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Espiritismo kardecista: apontamentos sobre a religião que mais cresce no Brasil

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

FRANÇA, Nathan Ferreira [1]

FRANÇA, Nathan Ferreira. Espiritismo kardecista: apontamentos sobre a religião que mais cresce no Brasil. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 07, Vol. 01, pp. 155-172. Julho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/cresce-no-brasil

RESUMO

O expressivo aumento no número de adeptos do espiritismo kardecista no Brasil entre o Censo do IBGE de 2000 e 2010 se impõe como um fenômeno a ser cuidadosamente estudado. O problema que originou e fundamentou essa pesquisa foi a pergunta sobre quais as razões pelas quais o espiritismo ganhou tantos adeptos em uma década e obteve crescimento tão expressivo, ao mesmo tempo em que a houve diminuição no número de católicos apostólicos romanos, a religião predominante no Brasil, e um aumento significativo de indivíduos sem religião. O objetivo geral é identificar as razões desse fenômeno. Para isto, foi preciso investigar as origens do espiritismo, sua implantação e consolidação no Brasil, suas doutrinas e características fundamentais, bem como o tipo de indivíduo que se inclina para as ideias e princípios preconizados. A pesquisa tem tanto um caráter qualitativo de cunho bibliográfico como também um caráter quantitativo fundamentado na análise de dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Como resultado, percebe-se que o estilo racional e alta capacidade de acomodação ao contexto religioso brasileiro são alguns dos fatores que respondem à questão de pesquisa. Tendo em vista que grande parte dos espíritas kardecistas brasileiros estão nas camadas mais altas da sociedade, é possível inferir uma capacidade potencial de influenciar as massas, o que poderá, a médio e longo prazos refletir em um crescimento ainda maior no número de adeptos.

Palavras-chave: Espiritismo Kardecista, Religiosidade Brasileira, Ciências da Religião.

1. INTRODUÇÃO

O espiritismo reúne quase 4 milhões de pessoas no Brasil, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística realizado de 2010, o que representa cerca de 2% da população brasileira. Segundo o mesmo Censo, a quantidade de espíritas no Brasil só não é maior que a quantidade de católicos romanos, evangélicos e os denominados sem religião (IBGE, Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência, p. 92)[2]

Ainda segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o espiritismo cresceu em torno de 70% entre o Censo 2000 e o Censo de 2010.[3] Nenhum outro grupo religioso cresceu tanto no mesmo período. Embora na última década o crescimento tenha sido tão expressivo, o crescimento no número de espíritas no Brasil não se restringe a um passado tão recente. Camargo publicou em 1973 sua percepção acerca do crescimento do espiritismo, neste caso, incluindo o espiritismo umbandista: “As religiões mediúnicas destacam-se no panorama religioso do Brasil por acentuado ritmo de crescimento, notadamente nas zonas que apresentam urbanização intensa” (CAMARGO, p. 159).

O problema que originou e fundamentou essa pesquisa foi a pergunta sobre quais as razões pelas quais o espiritismo ganhou tantos adeptos em uma década e obteve crescimento tão expressivo, ao mesmo tempo em que a houve diminuição no número de católicos apostólicos romanos, a religião predominante no Brasil, e um aumento significativo de indivíduos sem religião.

O objetivo geral é identificar as razões do significativo crescimento do espiritismo no Brasil. Para isto, foi preciso investigar as origens do espiritismo, sua implantação e consolidação no Brasil, suas doutrinas e características fundamentais, bem como o tipo de indivíduo que se inclina para as ideias e princípios preconizados.

2. AS ORIGENS DO ESPIRITISMO KARDECISTA

As origens do espiritismo constituem fator de grande importância para a compreensão dos motivos pelos quais foi aceito, consolidado e grandemente difundido em solo brasileiro. O espiritismo kardecista é propriamente definido como resultado da obra de Hippolyte Léon Denizard Rivail, que veio a se autodenominar Allan Kardec “por acreditar ser ele a reencarnação dum poeta celta com esse nome” (OLIVEIRA, p. 40). O espiritismo kardecista se distingue da umbanda, do candomblé e de outras formas de religião espiritualista, exceto em certos princípios doutrinários.

