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Um olhar espiritual sobre a dependência química: um estudo de caso com vistas ao aprimoramento do atendimento em política pública de saúde

RC: 124202
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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SANTIAGO, Ana Cristina Castro [1], EIRÓ, Maria Idati [2]

SANTIAGO, Ana Cristina Castro. EIRÓ, Maria Idati. Um olhar espiritual sobre a dependência química: um estudo de caso com vistas ao aprimoramento do atendimento em política pública de saúde. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 08, Vol. 03, pp. 43-57. Agosto de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/olhar-espiritual

RESUMO

A visão reducionista da doença levou à fragmentação da visão integral do indivíduo e à desumanização do atendimento de saúde. Nesse contexto, o presente artigo visou responder: a abordagem da espiritualidade contribui para a retomada da visão integral e humanização do atendimento? O objetivo deste artigo é a proposição da abordagem da espiritualidade no tratamento médico com vistas ao aprimoramento do atendimento integral do dependente químico junto à Política Nacional de Saúde Mental. Metodologicamente revisamos a literatura e apresentamos um estudo de caso. No primeiro tópico, contextualizamos a dependência química com o movimento de luta antimanicomial no Brasil e a atual Política Nacional de Saúde Mental. No segundo item, abordamos os aspectos sociais da dependência química que repercutem diretamente nas famílias brasileiras atendidas pelo serviço social. No terceiro item, ressaltamos a importância da espiritualidade integrada ao atendimento médico como estratégia à retomada do atendimento integral e humanizado ao dependente químico. Apresentamos um estudo de caso que evidencia a falta da abordagem integral e a desumanização do atendimento público de saúde mental. Complementamos a metodologia com os fundamentos da doutrina espírita como subsídio ao olhar espiritual da dependência química. Evidenciou-se que a visão reducionista da doença prevalece na atualidade e a humanização do atendimento não foi alcançado na atual Política Nacional de Saúde Mental. Conclui-se que é premente o olhar espiritual sobre a dependência química pela Política Nacional de Saúde Mental para que valores humanos sejam respeitados, a visão integral do indivíduo seja considerada e o aprimoramento do atendimento seja finalmente alcançado.

Palavras-chave: Dependência Química, Espiritualidade, Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

A visão mecanicista da modernidade atingiu os profissionais da saúde deixando de considerar o indivíduo na totalidade que o constitui. Essa visão aniquilou a subjetividade e levou à desumanização do atendimento (PRATTA e SANTOS, 2009).

Nesse contexto, a abordagem da espiritualidade contribui para a retomada da visão integral e humanização do atendimento?

Ao longo deste artigo buscaremos responder essa questão com a retomada da visão integral do indivíduo abordando a espiritualidade nos cuidados médicos como forma de humanizar o atendimento (STROPPA e MOREIRA-ALMEIDA, 2008).

O objetivo deste artigo é a proposição da abordagem da espiritualidade no tratamento médico com vistas ao aprimoramento do atendimento integral do dependente químico junto à Política Nacional de Saúde Mental.

A metodologia utilizada é a revisão de literatura e um estudo de caso.

A dependência química é apresentada no contexto histórico como uma doença reduzida aos aspectos orgânicos sem considerar a subjetividade do indivíduo que repercute no corpo físico. Ressaltamos os aspectos sociais da dependência química que repercutem diretamente no cotidiano das famílias atendidas pelo serviço social. A espiritualidade é apresentada como estratégia na retomada da visão integral e humanizada do atendimento, superando a visão reducionista da doença. Apresentamos um estudo de caso que evidencia a falta da abordagem integral e a desumanização do atendimento público de saúde mental. A doutrina espírita foi utilizada como subsídio do olhar espiritual sobre a dependência química.

CONTEXTUALIZANDO A DEPENDÊNCIA QUÍMICA

No século XIX, com os desenvolvimentos tecnológico e científico embasados no modo de produção capitalista vigente, a visão reducionista do processo saúde-doença atingiu diretamente os profissionais da área da saúde. Essa visão reduz a doença ao aspecto biológico, deixando de considerar outros aspectos importantes que constituem o indivíduo. Isso significava que todo fenômeno deveria ser explicado de forma objetiva e a causa dos problemas mentais era considerada orgânica; o paciente tratado era excluído do seu convívio social havendo perdas dos vínculos, identidade e valores (PRATTA e SANTOS, 2009).

