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“Como é trabalhar aí?”: os afetos que circulam nas empresas produtoras de mensagens

RC: 147210
414
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/como-e-trabalhar-ai

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

PICCHIAI, Daniela de Queiroz [1], SANTOS, Rogério da Costa [2]

PICCHIAI, Daniela de Queiroz. SANTOS, Rogério da Costa. “Como é trabalhar aí?”: os afetos que circulam nas empresas produtoras de mensagens. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 08, Vol. 01, pp. 88-106. Agosto de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/como-e-trabalhar-ai, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/como-e-trabalhar-ai

RESUMO

Este artigo analisa as opiniões e impressões das relações de trabalho entre profissionais de agências e produtoras de mensagens, tendo como fonte de pesquisa a planilha “Como é trabalhar aí? Trata-se de uma planilha disponibilizada nas redes sociais para recolher impressões de trabalho dos profissionais das áreas de comunicação, marketing, publicidade e propaganda. Os dados considerados na planilha foram aqueles inseridos entre os anos de 2016 e 2020. O objetivo da presente pesquisa foi extrair dos depoimentos dos profissionais suas percepções das relações de trabalho e os sentimentos mobilizados nos ambientes produtores de comunicação, buscando compreender, a partir daí, quais afetos circulam nesses locais. O artigo levanta questões pouco abordadas nesse campo de trabalho, uma vez que busca observar a comunicação a partir da experiência emocional dos profissionais que estão envolvidos com sua produção. Para contribuir para tal entendimento, o artigo vale-se de alguns autores como Baruch Spinoza, Maurizio Lazzarato, Franco Berardi e Judith Butler.

Palavras-chave: Relação, Trabalho cognitivo, Afetos.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa os afetos produzidos nas engrenagens das instituições que atuam diretamente com linguagem, comunicação, palavras, imagens e ou a emissão de diferentes tipos de códigos e signos. Em outros termos, instituições que produzem mensagens para captar a atenção de seus destinatários, sejam eles ouvintes, espectadores ou consumidores. As análises tomam como ponto de partida que todo o trabalho, até mesmo o mais mecânico, exige da capacidade cognitiva humana; no entanto, quando a maior parte da força de trabalho estava presente nas fábricas e indústrias, o corpo/mente humano estava inserido em uma atividade automatizada, repetitiva. Já os trabalhos na contemporaneidade, utilizam-se da imaginação e da linguagem como um recurso essencial para a produção de lucro.

Entende-se aqui que agências de publicidade, produtoras de conteúdo e marketing de empresas, encabeçam a produção de narrativas utilizando-se da linguagem como uma ferramenta de conexão entre empresas e sociedade. A linguagem aqui se apresenta de diversas maneiras: textual, sonora ou imagética. Essa produção de narrativas tem como foco prioritário o estímulo ao consumo e a aceleração do capitalismo, uma vez que são as empresas que financiam essa atividade.

No contexto das produtoras e emissoras de linguagem, embora as tecnologias da informação e comunicação e a expansão da IA – Inteligência Artificial- estejam caminhando, a passos largos, em direção à produção de linguagem sem a presença de um ser humano, a produção de narrativas e conteúdos no setor de comunicação que envolve associar camadas afetivas nas mensagens ainda é feita por pessoas, e as novas tecnologias e plataformas fazem o processo de gestão e divulgação dessa produção.

Compreendendo que a participação humana ainda é essencial no que cabe às mensagens e conteúdos produzidos e que o uso da capacidade cognitiva e criativa das pessoas é o que as empresas desejam, duas questões se apresentam: quais afetos são produzidos internamente nessa engrenagem? E de que modo esses afetos transitam entre a própria produção e aqueles que são impactados por essas mensagens?

Para tentar responder tais questões, a presente investigação se fez a partir dos relatos de profissionais atuantes na área da comunicação – em agências e produtoras de comunicação e marketing. Os depoimentos foram recolhidos de uma planilha[3] criada pelos próprios profissionais da área da comunicação, que circula anualmente, desde 2016, entre aqueles que atuam na área, questionando-os: Como é trabalhar aí? O documento considerado no decorrer desse artigo reúne mais de 500 declarações feitas por profissionais da área da comunicação, de 2016 a 2020. Durante a pandemia outras versões da planilha foram criadas, mas não foram consideradas nessa análise.

Ainda que a planilha não tenha sido produzida pelos pesquisadores do artigo para as reflexões aqui feitas, entende-se que sua análise é relevante, uma vez que tal arquivo circula já há seis anos e se tornou um canal anônimo para os profissionais manifestarem livremente suas percepções e apontarem as práticas do mercado. O anonimato do material pode explicar o alto engajamento por parte dos profissionais, pois, diferentemente de outros questionários, não há nenhuma instituição direcionando as respostas e é indiferente o cargo ocupado pelos respondentes, tornando a planilha rica em informações e percepções dos produtores de linguagem e comunicação tanto sobre as relações de trabalho quanto sobre eles próprios, merecendo por isto ser analisada e debatida pelos pesquisadores da comunicação.

