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Gênero e desigualdade na escola: por uma educação emancipadora

RC: 82980
180
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/educacao-emancipadora

CONTEÚDO

RESENHA

CARDOSO, Caroline [1], SOUZA, Leonardo Figueiredo de [2], ALBUQUERQUE, Kleberson Almeida de [3]

CARDOSO, Caroline. SOUZA, Leonardo Figueiredo de. ALBUQUERQUE, Kleberson Almeida de. Gênero e desigualdade na escola: por uma educação emancipadora. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 04, Vol. 08, pp. 154-167. Abril de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/educacao-emancipadora, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/educacao-emancipadora

RESUMO

A construção da identidade de gênero ocorreu por muito tempo a partir de uma determinação binária, sendo por meio desse dualismo que as mulheres seriam construídas como o outro do homem. Contudo, percebe-se que as questões de gênero são mais profundas e diversas, diante da diversidade existente na construção das relações sociais, torna-se pertinente identificar como as questões de gênero têm sido trabalhadas no contexto da educação básica. Desta forma, o presente trabalho consiste em uma resenha analítica da obra “Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola”, além de propor um diálogo com diferentes teóricos que aprofundam a discussão sobre educação emancipadora, levando em consideração a diversidade existente na escola. Diante das discussões levantadas, conclui-se que a obra sem dúvida alguma contribui para reflexão a respeito da importância de se tratar das questões de gênero nas escolas, a partir, obviamente, da capacitação docente, em vista de uma educação emancipadora, que não reproduza preconceitos que há muito existem na sociedade e que refletem no campo educacional.

Palavras-chave: Diversidade, Gênero, Escola, Educação básica.                                         

INTRODUÇÃO

Em A ideologia alemã, Karl Marx e Friedrich Engels (2007) apontam que a primeira forma de divisão sexual do trabalho se estabeleceu a partir do aspecto sexual, isto é, entre homens e mulheres. Como o homem não tinha exigências da gravidez nem da amamentação das crianças, podia distanciar-se da tribo para caçar, ao passo que as mulheres tinham que ficar em casa cuidando das crianças e, portanto, das tarefas domésticas. Ainda de acordo com estes autores, a divisão sexual do trabalho e a propriedade privada são expressões idênticas, pois a primeira seria a atividade e a segunda o produto desta atividade, de modo que, a primeira forma de propriedade privada, segundo estes autores, seriam as mulheres e as crianças.

De acordo com Angelita Maders e Rosângela Angelin (2010), as relações entre homem e mulher foram se fortalecendo ao longo da história. Configurando-se como construções culturais de identidades masculinas e femininas, envolvendo relações de poder e impondo comportamentos aos homens e às mulheres. Desse modo, constituiu-se, portanto, papéis aos homens e as mulheres não só na produção da vida material, mas também, nos outros aspectos da vida social.

Sabe-se, porém, que ao longo da história as mulheres nunca aceitaram com passividade sua posição de gênero subalterno, o que as  motivou a muitas lutas, resultando na conquistas de muitos direitos no âmbito jurídico, que não se traduziram, porém, de forma efetiva no âmbito social, de modo que em grande parte das instituições sociais[4] ainda há lugares que são determinados para mulheres (quando chegam a ocupar) e lugares que são determinados para homens, ou elas e eles são representadas de uma determinada maneira, como é o caso da escola.

Com base nesta construção histórica de gênero, que há também pelo âmbito escolar, as autoras[5] Beatriz Lins, Bernardo Machado e Michele Escoura, em Diferentes, não desiguais, procuram analisar como a questão de gênero é trabalhada na escola, uma vez que a criança está exposta a diversas situações que moldam e definem seu comportamento social, podendo ser a escola mais um grupo social responsável pela reprodução e estímulo das desigualdades de gênero existentes na sociedade, além da danosa utilização de brinquedos que reforçam os estereótipos sociais que definem o comportamento diferenciado entre os gêneros. É o que as autoras nos apresentam na introdução do livro.