A visão reducionista deixava de encarar o indivíduo na sua totalidade e levou à sua desumanização e apagava a sua subjetividade (PRATTA e SANTOS, 2009).

Atualmente, a dependência química é considerada um fenômeno multifatorial e complexo porque envolve aspectos biológicos, psicológicos, sociais, políticos, econômicos e culturais. No ponto de vista social, a dependência não pode deixar de ser analisada como uma questão vinculada ao contexto mais amplo da sociedade na qual as famílias estão inseridas (IAMAMOTO, 2008).

É considerada uma doença crônica, cuja característica primordial corresponde à presença de um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que evidencia que o indivíduo continua a utilizar uma determinada substância, existindo um padrão de autoadministração repetida, resultando em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo de droga (PRATTA e SANTOS, 2009).

Segundo Pratta e Santos (2009) o movimento da luta antimanicomial se iniciou no Brasil nos anos 1970, com a mobilização dos profissionais de saúde mental e dos familiares dos pacientes. Assim, a Política Nacional de Saúde Mental, com base na lei 10.216/02, “consolida um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base comunitária”; isso significa que, no lugar do isolamento, o paciente mental deve gozar do convívio familiar e comunitário. Essa Política visa a garantia dos cuidados aos pacientes com transtornos mentais superando a lógica das internações de longa permanência que tratavam os pacientes isolados do convívio familiar e social. Esse modelo conta com uma rede de serviços e equipamentos, como: os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Droga – CAPS AD, os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centro de Convivência e os leitos de atenção integral – em Hospitais Gerais, por exemplo (BRASIL, 2005).

A falta de políticas públicas de saúde repercute diretamente nas famílias como o caso atendido pelo serviço social da Vara da Infância e Juventude de São Paulo.

OS ASPECTOS SOCIAIS DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

A dependência química apresenta aspectos que a caracterizam como uma questão social gerada pela organização capitalista que repercute diretamente nas famílias atendidas pelo serviço social (IAMAMOTO, 2008).

O serviço social trabalha com indivíduos, famílias e territórios, aliado às políticas públicas na garantia de direitos sociais tendo como ponto de partida a análise das relações sociais que o indivíduo estabelece no mundo do trabalho (BRASIL, 2004).

O projeto ético-político-profissional constitui a luta pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária dentro dos princípios fundamentais do Código de Ética do Assistente Social.

A concepção de cidadania articula direitos amplos, universais e equânimes, na perspectiva de superação das desigualdades sociais e pela igualdade de condições nos marcos de uma sociedade não capitalista (BRASIL, 1993).

Segundo Iamamoto (2008), todo conjunto de funcionamento da sociedade abrange o poder do capital que gera a mais-valia e essa mais valia se reproduz nas relações sociais:

[…] Todo espaço ocupado pelo capital transforma-se em espaço de poder – a empresa, o mercado, a vida cotidiana, a família, a arte, a cultura, a ciência, entre outros – tanto aqueles onde a mais-valia é produzida, quanto aqueles em que ela reparte-se, é realizada, abrangendo o conjunto do funcionamento da sociedade (IAMAMAMOTO, 2008, p. 50).

O assistente social realiza mediações que envolvem a produção e a reprodução da questão social e suas múltiplas expressões, objetos do trabalho social. É na vida cotidiana que essas mediações são apreendidas e devem ser abordadas (IAMAMOTO, 2008)

Segundo Netto e Carvalho (1996, p. 19):

a vida cotidiana é em si o espaço modelado (pelo Estado e pela produção capitalista) para erigir o homem em robô: um robô capaz de consumismo dócil e voraz, de eficiência produtiva e que abdicou de sua condição de sujeito, cidadão.

O serviço social considera a dependência química uma questão social com suas causas na organização capitalista que gera as desigualdades sociais repercutindo amplamente na vida cotidiana das famílias brasileiras.

