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O princípio da vedação à tributação confiscatória – reflexão sobre os aspectos da concepção de justiça de Platão e de Aristóteles

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CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, Jhonatas Ribeiro da [1]

SILVA, Jhonatas Ribeiro da. O princípio da vedação à tributação confiscatória – reflexão sobre os aspectos da concepção de justiça de Platão e de Aristóteles. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 01, Vol. 02, pp. 96-110. Janeiro de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/lei/aspectos-da-concepcao

RESUMO

A Constituição de 1988 elenca entre as Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar o princípio da vedação à tributação com efeito de confisco, mas não há definição legislativa do que vem a ser esse princípio. Assim, a questão norteadora deste artigo é responder se o princípio em tela requer definição legislativa e, na ausência desta, como ele pode ser aplicado. Essas questões serão respondidas por meio da análise da Constituição, das concepções de justiça apresentadas por Platão em A República e por Aristóteles em Ética a Nicômaco, bem como da doutrina clássica sobre a vedação à tributação com efeito de confisco, e da interpretação dos tribunais. Concluímos que o princípio da vedação à tributação com efeito de confisco não deve ser objeto de explicitação legislativa e que sua aplicação pode ser pautada pelo conceito de Justiça que se extrai das obras de Platão e de Aristóteles.

Palavras-chave: Platão, Aristóteles, Justiça, Princípios, Tributação Não Confiscatória.

1. INTRODUÇÃO

É conhecida a influência do positivismo jurídico no direito brasileiro, a qual pode ser explicada, em parte, por sua filiação ao ramo romano-germânico, como também pelo destaque dado a Kelsen (2006) e à temática da hierarquia e da validade formal das normas por nossas escolas de direito.

Entretanto, a experiência mostrou que a redução do direito à temática da hierarquia das normas e da validade formal, a pretexto de conferir maior objetividade, segurança e certeza ao direito, produziu diversas anomalias. Daí por que, na atualidade, não se defender a dissociação entre o direito e os aspectos morais que o permeiam, em cujo âmago se situa a própria noção de justiça.

Essa abordagem requer do jurista não mais o mero conhecimento enciclopédico das regras formalmente válidas no sistema, mas, principalmente, dos princípios e valores que as fundamentam e que servem de vetores e limitadores à sua aplicação, o que leva à necessidade de um maior embasamento filosófico, que invariavelmente requer o conhecimento dos filósofos que trataram da matéria, entre os quais se destacam Platão e Aristóteles.

Contudo, a influência do positivismo ainda pode ser verificada, sendo exemplificada pela permanente ânsia de codificação dos mais variados aspectos da vida cotidiana, como também pela tentativa e pelo desejo de se explicitarem normativamente diversos conceitos jurídicos, inclusive aqueles relacionados às limitações constitucionais ao poder de tributar.

Sobre essas limitações, a Constituição de 1988, seguindo a trilha traçada pelas anteriores, não foi econômica ao disciplinar a atividade exacional do Estado, pois estabeleceu um verdadeiro estatuto assecuratório dos direitos e das garantias do contribuinte, entre os quais, pela primeira vez, a vedação expressa à utilização do tributo com efeito confiscatório. Se todo tributo consiste em uma forma de confisco dos bens do particular pelo Estado, o princípio em tela exprime que a tributação não pode ser elevada a ponto de caracterizar a transferência de toda ou quase toda a propriedade particular ao Estado. Trata-se de princípio dinâmico, que como demonstraremos ao longo deste texto, é incapaz de ter sua definição e alcance apreendidos por uma regra estanque e que, por essa razão, oferece diversas oportunidades de utilização das concepções de justiça de Platão e de Aristóteles para sua aplicação. Assim, a questão norteadora deste artigo é responder se o princípio em tela requer definição legislativa e, na ausência desta, como ele pode ser aplicado.

Neste artigo, por meio da análise doutrinária e jurisprudencial, pretendemos discorrer acerca de aspectos do princípio da vedação à tributação confiscatória e da concepção de Justiça apresentada por Platão e por Aristóteles, na tentativa de demonstrar a inadequação de qualquer tentativa de aprisionamento legislativo do conceito de “vedação à tributação com efeito confiscatório”, revelando, por outro lado, a possibilidade de aplicação prática desse princípio por meio da utilização da obra dos filósofos em questão.

