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Teoria interacionista do desvio sob a ótica de Howard Becker

RC: 125937
2.297
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/teoria-interacionista

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTOS, Ailton Luiz dos [1], MESQUITA, Maxwell Marques [2], CAVALCANTE, Flávio Carvalho [3], GOMES, Felipe Alves [4], MARQUES, Dorli João Carlos [5]

SANTOS, Ailton Luiz dos. Et al.  Teoria interacionista do desvio sob a ótica de Howard Becker. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 08, Vol. 08, pp. 24-38. Agosto de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/teoria-interacionista, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/teoria-interacionista

RESUMO

O interacionismo aparece como uma proposta de desvinculação com o enfoque social causal. Neste liame Becker, em seu livro “Outsiders” expõe diversos exemplos da sua teoria interacionista do desvio e reforça a necessidade de não tomar algo inicial como certo, mas relativizar os julgamentos morais, com ênfase na perspectiva de que analisar o empreendedorismo moral é também uma maneira de estudar as muitas formas do poder difundido na sociedade. O estudo discute a seguinte questão norteadora: até que ponto a sociedade, através de suas regras coletivas, pode afetar indivíduos e rotulá-los como desviantes dos padrões estabelecidos e o que constituiu uma ação a que todas as sociedades, desde experiências históricas mais remotas, até os dias atuais, consideram grave e repudiam? O objetivo da pesquisa foi de discutir aspectos gerais da sociologia do desvio, a partir da teoria interacionista de Howard Becker, bem como descrever como esta rotulação ocorre e como a sociedade hodierna pode ser afetada por ela. O método de abordagem utilizado foi o dedutivo. Quanto aos meios, utilizou-se da pesquisa bibliográfica; quanto aos fins, a pesquisa foi qualitativa. Conclui-se que o rotulado pode assumir uma nova identidade ou adquirir um estigma típico do outsider. Nesse sentido, é importante que e aos órgãos públicos avancem no conhecimento desta teoria, adaptando seus conceitos na gestão governamental, promovendo mudanças em suas normativas de ação, isto é, trazer a teoria interacionista do desvio para a práxis e aplicá-la visando fortalecer políticas públicas de inclusão social e redução criminal.

Palavras-chave: Interacionismo, Rotulação social, Sociologia do Desvio, Howard Becker. 

1. INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira, a exemplo de tantas outras, não raro recorre à prática da rotulação social, conforme leciona Becker (2008). A teoria interacionista estabelece o controle social como essência do desenvolvimento comportamental a partir do processo de interação entre os envolvidos. O jovem comete pequenos ilícitos e estes se perpetuam na ficha criminal e histórica social da pessoa por toda sua vida, mesmo que ela mude seu jeito de agir, parando de executar os delitos. Assim, o círculo viciante, considerado por Becker, é incorporado pelo sujeito rotulado e taxado como tal após a delinquência inicial, que muitas vezes apenas é definida como delinquência por aqueles que realizam a valoração do desvio: a sociedade estabelecida.

Dessa forma, o objetivo da pesquisa foi apresentar uma análise inicial da sociologia do desvio, privilegiando a teoria interacionista de Howard Becker, bem como analisar como esta rotulação ocorre e como a sociedade afeta e é afetada por ela. Nela, o autor, um dos nomes mais importantes do labeling approach enfrenta, com a leveza de sempre, a questão da existência ou não, independentemente de rotulação. Isto posto, indaga-se: até que ponto a sociedade, através de suas regras coletivas, pode afetar indivíduos e rotulá-los como desviantes dos padrões estabelecidos e o que constituiu uma ação a que todas as sociedades, desde experiências históricas mais remotas, até os nossos dias, consideram grave e repudiam?

A pesquisa se justifica uma vez que estudar a criminologia baseada em princípios que determinem a ruptura de barreiras como os conceitos prévios estabelecidos, que considera personagens estereotipados em suas análises biológicas e psíquicas, atentando para atos realizados em sociedade e considerados como desvios de uma normalidade de condutas, são essenciais para que se possa, enfim, tratar de assuntos que considerem uma real política criminal.

