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Arquitetura e cidadania: contribuições conceituais

RC: 92033
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CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

VENDRAMIM, Alef William [1]

VENDRAMIM, Alef William. Arquitetura e cidadania: contribuições conceituais. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 07, Vol. 11, pp. 05-18. Julho de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/arquitetura/contribuicoes-conceituais

RESUMO

Partindo do ponto de que as atuais cidades, principalmente as brasileiras, carecem de espaços que permitam congregar adequadamente seus habitantes numa vida cidadã participativa, esta pesquisa tem como objetivo trazer subsídios para contribuir com a cidadania através da delimitação de conceitos arquitetônicos. A questão que norteou este artigo foi: como conceitualmente a arquitetura pode contribuir para a cidade, criando espaços democráticos que estimulem a cidadania? Para isso, foi realizada revisão bibliográfica, onde os conceitos de público e privado, junto com a explicação da cidadania, foram abordados de forma a dar uma base para posteriormente esclarecer conceitos projetuais que possam intervir de modo eficaz na busca por espaços inclusivos e interativos. O resultado foi a elaboração de sete tópicos que demostra como a arquitetura pode contribuir para a cidadania: Ruas, Implantação, Uso misto, Mescla de idades, Espaço de transição, Participação e Espaços tolerantes. Dessa forma, o conteúdo pretende ampliar o conhecimento e o debate sobre tema.

Palavras-chave: Espaço público, Espaço privado, Cidadania, Arquitetura.

1. INTRODRUÇÃO

Atualmente a maior parte da população mundial se encontra nas cidades, resultando em grandes concentrações de pessoas em espaços que geralmente não às congregam muito bem, marcados por segregações, desigualdades e falta de cidadania (MONTANER, 2014). Aqui, tem-se por certo que essas questões são todas políticas, como será abordado posteriormente (ARENDT, 2014).

Nessa linha, entra a pergunta de como conceitualmente a arquitetura pode contribuir para a cidade, criando espaços democráticos que estimulem a cidadania? Para isso, com o objetivo geral de delimitar conceitos arquitetônicos que contribuam com a cidadania, optou-se por uma revisão bibliográfica. Como objetivos específicos, primeiro foi necessário esclarecer a relação do público-privado e suas especificidades territoriais, posteriormente abordou-se conceitualmente a cidadania e sua relação com o ambiente e, finalmente, foi exposto os conceitos arquitetônicos que podem orientar intervenções que tragam o objetivo desejado.

No que se refere à relação do público/privado, para enriquecer a compreensão, será abordado inicialmente essas esferas de um ponto de vista concreto e técnico, através das ideias de Herman Hertzberger, para efeito de comparação. Posteriormente de um ponto de vista mais conceitual com Hannah Arendt. O esclarecimento dessas duas esferas é necessário, pois, a partir delas a relação do espaço com a cidadania tem sentido, sendo o espaço público destinado à atividade política e a privada à manutenção da vida, o que gera interdependência entre elas (ARENDT, 2014).

Já sobre o conceito de cidadania, para aprofundar e relacionar com o espaço construído, fundamenta-se na concepção política de Hannah Arendt (2014), principalmente através do conceito de ação, no qual seria a participação do cidadão na vida pública.

Por último esclareceu-se o papel da arquitetura para a contribuição com a causa através de sete tópicos: Primeiramente sobre a vida na rua e seus impactos. Depois sobre a integração da implantação com o entorno. Em seguida a respeito do uso misto no edifício e sua importância numa sociedade mais diversificada. Então, sobre a mescla de idades, e como isso é importante no desenvolvimento humano. Logo após, sobre os tipos de espaços de transição. Na sequência por ambientes interativos, que permitam a participação dos usuários e, por último, espaços tolerantes que deem liberdade ao usuário de posicionamento e visão.

Longe de esgotar o tema, trata-se de uma contribuição no qual visa ampliar horizontes conceituais.