2. PRINCÍPIOS E REGRAS

Como ensina Alexy (2009, p. 3), “o principal problema na polêmica acerca do conceito de direito é a relação entre direito e moral”, havendo duas posições fundamentais: a positivista, que defende a tese da separação, de modo que o conceito de direito não inclua elementos morais, e as não positivistas, que sustentam tal vinculação.

Para a concepção positivista do direito, aspectos filosóficos são elementos metajurídicos e, na medida em que se visa assegurar ao direito a objetividade científica própria das ciências naturais, ela busca equiparar o direito à lei.

É nesse contexto que Kelsen (2006, p. 221) afirma que:

Todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica. A validade desta não está negada pelo fato de seu conteúdo contrariar o de uma outra norma que não pertença à ordem jurídica […].

Tal posição, invariavelmente, permite a construção de sistemas jurídicos compostos exclusivamente por regras, não causando espanto que essa dissociação entre o direito e a moral tenha servido de legitimação para regimes políticos formalmente válidos, mas intrinsecamente imorais, sendo o exemplo clássico o nazifascismo.

Daí por que, a partir da segunda metade do século XX, ganharem destaque as posições não positivistas (ou pós-positivistas), que consideram a vinculação entre o direito e a moral, o que abre caminho ao reconhecimento dos princípios como espécie de norma jurídica e, por consequência, fontes do direito – nessas concepções, tanto as regras quanto os princípios integram o sistema jurídico, formando um conjunto de normas.

Sobre a definição e a distinção entre regras e princípios, pensamos como Alexy (2008, p. 90-91), segundo o qual:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.

Nesse compasso, Canotilho (2003, p. 1.160-1.161) lembra que, enquanto as regras podem ser normas vinculativas com conteúdo meramente funcional, os princípios são standards juridicamente vinculantes, radicados nas exigências de justiça ou na ideia de direito, sendo estes fundamentos das regras (natureza normogenética), constituindo sua ratio.

Sabemos que princípio é um vocábulo que possui diversas acepções, tanto que, como observa Becho (2009, p. 130-131), o próprio Aristóteles já assinalara pelo menos sete, das quais destaca “(b) o ponto a partir do qual é possível que cada coisa seja, do melhor modo, originada”, “(c) aquilo cuja presença determina em primeira instância o surgimento de alguma coisa” e “(g) aquilo a partir de que uma coisa começa a ser compreensível também é chamado de princípio da coisa, por exemplo, as hipóteses das demonstrações”.

Partindo dessas acepções, Becho (2009) aduz que os princípios “precedem” e “determinam” as regras jurídicas, exercendo importante função na “compreensão” do fenômeno jurídico e, por isso, princípios permitem saber se as regras e os textos legais, as decisões judiciais, os atos administrativos e mesmo os contratos particulares estão de acordo com os fundamentos do sistema jurídico.

Ainda escudando-se em Aristóteles, para quem existem princípios que são imanentes às coisas, enquanto outros não o são, Becho (2009, p. 131) indica a existência de princípios que são essenciais, fundamentais, fundantes e estruturais do sistema jurídico (equivalentes aos princípios da acepção “b” supra) – são os princípios por natureza –, enquanto outros princípios podem ser construídos ou decididos – os princípios por decisão –, que, ao serem elaborados, condicionam as regras que os sucedem.

Os princípios por natureza, dado seu caráter fundante, são carregados de conteúdo axiológico, exprimindo as principais aspirações e os objetivos de uma dada sociedade, em determinado momento histórico – o núcleo duro dessa sociedade.

É nesse compasso que, em nossa sociedade, as concepções de direito e de justiça permeiam-se, sendo difícil conceber uma regra que retire seu fundamento de validade exclusivamente dos aspectos topológico e formal.

Portanto, torna-se importante entender a fundamentação filosófica do conceito de justiça e de que modo ela se espraia pelo ordenamento jurídico.

3. A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA EM PLATÃO E EM ARISTÓTELES

Como vimos no tópico anterior, em face dos desvirtuamentos que o positivismo jurídico pode causar, a concepção de direito atualmente encontra-se intimamente vinculada à ideia de justiça e, nesse compasso, dotada de elevada carga axiológica.

