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Escola: espaço de resistência ao racismo religioso

RC: 150682
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/resistencia-ao-racismo-religioso

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FERREIRA, Jaiara Rosa Cruz Scofield [1]

FERREIRA, Jaiara Rosa Cruz Scofield. Escola: espaço de resistência ao racismo religioso. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 08, Ed. 12, Vol. 03, pp. 05-21. Dezembro de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/resistencia-ao-racismo-religioso, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/resistencia-ao-racismo-religioso

RESUMO

O artigo aborda a manifestação recente de intolerância religiosa em um ambiente escolar na Bahia, justamente no aniversário de 20 anos da lei 10.639/03 e da promulgação da lei 14532/2023. Através de matérias de jornais e publicações de redes sociais, tem como objetivo analisar o aumento da Intolerância religiosa dentro das escolas brasileiras na perspectiva das Ciências das Religiões. A hipótese é que a intolerância religiosa crescente em especial em relação às religiões de matriz africana e o endurecimento das novas leis seja um sinal de uma crise social que se manifesta dentro das escolas e que é uma faceta de um racismo mais complexo, chamado racismo religioso que desqualifica a religião e a cultura afro-brasileira com uma base de sustentação nas relações econômicas e midiáticas do colonialismo moderno. Defende-se a ideia de que, para vencer a intolerância e o racismo por consequência, será preciso fomentar a discussão mais incisiva e sistematizada sobre o tema no interior das comunidades escolares através do componente curricular do Ensino Religioso através do diálogo interfé.

Palavras-chave: Intolerância Religiosa, Racismo Religioso, Escolas Públicas, Diálogo Interfé.

1. INTRODUÇÃO

A intolerância religiosa não é um fenômeno recente. No Brasil, cresceu o número de pesquisas sobre ela no campo educacional e outras frentes de mobilização social. Nas pesquisas, costuma-se associar a intolerância religiosa ao componente racial quando ligado às Religiões de Matriz Africana (RMA), justificando o uso do termo racismo religioso. Nas redes sociais e nas mídias, os casos de racismo religioso em ambientes educacionais são recorrentes.

Aqui, aborda-se um caso em Salvador/BA, em que uma mãe rasurou um livro por não concordar com o relato de um mito da criação, na visão das RMA. O caso ganhou repercussão e, concomitantemente, outros emergiram. Esse tipo de racismo religioso reflete na realidade educacional brasileira. Públicas ou privadas, as escolas precisam obedecer às leis, mas, o não cumprimento delas é notável. Mas, o racismo religioso nas escolas será extirpado com práticas pedagógicas diferenciadas.

Em três seções, o artigo aborda a história da intolerância religiosa e do racismo religioso. Depois, explicita o caso de racismo religioso em Salvador/Ba. Por fim, evidencia o Ensino Religioso (ER) e suas possibilidades na escola.  Propõe-se a utilização do ER através do diálogo, numa perspectiva de interfé, no contraponto ao racismo religioso, visando modificar a realidade escolar, isto é, menos conflituosa e aberta à aceitação das diversidades.

2. A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL

A intolerância religiosa é um fenômeno mundial. Desde que o ser humano desenvolveu um pensamento mais estético do conceito de religião, muitos povos travaram guerras e subjugaram outros povos considerados ofensivos por suas crenças. As guerras simbolizavam a exploração econômica e o apagamento cultural do povo subjugado. Atualmente, os embates religiosos ocorrem no conflito entre cristianismo e outras religiões: “o discurso religioso da demonização, utilizado com finalidades proselitistas desde o cristianismo primitivo, redundou em inúmeros atos de violência e intolerância religiosa ao longo da história, a qual […] se repete” no Brasil (Santos, 2017, p. 36).

Cada Constituição brasileira registrou a marca ideológica religiosa das pessoas que participaram de sua confecção. A Constituição de 1824, no contexto econômico da cana-de-açúcar, adaptou seu aparato legal para usufruir da mão de obra escrava: “assegurou-os liberdade de culto em recinto fechado, desde que não ostentassem símbolos religiosos externamente” (Santos, 2017, p. 190). Para Campos (2003, p. 62), “a tradição romana emprestou […] os principais institutos para a legislação brasileira [inclinada à] escravidão”.