Por esse motivo, durante o processo de leitura do material, inúmeros e diferentes caminhos para análise se apresentaram praticáveis. No entanto, o objeto de interesse deste artigo é a conexão entre os profissionais, as linguagens produzidas e os afetos envolvidos nessa produção. Em um primeiro momento, o presente trabalho considerou as declarações que repetiam uma opinião comum entre os profissionais, ocasionando, assim, uma percepção afetiva similar sobre a forma de trabalhar e o ambiente de trabalho. Somada às declarações repetidas nos depoimentos dos profissionais, as análises também foram feitas a partir das repetições de palavras: tristeza, abuso, exploração, acolhimento, reconhecimento, liberdade.

A análise das palavras expandiu-se para alguns correlatos. Assim, abuso e exploração, por exemplo, foram compreendidos também através das palavras: abusivo (a), explorar, repressão, repressor, escravo (s) e autoritário (a). Esse conjunto de palavras apareceu ao menos 38 vezes ao longo dos depoimentos. Já a palavra afetiva tristeza também foi pesquisada como: triste, infeliz, desanimado, descontente e depressão. Todas reunidas apareceram 34 vezes ao longo da planilha.

As palavras acolhimento e reconhecimento também foram consideradas como: acolhido, acolhedor, orgulho e reconhecer. Tais termos apareceram 32 vezes ao longo da planilha. Já a palavra liberdade foi pesquisada através dos seus sinônimos livre, autônomo e autonomia, totalizando 16 vezes ao longo dos depoimentos.

Tendo como base as declarações similares e a repetição das palavras apresentadas acima, foram definidos três grandes eixos que serão debatidos neste artigo: 1) o excesso no volume de trabalho e o desrespeito quanto à quantidade de horas trabalhadas, desencadeando relações abusivas e o esgotamento dos profissionais; 2) o ideal da liberdade criativa e da realização profissional por meio do reconhecimento, causando assim a insatisfação ou o contentamento ao sentir-se pertencendo a uma equipe; e 3) a não dissociação entre o trabalho e a vida, tendo a tristeza como afeto recorrente entre esses profissionais.

Não coube a esse artigo discutir a veracidade das declarações, mas, sim, compreender a partir dos relatos quais afetos circulam nos trabalhadores dessa engrenagem. Compreendendo esses afetos, perguntamo-nos se é possível pensar na ideia de ressonância afetiva entre a produção e o impacto causado pela própria produção.

Para contribuir com tal discussão, o presente artigo se vale de alguns autores, dentre eles, Baruch Spinoza (2009) e seu entendimento do campo dos afetos; Maurizio Lazzarato (2014) e sua compreensão dos conceitos de trabalho imaterial, servidão maquínica e sujeição social; Franco Berardi (2017) e o conceito de semiocapitalismo, e Judith Butler (2017) pelo viés do corpo e do reconhecimento.

2. A NOVA ROUPAGEM DAS EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO: O ABUSO DE SI

Os comunicadores contribuíram com a ideia de que as empresas devem ter um propósito, um princípio vital para sua existência. Com essa roupagem discursiva, o lucro e toda a lógica de rentabilidade do negócio foi se escondendo e tensionando os profissionais da empresa. Aqueles que viam a corporação por fora se encantavam com as imagens, textos, cheiros e roupagem criadas. Com a expansão do trabalho cognitivo no final do século XX e início do XXI, a ampliação de empresas que vendiam seus propósitos ganhou ainda mais força, não apenas com as tradicionais propagandas em intervalos comerciais televisivos, mas também com notícias de jornais, conteúdos de entretenimento, nas ruas, nos celulares, computadores etc.

Por um lado, discursivamente, redatores e designers trabalhavam buscando escolher os melhores ângulos e palavras, a fim de apresentar as instituições como lugares de vanguarda. Por outro lado, rompia-se com a convencional estrutura física, constituindo espaços arquitetônicos mais arrojados, desenhados agora como um lugar de entretenimento, quebrando, assim, com uma certa seriedade dos ambientes tradicionais de trabalho. Essas alterações discursivas e físicas estamparam as seções de negócios e empresas nos jornais e revistas. Assim como um novo produto, a atração por essas novas formas de trabalho fez com que os jovens buscassem uma colocação profissional nessas instituições.

Ao adentrar esses novos ambientes de trabalho, os profissionais se depararam com o fim de práticas como horário de entrada/saída, bater ponto, silêncio no ambiente, padrões de comportamentos, etc. Contudo, passada a euforia da novidade, a experiência desses trabalhadores em empresas de comunicação e tecnologia começou a apresentar uma configuração distante do discurso posto em circulação. Em um dos depoimentos recolhidos na planilha “Como é trabalhar aí?”, o profissional diz: “A empresa se vendia como descolada, diz que tem videogame, breja e tv com Chromecast, mas na real querem colocar cabresto em todo mundo. Sair cedo (diga-se, cumprir as 8h) é lenda, se sair antes das 8h, você está desanimado.” (PLANILHA, ago., 2016).