2. DESENVOLVIMENTO

Para compreender o papel da arquitetura com a cidadania, é necessário primeiro entender a relação do espaço e as esferas envolvidas, esclarecendo como ele congrega as pessoas. Para isso se faz necessário compreender seus aspectos e tentar categorizá-lo. Sendo assim, é possível destacar duas esferas na vida humana e suas relações, sendo elas a do público e do privado (ARENDT, 2014). A seguir serão abordadas essas duas esferas, suas características e implicações sob a ótica de dois autores diferentes, Herman Hertzberger e Hannah Arendt.

2.1 PÚBLICO E PRIVADO EM HERMAN HERTZBERGER

De acordo com Herman Hertzberger (Amsterdã, 1932), os conceitos de “público” e “privado” podem ser interpretados como a tradução em termos espaciais de “coletivo” e “individual”. Pode-se afirmar que “pública é uma área acessível a todos a qualquer momento; a responsabilidade por sua manutenção é assumida coletivamente. Privada é uma área cujo acesso é determinado por um pequeno grupo ou por uma pessoa, que tem a responsabilidade de mantê-la” (HERTZBERGER, 2015, p.12).

O autor afirma que a oposição extrema entre público e privado é um clichê, e que há uma polarização entre uma individualidade exagerada e uma coletividade exagerada, como se colocasse muita ênfase nestes dois polos. Porém, não existe uma única relação humana que nos interessa como arquitetos que se concentre exclusivamente em um indivíduo ou em um grupo. É sempre uma questão de pessoas e grupos em inter-relação e compromisso mútuo, de coletividade e indivíduo, um em face do outro (HERTZBERGER, 2015, p.12).

Dentro das características dos espaços, o uso feito dele é um fator muito importante que pode alterar um espaço: “Onde quer que os indivíduos ou grupos tenham a oportunidade de usar partes do espaço público para seus próprios interesses, e apenas indiretamente os interesses dos outros, o caráter público do espaço é temporária ou permanentemente colocado em questão por meio do uso.” (HERTZBERGER, 2015, p.16).

2.2 PÚBLICO E PRIVADO EM HANNAH ARENDT

Para Hannah Arendt (Hanôver, Alemanha, 1906 – Nova Iorque, EUA, 1975), essas duas esferas são partes da condição da existência humana, sendo sua compreensão fundamental e inter-relacionada com o modo de vida político que será abordado posteriormente.

Segundo ela, a distinção entre as esferas pública e privada da vida corresponde aos domínios da política e da família, que existiram como entidades diferentes e separadas desde o surgimento da antiga cidade-Estado (ARENDT, 2014, p.34). A primeira é caracterizada como um mundo comum, da luz, na qual reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros, sendo de domínio político e dependente inteiramente da permanência e da durabilidade (ARENDT, 2014, p.65-67).

[…] esse mundo comum só pode sobreviver ao vir e ir das gerações na medida em que aparece em público. É a publicidade do domínio público que pode absorver e fazer brilhar por séculos tudo o que os homens venham a querer preservar da ruína natural do tempo. Durante muitas eras antes de nós […] os homens ingressavam no domínio público por desejarem que algo seu, ou algo que tinham em comum com outros, fosse mais permanente que as suas vidas terrenas. (ARENDT, 2014, p.68)

Ainda, conforme Arendt (2014, p.51), “o domínio público era reservado à individualidade; era o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente eram e o quanto eram insubstituíveis”.

A esfera privada, segundo Arendt, caracteriza-se historicamente como o oposto do público, um espaço obscuro para se esconder, dedicado à manutenção da vida, aos labores, à repetição cíclica próxima aos processos da natureza. Essa esfera é essencial não só por garantir a sobrevivência da espécie, mas também porque:

Uma existência vivida inteiramente em público, na presença de outros, torna-se […] superficial. Retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade resultante de vir à luz à partir de um terreno mais sombrio, que deve permanecer oculto a fim de não perder sua profundidade em um sentido muito real, não subjetivo. (ARENDT, 2014, p.87-88).

Atualmente, Arendt (2014, p.43) afirma que o que marca o mundo moderno é a ascensão do social, que é um domínio híbrido no qual os interesses privados assumem importância pública, descaracterizando ambos, e impedindo o máximo proveito dos dois.