DESENVOLVIMENTO

A obra Diferentes, não desiguais, apresenta o gênero como um conceito construído historicamente e, portanto, socialmente reforçado e utilizado como dispositivo cultural para a manutenção de estruturas de poder vigentes na sociedade. Para as autoras, uma escola inclusiva e transformadora é possível quando o gênero não limita as possibilidades que a criança detém ao longo de sua vida. Assim como é apontado por Paulo Freire (1996) em sua obra, Pedagogia da autonomia, ao defender que a educação não é e nunca será neutra, estando passível de ser “responsável pela reprodução da teoria dominante, como também, é responsável pela contestação desta reprodução” (1996, p. 96).

Neste intuito, o livro busca evitar linguagens que estejam carregadas de assimetrias de gênero, dando ênfase a participação feminina e não as invisibilizando, a fim de tornar a linguagem do livro equitativa, pois a luta dos movimentos sociais que buscam por visibilidade, respeito e direitos iguais constroem uma sociedade mais justa e democrática.

De acordo com Simone de Beauvoir (1980), a construção da identidade de gênero ocorreu a partir de posições binárias, pois é por meio desses dualismos que as mulheres são construídas como o outro do homem, ou seja, aquilo que o homem não é. Tal afirmação pode nos proporcionar um melhor entendimento do que as autoras tratam no primeiro capítulo, intitulado entre o azul e o cor-de-rosa: normas de gênero, ao dizer que o gênero é utilizado para determinar e limitar as possibilidades de escolha e comportamento social entre os gêneros feminino e masculino.

A pesquisadora Jackeline Freire Florêncio (2019) aponta que esta estrutura de naturalização de estereótipos é fundada em um conjunto de crenças, denominando de patriarcado, tendo base na família, intuições religiosas e até mesmo no próprio Estado, ao naturalizar um determinado comportamento a um grupo específico, e justificar apenas baseado em seu gênero, estamos reproduzindo os estereótipos de gênero presentes na sociedade. Essas separações de gênero estão presentes em todos os grupos sociais que a criança frequenta. O ato de diferenciar as atividades e comportamentos exclusivamente baseado no gênero limita e nega as múltiplas possibilidades da criança de se expressar e existir no mundo. Além disso, esse roteiro produzido para cada gênero é utilizado de forma a construir desigualdades entre gêneros, visto que busca diminuir as qualidades em um e enaltecer essas mesmas qualidade no outro gênero, criando relações de poder desiguais.

Os atributos físicos-biológicos foram histórica e culturalmente associados a diversos estereótipos de gênero de forma a naturalizar as desigualdades produzidas entre homens e mulheres, a exemplo disto se apresenta na história do magistério e da pedagogia brasileira ao retirarem os professores homens das salas de aulas para introduzi-los nos postos de trabalhos criados pela industrialização, sendo associado a ideia de maternidade ligada ao gênero feminino, as mulheres tiveram a oportunidade de adentrar no mercado de trabalho, contudo não demorou para que a profissão do magistério se desvalorizasse com baixos salários, além de diversos preconceitos sociais, já que era visto como algo inato da mulher ao invés de profissional. Por tal limitação do papel da mulher, não se pode imaginar quantos talentos científicos e esportivos, foram perdidos por desencorajar e estimular a naturalização de desigualdades entre gênero ao determinar profissões especificas para meninos e meninas.

A antropóloga Michele Escoura (2008), em Moças de família: gênero e relações de parentesco, ao observar, a partir de uma pesquisa com mulheres de duas famílias, como estavam dados os padrões constitutivos de uma identidade de gênero, descobriu que estes padrões atravessam gerações e no caso da identidade feminina se fundamenta, sobretudo, assim como disse Beauvoir (1980), a partir do olhar masculino. Além disso, Escoura (2008) trata ainda da construção feminina, que foi construída a partir de uma perspectiva de que a mulher deve ser passiva, discreta e ter um bom comportamento para poder ter um bom casamento.