Perseguindo os fundamentos dessa vinculação, pretendemos repassar brevemente alguns apontamentos feitos por Platão (2014), em A República, e por Aristóteles (2018), em Ética a Nicômaco, sobre esse tema. Dadas a brevidade deste trabalho e a amplitude do conteúdo da obra desses dois filósofos, não pretendemos uma abordagem nem mesmo propedêutica a respeito do tema, mas tão somente a necessária para entrarmos no tópico seguinte.

Começando por Platão, seu pensamento é marcado por uma ruptura entre o mundo inteligível (das ideias) e o mundo sensível.[2]

Platão concebe a justiça como a principal das virtudes e ela é o tema central de A República.

Em um dos diálogos de A República, os personagens (Polemarco, Trasímaco, Glauco e Sócrates – a quem Platão empresta sua voz) trazem diferentes concepções acerca do conceito de justiça. Polemarco indica que justiça é dar a cada um o que lhe é devido, enquanto Trasímaco afirma que justiça é o poder do mais forte, e Glauco ressalta que não basta ser justo, sendo necessário aparentar ser justo. Sócrates, por sua vez, apresenta uma concepção de justiça fundada no autocontrole e na harmonia, o que fica bastante evidente na divisão das tarefas da cidade que ele idealiza, cujo bom funcionamento seria, ele próprio, uma expressão dessa justiça – a homeostase dessa cidade dependeria do bom funcionamento de suas partes, o qual, por sua vez, pressupõe a atuação harmônica das classes que a compõem.

Em outras palavras, a justiça é posta no âmbito de uma ideia de unidade e harmonia, com o fim de evitar a discórdia (RECASENS SICHES, 1970, p. 427).

Sendo proposto a partir dessa concepção idealizada, o conceito de justiça de Platão é muito vinculado à ideia de justiça como algo metafísico, de difícil apreensão para o humano, mas, talvez até por isso, importante na medida em que estabelece a harmonia, o equilíbrio e o comedimento como pontos altos da conduta humana na busca desse conceito.

Aristóteles (2018), por sua vez, escreveu sobre os mais variados assuntos, e, no que toca à justiça, o escrito de maior importância encontra-se no Livro 5 da obra Ética a Nicômaco.

Antes de discorrermos sobre a concepção aristotélica de justiça, existem dois aspectos de seu pensamento que devem ser ressaltados. O primeiro deles é o atribuído à polis, à vida em sociedade, pois é na vida social e inter-relacional que o homem se desenvolve. Além disso, Aristóteles propunha uma abordagem prática, pois, mesmo tendo sido discípulo de Platão, ultrapassava as idealizações deste – veja que, assim como Platão, Aristóteles encarava a justiça como a maior dentre as virtudes, mas para ele a justiça possui uma natureza empírica, porquanto habita e é exercida na sociabilidade natural do homem, sendo uma virtude praticável com relação ao próximo, devendo reger tanto as relações entre os homens quanto as destes com a polis.

Aristóteles avança na questão do equilíbrio apresentada por Platão para distinguir entre as diferentes espécies de justiça e entre estas e a equidade.

Ele distingue a justiça universal (ou total), relacionada à obediência às normas, da justiça particular, que ele desdobra em justiça distributiva e justiça corretiva.

A justiça distributiva relaciona-se a um conceito de proporcionalidade, prevendo a distribuição dos “bens e das honras” segundo o mérito de cada um, próximo à conceituação atual de igualdade.

Por sua vez, a justiça corretiva traz uma ideia de igualdade aritmética, buscando restabelecer o equilíbrio. Pressupõe a existência de relações de coordenação entre indivíduos colocados em patamar de igualdade, sendo esta do tipo aritmético. Subdivide-se em comutativo (em que as relações estabelecidas entre as partes são igualitárias) e reparativo (em que tais relações são involuntárias).

Aristóteles também apresenta a ideia de equidade, que seria a justiça mais justa, e teria uma função retificadora da lei, atuando onde esta não seja aplicável em razão de sua generalidade, abstração e impessoalidade.

Ao comparar a concepção de justiça de Platão com a de Aristóteles, Recasens Siches (1970, p. 428) realça que, nesse autor, “este mismo tema se presenta con un propósito de conciliación. Lo absoluto y lo histórico, lo fijo y lo mutable, ya no entablan querella, antes bien se trata de armonizarlos”.