2.3 A CIDADANIA E O LUGAR

A cidadania em Arendt (2014) se caracteriza como a participação do cidadão na vida pública, e para esclarecer a relação dessa com o local utiliza-se de sua análise política. Nela é abordado o conceito de ação, pois ao chegar ao mundo compartilhado com outros humanos somos impelidos a agir: “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico inicial” (ARENDT, 2014, p.219).

Através da ação em público, há a revelação da identidade da pessoa, afirmando sua singularidade no mundo:

Ao agir e falar, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano, enquanto suas identidades físicas aparecem, sem qualquer atividade própria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. (ARENDT, 2014, p.222).

Ao adentrar esse espaço público comum, seus pensamentos e histórias ganham visibilidade, e por consequência, realidade e durabilidade:

A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio do domínio público, sempre intensificará e enriquecerá grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, essa intensificação sempre ocorre à custa da garantia da realidade do mundo e dos homens. (ARENDT, 2014, p.62).

A maior parte da ação e do discurso diz respeito ao espaço comum, sendo que a maioria das palavras e atos se refere a alguma realidade objetiva mundana (seus feitos, histórias presenciadas, fatos acontecidos), além de ser um desvelamento do agente que atua e fala (ARENDT, 2014, p.226).

Em sua análise, Arendt (2014) mostra que desde a era moderna até atualmente, o espaço onde as pessoas vivem (seja público ou privado) vem perdendo seu caráter de promover uma vida política baseada na ação.

O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las. (ARENDT, 2014, p.65).

No que se refere a uma vida política, hoje as decisões são normalmente tomadas com intervalo de anos, e as ideias de Arendt vão em direção à uma democracia direta, onde há debate e participação total de qualquer um como um modo de vida ativo, engajado. Isso traria senso de participação, sentido de existência ampliado e afastaria os riscos dos totalitarismos. Talvez esse modo de vida seja um apelo muito distante, mas traz um norte para nos guiar.

Nessa ideia de democracia radical, precisamos de espaços que permitam às pessoas se relacionarem adequadamente, espaços democráticos que promovam a cidadania. Assim cabe o papel do arquiteto: “Mesmo que a arquitetura como tal exerça talvez apenas uma influência secundária nas relações hierárquicas dentro da sociedade, podemos pelo menos tentar evitar que essa hierarquia seja reforçada e propor condições espaciais que se contraponham a ela” (HERTZBERGER, 2015, p.253).

2.4 O PAPEL DA ARQUITETURA

No que se refere ao papel da arquitetura dentro desse contexto político, cabe destacar uma frase de Josep Maria Montaner:

Se a política é a organização social de um grupo que se desenvolve em um espaço, o lugar no qual esse espaço é criado será integrador ou segregador, inclusivo ou excludente, estará de acordo com a aspiração à redistribuição da qualidade de vida ou com a perpetuação da exclusão e do domínio dos poderes. É por isso que a arquitetura é sempre política. (MONTANER, 2014, p.65).

Outro ponto, como explica Hertzberger, é se a arquitetura tem uma função social, questão que se torna totalmente irrelevante, pelo simples motivo de não existirem soluções socialmente indiferentes; em outras palavras, toda intervenção nos ambientes das pessoas, seja qual for o objetivo específico do arquiteto, tem uma implicação social. Assim, na verdade, não somos livres para ir em frente e projetar exatamente o que nos agrada – tudo o que fazemos traz consequências para as pessoas e para seus relacionamentos (HERTZBERGER, 2015).

Ou seja, devemos sempre ter intenção crítica e buscar a qualidade em tantos níveis quanto se puder, para criar ambientes que não sirvam exclusivamente a grupos particulares, mas sim a todos, conforme explica Braidotti: “Na prática da arquitetura e do urbanismo é preciso defender uma política afirmativa e capacitadora, que proponha um acúmulo de práticas micropolíticas de ativismo cotidiano e de projetos para criar mundos alternativos” (BRAIDOTTI, 2009 apud MONTANER, 2014, p.245). Nos tópicos que se seguem serão destacados fatores que podem contribuir ao projeto arquitetônico na busca por espaços mais democráticos.