Diante de situações de vulnerabilidade social vividas no seu cotidiano, essas famílias precisam ser apoiadas pelo Estado e sociedade para que possam cumprir suas funções e responsabilidades (BRASIL, 2006).

Vulnerabilidade pode ser conceituada como:

…incapacidade da família de responder adequadamente, em tempo hábil, a eventos inesperados de ordem social ou ambiental […]  Essa vulnerabilidade se refere a questões físicas, tais como inundações, por exemplo, mas também a questões sociais e econômicas, tais como a perda de emprego e renda pelos adultos da família, doença do responsável ou inadequações temporárias da residência (FURTADO, 2013, p. 149).

Na Vara da Infância e Juventude do Ipiranga, trabalhamos com essas famílias em situação de vulnerabilidade como no caso apresentado e constatamos a dependência química como questão predominante nos atendimentos.

A ESPIRITUALIDADE INTEGRADA AO ATENDIMENTO

Sócrates era um pensador humanista do século IV a. C., considerava o homem dotado de mente e espírito, achava que o médico deveria ser um conhecedor da alma humana e buscar a causa das doenças não só no órgão, mas na alma, componente espiritual essencialmente humano. É nela que dever se buscar as questões relativas ao ser (GALLIAN, 2002).

Ao longo da história a visão de Sócrates foi se desconstruindo dando lugar à ciência moderna. A concepção mecanicista e reducionista da modernidade atingiu os profissionais da área da saúde e deixou de considerar outros elementos relevantes, levando à fragmentação da visão, mente e espírito e à desumanização do homem (PRATTA e SANTOS, 2009).

No século XVII Descartes desenvolveu o conceito dualista (mente e corpo) passando a encarar o corpo como uma máquina que poderia ser explorada. A função do médico poderia ser comparada com a de um mecânico, que devia consertar uma engrenagem que não funcionava. Assim, a medicina passou de uma arte de curar a uma disciplina especializada na doença e não na saúde (PRATTA e SANTOS, 2009).

Essa visão reducionista contribuiu para o aniquilamento da essência humana, para um mundo que deixa de considerar o homem na sua subjetividade, na sua essência, na sua alma, para considerá-lo e tratá-lo como uma máquina (PRATTA e SANTOS, 2009).

Na organização capitalista, esse homem é explorado no seu trabalho, funciona como uma máquina a serviço do capital que ocupa todo o espaço de poder, gerando famílias em situação de vulnerabilidade social negligenciadas pelas políticas públicas.

Ao encarar o homem como uma máquina, a sociedade desumaniza cada vez mais esse homem e aniquila seus valores éticos mais essenciais.

O SUS – Sistema Único de Saúde oferece terapias alternativas voltadas para práticas integrativas como meditação, Reiki e outras, que fazem parte das ações de promoção e prevenção em saúde definidas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (VALADARES, 2018).

Essas terapias não estão interligadas aos cuidados médicos. Para que o atendimento humanizado e a abordagem integral sejam alcançados é importante que os cuidados médicos estejam alinhados à visão integral do indivíduo e abordem a dependência química com a profundidade que a questão requer.

Espiritualidade é definida como “uma busca pessoal pela compreensão das questões últimas acerca da vida, do seu significado e da relação com o sagrado e o transcendente, podendo ou não conduzir ou originar rituais religiosos e formação de comunidades” (STROPPA e MOREIRA-ALMEIDA, 2008, p. 03).

Na abordagem integral, é fundamental investigar se o paciente tem alguma forma de vivenciar a espiritualidade, bem como avaliar qual a importância que o paciente atribui a estes aspectos em sua vida. Desta forma, é possível verificar como a espiritualidade pode ajudá-lo a lidar com sua doença e como a crença espiritual pode influenciar nos cuidados médicos (STROPPA e MOREIRA-ALMEIDA, 2008).

Martins et al. (2013) explica que idosos gostariam que seus médicos abordassem sua religiosidade e espiritualidade durante os cuidados médicos. Muitos achavam importante incluir essa abordagem no processo clínico-paciente, apresentando maior estratégia na resolução de problemas em comparação com os que não achavam importante.