O desânimo descrito pelo profissional nos aponta uma direção, como se o seu estado de espírito fosse algo sujeito aos parâmetros da empresa, que define os aspectos subjetivos desse profissional e o categoriza como útil, produtivo, disciplinado ou não. Na prática, é como se o trabalhador tivesse que sentir aquilo que a empresa deseja que ele sinta, de modo que os afetos se tornam um atributo de valor para a empresa.

No livro Il terzo incônscio, o filósofo e escritor italiano Franco Berardi aponta que o capitalismo neoliberal “celebra o desejo como impulso ao consumo, à competição e ao crescimento econômico, enquanto o prazer é constantemente adiado, virtualizado e inacessível.” (BERARDI, 2022, p. 12)[4]. A visão do autor contribui para a compreensão do depoimento do profissional, pois os afetos do trabalhador são encaixotados pela palavra “desanimado”, de modo que todo o prazer que se supunha alcançar com um ambiente de trabalho disruptivo se torna inalcançável.

Os testemunhos sobre a grande quantidade de horas trabalhadas e não contratadas, a falta de limite na negociação empresa-trabalhador, são repetidos por diversos profissionais ao longo de toda a planilha. Em um outro testemunho, a funcionária diz: “Ninguém ganha hora extra, CLT é piada, sem contar o abuso e a exploração. Vira noite, trabalha fim de semana, e nem o nome no case tem.” (PLANILHA, ago., 2016). A quebra das condições de trabalho padronizadas pelo direito trabalhista fez com que essas instituições igualassem a relação empresa-trabalhador, nesses ambientes. Tal ruptura é tratada como parte de todo o cenário e ambiente, uma vez que sua atuação busca destoar de empresas mais tradicionais.

Essa nova roupagem das empresas de comunicação e tecnologia fundamentou, esteticamente e discursivamente, a equiparação entre empresa e trabalhador. A apresentação, em especial aos jovens, da possibilidade do trabalhador ser um indivíduo livre, independente e emancipado de qualquer tutela, seja do Estado ou da instituição, ressoava bem com essa espécie de associação rebelde que captura os jovens. O que só a vivência da prática pode apresentar a esses trabalhadores é que ao transformar o funcionário em um empreendedor, o indivíduo torna-se responsável pela sua performance no trabalho, produtividade e ganhos financeiros. Além disso, ele é estimulado a acreditar que, por sua força de vontade e “desejo de vencer”, irá alcançar uma espécie de independência e liberdade, impossível de vivenciar quando se é apenas um empregado de uma empresa. Esse discurso, construído com o apoio das corporações midiáticas, públicas, financeiras, tecnológicas e reverberado nas redes sociais, vende um futuro que só depende da força desse trabalhador-empreendedor. Mas, enquanto o futuro não chega, as relações de trabalho ainda se mantêm pela ordem do poder (do detentor dos meios de produção sobre aqueles que produzem).

Na prática, o que se viu acontecer, em especial nas últimas duas décadas, foi o aumento da quantidade de trabalho, como aponta o depoimento acima: “Vira noite, trabalha fim de semana e nem nome no case tem” (PLANILHA, ago., 2016).  Essa demanda pela produção de linguagem ou pelo gerenciamento dessas mensagens nas plataformas digitais, foi resultado do processo de digitalização e do uso da linguagem como produto do capitalismo, e, como em todo produto, a lógica é maximizar o lucro.  Adentramos então, como descreve Franco Berardi, na era do semiocapitalismo.

Chamo semiocapitalismo à configuração atual da relação entre linguagem e economia. Nessa configuração, a produção de qualquer bem, material ou imaterial, pode ser traduzida em uma combinação e recombinação de informações (algoritmos, figuras, diferenças digitais). (BERARDI, 2017, p. 127-128).

O autor nos faz pensar sobre a conexão entre linguagem e mercadoria, no sentido em que o excesso de sua produção vai em direção à captura dos sentidos possíveis. O objetivo de quem vende as palavras é alcançar a maior quantidade de indivíduos-consumidores e tentar se relacionar com eles por meio do discurso. Dessa forma, a empresa se associa à linguagem/mensagem e a direciona para todos os gostos, vontades, sem nenhuma perspectiva ética. O que interessa é envolver a maior quantidade de pessoas, para assim vender a maior quantidade de produtos/serviços. Como diz Berardi:

“O modo conjuntivo de interação social que havia prevalecido desde a revolução neolítica foi rapidamente substituído por um modo de interação conectivo. Este último começou a se impor quando as interfaces automáticas das máquinas de informação invadiram e inverteram a esfera linguística.” (BERARDI, 2017, p. 18). [5]