4. PRINCÍPIO DA TRIBUTAÇÃO NÃO CONFISCATÓRIA

4.1 ASPECTOS GERAIS

Como procuraremos demonstrar a seguir, diversos conceitos apresentados por Platão e por Aristóteles podem ser e são utilizados para preencher o elevado grau de abstração do princípio que veda a tributação confiscatória.

Assim, confisco, em matéria tributária, pode ser visto como a transferência total ou de parcela exagerada e insuportável do bem objeto da tributação, da propriedade do contribuinte, para a do Estado (BECHO, 2009, p. 412).

Considerando que todo tributo, especialmente os impostos (cuja hipótese de incidência não se vincula a qualquer atuação estatal), traz em si algum grau de confiscatoriedade, na medida em que importa na retirada de parcela do patrimônio do contribuinte pelo Estado, a atividade tributária deve se dar de tal modo que não implique sacrifício substancial do direito de propriedade do contribuinte.

De outro modo, tomando emprestado as ideias do Sócrates de Platão, deve ser harmoniosa, de modo que o Estado não ceda ao apetite de tomar para si toda a riqueza do contribuinte, por meio da tributação – pois, no modelo de Estado atual, suas rendas, de maneira geral, são derivadas da tributação, sendo errática a atuação direta na seara econômica, e, nesse contexto, o tributo com efeito confiscatório seria contrário a esse próprio modelo de Estado.

4.2 PREVISÃO EXPRESSA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição de 1988 veda expressamente a tributação com efeito confiscatório (art. 150, IV), vedação que é aplicável a todas as espécies tributárias (impostos, taxas, contribuições de melhoria), conformando-se às respectivas materialidades e características.

Aspecto interessante reside no fato de que, diversamente do que se dá na atualidade, as Constituições anteriores não previam expressamente o princípio da vedação à tributação confiscatória, sendo esse princípio extraído de outros princípios constitucionais – curiosamente, mesmo Pontes de Miranda (1973, p. 197), reconhecia a impossibilidade de utilização de tributos para “disfarçar” confiscação no que vai ao encontro da afirmação aristotélica de que:

Quando, portanto, a lei se expressa em termos gerais e surge um caso que não se enquadra na regra, será, então, correto – onde a expressão do legislador, por ser absoluta, é lacunar e errônea – corrigir a deficiência (preencher a lacuna), pronunciando como o próprio legislador teria pronunciado se estivesse presente oportunamente e teria legislado se tivesse conhecimento do caso em particular (ARISTÓTELES, 2014, p. 212 [1137b20]).

4.3 FUNDAMENTOS DO PRINCÍPIO

O princípio da vedação à tributação confiscatória encontra seu fundamento em diversos direitos e garantias constitucionais, como o direito de propriedade (art. 5.º) e a livre-iniciativa, em linha com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

No entanto, veja que, ao mesmo tempo em que a Constituição de 1988 assegura o direito de propriedade, ela exige que esta cumpra sua função social (art. 5.º, XXIII), inclusive com a previsão de medidas assecuratórias dessa finalidade, por exemplo, ao prever a possibilidade de que o Imposto Territorial Rural seja progressivo no tempo e tenha suas alíquotas fixadas de modo a desestimular a propriedade improdutiva (art. 150, § 4.º, I), ou ainda quando prevê que o Imposto Predial e Territorial Rural poderá ser progressivo no tempo, como forma de incentivar o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a promover seu adequado aproveitamento (art. 182, § 4.º, II).

Isso revela que o constituinte buscou equilibrar o direito de propriedade, pois, ao mesmo tempo em que o assegurou, aquinhoou um conjunto de obrigações, demonstrando uma distribuição virtuosa de direitos e deveres, em linha com a concepção aristotélica de virtude, segundo a qual esta consiste na “mediania entre dois vícios, um em função do excesso e outro em função deficiência” (ARISTÓTELES, 2014, p. 93 [1107a1]).