2.4.1 RUAS

Uma questão arquitetônica que implica na relação das esferas público-privadas é o cuidado com a vida na rua, no qual pode fornecer, além de segurança, uma intimidade necessária quando for preciso:

Quando uma área da cidade carece de vida nas calçadas, os moradores desse lugar precisam ampliar sua vida privada se quiserem manter com seus vizinhos um contato equivalente. Devem decidir-se por alguma forma de compartilhar, pela qual se divida mais do que na vida das calçadas, ou então decidir-se pela falta de contato. O resultado é inevitavelmente ou um ou o outro; tem de ser assim, e ambos têm consequências penosas. (JACOBS, 2011, p.67).

Sendo assim, deve se estimular a vida nas ruas, conforme Hertzberger:

O conceito da rua de convivência está baseado na ideia de que os moradores têm algo em comum, que têm expectativas mútuas, mesmo que seja apenas porque estão conscientes de que necessitam um do outro. Este sentimento, no entanto, parece estar desaparecendo rapidamente de nossas vidas. A afinidade entre os moradores parece diminuir à medida que aumenta a independência proporcionada pela prosperidade. (HERTZBERGER, 2015, p.52).

Quando moradores de uma área se envolvem com a vida pública, deixando-lhe suas marcas, cria-se uma atmosfera comunitária de pertencimento, com os espaços públicos tendo uma forma que incite a apropriação e identificação (HERTBERGER, 2015).

2.4.2 IMPLANTAÇÃO

No que se refere à implantação dos edifícios, ou seja, como eles são dispostos no solo urbano, na medida que cresce sua autonomia, diminui sua inter-relação, fazendo com que tenha um impacto negativo na malha urbana:

Hertzberger (2015) afirma que o isolamento no meio do terreno causa um impacto negativo na coesão do todo. Quanto mais autônomos e afastados, menor será a coesão entre os edifícios.

Por sua vez, Alexander sintetizando que as edificações isoladas são sintomas de uma sociedade doente e desconectada:

Quando as edificações estão isoladas e soltas, é claro que as pessoas que as possuem, usam ou mantêm não precisam interagir nem um pouco entre si. Em contrapartida, em uma cidade onde as edificações se tocam de maneira física, o mero fato de sua adjacência força as pessoas a ter de se envolver com os vizinhos, a ter de resolver a miríade de probleminhas que surgem entre elas; força as pessoas a aprender a se adaptar às realidades externas à elas, que são maiores e mais complexas do que elas próprias. (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.533).

2.4.3 USO MISTO

Quando o assunto é o uso principal dos edifícios, há uma grande crítica à segregação de funções dos lotes urbanos, como morar, trabalhar, consumir e lazer (ALEXANDER, 2013). No sentido de aumentar a riqueza da experiência urbana de interações deve-se combinar densidades adequadas com uso misto do solo, até mesmo no mesmo lote. Conforme esclarece Jane Jacobs:

O distrito, e sem dúvida o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função principal […]. Estas devem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura. (JACOBS, 2011, p.167).

Com relação ao trabalho próximo dos lares, Alexander (2013, p.54) afirma que os lares deveriam ficar a poucos minutos dos locais de trabalho. Assim, cada moradia teria a chance de criar uma ecologia intimamente interligada de lar e local de trabalho. As pessoas poderiam se encontrar para o almoço, as crianças fariam visitas casuais, os trabalhadores poderiam ir rapidamente até suas casas. E, por meio do fomento de tais conexões, os próprios locais de trabalho inevitavelmente se tornariam lugares mais agradáveis, mais parecidos com os lares, onde a vida continua, em vez de ser banida por oito horas. Pois “se você passa oito horas de seu dia no trabalho e oito horas em casa, não há qualquer razão pela qual seu local de trabalho deva constituir uma comunidade mais fraca que sua casa” (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.224).