O método de abordagem utilizado foi o dedutivo. Quanto aos meios, utilizou-se a pesquisa bibliográfica. Quanto aos fins, a pesquisa foi qualitativa. A revisão bibliográfica procurou trazer à baila autores que pesquisam a área de estudo da sociologia com foco na rotulagem daqueles tidos como desviantes de um padrão esperado pela sociedade.

2. TEORIA DA ROTULAÇÃO

A teoria do método de rotulagem social é uma teoria criminológica caracterizada pelo entendimento de que os conceitos de crime são socialmente construídos, a partir de definições legais e instâncias de controle social oficial sobre o comportamento de determinados indivíduos. De acordo com esse entendimento, o crime não é um atributo inerente ao sujeito, mas sim um “rótulo” de algum indivíduo que é entendido pela sociedade como autor. Em outras palavras, o desvio é exatamente esse comportamento marcado.

Com surgimento na década de 1960, como uma das abordagens mais promissoras desenvolvidas do desvio foi a abordagem da rotulação, e que produziu uma grande pesquisa e inspirou um incrível debate. Apesar de nos últimos anos essa concepção ter perdido muito do seu brilho inicial, muito do que ela deu à criminologia teórica permanece como uma obviedade (BECKER, 2008).

A declaração de Becker (2008) fornece o núcleo do que passou a ser marcado com a rotulação ou perspectiva de reação social. Em primeiro lugar, será feita uma visão geral da abordagem de rotulação. Em segundo lugar, explicada a noção de desvio de carreira e, finalmente examinadas algumas das evidências, que empiricamente testam essa teoria.

Becker (2008) destaca que o patrimônio intelectual da rotulação é herança do interacionismo simbólico, escola de pensamento expressada por W. I. Thomas, G.H. Mead, Dewey etc. Os antecedentes intelectuais mais imediatos que, pelo menos em parte, formularam uma abordagem baseada na teoria da rotulação foi o uso da rotulação de Frank Tannenbaum em sua análise de “Delinquência Juvenil” de 1938 (o mesmo ano que a Teoria Anomia de Merton vem à luz). Os jovens têm uma concepção de seu comportamento e a comunidade outra. Esta trouxe medidas de controle social para abarcar os jovens, uma vez que a ideia de desvio mudou do ato para o ator. O jovem pode vir a vê-lo (a) como delinquente. O jovem começa o ato ainda mais delinquente e a comunidade reage, reforçando essa identidade ainda mais.

A perspectiva da rotulação teve um grande número de seguidores na década de 1960 e início da Década de 1970. Alguns dos membros mais notáveis ​​que vieram definir e delinear a maioria dos maiores expoentes desta abordagem foram Edwin M. Lemert (1974), Howard S. Becker (1963) e John Kitsuse (1987).

A teoria da rotulação, conforme Lemert (1974), Becker (1963) e Kitsuse (1987) elaboraram, era a sociologia do perdedor. As pessoas que são consideradas desviantes são, na verdade, as vítimas que pecaram contra o pecado. As pessoas não são, inerentemente, desviantes nem é o desvio inerente a qualquer comportamento particular como observado por Erikson (1972) em suas “notas sobre o desvio” e novamente a introdução aos puritanos passados, enfatizando que a sociedade confere o título de desviante através de determinados comportamentos. Essa sociedade pode ser a comunidade em agentes gerais ou particulares de controle social, a polícia ou professores. Em outras palavras, o comportamento não é inerentemente desviante ou normal, mas é definido e rotulado dessa forma por pessoas que têm a função de definição e rotulação. O componente-chave do processo é o público social, independentemente de como o público social venha a ser definido.

Há dois aspectos do tornar-se desviante que podemos ver em Becker (2008). O grupo social cria desvio. O grupo faz a regra e depois a aplica à pessoa que é rotulada como “outsider“. Mesmo que haja uma conexão entre a violação da norma e ser rotulada como desviante, não precisa ser direta. Por exemplo, para que alguém seja rotulado como um ladrão, deve haver uma norma proibindo o roubo. Se a propriedade privada não existisse, o roubo em vazio não existiria e nem o rótulo desviante do ladrão. Só porque existe uma norma, não significa que todo mundo rotulado de ladrão realmente a violou. Existe uma diferença básica entre conflitos de regras, comportamento de quebra de regras e comportamentos desviantes.