Com base na lei romana, a legislação brasileira previa a escravidão, mas não abarcava a ideia de raça. Tal concepção fora formulada após a Constituição romana. Os juristas precisavam legitimar e legalizar a escravidão. Por isso, o conjunto de leis brasileiras teve de ser adaptada, segundo os conceitos ideológicos da raça que inferiorizava os negros e negras africanos, para possibilitar a escravidão nos termos da Coroa Portuguesa. “Há concretos exemplos de leis que demarcaram um tratamento jurídico absolutamente discriminatório, se não com os negros […], pelo menos com os que estavam na condição de cativos” (Campos, 2003, p. 63).

A Constituição de 1891 trouxe o conflito da laicidade, separando Estado e Igreja. Mas, nas demais – 1934, 1946, 1967 e 1988 – esse tema sempre foi considerado (Cury, 2014). Desde o período Brasil colônia até a contemporaneidade, a lei, indiretamente, em decisões e sentenças fragmentadas pelo país, legitima o racismo, além do fato de que a escravidão, historicamente, era uma atividade econômica importante.

O Código Penal republicano de 1890 criminalizou o exercício ilegal da medicina, a prática do espiritismo, de magia ou sortilégios e o exercício dos curandeirismos, afirmando a medicina como única perita nas questões do corpo e da mente (Brasil, 1890).

Segundo Armstrong (2016, p. 253), “a modernidade ocidental daria poder às pessoas, seria libertadora e fascinante; outros veriam como coercitiva, invasiva e destrutiva”. Essa seria a visão do povo negro, que sofreu com a invasão de suas terras e com a destruição de sua individualidade através da escravidão.

Atualmente, o pensamento colonialista ocidental apresenta as mesmas características. No Brasil, ele tenta diminuir a importância das culturas afro-brasileiras na construção de uma identidade e patrimônio cultural. Ele invade o direito constitucional individual da liberdade de crença religiosa, desqualificando a herança afro-brasileira e rotulando as RMA como demoníacas, marginais e charlatanistas.

O pensamento colonialista é eurocêntrico e baseado nos conceitos de raça do passado. Por isso, insere-se a intolerância religiosa ligada às RMA na lógica do racismo religioso.  Para Miranda (2021, p. 2), “militantes e pesquisadores têm reivindicado o uso da categoria racismo religioso, principalmente em função do agravamento dos conflitos e agressões aos terreiros em todo o país”.

Aqui, o conceito de intolerância religiosa será refletido em suas particularidades dentro dos moldes em que ocorre no Brasil. Intolerância religiosa descreve “um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças, rituais e práticas religiosas consideradas não hegemônicas” (Nogueira, 2020, p. 39). Elenca-se esse conceito, pois as RMA são “não hegemônicas” (Santos; Dias; Santos, 2023, p. 19), e poucos são os casos de intolerância religiosa contra outras religiões.

Historicamente, o Brasil sofreu exploração comercial. Os portugueses não queriam residir aqui. Após a guerra na Europa, o governo português estabeleceu morada no Brasil, alterando inclusive as diretrizes educacionais e as estratégias de contenção da mestiçagem populacional, pois, inicialmente, mulheres brancas não vinham para o país.

Os históricos embates sociais renderam textos de lei que versavam sobre as questões religiosas, étnicas e raciais. Diversos grupos não hegemônicos, com seus interesses, tentaram assegurar, por força jurídica, metodologias educacionais para preservação dos valores culturais considerados importantes.

Na contemporaneidade, a globalização econômica e cultural do capitalismo se impõe como modelo único de sociedade e essa cultura dominante é veiculada pelos meios de comunicação de massa, por certas tradições religiosas e pelas escolas, dando continuidade ao processo de exclusão da diversidade cultural presente em nossa sociedade (Junqueira, 2018, p. 8).