A vivência atual aponta não para uma unidade naquilo que é produzido, mas sim para uma espécie de ocupação de todos os possíveis territórios, oferecendo às pessoas aquilo que elas desejam ver e ouvir, com base em dados e informações previamente recolhidos. Nesse sentido, a expansão das tecnologias de informação e a aceleração da mercantilização está esvaziando o sentido da palavra. É tamanha a quantidade de mensagens, símbolos e imagens que se produz, em uma velocidade tão grande, que não há tempo para reflexão, para permanência; a linguagem tornou-se o produto mais desejado do capitalismo, aquele que fica obsoleto assim que produzido/consumido. É nessa urgência que profissionais da área estão inseridos. A aceleração do capitalismo vem equiparando os profissionais às máquinas, exigindo da produção do trabalho cognitivo algo similar à produção automatizada das fábricas e indústrias. Com isso, a exploração da subjetividade se aprofunda. Como afirma Costa:

No campo do trabalho imaterial, há uma espécie de aprofundamento no uso dos “recursos” da subjetividade, algo como a exploração das riquezas subjetivas que se constitui como nova fronteira do sistema de produção capitalístico. Não mais apenas escavar da terra seus recursos naturais, nem tampouco se contentar em extrair energia do corpo humano, mas além disso e sobretudo escavar na subjetividade e extrair os recursos psíquicos que fazem a produção econômica funcionar. (COSTA, p. 64, 2008)

Não à toa, os profissionais da área estão em um estado de esgotamento, ansiedade e falta de reconhecimento do próprio esforço. Depoimentos como, “Dar o seu melhor e entregar jobs fodas em tempos esdrúxulos não basta, você tem que dar seu sangue e não vai receber nada em troca” (PLANILHA, ago., 2016), são vistos ao longo da planilha com mais de 500 declarações.

3. RECONHECIMENTO E LIBERDADE CRIATIVA NO TRABALHO COGNITIVO

Os depoimentos da planilha “Como é trabalhar aí?” trouxeram também uma perspectiva diferente da apontada acima. Neste trecho do artigo iremos abordar o grupo de profissionais que afirmam que as agências, veículos de comunicação e áreas de marketing são ambientes onde encontraram uma certa realização profissional. É comum, ao longo do material da planilha, encontrar falas como: “Trabalhar aqui é bom, mas podia ser melhor. Somos considerados, saímos cedo, não trabalhamos em fins de semana, ganhamos melhor que em algumas agências, não temos atraso em salários. Temos muita liberdade, falamos de igual pra igual.” (PLANILHA, ago., 2016).

Por um lado, declarações como essa apontam um contentamento quando a instituição cumpre quesitos básicos da relação entre empregador/empregado e respeita o limite entre trabalho e vida. Por outro lado, coloca a ideia de liberdade criativa como forma de reconhecimento da existência desse indivíduo como um sujeito único, criativo. Em geral, nos testemunhos, não há questionamentos sobre como é possível pensar em liberdade inserido na lógica mercantil. O que foi revelado pela planilha são falas como: “Há uma liberdade criativa para todas as áreas (desde mídia à direção de arte).” (PLANILHA, dez., 2016).

Nesse sentido, a liberdade e a criatividade estão atreladas a uma certa hierarquia corporativa, resumindo-se à possibilidade de movimentação apenas no quadrado referente à empresa. Sendo assim, de saída, o trabalho “criativo” torna-se hipervalorizado e sem nenhuma inquietação sobre a finalidade do que se faz. A questão que se coloca é como chegamos a acreditar que é possível pensar em liberdade inseridos nas regras de um modelo de empresa que visa, justamente, esgotar seu potencial criativo?

As agências de comunicação, produtoras, bem como empresas que trabalham com a linguagem, estão submersas em um contexto com regras, padrões, briefings e objetivos bem definidos e delimitados pelo patrocínio, por aqueles que as financiam. Nesse caso, torna-se impraticável pensar em liberdade. Basta pensar na relação ambígua entre o que se entende por “liberdade de imprensa” e os interesses dos financiadores dos meios de informação. Além disso, a contemporaneidade possui toda uma moralidade conectada à lógica do capitalismo, bem como uma racionalidade que dissipou a ideia de que o trabalho “enobrece” o indivíduo. Agora, trata-se do trabalho criativo, cognitivo, imaterial (LAZZARATO, 2006), dos quais a lógica mercantil se apoderou duplamente: por um lado, pela apropriação do conhecimento humano, por outro, pela satisfação dos trabalhadores ao se tornarem reconhecidos e valorizados por sua “criatividade”, por se sentirem únicos e especiais.

Depoimentos como “Agência foda para um caralho! vc tem autonomia e bastante liberdade criativa” (PLANILHA, abril, 2018), nos fazem enxergar um caminho que associou criatividade e liberdade como algo revolucionário e capaz de transcender padrões. Essa dinâmica é reforçada e sustentada simultaneamente pelo coletivo dos donos de empresa e pelos trabalhadores; assim, uma espécie de referência do profissional criativo é construída entre aqueles que compartilham um dado espaço de trabalho. Essa relação vai produzindo nos profissionais a sensação de pertencimento a algo, fazendo com que uma ideia de segurança seja apresentada por meio da repetição de um determinado padrão ou comportamento.