4.4 IMPOSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DO CONCEITO DE VEDAÇÃO À TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA

O comando primário do princípio da tributação não confiscatória é dirigido ao legislador, que não pode instituir tributo que tenha efeito de confisco. Trata-se de princípio por natureza, na medida em que não provém de uma mera opção do legislador, mas dos fundamentos e valores de nossa sociedade. Assim, como princípio por natureza, prescinde de que o legislador infraconstitucional defina a que corresponderia a tributação com efeito confiscatório.

Esse é um aspecto com relação ao qual praticamente toda a doutrina tributária é convergente, tendo Carrazza (2015, p. 100) observado que o conceito de confiscatoriedade varia no espaço e no tempo, não havendo como uma lei estabelecê-lo. No mesmo sentido, Becho (2009, p. 435) afirma que “não devemos esperar e somos, verdadeiramente, contrários a qualquer delimitação legal para o princípio que veda a tributação com efeito de confisco”.

Curiosamente, a Constituição de 1937, visto que não trouxesse explicitamente o princípio da tributação não confiscatória, apresentava uma regra que parecia ir ao encontro desse princípio implícito, pois previa em seu art. 185 que “nenhum imposto poderá ser elevado além de vinte por cento do seu valor ao tempo do aumento”, denotando que uma majoração nesse patamar seria considerada confiscatória naquele contexto.

A inaptidão de uma lei que defina aprioristicamente o que se deve entender por uma tributação confiscatória vai ao encontro do que diz Aristóteles (2014, p. 210 [1137 b 25]) com relação ao equitativo, quando afirma que nem todas as coisas podem ser determinadas pela Lei, pois “em alguns casos [e situações] é impossível estabelecer uma lei necessária e decreto”.

Ainda que a Lei não se preste a definir o que é uma tributação confiscatória, a questão que se coloca é saber quando, no caso concreto, uma tributação será considerada confiscatória. Uma alíquota de 100% pode ser considerada confiscatória? À primeira vista, pode parecer que sim, mas, se essa for a alíquota do imposto sobre produtos industrializados incidente sobre produtos fumígenos derivados do tabaco, será que a resposta seria a mesma? Parece-nos que não. Sobre essa questão, Amaro (2002, p. 142) observa que:

O princípio da vedação do tributo confiscatório não é um preceito matemático; é um critério informador da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgador, que à vista das características da situação concreta, verificarão se um determinado tributo invade ou não o território do confisco.

Talvez seja este o aspecto que apresente as maiores aproximações entre o princípio da tributação não confiscatória e o conceito de justiça de Aristóteles.

O ponto inicial reside no fato de que a aferição do que é uma tributação confiscatória deve ser verificada no caso concreto, revelando a necessidade de uma concepção prática e sensível do justo. Nesse sentido, uma tributação mais severa pode se justificar por razões de política extrafiscal (em que o tributo atua como indutor de comportamentos, incentivando ou desincentivando atitudes do contribuinte, como veremos mais adiante), ou ainda em função da materialidade envolvida (por exemplo, gravando, de modo mais oneroso, bens voluptuários) ou mesmo em face de questões conjunturais (um imposto extraordinário na iminência de uma guerra, por exemplo).

A importância de levar em consideração o caso concreto não passou despercebida por Coêlho (2005, p. 306), que observou que “o que se considera tributação razoável hoje pode não o ser amanhã, e o que é razoável aqui pode não o ser em outro lugar”.

4.5 VINCULAÇÃO AO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

Outro aspecto importante refere-se à conexão existente entre os princípios da tributação não confiscatória e o princípio da capacidade contributiva. Como observa Becho (2009, p. 433-434), “o princípio da capacidade contributiva é um minus diante do princípio da vedação de tributação com efeito de confisco, este um plus. Em outras palavras, este princípio é para hipóteses exacerbadas em relação à capacidade contributiva”.

O princípio da capacidade contributiva pressupõe que a tributação deve se dar de tal maneira que possa se adaptar à riqueza do contribuinte, de modo a tributar onde há riqueza, explorando-a ao máximo, e também a não tributar onde riqueza não houver, ou seja, trata-se de princípio muito próximo da concepção aristotélica de justiça distributiva.