A espiritualidade contribui para a recuperação da saúde na medida em que compartilha valores e crenças que beneficiam diretamente na saúde mental fazendo com que o paciente participe de forma ativa na sua recuperação.

Conforme argumenta Nassif (2014) “o médico deve estar preparado para lidar com a espiritualidade de seus pacientes, independentemente de suas crenças pessoais”.

Nesse sentido, a abordagem da espiritualidade nos cuidados médicos é uma forma de proporcionar a participação ativa do indivíduo no seu processo de recuperação. Assim, ele poderá perceber com clareza que a busca pela droga pode estar vinculada às suas aspirações pessoais (NASSIF, 2014).

A seguir, apresentamos um estudo de caso em que uma dependente química deixou de fazer uso de crack para exercer a maternagem superando os desafios da falta de uma política pública que a atendesse na sua especificidade de mãe usuária de crack.

ESTUDO DE CASO

Descreveremos o atendimento de uma mãe atendida no serviço social do Fórum do Ipiranga. Ela estava à época com 23 anos de idade, desempregada, apresentava histórico de uso de crack, deu à luz a um bebê do sexo feminino. O atendimento desta mãe, que chamaremos (Y.R.J), foi encaminhado do hospital à Vara da Infância e Juventude do Ipiranga. A bebê que iremos nos referir como criança (I.R.J.) nasceu de parto normal. No hospital, a mãe declarou fazer uso de crack desde os doze anos de idade, inclusive na gestação. Antes do parto, estava internada há dois meses no Projeto Crack Zero; seu desejo era que seu bebê saísse de alta médica e permanecesse com ela no Projeto.

O Projeto Crack Zero abriga cerca de 100 (cem) pessoas em recuperação devido ao uso de drogas sem ajuda governamental.

Y.R.J já havia residido com sua mãe (avó materna do bebê), também dependente de crack, e ambas estavam internadas em diferentes unidades do Projeto. O irmão de Y. R. J. morava em região distante, havia conseguido a vaga no Projeto para ela com o objetivo de apoiá-la e acolhê-la com o bebê em sua casa, na ocasião da alta do tratamento.

O Projeto possui alvará de funcionamento, não tem convênio com a prefeitura, é mantido por doação, não possui profissionais em seu quadro e trata os pacientes à base de café e limão para amenizar a fissura da droga[3]. No local, havia outras mães internadas com filhos que procuraram espontaneamente o tratamento. O período previsto de internação é de oito meses a dois anos, dependendo do processo de recuperação de cada paciente.

O Projeto mantém parceria com a UBS – Unidade Básica de Saúde e CAPS AD – Centro de Atendimento Psicossocial Álcool e Droga – do território para inserir as mães nas consultas, inclusive aquelas que não possuem documentos.

Esse e outros casos em que os profissionais de saúde suspeitam que as mães possam expor a vida dos filhos a situação de risco, são encaminhados à Vara da Infância e Juventude do Fórum da região para aplicação de medida protetiva à criança. Seja para a criança ser entregue aos familiares da mãe ou ser acolhida em uma instituição de acolhimento (SAICA – Serviço de Atendimento à Criança e Adolescente). No caso, o irmão morava distante do Projeto e não poderia assumir os cuidados da criança, ficando esta, portanto, distante da mãe.

A lei que rege os direitos da criança e do adolescente (Estatuto da Criança e do Adolescente) “assegura que a criança deva viver distante de pessoas dependentes químicas para garantir o seu desenvolvimento saudável” (BRASIL, 1990).

Muitos pais dependentes químicos colocam a vida de seus filhos em risco, deixando-os sozinhos, sem cuidados para irem em busca da droga, chegando inclusive a vender objetos domésticos em troca do uso.

Diante do fato do Hospital ter informado o caso de dependência da mãe, não sabendo se o Projeto seria adequado para receber a criança ou se a mãe poderia reincidir no uso da substância e expôr a criança em situação vulnerável, foi determinado o acolhimento institucional da criança em serviço distinto da mãe.