Em agosto de 2016, quando o profissional diz: “falamos de igual pra igual”, ou então no depoimento de outro funcionário: “Trabalho aqui há 5 anos. Nesse período ajudei a construir a agência e me sinto orgulhoso pra cacete da equipe que formamos por aqui” (PLANILHA, mar., 2019), o sentimento de pertencimento a algo maior resulta do reconhecimento. No entanto, como Butler aponta, o reconhecimento é gerado pelo discurso normativo, cuja temporalidade não é a mesma da primeira pessoa (BUTLER, 2017).

O discurso normativo baseado na ideia de liberdade e criatividade, construído pelos profissionais de comunicação para as empresas de comunicação venderem suas imagens, produz nos próprios profissionais a mesma lógica de consumo, de fabricação de desejos e vontades de si. O desejo por esta criatividade conduz esses profissionais a um estilo de vida que possui sua própria linguagem corporal, de movimento, de vestimenta, de uso das palavras, de comportamento etc.

É interessante perceber que toda essa roupagem criativa está associada com uma ruptura dos padrões. No entanto, é o reconhecimento que age buscando justamente o enquadramento em determinados moldes. Butler (2017) aponta que, algumas vezes, a irreconhecibilidade do outro provoca uma crise nas normas que governam o reconhecimento. Entende-se aqui que não há crise, os padrões postos já agem na direção do reconhecimento.

Nesse contexto, a vontade de ser reconhecido criativamente produz profissionais que criam consumidores e se tornam consumidores, esse jogo retroalimenta a lógica mercantil produzindo um duplo investimento na subjetividade humana: a sujeição social e a servidão maquínica (LAZZARATO, 2014). Segundo Lazzarato, “a sujeição social produz um sujeito individuado cuja forma paradigmática no neoliberalismo tem sido a do capital humano e a do empresário de si.” (LAZZARATO, 2014, p. 27).

Na planilha, o que vemos é o capital humano como sinônimo de criatividade. São frequentes falas como: “A criação é endeusada, na véspera de Cannes ninguém faz mais nada se não focar em ganhar prêmios”, (PLANILHA, ago., 2016). Vale ressaltar que o festival de Cannes, na propaganda, funciona como reconhecimento para aqueles profissionais que atuam na elaboração das campanhas. Em geral, aqueles que vencem o festival se tornam mais valiosos para o mercado da comunicação.

O que se apresenta aqui de forma curiosa não é o fato de as empresas, por séculos, extraírem e explorarem o meio ambiente para fabricar seus produtos, e por esse mesmo caminho investirem em extrair o tempo, a vivacidade e a sensibilidade humana visando o lucro – afinal, isso é o esperado dessas instituições; o que é interessante é o posicionamento por parte dos profissionais de comunicação que, mesmo com todo o conhecimento do processo mercantil, aceitam, reforçam e desejam a posição em que sua própria vida é tomada como capital criativo.

Não interessa discutir se o marketing é criativo ou não, mas, sim, observar o atravessamento da lógica mercantil no desejo desses profissionais. Ao dizer “me sinto orgulhoso pra cacete da equipe que formamos por aqui”, o indivíduo perfura a camada do trabalho como um meio para conquistar algo e torna esse meio o próprio modo de vida. É como se a lógica econômica fosse ampliada para o corpo e para as relações.

Partindo dos depoimentos da planilha e dos conceitos apresentados por Lazzarato (2014) a respeito da sujeição social, podemos afirmar que o capital humano tem se tornado sinônimo de criatividade, e o empresário de si tem se confundido com a ideia de liberdade de trabalho. Já vimos, ao longo desse artigo, que as negociações entre os profissionais e as agências e produtoras são marcados pela contratação entre pessoas jurídicas. Tal prática é defendida como a possibilidade de maiores ganhos financeiros para ambas as partes. No entanto, quando se associa aqui o empresário de si e a liberdade de trabalho, isso vai além da negociação contratual, é a forma como parte dos trabalhadores se expressa em relação a algumas empresas. O depoimento de uma profissional torna tangível a ideia de liberdade e autonomia – o empresário de si – “É um ambiente muito saudável, com total liberdade de desenvolver seu trabalho. […] Os horários flexíveis“. (PLANILHA, set., 2016).

O discurso da liberdade não é novo quando pensamos no mercado, nas corporações e empresas; Adam Smith (2013), já defendia a ideia de que a liberdade traria uma fluidez natural às negociações. O que é curioso nessa investigação é perceber a repetição da palavra liberdade nas mais diversas dimensões, como, por exemplo, 1) a liberdade de mercado, como visto acima; 2) a liberdade na fala dos profissionais – “Liberdade de criação, galera jovem, descontraída, espaço acolhedor, bons clientes” (PLANILHA, ago., 2016) – em que o sentido aplicado é a possibilidade de trabalho sem coibição e obstrução de chefes; e 3) a liberdade do empreendedor de si que, majoritariamente, no contexto das agências e produtoras de comunicação, se traduz pelo Microempreendedor Individual (MEI) ou a PJtização. Este continua prestando os mesmos serviços para as empresas, no entanto, não possui nenhum vínculo trabalhista e é responsável por sua própria produtividade. Repare-se que não há menção à liberdade de expressão com o viés sócio-político.