No ER e em seu marco legal, perpassa esse embate de forças. As tensões religiosas iniciaram no Brasil através dos colonizadores, em paralelo à exploração comercial, culminando na intolerância às outras religiões. No pensamento colonial, a imposição da fé era positiva, pois havia uma única religião pela qual alcançaria a salvação.

Logo, emprega-se o racismo religioso para estudar as manifestações de intolerância religiosa ligadas às RMA. Há uma rejeição do aspecto religioso somado ao da raça eivada da herança colonial descrita anteriormente. Segundo Cury (2014, p. 65), as “precárias condições de existência social, preconceitos, discriminação racial e a opção por outras prioridades [desembocam em] uma herança pesada de séculos a ser superada”.

Apesar dos avanços científicos, das políticas de direitos humanos e das conquistas nas ciências humanas, existem atitudes inconcebíveis ao nível de desenvolvimento cognitivo da humanidade. Esses fatos não estão no passado, mas o racismo religioso é um fenômeno contemporâneo, crescente e preocupante no Brasil, sobretudo nas mídias.

3. O RACISMO RELIGIOSO NAS MÍDIAS

Em janeiro de 2023, ocorreram três fatos para rememorar a luta contra o racismo religioso no Brasil: 20 anos da Lei 10.639 (Brasil, 2003), divulgação do II Relatório sobre a Intolerância e Violência Religiosa; e a promulgação das Leis 14.532/2023 (Brasil, 2023), que enrijecem as penas de intolerância religiosa. Apenas alterar as leis não basta, pois diariamente surgem notícias que provocam inquietação e medo (CNN Brasil, 2023).

Em março de 2023, em Salvador/BA, uma mãe vandalizou uma obra literária infantil, escrita por Emicida, chamada Amoras[2]. O exemplar era compartilhado por crianças de uma escola particular, Clubinho das Letras, pelo projeto “Ciranda Literária”[3]. A mãe decidiu confrontar e reescrever suas verdades no exemplar que constava na lista de possibilidades sugeridas pela escola. O livro foi rasurado nas páginas relacionadas ao mito da criação, segundo as RMA, argumentando que eram mentiras. A mãe inseriu sua opinião na ótica cristã, citando trechos bíblicos na esperança que outras pessoas acessassem as páginas rasuradas com a “verdade”.

Segundo o II Relatório Sobre Intolerância Religiosa, na Bahia predomina e aumenta esta prática criminosa. O autor de Amoras argumenta:

Minha reação […] é de tristeza. Não […] de derrota. A história do livro […] é uma grande vitória. A repercussão dele, fala por si. A tristeza é por essas pessoas que querem que a sua religião, no caso a cristã, protestante, […] seja respeitada, e deve ser respeitada, mas não se predispõem […] a respeitar outras formas de viver, de existir e de manifestar sua fé (Emicida, 2023).

Nogueira (2020, p. 36) argumenta: “atualmente, […] intolerância religiosa está no seio de um processo de colonização do país [que] tem deixado marcas profundas em uma ideia também ilusória de democracia religiosa e laicidade”. A mãe negou a acusação de intolerância religiosa, confirmando tal argumento. A escola convocou a família para esclarecer a situação, dispondo-se a repor o livro rasurado. Para os órgãos regulamentadores da educação, o ensino, público ou privado, deve ocorrer na ótica do laicismo, não privilegiando ou rechaçando qualquer religião. “O princípio constitucional da laicidade provém do postulado do liberalismo político de conceber todos os cidadãos, bem como as organizações religiosas pacíficas das quais são integrantes, como livres e iguais” (Santos, 2017, p. 72). Esses direitos são garantidos pela Constituição vigente, Código de Direito Penal brasileiro e Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mas, na prática, os casos de racismo religioso aumentam. Para Chaves (2015, p. 61):

Há uma dificuldade para combater a intolerância religiosa […] é difícil que alguma pessoa em sã consciência se autodenomine intolerante. Ao contrário! Dos altares, dos púlpitos, das rodas de terreiro de umbanda, dos sites de apologética, das mesas de meditação e através dos meios de comunicação o discurso é sempre, como não pode deixar de ser, pacífico. Pregam a paz, a tolerância, a compreensão e aceitação da fé ou da descrença do outro, enfim, o discurso é este. Mas a realidade é bem outra.