Rivail foi um francês, nascido em três de dezembro de 1804, em família católica. Faleceu aos 65 anos, em trinta e um de março de 1869. Sua carreira acadêmica foi bastante significativa. Aos 18 anos de idade tornou-se bacharel em Ciências e Letras, na Suíça. Dois anos mais tarde publicou um plano de aperfeiçoamento do ensino público. Destaca-se também sua capacidade de aprendizado de línguas estrangeiras, pois era fluente, além do francês, em alemão, inglês, holandês, italiano e espanhol. Exerceu a função de tradutor para o alemão de obras nas áreas da educação e da moral. A partir dos 30 anos de idade atuou como professor e escritor na área de educação, lecionando disciplinas como química, matemática, astronomia, física, fisiologia, retórica, anatomia comparada e francês. Além de atuar nas áreas pedagógica e linguística, tornou-se também doutor em Medicina.

Em 1854, aos 50 anos de idade, Rivail chegou ao conhecimento da onda de manifestações mediúnicas que ocorria nos Estados Unidos (LIMA, p. 23). Rivail começou, então, a investigar tais fenômenos que envolviam ruídos, pancadas em móveis, movimento de objetos e mesas que flutuavam e giravam. Em O Livro dos Médiuns, Rivail, cujo pseudônimo é Allan Kardec, registrou que “as mesas girantes representarão sempre o ponto de partida da Doutrina Espírita” (KARDEC, 1944, p. 83).

Nesse mesmo período, também tomou conhecimento da psicografia, que é a escrita mediúnica, onde supostamente o médium escreve informações ditadas pelos espíritos. O espiritismo kardecista tem início por volta do ano 1856, quando Rivail declara “ter recebido um investimento especial de Deus para codificar o espiritismo” e então passa a usa o pseudônimo “Allan Kardec” (LIMA, p. 24). Um ano depois, em 1857, Rivail publica sua primeira obra, intitulada O Livro dos Espíritos.

A Federação Espírita Brasileira reconhece Rivail como um pesquisador sério, que aplicou métodos estritamente científicos em sua investigação:

Rivail, pedagogo francês, fluente em diversos idiomas, autor de livros didáticos e adepto de rigoroso método de investigação científica não aceitou de imediato os fenômenos das mesas girantes, mas estudou-os atentamente, observou que uma força inteligente as movia e investigou a natureza dessa força, que se identificou como os “Espíritos dos homens” que haviam morrido. Rivail fez centenas de perguntas aos Espíritos, analisou as respostas, comparou-as e codificou-as, tudo submetendo ao crivo da razão, não aceitando e não divulgando nada que não passasse por esse crivo.[4]

Rivail escreveu as conclusões de suas investigações em cinco obras. Para distinguir entre suas obras de cunho espírita e as obras anteriores produzidas em sua atividade pedagógica, adotou posteriormente o pseudônimo de Allan Kardec. Ele próprio identificou-se como codificador do Espiritismo. Como codificador do Espiritismo, Rivail compreendia seu trabalho como uma busca por entender e divulgar o que os espíritos lhe diziam de maneira lógica e racional.

As cinco obras que compõem a Doutrina Espírita são O Livro dos Espíritos, publicada em abril de 1857, O Livro dos Médiuns, publicada em janeiro de 1861, O Evangelho segundo o Espiritismo, publicada em abril de 1864, O Céu e o Inferno, publicada em agosto de 1865 e A Gênese, publicada em janeiro de 1868. Para a Federação Espírita Brasileira, estes livros têm caráter científico, religioso e filosófico.[5]

Nesse primeiro tópico, tivemos o intuito apontar em linhas gerais as origens do espiritismo kardecista. Adiante veremos que não demorou muito, desde sua origem, para que a doutrina espírita kardecista chegasse ao Brasil.

3. IMPLANTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO ESPIRITISMO KARDECISTA NO BRASIL

Menos de uma década depois de ter sido lançado na França, os primeiros exemplares de O Livro dos Espíritos (1857) chegaram ao Brasil. Os primeiros exemplares chegaram aqui por volta do ano 1860. A primeira organização espírita brasileira foi o Grupo Familiar do Espiritismo, fundada em 1865 por Teles de Menezes, em Salvador, no Estado da Bahia. Mais tarde, também em Salvador, no ano de 1874, como continuação do Grupo Familiar do Espiritismo, fundou-se a Associação Espírita Brasileira (CAMARGO, p. 160).

Na capital do Rio de Janeiro, a primeira instituição espírita a ser organizada por o Grupo Confúcio, no ano de 1873. O Grupo Confúcio foi responsável pela primeira tradução das obras de Allan Kardec para a língua portuguesa. O primeiro livro traduzido para a língua portuguesa por o Livro dos Espíritos, em 1875.

Três anos após sua inauguração, o Grupo Confúcio deixou de existir e passou a funcionar a Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade. Posteriormente, esta passou a ser chamada de Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade.

Na década seguinte, Elias da Silva publicou no Rio de Janeiro o periódico “Reformador” e realizou a primeira reunião de diversas instituições espíritas. No ano seguinte a esses eventos, em 1884, foi fundada a FEB – Federação Espírita Brasileira (CAMARGO, p. 160). As primeiras instituições espíritas a comporem a Federação foram as seguintes: Grupo dos Humildes, Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade, Centro da União Espírita do Brasil, e Grupo Espírita Fraternidade.

Com a Proclamação da República, em novembro de 1889, uma vez que o Brasil não tinha ainda uma Constituição, em 1890 foi promulgado o Código Penal que previa proibição e punição para quem praticasse o espiritismo. Dentre os que se aplicaram em lutar contra tal decreto, destaca-se Bezerra de Menezes. A situação se torna mais favorável para os espíritas somente em 1894, quando os grupos espíritas voltam a se multiplicar e se fortalecer.

A história do espiritismo no Brasil não pode ser contada sem menção à pessoa de Francisco de Paula Cândido. Nascido em 2 de abril de 1910, em uma modesta família mineira, Cândido mudou oficialmente seu nome somente em 1966. Tendo perdido sua mãe aos 5 anos de idade, muito sofreu no convívio com sua madrinha. Conta-se que com apenas 4 anos de idade, era capaz de ver, ouvir e conversar com espíritos. Depois da morte de sua mãe, passou a ouvi-la e conversar com ela também, até seus 12 anos de idade.[6]

Aos 17 anos de idade, Cândido começou a estudar o espiritismo. Conta-se que o espírito de sua mãe, depois de anos sem comunicar-se com ele, indica-lhe a leitura da Allan Kardec durante uma sessão espírita que ocorrera em razão da doença de uma de suas irmãs.[7] Com o novo conhecimento obtido pelo estudo e leitura das obras de Kardec, Cândido começa a praticar a psicografia e fundou o Centro Espírita Luiz Gonzaga.[8]

O espiritismo kardecista ganha ainda maior projeção com a parceria do então Francisco de Paula Cândido e Waldo Vieira. A parceria começou em 1955 e resultou a produção de 17 livros psicografados e na fundação da Comunhão Espírita Cristã. A parceria acabou com a dissidência de Vieira no ano em que Cândido passou a chamar-se Francisco Cândido Xavier.

Nos anos que se seguiram, a produção literária, o poder de influência e o prestígio de Chico Xavier, bem como a popularização da doutrina kardecista, cresceram exponencialmente. Xavier morreu em 30 de junho de 2002, aos 92 anos de idade, tendo escrito mais de 450 livros e mais de 10 mil cartas, todos reconhecidos pela comunidade espírita como obras psicografadas. Atualmente, estima-se que já foram vendidos mais de 50 milhões exemplares de suas obras. Segundo o Instituto Chico Xavier, ele “nunca admitiu ser o autor de nenhuma obra, pois insistia reproduzir apenas o que os espíritos ditavam. Nunca aceitou o dinheiro lucrado com a venda de seus livros, doando os direitos autorais para a FEB – Federação Espírita Brasileira”[9].