Compreendemos, por meio do conceito de sujeição social, os lugares e papéis dos profissionais de comunicação, dos trabalhadores que permanecem exercendo suas funções, só que agora sem vínculos, sem limites definidos, apenas se tornando pessoas jurídicas.  No entanto, o que podemos adicionar a essa discussão é a lógica da servidão maquínica, onde os profissionais são considerados peça de uma grande engrenagem que os extrapola e constitui, juntamente com as máquinas tecnológicas, verdadeiros sistemas homems-máquinas, que agem sobre os níveis pré-individuais e supraindividuais, desconfigurando o “indivíduo” (LAZZARATO, 2014).

Caminhando em direção ao conceito de servidão maquínica e compreendendo a produção de linguagem como peça-chave do capitalismo contemporâneo, o que ocorre não é mais o uso da máquina como ferramenta, mas, sim, a relação constante para que essa engrenagem continue existindo, como uma retroalimentação. Nesse espaço, previamente dado, não há liberdade, tanto no sentido de liberdade criativa, quanto no de liberdade de autonomia, mas funções predeterminadas para que a máquina mantenha sua funcionalidade.

4. ENTRE O TRABALHO E A VIDA, A TRISTEZA

Nos detivemos até aqui nos depoimentos de profissionais que de alguma forma possuíam uma grande expectativa nas relações com o trabalho. Em nosso primeiro recorte afetivo, caracterizou-se a dimensão do abuso de si, entendida como o desânimo decorrente de não se conseguir produzir além de suas próprias forças. Em seguida, tratou-se do campo dos afetos que envolve o reconhecimento, já que a satisfação consigo mesmo é ampliada ou diminuída pela consideração ou desconsideração de um terceiro. Nesta seção do artigo buscaremos abrir espaço para as falas que, de alguma forma, se direcionam mais diretamente para uma outra zona afetiva, com a utilização de termos e palavras como triste, tristeza e infeliz.

Essa seção busca reunir depoimentos que traduzem diretamente o efeito do ambiente de trabalho no campo afetivo. O depoimento desse funcionário traduz uma série de elementos sobre a relação entre empresa, chefe e funcionário:

 É uma empresa em que o chefe fala que os problemas de prazo atrasado dos projetos é culpa do amadorismo dos funcionários, e não a falta de uma gestão adequada. É uma empresa em que o chefe diz que os funcionários têm que sorrir e estar satisfeitos. Que devem deixar os problemas pessoais quando passam pela porta da empresa, mas os amigos dele sempre estão indo lá bater um papo. É uma empresa em que o chefe diz que foi ‘um favor’ ter contratado aquele funcionário ali de cima. […] É uma empresa em que cada funcionário tem de 5 a 7 projetos para entregar. É uma empresa em que o chefe não se importa com os compromissos pessoais dos funcionários depois do horário de trabalho. Avisa no dia que marcou reunião para as 19h, sendo que o funcionário sai as 18. É uma empresa triste.” (PLANILHA, ago., 2016).

O funcionário aponta diversas situações de cerceamento e sufocamento da própria vida no ambiente de trabalho. Isso não significa que não há possibilidade de ser afetado nesse espaço de outra forma, mas o depoimento torna visível como o estrangulamento das nossas possibilidades de agir, diferente do que se espera, nos encaminha para experimentar afetos tristes.

Spinoza (2009) diz que o corpo é afetado de diversas maneiras, pelas quais a potência de agir pode ser aumentada ou diminuída. Essa capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo se dá por meio dos encontros. Se pensarmos aqui que funcionário, chefe e empresa se encontram na vida cotidiana, esses encontros produzem afecções nos corpos em questão. Por esse caminho, Spinoza (2009) nos indica que a alegria e a tristeza são afetos primários: o primeiro produz no corpo o aumento de sua potência de agir, e o segundo, a diminuição. Quando o funcionário relata a tristeza no encontro com essa empresa e chefe, podemos compreender como uma relação de diminuição de potência, uma relação de decomposição dos corpos.

O afeto da tristeza não apareceu somente nesse depoimento, outros funcionários também compartilham este sentimento relacionado à empresa, como é o caso desse profissional: “O lugar é triste. Repleto de pessoas com medo do dono”. (PLANILHA, abril., 2016). É curioso perceber que em ambos os casos a tristeza é colocada na empresa, “é uma empresa triste” diz o funcionário no depoimento acima, o outro diz “o lugar é triste”, em ambas as declarações a tristeza aparece pertencendo ao ambiente, como se o afeto estivesse emaranhado nas relações, mas também no espaço, nos objetos e em todas as coisas que compõem essa empresa.

Justamente esses ambientes que foram trabalhados para romper com padrões estão associados aqui à tristeza. Ao pensarmos em um ambiente triste, talvez, por definição, associamos a um enterro ou até mesmo um hospital, ambientes onde acontecimentos tristes são constantes. No entanto, é interessante pensar em uma empresa que cria desejos como um espaço triste. Por esse caminho, vale perguntar se os ambientes possuem afetos ou somos nós que damos esse sentido aos lugares e coisas?