O que Escoura (2008) analisou no artigo citado no parágrafo anterior em relação ao casamento, as autoras deste livro tratam também no âmbito escolar. Apontam que apesar de mulheres serem as mais afetadas, as expectativas de gêneros também atingem o gênero masculino, como exemplo do bom comportamento esperado pelas meninas, tornam-nas exemplos de “bons alunos” aliado a baixa expectativa de adentrar no mercado de trabalho logo após a finalização de seus estudos, enquanto ao gênero masculino espera-se a agressividade e insubordinação como formas de legitimação da masculinidade dentro do grupo, limitando, assim, as múltiplas possibilidades de existir dentro da sociedade. Contudo, as autoras ressaltam que combater as desigualdades de gênero não devem se resumir a igualar os gêneros sem levar em consideração os aspectos diferentes entre os grupos, mas sim que a construção de gênero não crie hierarquias de poder que limitem e rotulem os indivíduos.

No capítulo gênero e o movimento pelos direitos das mulheres as autoras evidenciam o surgimento do termo “gênero” a partir da década de 70 como teoria social para diferenciar o feminino e masculino, associando-as com a construção das relações socais de poder. Na academia surgiu inicialmente para investigar a relação entre a feminilidade e a desigualdade entre homens e mulheres, observando-as em contextos diversos. Notou-se que as desigualdades se modificavam de acordo com a concepção do ser feminino que a cultura de cada sociedade determinava, o que comprovava que a diferenciação de gênero era produto da construção sociocultural da sociedade muito mais do que o aparato biológico. O estudo de gênero foi amparado pelo movimento feminista, que busca a equidade de direitos entre os gêneros.

As autoras defendem que a partir dos valores da Revolução Francesa no Século XVIII, os direitos das mulheres começaram a serem reivindicados, como o direito ao voto, à propriedade, à liberdade profissional e a educação, contudo esses direitos só vieram a se constitucionalizar no século XX. Apresentam ainda os principais pontos das ondas do movimento feminista, a primeira foi pelos direitos ao voto, propriedade, a educação e o fim do casamento arranjado. A segunda onda do movimento foi entre as décadas de 1960 e 1970, começou a questionar-se as condições e limitações de vida e de trabalho da mulher. A terceira onda teve início na década de 90 e continuou até a publicação do livro, que se baseia da teoria queer que problematiza a heteronormatização de gênero, que nega o direito a pluralidade.

Ao fim deste capítulo, as autoras enfocam que apesar do movimento feminista ganhar força com as reinvindicações das mulheres brancas, classe média e pertencentes a países europeus. No entanto, mulheres negras não eram consideradas frágeis e sempre foram exploradas no trabalho. Apesar disso, dentro do grupo feminino as vozes das mulheres negras sempre existiram para chamar a atenção da pluralidade de ser mulher, chamando a atenção para as diferentes, e desiguais, tratamentos entre as mulheres brancas e negras e suas reinvindicações, denunciando que as reinvindicações do movimento feminista precisavam contemplar as mulheres negras. Tendo apenas em 1970 surgido o feminismo negro com pautas das reais necessidades das mulheres negras para serem reivindicadas, sem invalidar as demandas do movimento feminista.

No capítulo mulheres e seus direitos, as autoras apresentam a história do movimento de mulheres, no Brasil, que tinham como objetivo diminuir as desigualdades entre homens e mulheres, além de proteger as cidadãs das diversas violências que sofrem, isto resultou na conquista do acesso ao ensino básico e superior, no século XIX, além do direito ao voto, no século XX, e da isonomia jurídica, que garante, perante a lei, igualdade  entre homens e mulheres. No entanto, as autoras trazem dados que apontam que esta igualdade jurídica, não se traduziu em igualdade de salários, pois os homens ainda ganhavam mais que as mulheres, mesmo quando possuíam a mesma formação, bem como, não possibilitou a garantia da qualidade de vida das mulheres. Além disso, a idealização da mulher como a dona de casa, lhe atribui funções domésticas, que lhe impôs uma dupla, e até mesmo tripla, jornada de trabalho.