O termo desviante é reservado para aqueles que tiveram o rótulo aplicado com sucesso a ele e o comportamento desviante é assim rotulado, independentemente de, ou não, ter havido alguma norma violada. Um exemplo disso pode ser pessoas que foram colocadas em instituições mentais e rotuladas de mentalmente doentes quando realmente eram apenas difíceis de ouvir (BECKER, 1964).

Para Lemert (1974), o desvio pode ser entendido sob duas ópticas: o primário e o secundário. Naquele, o desvio se dá com a primeira ação desvirtuada do indivíduo (o delito inicial), cuja efetivação pode ter se dado por qualquer necessidade íntima ou pessoal; já o desvio sob a óptica secundária, diz respeito à inserção no mundo delituoso, com a reincidência criminal, o que se dá partindo dos influxos da rotulação ou etiquetagem, isto é, o indivíduo, após tornar-se reincidente, é alocado num lugar em que passa a adquirir um novo status irremediável, o de desviante social.

Se as regras sociais forem feitas em um processo de interação, como lembra Lemert (1974), é uma das interações desiguais. Becker (1963) afirma claramente que, para que a rotulação de alguém seja cumprida, ele deve ter poder econômico ou político. Não há uma elite de poder particular forçando seus desejos nos outros, mas existem muitas associações coordenadas imperativamente. Ao olhar para a lei de tributação da maconha de 1937, Becker (1963) analisa como o poder político funciona. O Departamento de Narcóticos e parte do Departamento do Tesouro viram a maconha como jurisdição e trabalharam com outros que viram em seus interesses ter leis que regulam a erva, por exemplo, regulando os legítimos produtores, assim foi criado o uso de maconha como um rótulo desviante.

O poderoso, como Becker (2008) fala sobre eles, são empresários morais. Esses guardiões da ordem moral são encontrados em dois tipos, aqueles que criam ou destroem leis e aqueles que aplicam as leis. Os dois grupos podem não ter a mesma perspectiva sobre as regras. Um pode ser dedicado à moral das regras, enquanto o outro pode ser um policial mais preocupado em ter um emprego.

Os efeitos de serem rotulados são numerosos, e são a principal preocupação para muitos teóricos nesta tradição, por exemplo, para Lemert (1974) é o efeito que está sendo rotulado no sentido de si próprio ou identidade. O desvio primário acontece por uma série de razões e tem muito pouco efeito sobre si mesmo. O desvio secundário surge como uma resposta à reação social ao desvio primário. O conceito de si é a mudança do normal para o desviante. A pessoa assume uma nova identidade ou adquire um estigma, nos termos de Goffman (1961); A pessoa se torna um ladrão primeiro e acima de tudo em sua própria mente.

Esse retrato da rotulação é, essencialmente, as implicações teóricas da segunda parte da citação de Becker (1963). A breve discussão sobre o desvio primário e secundário fornece um ponto de entrada para indicar as implicações da primeira parte da citação do autor. Por aqui, ele começa a levar as implicações do desvio secundário para o próximo passo lógico, isto é, carreira do desvio. O autor em tela não está preocupado com o desvio primário. Ele gosta de, como Lemert (1974), ver o desvio primário ocorrendo por muitas razões. É muito mais importante olhar para o desvio de carreira. O próprio estudo de Becker (1963) sobre os usuários de maconha é um exemplo desse processo. Um dos passos mais importantes em se tornar desviante é ser rotulado publicamente como tal. Por ser uma componente chave da teoria da rotulação, também é um dos mais difíceis de identificar.