Ao longo de sete meses de acompanhamento da mãe e da criança, realizado pela equipe técnica do serviço de acolhimento em que a criança estava, a mãe visitava a filha, amamentava, demonstrava dedicação, cuidados e vínculo saudável; como não recebia ajuda de custo para chegar até a criança, fazia todo o percurso de uma hora na ida e uma hora na volta a pé. As características deste caso evidenciam que a abordagem utilizada não é de uma abordagem integral ao tratamento da dependência.

No início do acompanhamento, foi realizada visita de fiscalização pelos órgãos públicos da Secretaria de Assistência Social, no Projeto Crack Zero e não foram apontadas condições do Projeto receber a criança para ficar junto à mãe. Apontaram aspectos desfavoráveis, como o quadro de funcionários composto por pessoas voluntárias e que já tinham tido experiência com o uso de substância psicoativa. A instituição não recebe subsídio do poder público, era mantida através de doação; o tratamento dos pacientes é à base de café e limão e, caso a paciente desistisse do tratamento, perderia a possibilidade de continuidade no Projeto. Assim, caso reincidisse no uso, a mãe exporia a criança ao risco devido aos efeitos produzidos pelo crack.

Após nove meses de tratamento, a mãe recebeu alta do Projeto e passou a residir, juntamente com o bebê e a família do irmão, na Zona Sul da cidade de São Paulo.

O OLHAR ESPIRITUAL DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Apresentamos a doutrina espírita ou espiritismo como subsídio do olhar espiritual da dependência química junto ao atendimento na rede pública de saúde mental. Foi codificada por Hippolyte Léon Denizard Rivail (pseudônimo Allan Kardec – 1804-1869), também professor, gramático, filósofo e educador.

Segundo Kardec:

o Espiritismo é ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas relações que se estabelecem entre nós e os espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam dessas mesmas relações. (KARDEC Apud COLOMBO, 2014, p. 35)

O conhecimento referente à doutrina é relevante na compreensão da dimensão do espírito. Segundo Incontri (2001), as potencialidades do espírito deixam marcas ao longo de suas existências na matéria. Ao longo das existências, o ser adquire aperfeiçoamento moral e amplia a consciência de si mesmo. Nessa ampliação de consciência sobre si e o mundo, ele se espiritualiza e se humaniza.

A transformação do espírito através da ampliação da consciência da natureza do homem contribui para a humanidade.

O espiritismo é a ciência que fala da natureza do espírito do homem. Seus princípios fundamentais são a imortalidade da alma e a pluralidade das existências. O espiritismo retorna à filosofia socrática que acha “a verdade desvendando a alma humana para si mesma”. E contribui para o despertar da consciência espiritual (KARDEC, 2006, p. 76).

Um dos princípios basilares da doutrina é a definição de espírito como “seres inteligentes da criação”. Os espíritos passam pelas existências corpóreas com a finalidade de se aperfeiçoarem e progredirem” (KARDEC, 2006, p. 76).

A alma ou espírito encarnado na matéria, no corpo físico sofre uma transformação e após passar por experiências terrenas, retorna ao mundo espiritual.

A reencarnação consiste em admitir para o homem existências sucessivas com a finalidade de melhoramento moral progressivo na humanidade (KARDEC, 2006).

O espiritismo tem o ideal de transformação do espírito através das vidas sucessivas em que desenvolve a sua moral. Significa que, de acordo com o nível de consciência que o espírito adquire, desenvolve seu livre-arbítrio e a noção de justiça (KARDEC, 2006).

O Brasil é considerado um Estado laico com marco no dispositivo constitucional que ampara a liberdade de religião, conforme o artigo 5, VI da Constituição Federativa de 1988: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre arbítrio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (BRASIL, 1988).

É possível abordar a espiritualidade de acordo com os valores e crenças religiosas do paciente porque ela influencia na forma como ele lida com as adversidades. Abordar a espiritualidade não requer basicamente a abordagem de uma dada religião, mas é importante considerar a relevância da visão de mundo de quem está sendo atendido, pois essa visão de mundo representa o nível de consciência do indivíduo que direciona seu comportamento e determina valores e atitudes (STROPPA e MOREIRA-ALMEIDA, 2008).