Para Chaves (2015), isso resulta da herança colonialista convincente da superioridade cristã, que acredita, por constituir a maioria religiosa, que não sofrerá as consequências dos atos que ferem os direitos garantidos pelo Artigo 5º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal (Brasil, 1988).

Chaves (2015, p. 10) relaciona a intolerância religiosa com a legislação: “sempre que estes direitos garantidos por lei são desrespeitados, acontece a intolerância religiosa”. As religiões cristãs têm a evangelização como missão apostólica, mas o discurso proselitista não pode ser danoso às pessoas. “O proselitismo é legitimo, mas a coação não o é” (Chaves, 2015, p. 83). Rasurar um livro e o colocar como disseminador de mentiras não dá direito de resposta ao próximo, coagindo os leitores a aceitarem a vandalização como descrição da “verdade”.

Para Gomes (2003, p. 77), é na escola, onde se transmite a educação formal e se produz cultura, que práticas discriminatórias podem ser superadas e modificadas. Trata-se do ponto focal das práticas pedagógicas de superação ao racismo, que promove a ampliação de saberes e não se limita à transmissão de conhecimentos, mas estabelece relações profundas.

Veremos que o educativo é eminentemente cultural e que a relação ensino/aprendizagem se constrói no campo dos valores, das representações e de diferentes lógicas. Não lidamos somente com processos cognitivos. Aliás, cada vez mais descobrimos que a cognição é construída na cultura (Gomes, 2003, p. 84).

A atual conduta do racismo nos ambientes escolares brasileiros é criticada nas pesquisas. Elas indicam a necessidade de mudança de postura e pensamento, porque tais práticas ferem os direitos individuais quando desqualificam a crença religiosa do outro, gerando conflito e desrespeito na escola, que deveria ser acolhedora e desenvolver práticas de respeito às leis e ao próximo, pois esse princípio não é exclusivo às denominações religiosas. Mas, apesar das pesquisas e dos casos que são noticiados, tal realidade não muda. Os casos de racismo religioso aumentam, e a lógica exposta pressupõe a existência de um grupo que se beneficia com a desqualificação das RMA e que quer manter-se na hegemonia cultural eurocêntrica a todo custo, assumindo posições políticas relevantes para influenciar as políticas públicas e manter o controle cultural e religioso no Brasil.

4. SUPERAÇÃO DE CONFLITOS COM AS DIFERENÇAS NAS ESCOLAS

As escolas, públicas ou privadas, sujeitam-se às mesmas leis educacionais: Constituição de 1988, BNCC e LDB. Na Constituição, a escola é um espaço com inviolabilidade garantida – acesso à educação e liberdade religiosa. A “sacralidade” do direito público é o ponto de partida para a convivência social. O conjunto de leis educacionais se aplica nesses espaços para que sejam ambientes de aprendizado privilegiados.

A escola deveria ser um espaço de acolhimento e respeito para o crescimento não só cognitivo, mas também emocional das crianças. Mas, as notícias demonstram que ela está permeada de racimos, intolerâncias e violências. Frequentemente, são noticiados casos de racismo religioso, preconceitos, como o da escola Clubinho das Letras. Por isso, pergunta-se: quais efeitos esse racismo que nega a contribuição cultural afro-brasileira para a formação da identidade das crianças pode gerar? Quais os prejuízos emergem, estando as crianças à mercê desse tipo de influência dentro das escolas? Na escola, convergem vários conflitos, mas sua finalidade última é a formação de futuros cidadãos, porém, fica a dúvida em relação à eficiência escolar em cumprir com sua função.

Pelo desconhecimento acerca das RMA, alimentam-se mitos e mentiras, gerando o racismo religioso.  Por exemplo, “no candomblé, Exu é o orixá mensageiro entre os homens e os deuses, e entre os próprios deuses” (Santos, 2017, p. 199). Por isso, algumas leis foram criadas, tais como, a Lei 10639/03, visando garantir o ensino da cultura e história africana e afro-brasileira. Mas, há resistência para que essa lei seja cumprida, mesmo após 20 anos de sua promulgação (Munanga, 2005).