4. DOUTRINAS E CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO ESPIRITISMO KARDECISTA

Neste terceiro tópico não é nosso propósito investigar cada doutrina espírita particularmente, mas sim analisar duas das principais doutrinas e algumas características fundamentais do espiritismo kardecista. Tais doutrinas e características são relevantes para a compreensão do expressivo crescimento que o espiritismo tem apresentado.

4.1 DOUTRINA DA EVOCAÇÃO DE ESPÍRITOS DE MORTOS

Uma principal doutrina espírita é a evocação de espíritos de mortos. Esse é um dos grandes atrativos da doutrina espírita, pois muitas pessoas, em razão da aflição do luto, se encantam com a possibilidade de comunicação com o ente querido ou a pessoa amada. Há também aqueles que buscam na evocação de espíritos de mortos, orientação para a vida. Lima salienta que essa doutrina tem atraído muita gente:

Pelo seu aspecto sentimental e misterioso, essa crença atrai muita gente para o espiritismo. Pessoas […] dadas ao misticismo facilmente se deixam arrastar pela sedução da possibilidade de poderem entrar em contacto com seres de outro mundo, particularmente se esses seres forem entes queridos.

Por outro lado, pessoas atormentadas com problemas de todos os tipos e sem saberem ou poderem resolvê-los pensam encontrar no espiritismo meio de solução para eles, daí as consultas, aos milhares, de pessoas que buscam orientação para cura, para casos amorosos, para dificuldades financeiras etc. (LIMA, p. 37).

Nesta citação, Kardec afirma a completa possibilidade de comunicação com os espíritos dos mortos, salvo algumas exceções:

Todos os Espíritos, qualquer que seja o grau em que se encontrem na escala espiritual, podem ser evocados: assim os bons, como os maus, tanto os que deixaram a vida de pouco, como os que viveram nas épocas mais remotas, os que foram homens ilustres, como os mais obscuros, os nossos parentes e amigos, como os que nos são indiferentes. Isto, porém, não quer dizer que eles sempre queiram ou possam responder ao nosso chamado. Independente da própria vontade, ou da permissão, que lhes pode ser recusada por uma potência superior, é possível se achem impedidos de o fazer, por motivos que nem sempre nos é dado conhecer (KARDEC, O Livro dos Médiuns, p. 351).

4.2 DOUTRINA DA REENCARNAÇÃO

Outra doutrina que figura entre as principais é a respeito da reencarnação. Para Allan Kardec, a Bíblia comprova a reencarnação. A citação a seguir foi extraída de O Evangelho Segundo o Espiritismo, onde podemos verificar a compreensão de Kardec sobre o assunto e como ele tenta comprovar que seu pensamento se harmoniza com as narrativas bíblicas.

A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam nisso. As idéias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram claramente definidas, porque apenas tinham vagas e incompletas noções acerca da alma e da sua ligação com o corpo. Criam eles que um homem que vivera podia reviver, sem saberem precisamente de que maneira o fato poderia dar-se. Designavam pelo termo ressurreição o que o Espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá idéia de voltar à vida o corpo que já está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já se acham desde muito tempo dispersos e absorvidos. A reencarnação é a volta da alma ou Espírito à vida corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar-se a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, segundo a crença deles, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto criança e seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser Elias reencarnado, porém, não ressuscitado (KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 84).

Para Kardec, a encarnação é uma necessidade imposta por Deus, na qual, se alma fizer bom uso do seu livre-arbítrio, não precisará mais voltar à vida corpórea, mas se fizer mau uso do seu livre-arbítrio, então terá que voltar à vida corpórea como uma forma de expiar seus pecados. Neste parágrafo, Kardec sumariza a necessidade da encarnação bem como a justificativa da reencarnação:

A passagem dos Espíritos pela vida corporal é necessária para que eles possam cumprir, por meio de uma ação material, os desígnios cuja execução Deus lhes confia. É-lhes necessária, a bem deles, visto que a atividade que são obrigados a exercer lhes auxilia o desenvolvimento da inteligência. Sendo soberanamente justo, Deus tem de distribuir tudo igualmente por todos os seus filhos; assim é que estabeleceu para todos o mesmo ponto de partida, a mesma aptidão, as mesmas obrigações a cumprir e a mesma liberdade de proceder. Qualquer privilégio seria uma preferência, uma injustiça. Mas, a encarnação para todos os Espíritos, é apenas um estado transitório. E uma tarefa que Deus lhes impõe, quando iniciam a vida, como primeira experiência do uso que farão do livre-arbítrio. Os que desempenham com zelo essa tarefa transpõem rapidamente e menos penosamente os primeiros graus da iniciação e mais cedo gozam do fruto de seus labores. Os que, ao contrário, usam mal da liberdade que Deus lhes concede retardam a sua marcha e, tal seja a obstinação que demonstrem, podem prolongar indefinidamente a necessidade da reencarnação e é quando se torna um castigo (KARDEC, O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 94-5).

A doutrina da reencarnação tem sido bem aceita pois se harmoniza, em alguma medida, com o senso humano de justiça de que cada um deve experimentar os benefícios ou punições de acordo com seus feitos, sem levar em consideração nenhuma providência divina e graciosa, como bem expressão o dito popular “aqui se faz, aqui se paga”.

4.3 ESTILO RACIONAL E FLEXIBILIZAÇÃO

As doutrinas kardecistas não sofreram modificações essenciais no Brasil. Apesar disso, dois elementos causaram a necessidade de certa adaptação. Um dos elementos é a realidade sócio-cultural brasileira, que é bem diferente do contexto europeu. O outro elemento constitui uma característica essencial do espiritismo, com a qual iremos lidar, e que justifica em grande medida a expressiva aceitação e notório crescimento do espiritismo no Brasil. Este elemento é a flexibilidade e disponibilidade para mudanças, inerentes à doutrina espírita (CAMARGO, p. 162).

Com a pretensão de ser científico em toda a sua “codificação”, Kardec imprime no espiritismo uma tendência novas descobertas e mudanças. Os parágrafos seguintes apresentam a tendência progressista do espiritismo.

Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Pela sua substância, alia-se à Ciência que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. As descobertas que a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas idéias que formaram de Deus.

O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial. Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará.

Uma das razões pelas quais o espiritismo kardecista é tão bem aceito pelas camadas altas da sociedade, entre os quais há também alta escolaridade, é que, desde sua origem, a doutrina espírita é apresentada como científica e filosófica, capaz de tornar conhecidos os mistérios da vida e do mundo aos mais intelectualizados (LIMA, p. 29). Conforme a citação acima, o espiritismo objetiva o progresso e é maleável, podendo assumir novas proposições de acordo com novas descobertas. Essa “flexibilização da verdade” é bastante significativa, especialmente na primeira década do século XXI, quando um dos princípios mais bem aceitos pela população é que não há uma verdade única e final, mas sim que cada um tem a sua verdade.

Camargo, mesmo referindo-se ao século passado, nos ajuda a captar a grande importância do estilo racional da doutrina kardecista na aceitação e proliferação do espiritismo entre as camadas mais altas da sociedade brasileira:

Em função do estilo racional da doutrina kardecista, o Espiritismo passa a constituiu, no começo deste século, principalmente nas pequenas cidades do interior, ideologia que se opõe à liderança do pensamento exercida pela Igreja Católica. Atingindo minoria intelectual que busca formas de inovação face aos quadros ideológicos predominantes no Brasil, o Espiritismo apresenta sistema filosófico diverso do pensamento católico tradicional e relativamente mais coerente com o estilo de pensamento científico. O Espiritismo foi igualmente capaz de preencher certas expectativas de pensamento racional, possibilitando investigações de ordem comprobatória a respeito do próprio fenômeno mediúnico. A rejeição do dogma católico e a adoção de procedimento sistemático na formação da doutrina espírita mostraram-se compatíveis com aspirações intelectuais de parte da população urbana. Teve ainda o Espiritismo a vantagem psicológica de não se encontrar comprometido com a dessacralização e a neutralidade axiológica pressupostas na filosofia da ciência divulgada no sistema universitário brasileiro (CAMARGO, p. 163).