Os publicitários e comunicólogos contribuíram para tornar objetos, coisas e especialmente mercadorias em alienação dos nossos desejos e instrumentos afetivos. Os depoimentos nos apontam que, dentro do próprio mecanismo de mobilização afetiva, o que circula é a tristeza, e frases como “o lugar é triste” traduzem essa circulação afetiva.

Adentrando nas relações entre funcionários e empresas produtoras de comunicação, uma profissional diz: “Fui ridicularizada durante a entrevista. Soube que os demais candidatos passaram pelo mesmo. Acho extremamente TRISTE uma pessoa se aproveitar da fragilidade do outro, de um momento de crise no país, e ridicularizar uma pessoa que só busca um EMPREGO.” (PLANILHA, abril., 2017). A fala da profissional aponta diretamente o atravessamento da tristeza produzida no ambiente e nas relações, além disso ela também oferece um outro elemento que compõe essa tristeza: a impossibilidade de ação, de novos acontecimentos no eixo da empresa, mas também fora dela, uma vez que, o medo do desemprego e do endividamento são discursos que circulam socialmente.

Essa condição atual gera tristeza ao mesmo tempo em que se encadeia com a tristeza gerada pelo encontro da profissional com o entrevistador; e, como diz Spinoza (2009), ocorre então uma diminuição da potência de agir, fundando assim uma espécie de circulação da tristeza no microambiente da empresa e no macroambiente do país.

Outra profissional ressalta: “Trabalho aqui só pra pagar as contas, infelizmente”. (PLANILHA, ago., 2016). Ainda que pudéssemos pensar que essa funcionária consegue fazer a separação entre vida e ambiente de trabalho, é possível questionar quais são os efeitos, qual o impacto na vida de um profissional que está a maior parte de seu dia envolto em um ambiente triste e tensionado. Uma outra profissional diz: “Não escrevi na primeira planilha pq não sabia como começar, de tanto sentimento ruim, de tanta lembrança horrível […] Hoje, depois de mais de 2 anos, ainda tenho pesadelos com esse lugar.” (PLANILHA, maio., 2018).

Os depoimentos apresentam uma despotencialização da vida, mas, além disso, apontam para a reverberação afetiva, em que a presença da tristeza não acontece somente no momento do encontro, mas ecoa tempos depois. Essa ressonância da tristeza parece ser parte do mercado, como diz: “Vale pensar o que você quer da sua vida, porque aqui adoece a alma, mas tenho percebido que isso é padrão.” (PLANILHA, ago., 2016).

Quais seriam as brechas que esses profissionais poderiam ocupar com a vida? Conscientes da necessidade do trabalho, seria possível romper com a circulação de tristeza produzida nesses ambientes? No livro “Irmã outsider”, Audre Lorde (2019, p. 52) nos diz: “ao tomar consciência da minha mortalidade, o que mais me trouxe arrependimento foram os meus silêncios.” Talvez, a planilha, seja uma forma de transformar tantos silêncios em linguagem e ação, e quem sabe na possibilidade de uma profunda transformação do mercado da comunicação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo selecionou a planilha “Como é trabalhar aí?” por ser esta uma importante fonte de informações e percepções produzidas pelos profissionais da área de comunicação, em um espaço aberto, que possibilita a expressão sem limitações, censura ou questões impostas pelas equipes de recursos humanos das empresas. A pergunta era simples: Como é trabalhar aí? O processo de análise dos depoimentos se deu após uma leitura completa das mais de 500 declarações. Após esse primeiro contato, aprofundamo-nos nos depoimentos em que constavam afetos expressos em palavras tais como: tristeza, acolhimento, reconhecimento, orgulho, admiração e liberdade. Somada às análises feitas por meio da semântica das palavras, o presente artigo também considerou as declarações que repetiam uma opinião comum entre os profissionais, nesses casos foram considerados os sentidos produzidos pelos depoimentos.

O início do artigo buscou compreender as novas relações de trabalho no eixo das agências e produtoras de linguagem, para isso, utilizou como base teórica o conceito de semiocapitalismo do filósofo Franco Berardi, que entende a linguagem como um produto do capitalismo moderno. Como todo produto, a lógica é maximizar os lucros, no entanto, quando esse produto depende da psique humana, o que vemos por meio dos depoimentos é um esgotamento dos profissionais desse setor de comunicação.

Todavia, não foi apenas o esgotamento que se tornou perceptível, mas também o desejo pelo pertencimento e reconhecimento como parte de uma equipe, identificados nos diversos depoimentos. Esses dois atravessamentos afetivos, em parte, advêm da hipervalorização de um trabalho dito e visto como “criativo”. A criação, aqui, resulta da transformação de um ofício, que na prática é a venda da capacidade cognitiva, em algo difícil de ser automatizado – por mais que estejamos caminhando em direção à inteligência artificial, a produção de conteúdo por profissionais de comunicação, que precisam associar camadas afetivas às suas mensagens, deve permanecer em mãos humanas ainda por algum tempo. Frente a essa prática, o trabalho foi se tornando indissociável da própria vida desses indivíduos, dado que, dessa perspectiva, a produção do profissional se torna algo único e singular.