Retomar a discussão sobre a lei objetiva incentivar o trabalho pedagógico para promover conhecimentos sobre a herança afro-brasileira, trazendo à tona fatos históricos e combater as inverdades, tais como, a afirmação de que os negros vieram pacificamente ao Brasil para serem escravizados. Trata-se de um processo de desmistificação capaz de abolir com muitos preconceitos às RMA, o que melhoraria o quadro do racismo religioso. “Por isso, uma análise da cultura de um grupo, de uma comunidade e de um povo ajuda, e muito, a compreender suas crenças e suas convicções religiosas” (Chaves, 2015, p. 15).

O racismo religioso ou cultural é um desafio à cidadania e à democracia multifacetada brasileira. Não respeitar a liberdade religiosa garantida por lei prejudica os processos educativos de crianças ligadas às RMA, ferindo o princípio da laicidade e dificultando a percepção da riqueza cultural brasileira expressa na diversidade. “É o preconceito que ocasiona a exclusão, a segregação e a concretização do conflito” (Chaves, 2015, p. 35).

Cabe estudar o fenômeno religioso nos processos da relação social e produção cultural que ocorrem nas escolas. “Lutar pelo fim da desigualdade social e das discriminações de qualquer natureza não é exclusividade da educação escolar” (Cury, 2014, p. 66). Os processos educativos não ocorrem somente na escola, mas ela é o locus privilegiado para combater racismo e preconceito. Nela, pode-se intervir positiva e precocemente na formação de conceitos nas crianças, mitigando o aumento do racismo em seus diferentes aspectos.

A rigidez das teorias educacionais e tradições religiosas não acompanha o dinamismo das escolas. O pulsar da escola é fonte de informações riquíssimas para entender o processo de racismo e como combatê-lo na mais tenra idade. O processo de secularização brasileiro é bastante singular, e a pluralidade de religiões é uma de suas características (Stark; Bainbridge, 2008, p. 361-403). “Nosso mundo é perigosamente polarizado em uma época em que a humanidade está intimamente interrompida – política, econômica e eletronicamente – do que em qualquer outro período” (Armstrong, 2016, p. 25). As influências seculares[4] parecem entrar em choque com as crenças religiosas. Os anseios pedagógicos parecem mais ligados às necessidades de suprir as crianças com conhecimentos para garantir desempenho no mercado empresarial do que desenvolver noções morais e de cidadania.

O ER pode ajudar na análise pedagógica das mensagens contidas na pós-modernidade, nas tendências tecnológicas e na vontade de preparação das crianças para atuar no mercado de trabalho quando adultas. Porém, nas escolas brasileiras, a relevância do ER é questionada, e parece rivalizar com os conhecimentos científicos transmitidos às crianças.

No cenário político brasileiro, há pessoas que utilizam a religião, alegando possuir as virtudes cristãs para demonstrar que são políticos honestos indicados para tal posição. Mas, no mandato, parecem ter utilizado a religião como pedágio para ascensão política. Percebeu-se isso no último processo eleitoral brasileiro – representação máxima da democracia – quando foi realizado um estado de sítio.

A opção religiosa de alguns candidatos deu-se por interesse no poder político e não na fé. “Os cidadãos profundamente religiosos pressupõem que, se os detentores de poder público forem membros de suas próprias confissões, os princípios políticos de justiça orientadores da vida em comum espelharão suas convicções religiosos particulares” (Santos, 2017, p. 78). Quando políticos com tendências religiosas alcançam posições que mudam as políticas públicas, é importante preocupar-se com os rumos que a educação pode tomar. Ao que parece, desde a polarização de 2018, no que diz respeito ao racismo religioso, o quadro político brasileiro agrava essa situação.

O campo religioso brasileiro é plural. Ele se ergue sobre os quatro pilares das heranças étnicas: negros, índios, europeus e orientais. Essa diversidade religiosa constitui a identidade brasileira e deve ser garantida por políticas públicas e leis. O desenvolvimento do cristianismo brasileiro gestou o pentecostalismo e o neopentecostalismo, que assumiram uma postura de combate às RMA, o que é assumido por alguns grupos políticos, que endossam a intolerância publicamente.