Ainda se acrescenta que “somente quando as casas se misturam com os demais equipamentos urbanos […] que as características pessoais dos lares e das atividades de configuração de um lar conseguem transmitir energia aos locais de trabalho, escritórios e pontos de prestação de serviços” (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.258).

2.4.4 MESCLA DE IDADES

As pessoas reconhecem que atravessam diversas etapas em suas vidas, etapas que são comuns e identificáveis com o das outras em que convive. Alexander (2013, p.142), com base nos estudos de Erik Erikson, afirma haver oito etapas na vida humana: lactante, criança pequena, criança, pré-adolescente, adolescente, jovem adulto, adulto e idoso. Essas etapas possuem cada uma suas dificuldades e suas vantagens, sendo o desenvolvimento de uma etapa à outra não inevitável, dependendo muito do equilíbrio entre os ciclos existentes naquela comunidade.

[…] (a pessoa) depende de uma comunidade equilibrada, que sustente os ganhos e as perdas do desenvolvimento. As pessoas, em cada etapa da vida, têm algo insubstituível para dar e receber da comunidade, e são exatamente essas transações que ajudam uma pessoa a resolver os problemas que afligem-na em cada etapa. (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.141).

Alexander (2013, p.144) afirma que em vez de comunidades naturais que tem um ciclo de vida equilibrado, temos colônias de aposentados, cidades dormitórios, culturas de adolescentes, vilas universitárias, cemitérios em massa, parques industriais etc. Nessas condições, as chances que um indivíduo tem de solucionar o conflito inerente a cada etapa do ciclo de vida ficam realmente escassas.

Nesse sentido, é necessário haver um estímulo à essa diversidade de idades num determinado local, que pode ser feito através de um equilíbrio no tipo de moradia:

[…] quando o equilíbrio entre os ciclos de vida está bem relacionado com os tipos de moradia disponíveis no bairro, as possibilidades de contato se tornam concretas. Cada pessoa pode, no dia a dia de sua comunidade, ter um contato ao menos passageiro com pessoas nas diferentes etapas da vida. Os adolescentes veem jovens casais, os idosos observam as crianças pequenas as pessoas que moram sozinhas são apoiadas pelas famílias grandes, os pré-adolescentes veem as pessoas de meia-idade como modelos etc.: O conjunto de todas as idades forma um ambiente no qual as pessoas conseguem ter referências durante toda a sua vida. (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013).

Outro argumento utilizado por Alexander (2013, p.377) para incentivar uma vida mais conectada com diversas idades é de que famílias nucleares não são socialmente viáveis por serem muito pequenas, por cada pessoa estar muito presa aos outros membros da família. Historicamente, a sociedade humana era composta por uma família estendida, de pelo menos três gerações vivendo num mesmo lar múltiplo. Hoje, devido às novas realidades sociais, as famílias estão menores, podendo terem ligações muito intensas, assim como muito conflitivas:

[…] se qualquer um dos relacionamentos tem problemas, mesmo que seja por algumas horas, a situação se torna crítica; as pessoas não podem se voltar para tios, tias, avos, primos ou irmãos. Em vez disso, toda dificuldade leva a unidade familiar à espirais de desconforto cada vez mais graves […]. (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.377).

Sendo assim, na falta de várias gerações congregadas num lar, há a necessidade de reforçar um contexto para uma grande família voluntária, respeitando suas vidas privadas. Isso pode ser conseguido através da oferta de vários tamanhos e configurações de moradias num edifício, possibilitando assim, atrair pessoas com diversas idades e necessidades, assim como espaços de uso comum compartilhados: “As áreas de uso comum mais essenciais são a cozinha, o lugar para sentar e comer e o jardim. As refeições comunitárias […] parecem desempenhar o papel mais importante na formação do grupo” (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.379).

Essa mescla de idades pode contribuir com a cidadania através da criação de uma diversidade populacional, onde as trocas de experiências tragam uma visão maior sobre a realidade e sobre como lidar com as decisões públicas.