Partindo do pressuposto de que a desigualdade de gênero é uma construção cultural presente em todos os grupos sociais em que a criança está inserida, bell hooks (2017) defende a ideia de que a escola deveria deixar de agir como uma educação bancaria, classista, sexista e racista, onde as crianças são ensinadas a como, e onde, existir no mundo, e passasse a ter uma pedagogia engajada, isto é, ao invés de ensinar a criança a ser algo pré-estabelecido de acordo com seu gênero, classe e raça, a/o docente passaria a construir conhecimento junto com seu discente, auxiliando-os a enxergar as múltiplas possibilidades de existir no mundo. Diante disso, quando se fala de desigualdade de gênero, não é possível dissociar da questão racial e da classe social deste individuo, isso porque a disparidade das desigualdades torna-se mais evidente quando cruzamos os marcados de gênero, raça e classe.

As autoras trazem importantes conquistas que marcaram a luta das mulheres, como a conquista da garantia dos direitos humanos (promovido pela ONU em 1979) e da proteção das mulheres (promovido pela OEA 1979 em 1994), bem como a implantação da Lei Maria da Penha (Lei federal nº 11 340/06), a criação das delegacias da mulher, a Lei Carolina Dieckmann (Lei federal n° 12.737/2012), a central de atendimento à mulher (“o ligue 180”) e outras medidas e serviços criados visando garantir melhores condições de vida – em vários âmbitos – as mulheres.

As autoras apontam essas medidas como avanços para enfrentar as desigualdades existentes.  Porém, as autoras destacam que a efetividade destas leis está ligada inteiramente ao trabalho em conjunto dos três poderes com a finalidade de que tanto a criação, a execução e a fiscalização destas leis possibilitem uma melhor qualidade de vida e dignidade para as cidadãs brasileiras.  Sendo necessário que a população busque eleger mulheres ou homens que objetivem a igualdade entre os indivíduos, cabendo, também, a sociedade o dever de fiscalizar a efetividade o sistema político.

Apesar de todos esses direitos e conquistas, há um grande lapso entre a realidade e a teoria, como as autoras destacaram, porém a discursão não se aprofundou nas questões discrepantes em que esses direitos atingem as mulheres quando se eleva esse debate ao território de raça e classe ou mesmo sexual. Segundo o IBGE (2018), as mulheres negras detêm o maior índice dentro da taxa de analfabetismo comparado com as mulheres brancas. A disparidade no grau de escolaridade entre mulheres negras e brancas desencadeia todo um processo de desigualdade social que inicia um debate sobre até que ponto a mulher negra que não é alfabetizada, consequentemente terá acesso a limitadas profissões e salários, tem acesso aos direitos que foram conquistados ao longo dos anos.

No capítulo violência de gênero e a experiência da escola, as autoras incialmente tratam da violência como violação dos direitos civis, sociais, econômicos, culturais e políticos. Entende-se que a violência vai muito além do ato de agredir fisicamente, englobando, também, a violência verbal, moral e simbólica. A violência, segundo as autoras, está associada ao poder e é exercida de diversas formas; algumas formas de violência já são tipizadas como crime, outras ainda se relacionam com questões tradicionais, como os estereótipos a respeito das funções das mulheres, atingindo também a população LGBTQIA+ e aqueles grupos que insurgem aos padrões tradicionais e que acabam tendo desvantagens em relação à direitos e a conquista de uma vida digna.

As autoras apontam que no Brasil, uma em cada quatro mulheres já sofreram algum tipo de violência, mas que esse número pode ser maior, devido a naturalização da violência contra a mulher que as inibe de denunciar seus agressores, fazendo com que os número não ganhem maiores proporções. As diversas violências sofridas pelas mulheres, tem como base a ideia de que a mulher é propriedade do homem, o que “justifica” as agressões, os feminicídios (que só se tornou crime passional em 2015), o abuso sexual etc. ainda estão cercados da ideia de que a culpa das violências que sofre, é da mulher.