“No discurso neopentecostal, todas as religiões não cristãs e/ou não protestantes são demonizadas, contudo, no cotidiano dos rituais, apenas as entidades e orixás do panteão afro-brasileiro são diurnamente identificadas como demoníacas e perniciosas” (Santos, 2017, p. 182). A demonização das RMA pelos pentecostais e neopentecostais manifesta-se nas escolas. “As ações que dão corpo à intolerância religiosa no Brasil, empreendem uma luta contra os saberes de uma ancestralidade negra que vive nos ritos, na fala, nos mitos, na corporeidade e nas artes de sua descendência” (Nogueira, 2020, p. 55). “A perseguição e a intolerância tão marcadamente focadas nas religiões negras não se dão ao acaso” (Nogueira, 2020, p. 122). Elas acontecem por razões políticas, religiosas e culturais.

A ancestralidade negra põe em risco a hegemonia eurocêntrica. A ideologia vendida pelas mídias venera e reforça a supremacia branca com anúncios de produtos que alimentam a indústria e geram lucro. Isso está refletido até na venda de livros infantis. As obras disponíveis para crianças, como ocorreu na Bahia, terão mais personagens negros ou brancos?

A escola não está imune a essas disputas. Nela, perpassam conflitos sociais. “Na Bahia, vigorou uma lei até 1976 que obrigava os templos das religiões africanas a se cadastrarem na delegacia de polícia” (Santana; Moreira, 2015, p. 6). Essas leis reforçam o ideário que liga a herança afro-brasileira à marginalidade. A criança traz seus conflitos, dúvidas e preconceitos para as relações que estabelece na escola. “O conhecimento e a compreensão do que é importante culturalmente para uns, deve ser apreendido por todos e a via para tanto é o resultado entre a educação e o processo formativo do indivíduo” (Santana; Moreira, 2015, p. 7).

Existem dois relatórios realizados no Brasil que abrangem a intolerância religiosa.  O Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil fala sobre os casos ocorridos entre 2010 a 2015 (Fonseca; Adad, 2016), identificando a incidência de 11% de casos de intolerância religiosa nas escolas. O II Relatório sobre intolerância e violência religiosa: Brasil, América Latina e Caribe não traz dados tão específicos sobre a intolerância religiosa nas escolas, porque abarcou o período da pandemia da Covid-19, em que as escolas estiveram fechadas (Santos; Dias; Santos, 2023). Mesmo assim, os dois relatórios indicam que esse fenômeno ocorre em ambientes de relacionamento social e é crescente.  Os relatórios são importantíssimos para elaborar um panorama do racismo religioso nas escolas, apontando que a maior incidência de intolerância religiosa é contra as RMA.

A escassez de informações sobre a intolerância religiosa nas escolas impulsionou uma pesquisa de campo, no mestrado da autora, com um questionário estruturado, em que os professores de Educação Física, de Vila Velha-ES, responderam se tinham observado, sofrido e/ou presenciado casos de intolerância na escola. 71% disse sim – tinham visto, sofrido ou presenciado casos de intolerância nessas escolas públicas.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi elaborada à luz de várias legislações educacionais que protegem estudantes e escolas das manifestações de intolerância religiosa. A BNCC orienta os conteúdos para o ER, tornando-se um recurso poderoso para combater o racismo religioso.

O ER possui oferta obrigatória, mas não frequência obrigatória. Para Junqueira (2009, p. 248) “O [ER] faz parte do currículo […] alicerçado aos princípios da cidadania, do entendimento do outro e da formação integral do educando”. As crianças matriculadas no ER estudam a religião na ótica das Ciências das Religiões. Isso gera um ambiente e uma prática pedagógica livre de proselitismo e mais científico. Os conteúdos relacionados ao cristianismo costumam ser mais aceitos pelas escolas. O ER pode ser um importante instrumento para o diálogo inter-religioso e combate ao racismo religioso, remetendo:

Ao convívio social dos educandos, intensificando o respeito à tradição religiosa herdada da família e à liberdade de expressão. […] no respeito mútuo se cultiva a reverência ao transcendente que é UM, mas também é MAIS pelas inúmeras formas de expressão conforme as culturas. Só assim o educando será capaz de desenvolver o entendimento mútuo, a paz e a fraternidade […]. O [ER] não quer fazer prosélitas […] a intenção é transmitir informações sobre a composição do fenômeno religioso, organizadas em sequência cognitiva e em respeito às características do desenvolvimento religioso (Junqueira, 2009, p. 249).