O que chamou a atenção é que parte dos profissionais da comunicação não questionam a ideia de liberdade e criação, mesmo estando inseridos em um contexto com regras e padrões bem definidos, como é o caso da propaganda cujo objetivo primário é vender produtos e serviços. Aprofundando essa questão, deparamo-nos com o conceito de servidão maquínica, de Lazzaratto, que contribui para pensarmos que o trabalho cognitivo e a produção de linguagem tornaram-se apenas uma peça de uma engrenagem muito mais ampla que é o capitalismo moderno. É interessante perceber que no campo da comunicação, o esgotamento e o reconhecimento presente na vida dos profissionais, são também vistos na vida das pessoas que, por um lado, estão sendo constantemente bombardeadas por mensagens de diferentes empresas e por diversos meios e, por outro, produzem e compartilham conteúdos de suas próprias vidas nas redes sociais e outras plataformas.

Como fechamento, o artigo foi em direção à percepção de um afeto primário que muito apareceu em diferentes depoimentos da planilha. A tristeza foi uma palavra recorrente ao longo dos depoimentos, sendo apontada em diversas falas como algo presente na vida dos profissionais e no ambiente, como se o espaço da empresa fosse triste. Nesse contexto, em que a tristeza está presente na vida e no ambiente de trabalho desses profissionais, o que se afirma aqui é uma despotencialização desses corpos, que não é unicamente motivada pelo encarceramento de uma empresa de comunicação, mas também envolve a conjuntura atual do país – aumento do desemprego, crise institucional e falta de perspectiva futura. Essa combinação intensifica a submissão desses corpos à lógica mercadológica. É como diz Carla Madeira no livro Tudo é rio, “a tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade, lugar onde a alegria encontra espaço para existir.” (MADEIRA, 2021, p. 204).

Tendo em vista que a planilha analisada neste artigo é aberta e de conhecimento de todos os profissionais da área, permeando todas as hierarquias, vale perguntar: por que nada é feito para movimentar tal situação? Uma resposta possível é que, seja pela tristeza, seja pelo reconhecimento ou pelo pertencimento, em todos esses casos o trabalho é transformado em vida, e a vida é posta em função do lucro e do capital.

Dessa forma, conclui-se que produzir afetos tristes tornou-se uma estratégia, um modo de funcionamento dessas corporações. Pois fazer o profissional acreditar que seu ofício é sua vida é o primeiro passo para torná-lo dependente de estruturas complexas que são alimentadas, justamente, pela ilusão de que se poderia ser livre em tais condições. Nessa “prisão em aberto”, a tristeza emerge e é estimulada a circular no ambiente de trabalho, e desse modo se mantém os corpos sob controle, tornando-os rentáveis na dinâmica do mercado.

REFERÊNCIAS

BERARDI “BIFO”, Franco. Fenomenología del fin – sensibilidad e mutación cognitiva. Madri: Caja Negra editora, 2017.

______. Il terzo inconscio. La psicosfera nell’era virale. Milano: Nottetempo, 2022.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2017.

COSTA, Rogério da. Inteligência Coletiva: comunicação, capitalismo cognitivo e micropolítica. In: Revista Famecos (Impresso), v.3, p. 61-68. Porto Alegre: PUCRS, 2008. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/4801>. Acesso em: 6 jun. 23.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: N-1, 2014.

LORDE, Audre. Irmã Outsider: Ensaios e conferências. São Paulo: Autêntica, 2019.

MADEIRA, Carla. Tudo é rio. Rio de Janeiro: Record, 2021.

PLANILHA. Como é trabalhar aí?. 2016-2020. Disponível em: <https://docs.google.com/spreadsheets/d/1KVI6I6_yjkhwfHZPci6YMu–ro3EX2Yn/edit#gid=1671399178>. Acesso em: 6 jun. 23.

SMITH, Adam. A mão invisível. São Paulo:  Penguin-Companhia, 2013.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Edição bilíngue. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

3. Planilha referenciada nesse artigo:  https://docs.google.com/spreadsheets/d/1KVI6I6_yjkhwfHZPci6YMu–ro3EX2Yn/edit#gid=1671399178

4.  No original: “Capitalismo neoliberale, che celebra effettivamente il desiderio come impulso al consumo, alla competizione e alla crescita economica, mentre il piacere è costantemente posposto, virtualizzato e reso inaccessibile.”

5.  No original: El modo conjuntivo de interacción social que había prevalecido desde la révolución neolítica ha sido rapidamente reemplazado por um modo de interacción conectivo. Este último comenzó a imponer-se cuando las interfaces automáticas de las máquinas de información invadieron e invervaron la esfera linguística.

[1] Doutora. ORCID: 0000-0002-2431-1191. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0104902373465477.

[2] Doutor. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6807-4263. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4983570722211746.

Enviado: 18 de julho, 2023

Aprovado: 02 de agosto, 2023.

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Daniela de Queiroz Picchiai

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