2.4.5 O ESPAÇO DE TRANSIÇÃO

O espaço de transição na arquitetura é de grande importância para delimitar as esferas públicas e privadas, tendo seu manejo impacto na qualidade desses espaços e de suas relações sociais. Esse espaço faz a conexão entre demarcações territoriais divergentes, constituindo a condição espacial para o encontro entre áreas de ordens diferentes (HERTZBERGER, 2015).

Aqui há um conflito entre as duas principais referências (Hertberger e Arendt), no qual ela afirma que atualmente há uma mancha que seria a esfera social que não é nem pública nem privada, descaracterizando ambos e impedindo o máximo proveito dos dois. Ela até cita que hoje não há mais um abismo a ser transposto entre as esferas como era no mundo antigo. Já Hertzberger afirma que deve haver essa sobreposição, o que caracteriza uma certa mistura suave das duas esferas que contribuiria para o processo de massificação e homogeneização, segundo Arendt. Porém ela não chega a detalhar a relação espacial adequada, na qual conclui que se deva buscar uma certa transição, porém tomando cuidado para não descaracterizar as esferas.

Como dito, Hertzberger (2015, p.32) explica que deve haver nessas áreas uma dualidade que se sobrepõem, em vez de ser rigidamente demarcados. Sendo um local de contato, recepção, despedida e espera. Esse conceito é mais explícito na entrada de uma casa:

[…] a soleira é tão importante para o contato social quanto as paredes grossas para a privacidade. Condições para a privacidade e condições para manter os contatos sociais com os outros são igualmente necessárias. Entradas, alpendres e muitas outras formas de espaços de intervalo fornecem uma oportunidade para a “acomodação” entre mundos contíguos. (HERTZBERGER, 2015, p.35).

Conforme explica Alexander, a experiência da entrada em uma edificação influencia a maneira como você se sente dentro dela. Se a transição é abrupta demais, não há a sensação de chegada e o interior da edificação não consegue ser um espaço sagrado e protegido, pois “quando as pessoas estão na rua, elas adotam uma espécie de “comportamento de rua”.  Quando entram em casa, elas naturalmente querem se livrar deste “comportamento de rua” e se adaptar completamente ao espírito mais íntimo apropriado à um lar” (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.549).

Outro fator a se destacar na diferenciação espacial é a demarcação territorial, com as várias possibilidades de acessos pelas diferenciações como, por exemplo, as cores, as formas, a iluminação e os materiais. Com isso é possível criar níveis de acesso através de padrões (HERTZBERGER, 2015). Alexander confirma e complementa:

Em todos os casos, o mais importante é que haja uma transição física entre o exterior e o interior e que a vista, os sons, a iluminação e a superfície sobre a qual caminhamos mude enquanto passamos pelo percurso. São as mudanças físicas – e acima de tudo, as mudanças nas vistas – que criam a transição psicológica em nossas mentes. (ALEXANDER, ISHIKAWA, et al., 2013, p.552).

2.4.6 PARTICIPAÇÃO

Seguindo o pensamento de Hertzberger (2015), na intenção de aproximar o controle do mundo das pessoas, há a necessidade de que as entidades a serem administradas sejam pequenas e apropriáveis. Nesse sentido a arquitetura pode auxiliar criando ambientes que permitam ser apropriados para que os cidadãos deixem suas “marcas”. Cada componente espacial será usado mais intensamente (o que valoriza o espaço), ao passo que se espera que os usuários demonstrem suas intenções. Mais emancipação gerará mais motivação, e assim poderá favorecer a prática da ação. Isto constitui um apelo em favor da descentralização das responsabilidades.

Ainda criticando a centralização das decisões, Hertzberger (2015, p.147) destacada que “esta cristalização coletiva da liberdade individual de ação atribuiu um objetivo predeterminado a cada lugar da casa e da cidade – e o fez de modo tão pouco inspirado que todas as variações que constituem a identidade são eliminadas na raiz”. Isso quer dizer que a determinação rígida de funções dificulta uma série de atributos que contribui na formação das identidades locais e pessoais.