Em razão de sua capacidade de flexibilização, apesar de pretender ser essencialmente científico, ao chegar no Brasil, o aspecto religioso do espiritismo tornou-se prevalecente, em relação ao aspecto filosófico e científico. Em seu caráter religioso, o espiritismo apresenta uma interpretação coerente do mundo, oferece respostas para a estratificação social e orienta o comportamento dos seus adeptos. No contexto brasileiro, em que grande parcela da população sofre pela precariedade da educação e falta de recursos, a ênfase espírita na caridade, pelo viés assistencial e educacional, cumpriu papel decisivo para a consolidação e crescimento do espiritismo entre os mais intelectualizados (CAMARGO, p. 162).

Como uma religião, e com seu caráter flexível, “o espiritismo vem se esforçando para apresentar-se como religião cristã, não obstante negar praticamente todos os ensinos de Jesus Cristo” (LIMA, p. 29-30). No Brasil, por ser um país predominantemente católico e evangélico, para alcançar algum sucesso, as religiões precisam incorporar em suas doutrinas no mínimo algum apreço e respeito pelo personagem histórico Jesus. Grande parte das pessoas que aderem ao espiritismo são oriundas de igrejas católicas ou evangélicas, ou ainda, em muitos casos, são pessoas que conciliar a fé católica ou evangélica com a fé espírita. Sobre esse ponto, Lima afirma:

Esse aspecto religioso do espiritismo, principalmente o aspecto de cristianismo, é que tem atraído multidões, que de outra forma o renegariam. Há, entre os católicos, os que vivem em perfeita “simbiose religiosa”, praticando o espiritismo e ao mesmo tempo o catolicismo (LIMA, p. 30).

Nesse terceiro tópico, tivemos o intuito apontar as principais doutrinas e características que tornaram possível a consolidação do espiritismo no Brasil e o constante crescimento no número de adeptos. Adiante veremos os traços sociais e econômicos dos espíritas no Brasil.

5. O PERFIL DO ESPÍRITA BRASILEIRO

O Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010 apresenta informações suficientes para compreendermos o perfil social dos grupos religiosos do Brasil. Neste tópico buscaremos compreender qual é o perfil do espírita brasileiro no que diz respeito à idade média, escolaridade e classe social, conforme os dados aferidos e publicados pelo referido órgão governamental.[10]

5.1 IDADE MEDIANA

Como já foi indicado na introdução deste trabalho, os espíritas representam cerca de 2% da população brasileira. Os espíritas são o grupo com idade mediana mais elevado, com 37 anos (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 100).

5.2 COR OU RAÇA

Os espíritas também reúnem o maior percentual de brancos entre os grupos de religião, com 68,7% (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 101).

5.3 CONDIÇÃO DE ALFABETIZAÇÃO

Quanto à quesito alfabetização, os espíritas são o grupo religioso com maior percentual de alfabetizados, alcançando a marca de 98,6% (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 102).

Considerando as faixas etárias acima de 15 anos, os espíritas são o único grupo religioso que apresentam mais de 99% de alfabetizados, exceto entre os maiores de 50 anos de idade. Entre os maiores de 50 anos de idade, esse percentual é de 97,2%, que por sua vez, é o maior percentual de alfabetizados nessa faixa etária em relação aos demais grupos religiosos (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 103).

5.4 NÍVEL DE INSTRUÇÃO

Os espíritas possuem os menores percentuais de pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade em relação aos demais grupos de religião. Apenas 1,8% dos espíritas não tem nenhuma instrução, enquanto 15% possui o Ensino Fundamental incompleto e 14,7% possui o Ensino Fundamental completo e o Ensino Médio incompleto. Já entre os níveis mais altos de escolaridade, nenhum outro grupo religioso supera os percentuais dos espíritas, pois 36,5% dos espíritas possuem o Ensino Médio completo e o Ensino superior incompleto, e 31,5% possui Ensino Superior completo. Vale ressaltar que o grupo religioso com maior percentual entre os que possuem Ensino Superior completo, depois dos espíritas, é a Umbanda e Candomblé, com 12,9%, isto é, quase 20 pontos percentuais abaixo dos espíritas (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 104).