Uma pessoa faz, na verdade, não precisa ser rotulada publicamente, mas pode rotular-se. O processo de rotulação torna difícil de refutar à medida que o processo se move do público para a autoaplicação. É mesmo mais difícil de refutar como a concepção do desejo subconsciente (em termos de ser pego e rotulado). Em qualquer caso, ser capturado e rotulado como desviante leva a uma mudança de identidade. O desviante adquire um novo status mestre. O status mestre traz consigo um número de status secundários, que parecem estar sempre associados a ele. Isso cria problemas para as pessoas quando o status não coincide. Por exemplo, quando o homossexual acaba por ser um grande, forte jogador de futebol, com voz rouca ou um marido ou esposa de longa data.

O problema é que o status principal caracteriza a vida de uma pessoa completamente, em vez de ser apenas parte da identidade de alguém. O processo da autorrealização começa quando se torna cada vez mais difícil para a pessoa agir ao contrário ou associar-se a outras pessoas além do que a sociedade espera. O último passo na criação de um desviante de carreira ocorre quando os desviantes são organizados em um grupo. É produzida uma subcultura desviante. Uma vez que a pessoa se torna um membro, sua identidade desviante se solidifica, um dos principais exemplos é tornar-se parte de uma gangue juvenil.

Embora muitas vezes pareça que nunca houve testes empíricos suficientes de teorias, existem, na verdade, e foram bastante feitos na teoria da rotulação em comparação com muitos outros. Alguns dos achados empíricos são de suporte, enquanto outros não são.

A teoria da rotulação afirma que há uma grande quantidade de fatores que afetam quem é rotulado e tratado como desviante. Parece haver um grande apoio para essa afirmação. Isto varia de características do ator, conforme Piliavin e Briar (1964) em Police encounters with Juveniles, especificando as características do público. Já o trabalho de influenciar registros de pessoas presas por drogas, características de vítima, de acordo Cohen (1967), em Deviance and Control.

A importância do rótulo para o desvio de carreira pode ser vista no trabalho de Goffman (1961) quando ele vê como os estigmas como “deficientes” ou “cegos” afetam no comportamento social. Grande parte da pesquisa realizada foi em termos de rótulos criminais. Assim parece haver suporte na afirmação de que ser rotulado leva à carreira do desvio pelo menos em termos de rótulos criminais.

No entanto, existem aqueles estudos que colocam em dúvida a ideia de que o rótulo é um aspecto chave de se tornar um desviante de carreira. O trabalho realizado por dois grandes defensores da teoria da rotulação, Lemert (1974) e Becker (2008), suscitam dúvidas sobre essa disputa de rotulação. O estudo de Lemert sobre falsificadores de multas mostra que muitas vezes eles participam do comportamento sistemático e habitual muito antes de serem pegos e rotulados como desviantes ou criminosos. Em outras palavras, sua carreira foi estabelecida antes do processo de rotulação acontecer.

O exemplo de Becker (1964) de usuários de maconha parece indicar que não é a criação de uma nova identidade que resulta em uma vida de tabagismo. Em vez disso, no processo de encontrar prazer ao fumar aponta, este se torna um desviante de carreira. Existem outros estudos que indicam que a rotulação tem pouco efeito. Robins (1966), em Deviant Children Grow Up, mostra que o impacto de ser rotulado de doente mental ou ter algum tipo de diagnóstico psiquiátrico quando os jovens tinham pouca conexão (16%) com rotulação depois de se tornar um adulto. Cameron ressalta como ser apanhado roubando e ser rotulado de ladrão resultaram em pessoas facilitando este comportamento, ao invés da pessoa marcada se tornar um desviante de carreira.

A evidência não apoia conclusivamente as contenções de teorias de rotulação. Parece que o efeito de um rótulo sobre autoidentidade aplica-se mais a situações específicas no processo de rotulação, todo o resto ainda é altamente questionável.

3. A TEORIA INTERACIONISTA DO DESVIO PARA BECKER

A definição de desvio para Becker (2008) assume contornos diferenciados, favorecendo uma visão analítica da ação das instâncias de poder ao confrontarem o fenômeno criminoso. Tal pensamento delituoso de Becker faz surgir questionamentos fundamentais sobre a conceituação do desvio e quem é o desviante; permite, enfim, compreender de um modo mais conciso o que faz de um indivíduo um ser humano desviante; permite, em última análise crítica, compreender que o desviante social é um produto criado a partir de algo (ou alguém) e não uma classe que possui vida em si mesma, que existe sobre si própria.