Atualmente, “a globalização e os meios de comunicação têm fomentado uma cultura secular e consumista […] e estimulado um interesse na pesquisa da identidade cultural e religiosa” (Kwok, 2015, p. 8). O ER medeia esse diálogo e conflito de interesses através do diálogo interfé. Optou-se pelo termo diálogo interfé no lugar de diálogo inter-religioso, pois ocorre entre pessoas de credos diferentes (Kwok, 2015, p. 21). O diálogo inter-religioso define-se como diálogo entre as religiões cristãs e demais.

Em uma sociedade em constante mudança, lançar mão dos conteúdos do ER associado ao diálogo interfé pode promover uma educação reflexiva, entendimento e respeito pelo outro na convivência escolar.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os brasileiros ainda são influenciados pela visão eurocêntrica. O eurocentrismo perpassa as mídias e redes sociais. Aceitar a crença, cultura e episteme de quem a sociedade branca escravizou é reconhecer a humanidade dos desumanizados. Com efeito, os casos de racismo religioso continuam.

O cerne da questão não são as dificuldades, e sim o jeito com que se lida com elas. Diante do racismo religioso é possível calar-se, denunciar, juntar-se aos intolerantes ou buscar o diálogo. Fomentar o diálogo acerca da intolerância religiosa através do ER, na ótica do diálogo interfé, nas escolas públicas e privadas brasileiras é nossa proposta. O racismo religioso é um tabu, pois traz uma série de conflitos e turbulências nas escolas, que já são conflituosas. É necessário mudar a mentalidade nas crianças, visando uma sociedade apta a entender a dinâmica do mercado e da mídia, que querem manter a hegemonia cultural europeia por interesses econômicos. Isso mudaria a realidade de respeito às minorias religiosas brasileiras. No Brasil, a pluralidade religiosa e cultural existe, e é imprescindível considerar que a educação está ligada à discussão de temas como a cidadania, política e ética.

Os novos modelos protestantes que reforçam a intolerância na prática da demonização das RMA e o proselitismo pernicioso praticado em espaços públicos não ajudam a caminhar para uma sociedade onde a democracia racial e religiosa seja legítima. Enquanto nos agredimos e perpetuamos o racismo, as mídias e a elite intelectual mantêm a hegemonia cultural eurocêntrica. Ao Estado, cabe assegurar a abertura e o pluralismo do mercado de ideias religiosas, morais e a tolerância interconfessional. Cabe a nós mudar a realidade que nos cerca, como sujeitos religiosos ou cidadãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. [Altera a Lei 9.394, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências]. Brasília: Presidência da República. Disponível em: https://www.
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-as-religioes-de-matriz-africana-emicida-comenta-e-de-entristecer-viver-entre-radicais.ghtml. Acesso em: 12 jun. 2023.

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APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Saiba mais em: https://www.youtube.com/watch?v=U3-MNlSt4vY.

3. Trata-se de um projeto de empréstimo coletivo. Cada criança fornece de um a dois livros, sob a indicação da escola.

4. Secular refere-se a quaisquer partes da sociedade e da cultura que estejam substancialmente livres de suposições sobrenaturais. (STARK; BAINBRIDGE, 2008, p. 373).

[1] Pós-graduação (Lato Sensu) em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Isecub 2005, Licenciatura plena em Educação Física pela UFES 2005. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8996-7060. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5878824359848865.

Enviado: 04 de setembro de 2023.

Aprovado: 26 de setembro de 2023.

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Jaiara Rosa Cruz Scofield Ferreira

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