A objetificação do corpo feminino não é fruto do sistema capitalista, contudo é nítido que o sistema patriarcal e o capitalista se retroalimentam, pois segundo Darília Fénix (2014), o mercado passa a produzir, e estimular, o consumo de produtos de beleza que prometem os padrões de beleza inalcançáveis criados por ele mesmo. Diante disso, percebe-se que a sociedade estipula o quê, onde, como e por quem utilizar determinada roupa que além de despersonificar a mulher, ainda traz um controle social sobre o seu corpo.

Aliais, durante os anos o que muda é a forma como a sociedade utilizou-se de regras sociais construídas, e impostas, aos grupos sociais com o objetivo de controlar o corpo feminino. Vanessa Berner (2017) explica que a mulher detém um número limitado de escolhas, isso é, ser mãe-esposa, putas, freiras, presas e loucas, pois a sociedade é machista, heterossexual, hetero-erótica e misógina. Contudo, quando elas não se enquadram no ideal de mulher construído pela sociedade, ela sofre diversas sansões. Esse padrão limita a sexualidade da mulher e determina funções especificas, seja procriação ou exploração sexual. Vale ressaltar que a sociedade pune a liberdade sexual de uma mulher com sansões sociais que as excluem e lhes negam o mesmo respeito que teria uma mulher com escolhas socialmente aceitáveis.

Para as autoras, a escola também é um campo onde se apresentam situações desses tipos de violências e opressões, desta forma questionam a capacidade atual da escola de lidar com estes conflitos. Os professores e os profissionais da educação como um todo ao estarem em muitos casos restritos aos seus afazeres cotidianos não sabem ou preferem não lidar com essas questões, tornando assim a escola em mais um espaço reprodutor das desigualdades sociais, podendo piorar o rendimento de alunas e alunos vítimas de violência. Destacam ainda, duas histórias fictícias, mas que se assemelha a realidade. A primeira, em resumo, trata das roupas discretas que as meninas têm que usar na escola, para não mexer com os instintos sexuais dos meninos; a segunda, trata-se de uma menina que sofria assédio e ofensas de seus colegas, denunciou a diretoria, mas não teve apoio.

As autoras apontam que na primeira história, surge uma oportunidade de debater a respeito da naturalização da sexualidade masculina, enquanto as meninas devem reprimir seus desejos sexuais. Na segunda, retrata como os estereótipos de gênero colocam as meninas na situação de atores passivos da violência que sofrem, ou, em muitos casos, como culpadas pelo comportamento masculino. São fatos como esses que solidificam a argumentação de que a sociedade constrói padrões, e os impõem, de forma a aprisionar a mulher nessas regras sociais que buscam controlar seu comportamento, pensamento e até mesmo seu corpo. Por isso,  as autoras defendem que a escola não deve  deixar passar despercebidas situações como as demonstradas nos cenários anteriores, mas devem utilizá-las como uma possibilidade para abertura de diálogos, a fim de que alunas e alunos sejam preparados para lidar com as diferenças, tornando a escola um espaço democrático, onde se valorizar a pluralidade,  a inclusão das diferenças deixando de os ver como motivos para desigualdades.

No capítulo vamos falar de sexualidade, as autoras discorrem sobre a diversidade das feminilidades e masculinidades, criticando a sociedade que além de determinar o que é ser homem e o que é ser mulher, produz estereótipos que serão valorizados ou marginalizados. Tentam desconstruir também, a ideia de que o gênero está associado ao corpo e de que é determinado pelo órgão genital de nascimento. Além disso, veem as práticas sexuais como distintas do sexo atribuído ao nascer, devido à existência de muitas outras combinações, entre corpo, identidade, desejo e práticas sexuais, como exemplo os transexuais, travestis, transgêneros, gays, lésbicas e bissexuais.

As autoras apresentam a intolerância como responsável pela morte da população LGBTQIA+, pelas piadas feitas a fim de rebaixá-las/os, impedindo que elas/eles se sintam seguros e desfrutem de uma vida digna como cidadãs/ões.  Em contrapartida, destacam que o Brasil tem a maior parada LGBT do mundo, o que é muito significativo para estes grupos, pois visa construir diálogos no que tange aos direitos desses grupos, almejando uma sociedade mais igualitária.