Propor uma teoria interacionista do desvio: é este o principal objetivo de Howard S. Becker no livro “Outsiders” (2008). É considerado um marco nos estudos sobre desvio, propondo importantes variações de ótica: sendo a mudança da ideia enraizada de “crime” para o desvio, que preconiza uma relação social; bem como a troca do foco no indivíduo para o foco nas relações pessoais, as quais produzem regras e vinculam seu cumprimento; da divinização das regras para a criação histórico-social das mesmas e os processos de rotulação sobre os que são designados como desviantes.

Em seu livro, Becker (2008) explica o desvio através de diversos exemplos, a saber: usuários de maconha, artistas de casas noturnas, “quadrados” e empresários morais, todos esses sendo agentes em processos produtores de carreiras, estilos de vidas e visões de mundo que não deixam de ser reais haverem sido construídos socialmente. Os mundos sociais estabelecidos por Becker são feitos por pessoas que, conjuntamente, com diversos graus de comprometimento, criam realidades que também as definem. Deste modo, Becker (2008, p. 183, apud THOMAS, 1928) ressalta que “se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas consequências”, ao mesmo tempo em que insiste que as pessoas agem juntas (2008, p. 183, apud MEAD, 1934).

Em seu livro, Becker relativiza as regras sociais que estipulam situações e comportamentos valorados como “certos” ou “errados”. Segundo ele, regras, desvios e rótulos são construídos em processos sociopolíticos, nos quais alguns grupos (ou integrantes de grupos) conseguem impor seus pontos de vista e ideias como mais legítimos que outros. Portanto, o desvio não é inerente às atitudes ou aos indivíduos que os executam; ele é valorado ao longo de processos de julgamento que permeia disputas em torno de objetivos de grupos específicos.

Para Becker (2008) a sociedade em si é a produtora daquilo que considera como sendo desvio, devendo então constituir infrações distintas de origens diferenciadas, tendo em vista que a própria sociedade é mutável. Desse modo, não há a possibilidade de analisar o desvio sem antes compreender qual será a impressão dos outros perante o ato cometido. Destarte, o desvio pode ser realizado por diversas pessoas, porém, somente seguirá a ser ato considerado como desviante se a impressão das pessoas assim permitir ou compreender. Deste modo, os estereótipos, estigmas e preconceitos contam muito nesse aspecto.

“Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele” (BECKER, 2009, p. 27). Como as sociedades mais complexas são sempre compostas por diversos grupos, regras imperativas e rotulações de atos e pessoas, elas envolvem também conflitos e divergências acerca de definições: “aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders” (BECKER, 2008, p. 15).

Nesse sentido, as sociedades possuem grupos dominadores e grupos diletantes, assim como tipos diferentes de desvio. No segundo capítulo do livro “Outsiders”, Becker estabelece um modelo procedural para pensar o desvio. Ao classificar os tipos de comportamento diletante de acordo com as percepções e o grau de publicidade das atitudes, ele pensa acerca da adesão de indivíduos a padrões de comportamento desviantes a partir de uma perspectiva procedural, onde o mesmo diz respeito não somente atos isolados ou eventuais acusações, mas aprendizados específicos. Assim, existem carreiras desviantes, que se mostram como opções para carreiras ditas convencionais. “O comportamento normal das pessoas em sociedade pode ser visto como uma série de compromissos progressivamente crescentes, com normas e instituições convencionais” (BECKER, 2008, p. 38).

Após estabelecer as bases teóricas de sua abordagem, Becker passa a explicar as carreiras desviantes específicas, conhecimento este adquirido a partir de pesquisa de campo e entrevistas com duas categorias distintas identificadas como desviantes, a saber, os usuários de maconha e artistas de casas noturnas.