5.5 RENDIMENTO NOMINAL MENSAL PER CAPTA

Os espíritas são o grupo religioso com maior rendimento per capta. Apenas 2,8% dos espíritas não possuem nenhum rendimento (menor percentual entre os demais grupos de religião). Os espíritas representam o grupo religioso com menor percentual de rendimento nominal mensal per capta de 1/8 até 1 salário mínimo. Na faixa entre 1 e 2 salários mínimos, os espíritas estão na média com os demais grupos religiosos. No entanto, acima de 2 salários mínimos, os espíritas possuem maior percentual em todas as faixas em relação aos demais grupos religiosos. Destaca-se que 6,5% dos espíritas possuem rendimento nominal mensal per capta de mais de 10 salários mínimos, enquanto o segundo grupo com maior percentual de indivíduos nessa mesma faixa possui 2,5%, isto é, 4 pontos percentuais abaixo (CENSO DEMOGRÁFICO 2010, p. 105).

6. CONCLUSÃO

Como demonstrado nesse artigo, o espiritismo kardecista se consolidou no Brasil e tem apresentado grande crescimento no número de seus adeptos. Alguns fatores contribuíram para o expressivo crescimento constado na primeira década do século XXI, entre os quais podemos destacar, principalmente, o estilo racional e a alta capacidade de acomodação ao contexto religioso brasileiro.

Embora o percentual de espíritas kardecistas no Brasil ainda seja baixo em relação a outros grupos de religião como os católicos apostólicos romanos e os evangélicos, tendo em vista o alto nível de escolaridade dos espíritas e o alto índice de espíritas com altos rendimentos, é possível inferirmos que eles detenham grande capacidade de influenciar as massas, o que poderá, a médio e longo prazos refletir em um crescimento ainda maior no número de adeptos.

REFERÊNCIAS

CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973. 184p.

CENSO DEMOGRÁFICO 2000. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2003. Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/censo2000_populacao.pdf Acesso em: nov. 2017.

CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdfAcesso em: nov. 2017.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 112ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1944. 435p.

______________. O Livro dos Médiuns. 62ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1944. 488p.

LIMA, Delcyr de Souza. Analisando crenças espíritas e umbandistas. 4ª ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1992. 181p.

OLIVEIRA, Raimundo Ferreira de. Seitas e heresias, um sinal dos tempos. Rio de Janeiro: CPAD, 1987. 256p.

APÊNDICE – REFERÊNCIA DE NOTA DE RODAPÉ

2. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf Acesso em: 27/11/2017.

3. O Censo Demográfico 2000 constatou o número de 2.262.401 espíritas no Brasil. Já o Censo Demográfico de 2010 constatou o número de 3.848.876 espíritas no Brasil, o que corresponde a um aumento de 70,12%.

4. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/blog/geral/o-espiritismo/historia-do-espiritismo>. Acesso em 27/09/2017.

5. Disponível em: <http://www.febnet.org.br/blog/geral/o-espiritismo/historia-do-espiritismo>. Acesso em 27/09/2017.

6. Disponível em: https://www.ebiografia.com/chico_xavier/. Acesso em: 27/11/2017.

7. Disponível em: https://www.ebiografia.com/chico_xavier/. Acesso em: 27/11/2017.

8. Disponível em: http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/06/Francisco-Candido-Xavier.pdf. Acesso em: 27/11/2017.

9. Disponível em: http://www.institutochicoxavier.org.br/biografia/. Acesso em: 27/11/2017.

10. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf Acesso em: 27/11/2017.

[1] Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Licenciado em Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos e em Matemática pela Universidade Paulista.

Enviado: Julho, 2021.

Aprovado: Julho, 2021.

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Nathan Ferreira França

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