pelo fato que aquele que ouvia as exigências não compreendia aquilo que o outro dizia, mesmo ambos falando a mesma língua. Pensa-se da seguinte forma: um grupo de operários de uma empresa de peças automotivas entra em greve, pois suas condições de trabalho são precárias, mas o dono da empresa julga que aquilo é o ideal para a função e não acata às exigências. O que ocorreu é que o empresário ouvia suas reclamações, porém, não entendia os motivos pelos quais estavam reclamando. Suas vozes soavam como latidos de uma matilha perante o dono, enquanto este não se inquieta, pois já os alimenta diariamente. Política é se fazer reconhecido e compreendido pelo outro[4]. Outro exemplo interessante de se pensar seria o “protesto silencioso” no período das lutas por direitos nos Estados Unidos, quando as pessoas negras, que sofriam segregação, eram proibidas de sentar-se nos locais reservados para os brancos, como os assentos nos ônibus ou em restaurantes. Para reafirmar sua igualdade e exigir o reconhecimento desta, os manifestantes se posicionavam de forma a ocupar estes espaços, sentando-se nos lugares que eram destinados aos brancos. Dessa forma, os ativistas negros se mostravam iguais em capacidade, exigindo serem reconhecidos desta forma.

A perspectiva do litígio social como a base do ato político é uma visão compartilhada entre Mouffe e Rancière. Mouffe mantém viva a discussão sobre como a estrutura política democrática deve ser baseada na disputa entre as partes do meio social. A autora faz referência à visão contemporânea, que acredita que uma sociedade saudável é aquela que extinguiu todo tipo de antagonismo. Esse ponto também sofre duras críticas de Rancière, por impor uma sociedade homogênea. A autora propõe que uma sociedade deve portar em si o dissenso, ou o “pluralismo agonístico”. Segundo a pensadora:

Tal privilegio ao consenso é, na minha visão, prejudicial à democracia porque tende a silenciar vozes dissidentes, e é por isso que acredito que uma abordagem que revele a impossibilidade de estabelecer um consenso sem exclusão é de fundamental importância para a política democrática. (MOUFFE, 2003, p.19).

A autora demonstra sua semelhança com Rancière ao concordar que a democracia exige que haja o litígio social em seu meio, caso contrário, a mesma não pode ser vista como uma estrutura que promove a igualdade das partes sociais, pois, desta forma, qualquer governo que não está alicerçado sobre essa busca não pode se dizer portador da democracia. Dentro dessa perspectiva, virá as críticas de Rancière aos estados contemporâneos e às falhas nas “democracias”, estas que se tornaram objetos de ódio no meio social(RANCIÈRE, 2014). Rancière escreve como os governos atuais perderam o direito de serem chamados de democracias, afirmando que a atual realidade política é imposta por governos oligárquicos. Nas palavras do autor:

A ‘sociedade democrática’ é apenas uma pintura fantasiosa, destinada a sustentar tal ou tal princípio do bom governo. As sociedades, tanto no presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe o governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria. (RANCIÈRE, 2014, p.68).

Não vive-se mais diante da democracia, tão aclamada pelos gregos e pelos modernos, voltou-se a viver sobre uma estrutura oligárquica de poder, na qual poucos detém o poder sobre as maiorias. A conclusão que Rancière chega leva a um questionamento: como essa mudança ocorreu sem que fosse percebida? O próprio pensador irá responder a isso, ao afirmar que são os próprios governos que provocaram essa mudança na perspectiva social, com o forte incentivo da vida privada e o afastamento do meio público. Ocupar o tempo dos indivíduos é tomar sua liberdade política (RANCIÈRE, 2021). Para as estruturas contemporâneas de governos, ter o indivíduo preocupado com o meio público é desvantajoso, pois irá atrapalhar a ação oligárquica, desta forma, é necessário que haja um afastamento do ente do meio público, implicando nele uma característica negativa (RANCIÈRE, 2014).A centralização do poder público em poucas mãos e o abandono do interesse pelo público em prol, unicamente, do privado é a crise enfrentada pelas democracias contemporâneas. O público e popular torna-se invasivo enquanto o privado e individual é protegido. Na fala de Rancière:

Populismo é o nome cômodo com que se dissimula a contradição entre legitimidade popular e cientifica, a dificuldade do governo da ciência para aceitar as manifestações da democracia e mesmo a forma mista do sistema representativo. Esse nome máscara e ao mesmo tempo revela a grande aspiração da oligarquia: governar sem povo, isto é, sem divisão do povo: governo sem política. (RANCIÈRE, 2014, pp.100-101).

As estruturas oligárquicas de poder buscam governar sem a interferência do povo, dessa forma, precisam afastá-lo do meio público. O meio encontrado para isso é incentivar o pensamento negativo sobre a ideia do populismo ou popular. Essa percepção do popular como uma corrupção da democracia já era vista nos textos de Tocqueville (MAGALHÃES, 2000). Ao perguntar para alguém sobre o populismo, é costumeiro escutar “isso é uma ditadura da maioria”. O conceito de popular e público tornou-se um inimigo a ser combatido, pois ele tem por objetivo destruir a vida privada. Mouffe também irá falar da percepção negativa que o conceito de popular ganhou com o advento das estruturas democráticas contemporâneas:

A atual apatia com a política que testemunhamos em muitas sociedades democráticas liberais origina-se, na minha visão, do fato de que o papel desempenhado pela esfera pública política está se tornando cada vez mais irrelevante. Com a evidente hegemonia do neoliberalismo, a política foi substituída pela ética e pela moralidade, e o leitmotiv é a necessidade do consenso, de valores familiares e de ‘boas causas’. (MOUFFE, 2003, p.17).

Acredita-se ser possível entender, neste momento, que o modo que os governos oligárquicos escolheram para se manterem estabilizados no poder nada mais é do que defender uma política sem política, disfarçando-se sob o manto de valores e causas nobres. Um estado que abandonou o ato político perde a característica de democrático, pois elimina a possibilidade dos sem-partes participarem do meio político, e, por consequência, desestrutura o próprio conceito de democracia. Cada vez mais os Estados contemporâneos afastam o homem do meio público, da igualdade, criando a ilusão de que apenas o privado é o defensor do indivíduo, incentivando os consumos desenfreados nos hipermercados, as produções de artigos personalizados, para que haja uma busca pelo individualismo. É interessante observar que os indivíduos acabam tornando-se iguais na busca de diferenciar-se, enquanto possuem o temor de serem iguais. Cada vez mais estes Estados afastam o homem do ato político, transformando a ideia de política em ambiente. É deste ponto que vem a crítica de Rancière, não basta viver em um “ambiente político” se não praticar o ato político (RANCIÈRE, 1996).

A apatia do homem contemporâneo para com a política defendida pelos governos é o provocador do “ódio à democracia”:

Em certo sentido, portanto o novo ódio à democracia é apenas uma das formas da confusão que afeta o termo. Ele duplica a confusão consensual, fazendo da palavra ‘democracia’ um operador ideológico que despolitiza as questões da vida pública para transformá-la em ‘fenômenos de sociedade’, ao mesmo tempo que nega as formas de dominação que estruturam a sociedade. Ele mascara a dominação das oligarquias estatais identificando a democracia com uma forma de sociedade e a das oligarquias econômicas assimilando seu império aos apetites dos ‘indivíduos democráticos’. (RANCIÈRE, 2014, pp.116-117).

A estrutura de uma sociedade baseada no dissenso levou Rancièrea à conclusão de que a política não pode ser baseada na simples divisão social de funções, como é percebido através de seu nominalismo referente ao conceito de política e dos “nomes” resultantes da divisão social (BOSTEELS, 2009). Dessa forma, o ato político tornou-se mais restrito e direto, sendo até raro de ocorrer (RANCIÈRE, 1996), fato que colocará o pensador francês sob várias críticas. Se a política fosse estabelecida de forma totalmente objetiva, somente o ato de dar voz ao sem voz, estaria-se esquecendo dos demais componentes que ocupam a sociedade.