Finalizando esse aspecto da participação, a arquitetura deveria oferecer um incentivo para que os usuários a influenciassem sempre que possível, não apenas para reforçar sua identidade como objeto, mas especialmente para realçar e afirmar a identidade de seus usuários (HERTZBERGER, 2015).

2.4.7 ESPAÇOS TOLERANTES

Com relação à criação de espaços democráticos, Hertzberger (2015, p.254) afirma que o único aspecto que mostra inequivocamente se um ambiente é autoritário ou tolerante é o grau de liberdade oferecido pela organização do espaço arquitetônico para que possamos escolher o nosso foco visual de atenção: se nossa atenção é forçosamente dirigida para um único ponto ou se somos livres para ignorar este foco e concentrar-nos em outros aspectos, outras atrações de nossa própria escolha.

Quando se trata da posição dos ambientes no desenvolvimento do projeto, devemos levar em conta a exposição e reclusão, e buscar um equilíbrio que permita ao usuário escolher seu posicionamento em relação aos demais. Podemos regular o contato desejado numa certa situação particular para afirmar a intimidade onde ela é necessária e, ao mesmo tempo, não restringir excessivamente o alcance de visão do outro (HERTZBERGER, 2015).

Assim, uma importante ferramenta são as mudanças de níveis, porém deve-se ter cuidado, pois “com níveis diferentes, devemos levar em conta que as pessoas que estão no alto olham para as que estão embaixo; as posições, portanto, não são iguais, e devemos cuidar para que as “de baixo” tenham a possibilidade de evitar o olhar dos que estão “em cima”.” (HERTZBERGER, 2015, p.202). Nesse sentido, espera-se contribuir na criação de ambientes onde há liberdade de se posicionar, ver e se expressar.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que nossas atuais cidades carecem de espaços públicos e privados que congreguem adequadamente seus habitantes, esta pesquisa trouxe subsídios para contribuir conceitualmente na relação da arquitetura com a cidadania.

Isso se deu através de revisão bibliográfica, onde foi delimitado conceitos arquitetônicos que foram orientados pelo esclarecimento da relação público-privado e explicação da cidadania, tudo sob a ótica de vários autores.

Os conceitos de público e privado, assim como sua relação com o espaço, foram abordados de forma a trazer uma base conceitual através das ideias políticas de Hannah Arendt.

Posteriormente discorreu-se sobre o conceito de cidadania e suas implicações, principalmente também por Arendt.

E por fim esclareceu-se conceitos arquitetônicos que possam servir de na busca por espaços inclusivos e interativos. Primeiramente sobre a vida na rua e o porquê deve estimulá-la. Em seguida sobre a necessidade de integração da implantação com o entorno. Depois a respeito do uso misto no edifício e seus benefícios. Logo após, com relação a diversidade de idades, e como isso é importante no desenvolvimento humano. Em seguida sobre os espaços de transição, sendo marcados e suaves. Depois por ambientes interativos, que permitam a participação para os usuários deixarem sua marca nele, e por último, espaços tolerantes que deem liberdade do usuário escolher o foco visual de atenção e de exposição.

Como mencionado anteriormente, não se pretendeu esgotar o tema, mas sim trazer contribuições que ampliem horizontes conceituais para os projetos, o que deixa muito espaço para continuar a pesquisa e ampliar ainda mais o debate.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Christopher et al. Uma Linguagem de Padrões: A Pattern Language. Tradução de Alexandre Salvaterra. 1ª. ed. Porto Alegre: BOOKMAN, 2013. 1171 p.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 13ª. ed. Rio de Janeiro: FORENSE, 2014.

HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. Tradução de Carlos Eduardo Lima Machado. 3º. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução de Carlos S. Mendes Rosa. 3ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

MONTANER, Josep Maria.; MUXÍ, Z. Arquitetura e política: Ensaios para mundos alternativos. Tradução de Frederico Bonaldo. 1ª. ed. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.

[1] Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

Enviado: Março, 2021.

Aprovado: Julho, 2021.

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