Esse direcionamento pode ser positivo quando o indivíduo busca na religião um novo sentido para sua vida. O direcionamento negativo é a atitude passiva de depositar o controle da situação em uma força superior, se eximindo de qualquer responsabilidade sobre suas escolhas e decisões (STROPPA e MOREIRA-ALMEIDA, 2008). É nesse sentido a importância de se investigar como a espiritualidade influencia na vida do paciente.

Segundo Stroppa e Moreira-Almeida (2008, p. 01), estudos indicam que maiores níveis de envolvimento religioso estão associados positivamente a indicadores como “bem-estar psicológico, como a satisfação pela vida, felicidade, afeto positivo e moral elevado, melhor saúde física e mental.”

A falta de um propósito de vida pode também trazer sérias consequências ao indivíduo que acaba por depositar suas angústias na busca por substâncias psicoativas.

Frankl apud Oliveira (2006) conceitua:

o vazio surge em decorrência de uma falta de metas e objetivos que valha a pena serem perseguidos durante uma existência, ou seja, o indivíduo carece de um conteúdo profundo pelo qual deve viver. Tal estado de vazio amplia a angústia resultante de uma tensão entre o que se é e o que deveria ser, entre o lugar em que está e a meta que deve ser alcançada. Esse campo de tensão, segundo Viktor, de forma alguma é patológica. Antes disso, é condição de saúde mental. O vazio existencial em verdade, lhe indaga sobre o sentido de sua vida. Nesta direção, muitas criaturas buscam soterrar essa angústia através de psicofármaco e outras formas de compensação da vontade de sentido existente dentre elas, como o sexo, o álcool e os alucinógenos, o que não resolve o problema, sem dúvida, o agrava (sem página).

O aprimoramento do atendimento será alcançado quando for investigada a existência dessa tensão e a meta a ser alcançada. Essa adversidade do espírito influencia o corpo colocando em risco a saúde mental.

Desde 1998, a OMS – Organização Mundial de Saúde – passou a definir saúde como “saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade” (SALGADO, 2006).

A visão de mundo do dependente químico precisa estar integrada ao atendimento como um todo com vistas ao aprimoramento do atendimento.

CONCLUSÃO

Numa sociedade em que a matéria predomina sobre a ética e a essência humanas, as necessidades mais profundas são apagadas para priorizar os cuidados da matéria. Evidencia-se que a visão reducionista da antiguidade ainda foi superada e prevalece na atualidade.

Do ponto de vista social e objetivo, vimos que a dependência química envolve questões mais amplas da sociedade. A Política Nacional de Saúde Mental deve garantir a convivência familiar e comunitária do paciente, mas de acordo com o caso apresentado, essa convivência familiar não é real. O movimento de luta antimanicomial superou a lógica das internações, mas não superou o rompimento dos vínculos familiares.

Como visto no estudo de caso, a mãe dependente química teve que se distanciar da filha recém-nascida por não existir equipamento disponível em condições adequadas de atendimento para manter mãe e filha juntas. A falta de políticas públicas que assegurem a convivência da mãe com a filha evidencia o atendimento não humanizado e a abordagem utilizada não é de uma abordagem integral ao tratamento da dependência. Os vínculos familiares permanecem sendo rompidos e os direitos à convivência familiar permanecem violados.

Vimos também que a dependência química envolve questões que vão além dos aspectos objetivos. Envolve aspectos subjetivos que apontam alternativas complementares ao tratamento. O exercício da maternagem fez com que essa mãe superasse o uso da droga e enfrentasse os desafios impostos para provar que teria condições de cuidar da filha. Desafios como permanecer num Projeto sem ajuda profissional. E pior, ter que provar para o Juízo da Infância e Juventude que se dedicaria à filha e reuniria condições para reaver a guarda da mesma. Ao invés de receber acolhimento profissional, abordagem integral e atendimento humanizado, foi dispensado atendimento complementamente desumanizado. A mãe caminhava diariamente a pé por uma hora de ida e mais uma hora de volta da instituição da filha sem contar com recursos do poder público para custear transporte coletivo sem apresentar sinais de uso de droga.