Analisando a estrutura de Rancière, é possível identificar três grupos distintos: aqueles que possuem grande parte, os que possuem pouca parte e os que não possuem nenhuma parte. Dessa forma, o ato político está na reivindicação deste terceiro grupo, mas, se este é o caso, o que acontece com os outros grupos? É possível afirmar este ponto como a falha da perspectiva política de Rancière? Acredita-se que não, pois tal afirmação seria uma simplificação de toda a estrutura estabelecida pelo pensador. Levar o conceito de que a política é a elevação de um grupo sobre o outro é uma crítica que o próprio Rancière realiza. Desta forma, é preciso entender que política é um espaço que dá oportunidade para qualquer grupo agir de forma a ser reconhecido, sendo a reestruturação social consequência deste ato. Assim, torna-se possível observar mais atentamente a relação entre política e estética.

Rancière coloca em discussão que o ponto de diferença entre os seres humanos e os animais é o ato racional, logos, que permite a compreensão entre as partes, esse é o ponto inicial da discussão política do pensador. Em relação à racionalidade, há o sensível, ou a partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009), característica que é comum a todos os homens. Nessa partilha, está a possibilidade de as ações serem compreendidas pelos entes, a estética aproveita-se desse fato e se comunica diretamente com o sensível. Política é espaço, espaço é aesthetic e aesthetic é política.

3. CONCLUSÃO 

Conclui-se, assim, o modo como Rancière observa a crise da política contemporânea com o ódio à democracia. Rancière escreve que as estruturas governamentais contemporâneas, que afirmam ser democráticas, na realidade, são oligárquicas, o governo de poucos sobre os muitos. Dessa forma, o autor ressalta o perigo que se encontra no afastamento do indivíduo do meio público. Quando se fala sobre a democracia contemporânea, instantaneamente pensa-se no método representativo, quando o povo elege um ente para representar sua vontade no meio político, porém, o ato representativo também demonstra afastamento, pois as pessoas não acreditam ter outra necessidade de manifestação social enquanto há alguém que os represente. O afastamento dos entes do meio público, incentivado pelos governos contemporâneos para diminuir, ou até anular, a possibilidade de as massas manifestarem seu descontentamento com a estrutura oligárquica, oculta pela imagem democrática, é a crise dos governos contemporâneos que Rancière deseja expor através de suas obras.

O pensador é claro ao afirmar que o afastamento do público em prol do total individualismo condiciona o ser ao fim da política, ou seja, para o fim da possibilidade de um espaço de participação e litígio social entre as partes da sociedade. O ente acaba por esquecer que também é um ser social, acreditando que a política é responsabilidade de outrem, que as coisas públicas são inferiores e que a democracia é uma tirania da maioria. Nessa visão, o populismo torna-se um mal a ser combatido. O afastamento dos atores sociais do meio público em defesa de uma sociedade homogênea, sem dissensos, condicionaria os Estados para estruturas totalitárias e dominantes de poder fundamentadas sobre o consenso do ethos, e aquele que não compartilhasse desse dissenso seria considerado um inimigo. Dessa maneira, os governos levariam seus povos para o ódio contra a democracia e ao fim da própria política.

A crise na qual Rancière estabelece sobre as estruturas democráticas contemporâneas é uma perspectiva de um fim trágico, fadado ao desmoronamento e  total dominação oligárquica, incentivada pelas próprios governos, estes que identificaram que o método para possuir a liberdade de ação é afastar os demais entes do meio político. Contudo, o autor não deseja apresentar somente uma visão negativa sobre o caminhar da política, mas demonstrar que através do reconhecimento dela é possível traçar uma linha positiva, fundamentada sobre uma retomada do conceito de democracia e política, juntamente com o incentivo da participação dos povos no meio público. A recuperação pelo desejo de participação e respeito ao meio público é o principal meio de combater tal crise.