No debate entre “opção” versus “orientação sexual”,  as autoras discutem que o desejo não é algo meramente consciente para ser posto como uma opção ou escolha,  sendo assim o ideal seria propagar o respeito e aceitação da diversidade, não reproduzindo a desqualificação das sexualidades, mas buscar entender as orientações sexuais na sua perspectiva de pluralidade. Dito isto, as autoras apontam que a escola pode corroborar para a perpetuação da descriminação dessas diferenças, podendo afastar alunos e alunas que fujam do estereótipo tradicional, quando não se toma medidas para combatê-la no âmbito escolar.

Por isso, as autoras apontam que é necessário a formação continuada para todos os profissionais da Educação, a construção de debates com alunos e alunas a respeito do tema, a fim de que tenham uma percepção sobre diversidade e as questões de gênero,  visando construir uma escola acolhedora,  atentando para piadas preconceituosas e situações constrangedoras que envolvam pessoas LGBTQIA+, visando coibir a perpetuação da descriminação.

No capítulo o que a família tem a ver com isso? as autoras abordam a importância de se compreender a família como membro integrante da comunidade escolar, mesmo que não estando no dia-a-dia da escola. Porém, o que entendemos por família, sofreu e sofre modificações ao longo da história. Com o código civil de 1916, por exemplo, só o casamento possibilitava a constituição de uma família tradicional, devendo conter pai, mãe e filhos. Esta lei designava aos homens provedor do lar e as mulheres a função de dona de casa. Porém, diz as autoras, há muito existem famílias que não são as descritas nessa lei, como, por exemplo, as famílias em que mães criam seus filhos sozinhas, ou as em que as avós criam os netos etc.

Com a constituição de 1988, a definição de família estabelecida difere da descrita no referido código de 1916. Com ela, está estipulado que homens e mulheres exercem igualmente direitos e deveres presentes na entidade familiar, além disso, reconhece como família, também, aquelas que são formadas por famílias que não sejam apenas pai, mãe e filhos, passam a ser consideradas, legalmente, como família, com exceção dos arranjos familiares formados por pessoas do mesmo sexo que mesmo não sendo reconhecido pela constituição, existe. A cerca deste desenvolvimento plural da ideia de família, Prado (1985, p. 8) afirma “que ela subsiste sob múltiplas formas”, se recriando e sobrevivendo em sua evolução na história.

Com isso, as autoras apontam que a família é uma instituição mutável, que se modifica ao longo da história e em cada sociedade. No que diz respeito a escola, ela deve estar sempre dialogando com essa diversidade, pois, é comum nos deparemos com uma variedade enorme de arranjos familiares na comunidade escolar, que devem ser vistos não como um problema, ao contrário, sendo assim, é importante construir diálogos para se evitar preconceitos e opressões.

Uma outra questão sobre a noção de família que as autoras destacam é que sua idealização não é apenas de cunho sexual, mas de cunho social, pois, idealiza-se como família estruturada, aquela composta por homem, mulher e filho/filha, com casa própria, todos brancos, que foge da realidade da estrutura das famílias de um país multirracial e desigual como o Brasil, em que muitos/as alunos/alunas precisam dividir seu tempo entre estudos e trabalho para ajudar em casa, seus pais/avós etc. Assim como também é apontado por Szymanski (1997, p. 219), ao afirmar que as famílias consideradas “desestruturadas”, eram vistas desta maneira, por se estruturarem “de forma diferente do modelo de família nuclear burguês”, imputando a esta afirmação o desempenho escolar dos alunos.

Com isso, as autoras concluem este capitulo, argumentando que é necessário levar em consideração todas as formas de estruturas sociais, para não colaborar com os preconceitos e as desigualdades que passam os estudantes que não fazem parte da estrutura familiar tradicional, mas apontam também que é preciso garantir uma boa moradia, boa alimentação, emprego e salário digno para que as diferenças familiares não sejam também motivo para a desigualdade. Por isso, o direito a educação deve ser defendido como uma arma contra as hierarquias sociais.