Quanto aos dependentes da maconha, Becker demonstra como um comportamento, comumente explicado como derivado de traços psicológicos individuais, tendo seus significados e suas induções socialmente caracterizadas, e o aprendizado de técnicas e hermenêuticas construídas ao longo de carreiras. Becker assevera em que a experiência física do uso do entorpecente é uma experiência de duplo sentido que só se transforma em algo que satisfaz através de sequências de aprendizados, em que “impulsos e desejos vagos são transformados em padrões definidos de ação por meio da interpretação social de uma experiência física em si mesmo ambígua” (BECKER, 2008, p. 51).

Para se usar a maconha por satisfação pessoal ou social envolve uma sequência de experiências que inclui: a apreensão da técnica de fumar; a observação dos efeitos e a atribuição desses efeitos ao uso da maconha; e a redefinição das sensações como prazerosas.

Para se estabilizar como usuário de maconha, é preciso, no entanto, além de sentir prazer nisso, escapar de uma série de pressões sociais:

Minha questão básica é: qual é a sequência de eventos e experiências pela qual uma pessoa se torna capaz de levar adiante o uso da maconha, apesar dos elaborados controles sociais que funcionam para evitar tal comportamento? (BECKER, 2008, p. 70).

A possível resposta seria que através da crescente interação em grupos, são criados valores e técnicas específicas de aquisição do produto e justificativas morais para as suas atitudes. A carreira do usuário de maconha, a saber, progride do estágio de novato para o de usuário ocasional e, finalmente, para o de usuário perene, podendo haver sucessos e falhas em cada um destes estágios, sempre na companhia de outros usuários do grupo.

Os artistas de casas noturnas também criam hábitos desviantes e se identificam como diferentes.

“Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não convencionais para que sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade” (BECKER, 2008, p. 89).

O autor, tendo sido um músico de casa de show noturna, busca entender esta prática como uma ocupação que, como muitas outras profissões estudadas por pesquisadores como Everett Hughes, desenvolve culturas ou subculturas, necessariamente, próprias, entendidas como “uma organização de entendimentos comuns aceitos por um grupo” (BECKER, 2008, p. 90).

Desse modo, o autor apresenta uma sociedade onde há distinções entre artistas de Jazz e artistas comerciais, e relações de diversos significados entre os artistas e seus públicos. Se, por uma via, existe a capitalização da inovação e da liberdade do músico de jazz, por outro, para uma carreira de sucesso é exigida uma série de obrigações e a participação em redes de relacionamento interpessoal com outros artistas que compõem grupos, nos quais o comportamento individual não deixa de ser um ponto fundamental. A participação em grupos de jazz ou em grupos comerciais é fonte de intrigas e, em meio a eles, os artistas evoluem suas carreiras. As opções de adesão são feitas tendo em vista a outras instâncias sociais, como cônjuges, família e o próprio público ouvinte.

“As ‘panelinhas’ compostas por jazzmen não oferecem nada a seus integrantes além do prestígio de manterem a integridade artística; as ‘panelas’ comerciais fornecem segurança, mobilidade, renda e prestígio social” (BECKER, 2009, p. 119).

Após rastrear as carreiras do desvio de artistas noturnos e usuários de maconha, com foco na elaboração de práticas, valores e identidades, Becker atenta para os processos de imposição de normas. Estas não vinculam, automaticamente, necessitando serem impostas, e a vinculação é um empreendimento que precisa de vontades e iniciativas de atores sociais no sentido de tornar visível o desvio infracional.

Como destaca Becker, o desvio não é considerado uma qualidade unidimensional, que pode ser recebida e aceita sem reservas, com apanágios de verdade, porém considerada como resultado de um processo evolutivo que envolve normas, reações sociais àqueles que as contrapõem. Não é um dado ontológico, mas um dado sociológico:

“O desvio não é uma qualidade simples, presente em alguns tipos de comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento” (BECKER, 2008, p. 26).