REFERÊNCIAS

ARDITI, Benjamín. Fidelity to disagreement: Jacques Ranciere’s politics without ontology. Distributions of the Sensible: Rancière, Between Aesthetics and Politics, p. 53-78, 2019.

BOSTEELS, Bruno. Rancière leftism, or, politics and its discontents. In:

ROCKHILL, Gabriel; WATTS, Philip (ee.). Jacques Rancière: history, politics, aesthetics. Durham: Duke University Press, 2009.

MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista. Tempo Social [online], v. 12, n. 1, p. 141-164, 2000. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-20702000000100008. Acesso em: 10 nov. 2022.

MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do populismo. Política e sociedade, v. 2, n. 03, p. 11- 6, 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/2015. Acesso em: 10 nov. 2022.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. 2ª ed. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 1996.

RANCIÈRE, Jacques; PANAGIA, Davide; BOWLBY, Rachel. Ten theses on politics. Theory & event, v. 5, n. 3, 2001.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletariados: arquivos do sonho operário. Tradução de Luís Leitão. Lisboa: Antígona, 2012.

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar.  São Paulo: Boitempo, 2014.

RANCIÈRE, Jacques. Às margens da ficção. 2ª ed. Tradução de Fernando Scheibe. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2021.

RANCIÈRE, Jacques. Tempos modernos: arte, tempo, política. Tradução de Pedro Taam. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Rancière é um ávido leitor dos clássicos gregos, Platão e Aristóteles. Pelo contato direto com a filosofia política dos gregos, o pensador contemporâneo deseja realizar uma releitura do conceito da democracia atual. Pensando em seu sentido originário e o modo que era aplicado no meio social, Rancière realiza uma releitura da democracia contemporânea.

3.Só há sujeitos, ou, melhor, modos de subjetivação políticos, no conjunto de relações que o nós e seu nome mantêm com o conjunto das “‘pessoas’”, o jogo completo das identidades e das alteridades implicadas na demonstração, e dos mundos, comuns ou separados, em que se definem.” (RANCIÈRE, 1996, p. 73)

4. Rancière inspira-se na visão Aristotélica, que fala da diferença entre a phoné e logos. Na fala do autor: “[…] mas, por sua vez, a falsa continuidade do útil ao justo vem denunciar a falsa evidência da oposição tão incisiva que separa os homens adotados de logos dos animais limitados unicamente aos instrumentos da voz (phoné). A voz, diz Aristóteles, é um instrumento destinado a um fim limitado. Serve aos animais em geral para indicar (semainein) a sensação que têm de dor e agrado. […]” (RANCIÈRE, 1996, p.35). O puro som é um resquício animalesco do homem, característica que ele compartilha com os demais animais, já a capacidade racional é o seu principal diferencial. O autor continua: “Há política porque o logos nunca é simplesmente a palavra, porque ele é sempre indissoluvelmente a conta que é feita dessas palavras: a conta pela qual uma emissão sonora é ouvida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto uma outra é apenas percebida como ruído que designa prazer ou dor, consentimento ou revolta.” (RANCIÈRE, 1996, p.36). Falar e ser ouvido é diferente de falar e ser compreendido, este segundo é o que se busca quando se fala do reconhecimento dos homens e sua identificação em meio ao palco social. Os litígios sociais são as lutas por compreensão.

[1] Mestrando em Filosofia. ORCID: 0000-0002-9712-7651. CURRÍCULO LATTES: lattes.cnpq.br/9096808748252152.

Enviado: 16 de Janeiro, 2023.

Aprovado: 03 de Março, 2023.

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Luis Felipe Garcia Lucas

Uma resposta

  1. Mas batheeee!!!! Que artigo maneiro!!! Tive o privilégio de conhecer esse grande professor! Um homem claramente de conhecimento digno a ter seu artigo divulgado!!

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