No capítulo outras diferenças, as autoras contrapõem a ideia liberal de que todos tem oportunidades iguais porque todos são iguais perante a lei. Para contrapor esta ideia, as autoras apontam que os fatores: raça/etnia, gênero, classe social, sexualidade, geração e região dividem a sociedade (e podem se relacionar), sendo diferenças existentes entre nós, mas que geram desigualdade de direitos e oportunidades.

Para fundamentar esta afirmação, as autoras trazem cinco gráficos referentes aos dados do IBGE de 2010. O primeiro gráfico trata da cor e do sexo da população brasileira, que demonstra que não há uma grande diferença na quantidade entre homens e mulheres, nem mesmo entre brancos e negros. O segundo gráfico, demonstra a faixa etária da população brasileira, que nos apresenta uma população consideravelmente jovem, mas que, se olhar o acesso que homens e mulheres, brancos e brancas, negros e negras, jovens e idosos tem a educação e ao trabalho, podemos nos surpreender com a desigualdade existente entre esses grupos sociais, especialmente quando combinamos marcadores sociais da diferença, como gênero, raça/cor e geração.

No gráfico seguinte, as autoras tratam da taxa de analfabetismo da população com 15 anos para cima, que aponta haver uma taxa de analfabetismo maior na população com 60 anos ou mais do que nas outras faixas etárias. Além disso, nessa faixa etária, as mulheres concentram o maior contingente de analfabetismo. No entanto, nas outras faixas etárias, o analfabetismo entre mulheres é menor que os homens, as autoras cruzaram, portanto, os marcadores: gênero e geração. O que significa, diz as autoras, que as mulheres das novas gerações têm frequentado e permanecido mais nas escolas do que os homens.

No quarto gráfico, apresenta-se que as mulheres, em 2010, já representavam maioria nos ensinos fundamental e superior. Porém, os índices educacionais no rural é diferente dos da cidade, no rural, homens e mulheres possuem índices piores do que os homens e as mulheres da cidade. Todavia, mesmo no rural, os homens possuem índices de instrução piores do que os das mulheres. Já se levar em consideração o marcador “raça/cor”, as mulheres brancas possuem índices melhores do que as mulheres negras, e os homens brancos melhores do que os homens negros.

A diferença de acesso a educação no Brasil está atrelada ao passado escravocrata do país, pois, mesmo com a abolição, negros e negras, por muitos anos não tiveram acesso ao ensino regular. E mesmo quando para essa população o ensino passou a ser um direito, ficaram marcadamente conhecidos como os “piores alunos”. Com base em estatísticas que escancaram tal realidade, Joana Passos afirma que “o racismo é estruturante das desigualdades a que está submetida a população negra, pois, incide sobre ela e determina as suas condições sociais por gerações” (2012, p.138).

Como vimos nos gráficos anteriores, mulheres brancas possuem os melhores índices educacionais que homens brancos e as mulheres negras do que o homem negro. Porém, isso não se traduziu em melhores salários, como aponta o quinto e último gráfico trazido pelas autoras, onde apontam que os homens brancos possuem os melhores salários, seguidos da mulher branca, do homem negro e a mulher negra possui, entre estes, os piores salários. Com estes dados, as autoras buscaram comprovar, neste capítulo, que as diferença entre a população brasileira foram traduzidas em desigualdades e que é preciso estar atento para esta questão, porque elas estão presentes no cotidiano não só dos alunos, mas da educação de modo geral.