Ressalta-se que Becker estava, imensamente, interessado nos empreendedores sociais e nas circunstâncias em que normas são elaboradas e impostas. Ele narra o processo que culminou com a lei de tributação da maconha nos EUA em 1937. Valores preponderantes, como o autocontrole, o repúdio ao êxtase e mesmo o humanitarismo, foram explicitados em regras específicas, contando com a iniciativa empreendedora do Departamento de Narcóticos. “A iniciativa da agência produzirá uma nova regra, cuja imposição subsequente ajudaria a criar uma nova classe de outsiders – os usuários de maconha” (BECKER, 2009, p. 151).

Aqueles que expõem iniciativas, no sentido de estabelecer novas tipologias de outsiders, são definidos empreendedores morais. São esses os “reformadores cruzados”, por exemplo, que creem na pureza de suas missões, embora diversas vezes contarem com a concordância das pessoas que pretendem “salvar” do desvio.

Mas estes reformadores cruzados pedem auxílio a especialistas, como psiquiatras, médicos ou advogados, que têm suas próprias intenções em pauta. Uma cruzada de sucesso tem como possíveis desdobramentos tanto a criação de um novo conjunto de regras, quanto à criação de novas agências de cruzadas, que institucionalizam o empreendimento e, por fim, podem agir por meio de uma força policial coercitiva.

Já os impositores profissionais estão mais interessados na manutenção de sua atividade laboral do que na justificativa da regra estipulada, o que acarreta num ciclo paradoxal: de tal modo em que devem mostrar a sua eficácia na resolução do problema, este fim resultaria no cessar de sua razão de existência. Deste modo, os impositores profissionais escolhem em quais casos irão agir, efetuando suas próprias escolhas. Conclui então Becker:

Cumpre ver o desvio, e os outsiders que personificam a concepção abstrata, como uma consequência de um processo de interação entre pessoas, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras – que, a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes (BECKER, 2008, p. 168).

Ele enfatiza um apelo à pesquisa científica de campo e ao estudo aprofundado dos grupos sociais, sejam estes os desviantes ou os empreendedores morais. Explicando que os estudos sobre desvio expõem muito mais teorias do que fatos. Becker enfatiza a necessidade de se conhecerem as atitudes desviantes e a ótica de seus praticantes. No que tange, diretamente, ao comportamento desviante em si:

Cumpre vê-lo como um tipo de comportamento que alguns reprovam e outros valorizam, estudando os processos pelos quais cada uma das perspectivas é construída e conservada. Talvez a melhor garantia contra qualquer dos dois extremos seja o contato estreito com as pessoas que estudamos (BECKER, 2008, p. 178).

Por fim, Becker reitera a necessidade de não tomar algo inicial como certo, mas sim relativizar os julgamentos sociais morais, e enfatiza a perspectiva de que analisar o empreendedorismo moral é também uma maneira de estudar as muitas formas do poder difundido na sociedade. Ele ainda critica a denominação de sua proposta de “teoria da rotulação”, recolocando-a como “uma teoria interacionista do desvio” (BECKER, 2009, p. 182) e assevera em que os julgamentos éticos não devam ser protegidos de testes empíricos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, destacam-se as contribuições da teoria do viés interacionista, em especial a “teoria do rótulo”, que propõe uma ruptura com outras correntes que priorizam as causas de um fenômeno e não os processos sociais que ele ocorre na sociedade. No entanto, as interações entre atores ou grupos sociais devem ser levadas em consideração em relação à ordem moral, política e socioeconômica da sociedade. O viés e a rotulação de indivíduos ou grupos sociais dependem de como cada sociedade vivencia o fenômeno em um determinado momento histórico e social. Na verdade, é um conjunto de operações materiais e simbólicas que dão sentido às práticas e regem o comportamento dos atores no nível individual e social.

A problemática que norteou essa pesquisa foi a de verificar até que ponto a sociedade através de suas regras coletivas, pode afetar indivíduos e rotulá-los como desviantes dos padrões estabelecidos, e o que constituiu uma ação a que todas as sociedades, desde experiências históricas mais remotas, até os dias atuais, consideram grave e repudiam?