Diante de todas as adversidades, potencialidades emergiram desta mãe para o exercício da maternagem. Esses aspectos fizeram diferença durante a permanência no Projeto Crack Zero.

Ela encontrou sozinha em si mesma recursos para superar as dificuldades ou melhor, encontrou na filha a força, o sentido, o propósito que precisava para superar a dependência química.

Essas potencialidades e propósitos de vida precisam ser investigados durante a abordagem integral, pois quando trabalhadas podem apresentar maior eficácia ao tratamento.  Esses recursos ao tratamento estão negligenciados na atual Política Nacional de Saúde Mental.

Podemos constatar que a força existente na mãe a fez desviar do caminho da droga e encontrar na filha o motivo para superar a dependência química durante os nove meses em que permaneceu no Projeto. Essa força quando bem conduzida potencializa o tratamento e evidencia alternativa para a recuperação da saúde mental. A força que faz o dependente químico buscar a droga é a mesma que o desvia do uso da droga quando encontra um verdadeiro motivo pelo qual valha a pena viver. No entanto, esse trabalho precisa estar inserido na Política de Saúde Mental e disponível nos CAPS Ad onde se encontram os pacientes.

Trabalhar o paciente como ser constituído de alma e suas potencialidades é abordar o indivíduo como ser integral. Essa abordagem poderá potencializar o tratamento e a recuperação dos pacientes. Essa é a estratégia de combate à dependência química. No entanto, é necessário que os profissionais de saúde considerem o indivíduo dotado de mente e espírito e que estejam preparados para lidar com a questão independente das crenças pessoais.

Para isso, é preciso que o paciente seja considerado não somente como um corpo, mas, com uma alma provida de uma força interior que quando bem utilizada fará com que o paciente participe ativamente no seu processo de cura.

Parece estranho que embora a dimensão espiritual esteja prevista na definição de saúde junto à Organização Mundial de Saúde, não esteja contemplada nos atendimentos de saúde pública. Significa que a visão reducionista do processo saúde-doença continua atingindo os profissionais da área da saúde na atualidade.

Desta forma, a abordagem da espiritualidade contribui para a retomada da visão integral e humanização do atendimento superando a visão reducionista da doença porque traz de volta às questões inerentes à alma que torna o homem essencialmente humano.

A falta de reflexões sobre as necessidades mais profundas do indivíduo, ou seja, a falta de uma abordagem do indivíduo como um todo contribui para o vazio existencial que a matéria não consegue preencher. Nesse sentido, o tema da espiritualidade precisa ser retomado, ampliado, discutido e fazer parte da abordagem dos profissionais da área da saúde.

Conclui-se que é premente o olhar espiritual sobre a dependência química pela Política Nacional de Saúde Mental para que valores humanos sejam respeitados, a consciência do indivíduo sobre si mesmo seja ampliada e o atendimento humanizado seja finalmente alcançado.

REFERÊNCIAS

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STROPPA, André; MOREIRA-ALMEIDA, Alexander. In: Mauro Ivan Salgado & Gilson Freire (Orgs). Saúde e Religiosidade: uma nova visão da medicina. Belo Horizonte: Inede, 2008.

VALADARES, Carolina. Ministério da Saúde Inclui Dez Novas Práticas Integrativas no SUS. Ministério da Saúde, Março de 2018. Disponível em: www.saude.gov.br/noticias. Acesso em 29/02/2020.

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

3. Nota da autora: informações obtidas através do diretor do Projeto, na ocasião do atendimento.

[1] Graduada em Serviço Social, pós-graduada em Pedagogia Espírita. ORCID: 0000-0002-4162-0762.

[2] Orientadora. ORCID: 0000-0001-7824-7669.

Enviado: Novembro, 2021.

Aprovado: Agosto, 2022.

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Ana Cristina Castro Santiago

Uma resposta

  1. Belo e profundo trabalho
    Reforça a vontade de ajudar diminuir o sofrimento dos dependentes químicos
    Tendo como base a individualidade , tendo como referência o entendimento espiritual de cada um
    Tratando o dependente químico com suas limitações sociais e espirituais
    Obrigada por compartilhar este estudo

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