No oitavo e último capítulo, intitulado últimas considerações, como o próprio nome já diz, as autoras afirmam que as educadoras e educadores estão em constante formação a respeito de seu ofício e que não desejam doutrinar ninguém, mas que se comprometem com um mundo mais plural, igualitário e que essa é a perspectiva que adotam como profissionais da educação, como demonstraram no decorrer deste magnifico livro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, compreendemos que a educação se apresenta como parte de uma sociedade que é desigual e em que há diferenças e que, portanto, se não defender uma proposta pedagógica de intervenção nestas questões, ela somente reproduzirá as injustiças, violências e desigualdade já existentes. Da mesma sorte, ainda que se a escola é compreendida como um espaço de inclusão social, deve-se levar em consideração estes aspectos tratados no decorrer deste livro. Além disso, os educadores possuem um papel fundamental quando engajados nesta transformação.

O livro Diferentes, não desiguais de Beatriz Lins, Bernardo Machado e Michele Escoura, sem dúvidas contribui para uma reflexão a respeito da importância de se tratar a temática de gênero nas escolas, a partir, obviamente, da capacitação dos profissionais da educação. Isto porque as autoras do livro acreditam em uma educação emancipadora, que não reproduza os vícios (preconceitos, discriminação, invisibilização, etc.) que há muito existem na educação. Como a discussão apresentada no livro, apesar de se relacionar com outras áreas do conhecimento, ocorre em torno de um conceito sociológico, que é tema tratado nas turmas de ensino médio, este livro surge como uma ferramenta para os professores e professoras em sala de aula.

REFERÊNCIAS

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BERNER, V. B. Teorias Feministas: O Direito Como Ferramenta de Transformação SociaL. In: Patrícia Tuma Martins Bertolin,Denise Almeida de Andrade,Monica Sapucaia Machado. (Org.). Mulher, Sociedade e Vulnerabilidade. 1ed.:, 2017, v. , p. 29-46.

ESCOURA, Michele. Moças de família: gênero e relações de parentesco. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 351-365, 2008.

FÊNIX, Darília Maria Costa Oliveira. O supremo tribunal da moda: o discurso midiático/publicitário de apelo ao consumo na formação de identidades. Monografia (Aperfeiçoamento/Especialização em Especialização Fundamentos da Educação: Práticas P) – Universidade Estadual da Paraíba, 2014.

FLORÊNCIO, Jackeline Freire. Por Uma Vida Livre De Violência: Contribuições À Avaliação Das Medidas Protetivas De Urgência Da Lei Maria Da Penha Em Pernambuco. Pernambuco: Revista Política Hoje – Volume 28, 2019, n. 1, P. 68-123.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª Edição – São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. Rio de Janeiro, 2018. ISBN: 9788524044489.

LINS, Beatriz Accioly. MACHADO, Bernardo Fonseca. ESCOURA, Michele. Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola. 1ª. ed. São Paulo: Editora Reviravolta, 2016.

MADERS, Angelita Maria; ANGELIN, Rosângela. A construção da equidade nas relações de gênero e o movimento feminista no Brasil: avanços e desafio. Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10(19): 91-115, jul.-dez. 2010.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

PASSOS, Joana Célia dos. As desigualdades educacionais, a população negra e a Educação de Jovens e Adultos. EJA EM DEBATE, Florianópolis, vol. 1, n. 1. p. 137-158. 2012.

PRADO, Danda, O que é Família. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Abril Cultural Brasiliense, 1985.

SZYMANSKI, Heloísa. Encontros e desencontros na relação família-escola. Ideias, n. 28, p. 213-225, 1997.

APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

4. Deve-se entender as instituições sociais como um conjunto de regras, formais ou informais, e de valores.

5. Uma das evidencias a respeito da invisibilização das mulheres, inclusive na academia, é o ato utilizar o termo autores, quando há mulheres na produção de determinada obra. Por esse motivo optamos por reverter isso, sem, obviamente, reverter as opressões que atingem as mulheres.

[1] Graduanda em Ciências Sociais.

[2] Graduando em Ciências Sociais.

[3] Licenciado em Pedagogia e Mestrando em Educação e Ensino de Ciências (PPGEECA/UEPA).

Enviado: Março, 2021.

Aprovado: Abril, 2021.

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Kleberson Almeida de Albuquerque

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