Os objetivos da pesquisa foram cumpridos, uma vez que se apresentou uma análise inicial da sociologia do desvio, privilegiando a teoria interacionista de Howard Becker, bem como demonstrou como esta rotulação ocorre e como a sociedade afeta e é afetada por ela. Como tal, isto se efetivou mediante uma revisão bibliográfica de natureza qualitativa a qual se destinou a apresentar os mais importantes aspectos essenciais em uma atividade do tipo.

Por fim, destacam-se as contribuições da teoria do viés interacionista, em especial a “teoria do rótulo”, que propõe uma ruptura com outras correntes que priorizam as causas de um fenômeno e não os processos sociais que ele ocorre na sociedade. No entanto, as interações entre atores ou grupos sociais devem ser levadas em consideração em relação à ordem moral, política e socioeconômica da sociedade. O viés e a rotulação de indivíduos ou grupos sociais dependem de como cada sociedade vivencia o fenômeno em um determinado momento histórico e social. Na verdade, é um conjunto de operações materiais e simbólicas que dão sentido às práticas e regem o comportamento dos atores no nível individual e social.

A perspectiva da rotulação veio crescendo nas últimas décadas, mais especificamente entre 1960 e 1980. O que cabe destacar, neste sentido, é o grande interesse de pesquisadores no comportamento de grupos sociais tidos como desviantes, o que Becker destaca como sendo muito preliminar, cabendo analisar a construção social dos integrantes de tais grupos, pois cada um possui sua história de vida que o levou até o ponto de ser rotulado.

A pessoa rotulada é chamada de outsider, aquela que está fora de uma curva padrão, aquela que destaca dos demais devido a alguma característica sua que é classificada/rotulada como incongruente com as regras sociais. Neste liame, o diletante é aquele que foge aos preceitos estipulados pelas normas coletivas.

Conclui-se que, certamente, o rotulado assume uma nova identidade ou adquire um estigma que é típico do outsider, assim, cabe aos órgãos públicos conhecer esta teoria, adaptar seus conceitos para a ótica governamental e realizar mudanças em suas normativas de ação, isto é, trazer a teoria interacionista do desvio para a práxis e aplicá-la visando fortalecer políticas públicas de inclusão social e redução criminal.

Em suma, são estes os resultados gerais deste estudo. Ante as suas prováveis limitações, espera-se que sejam úteis no fomento de estudo do tema, contribuindo para o entendimento apropriado dos seus pormenores mais relevantes em outros estudos posteriores. 

REFERÊNCIAS

BECKER, H. S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.

————. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New YORK: Free Press, 1963.

————, ed. The Other Side: Perspectives on Deviance. New York: The Free Press, 1964.

COHEN, S. Review of Deviance and Control; Human Deviance, Social Problems and Social Control, by A. K. Cohen & E. M. Lemert]. The British Journal of Criminology, v. 7, n. 4, p. 459–461, 1967. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/23635512

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[1] Mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, Especialista em Gestão Pública aplicada à Segurança. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Ciências Jurídicas. Especialista em Direito Administrativo. Bacharel em Direito. Bacharel em Segurança Pública e Cidadania. ORCID: 0000-0001-6428-8590.

[2] Doutorando em Gestão da Informação, Mestre em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, Especialista em Inteligência Policial e em Administração Estratégica, Bacharel em Sistemas de Informação e em Segurança Pública e Cidadania. ORCID0000-0003-2930-2902.

[3] Mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos, Especialista em Gestão Pública aplicada à Segurança. Especialista em Direito Militar. Especialista em Ciências Jurídicas. Especialista em Segurança Pública e Inteligência Policial. Bacharel em Direito. Bacharel em Segurança Pública e Cidadania. ORCID: 0000-0002-8303-8455.

[4] Mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Bacharel em Direito. Bacharel em Segurança Pública e Cidadania. Bacharel em Engenharia. ORCID: 0000-0001-8146-6723.

[5] Orientador. Doutor em Biotecnologia. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia. Especialização em Administração e Planejamento para Docentes. Graduação em Estudos Sociais. Graduação em Filosofia. ORCID: 0000-0002-2009-0897.

Enviado: Fevereiro, 2022.

Aprovado: Agosto, 2022.

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Ailton Luiz dos Santos

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