4.6 CONTROLE PELO JUDICIÁRIO

Outro ponto de contato diz respeito à possibilidade de controle do princípio da vedação à tributação confiscatória pelo Judiciário. Sobre essa questão, o Supremo Tribunal Federal (STF), em um passado distante, já chegou a assentar o entendimento de que, “se ainda assim houver abusos, como incontestavelmente os há, queixem-se os contribuintes de si mesmos, dos maus ou péssimos representantes que escolheram” (BRASIL, 1923), denotando o entendimento dessa Corte de que o princípio em tela teria como destinatário apenas e tão somente o legislador.

No entanto, como observa Dória (1986, p. 204),

[…] as maiores consequências do direito, muitas vezes decorrem de mínimas diferenças de fato, já advertia a sabedoria dos romanos, e relevantes distinções jurídicas assentam-se em meras distinções de grau, de apreciação essencialmente subjetiva. Nesse compasso, cabe à jurisprudência a tarefa de, por meio de aproximações sucessivas, revelar as verdadeiras aplicações concretas dos princípios tributários contidos na Constituição.

Nessa esteira, felizmente, a concepção de que não caberia ao Judiciário controlar o princípio da tributação não confiscatória foi há muito superada,[3] tendo o STF, por inúmeras vezes, aplicado o princípio em tela para repelir a tributação exacerbada, bem como para reconhecer que determinada situação é conforme ao princípio.[4]

Becho (2009, p. 461) observa que a jurisprudência do STF deixa transparecer que não confiscar seja aplicar a razoabilidade e que tanto a razoabilidade na tributação quanto o princípio da tributação não confiscatória são expressões da virtude platônica da temperança.

4.7 EXTRAFISCALIDADE

Finalmente, importa falar do princípio da vedação à tributação não confiscatória em face da função extrafiscal do tributo.

Há muito percebeu-se que os tributos podem ser utilizados como instrumentos para o atingimento de finalidades diversas da arrecadação. Nesse compasso, os tributos podem ser empregados como instrumento de atuação indireta do Estado, como indutor de comportamentos em que a atuação direta do Estado suscitaria protestos ou tropeçaria em óbices práticos (DÓRIA, 1986, p. 175). São exemplificativos, como dissemos anteriormente, o ITR e o IPTU progressivos em virtude do descumprimento da função social da propriedade, bem como a fixação de alíquotas do imposto sobre operações de crédito a fim de incentivar ou desincentivar o mercado de crédito, e ainda o estabelecimento de alíquotas para contribuições previdenciárias destinadas ao custeio de benefícios relacionados a acidentes do trabalho, com o intuito de estimular a construção de um ambiente de trabalho mais saudável.

Nesse compasso, é admitida a tributação exacerbada por razões extrafiscais e quando o constituinte previr a tributação exacerbada para induzir comportamentos desejados ou para inibir comportamentos indesejados.[5] Contudo, mesmo nesses casos, é mais consentâneo com a ordem constitucional que a extrafiscalidade seja utilizada dentro de limites de razoabilidade e proporcionalidade.

Por esse motivo, com exceção das hipóteses expressamente previstas na Constituição, que não configuram hipóteses de confisco de natureza tributária, o legislador deve ter cautela ao atuar no campo da extrafiscalidade, pois os excessos, quando não claramente explicitados, são passíveis de impugnação judicial (CARRAZZA, 2015, 105-106).

Com relação a alguns impostos, a exacerbação de alíquotas pode chegar a um limite quase insuportável, porém admitido pelo sistema. Em outros, ao contrário, tal forma de proceder levaria à extinção do próprio fator desencadeante da atividade de tributação.

Veem-se, no tocante ao uso do tributo com fins ordinatórios, pontos de contato com a concepção de justiça de Platão, especialmente quando ele defende que a justiça, sob a perspectiva do bom funcionamento da cidade, só é possível se, ao mesmo tempo, o vetor do uso do tributo com finalidades extrafiscais for sopesado pelo velo vetor da vedação à tributação confiscatória.  Contudo, há uma diferença relevante de perspectiva, pois, nesse caso, o bom funcionamento da cidade se alcança no plano concreto e por meio de incentivos (diferente de uma atuação desinteressada, como parece defender Platão), com todas as suas imperfeições.

Por outro lado, na medida em que há a atuação de dois vetores (um exacerbando a tributação e outro buscando limitá-la), podem-se identificar também intersecções com a concepção aristotélica, mormente no que toca ao ponto de equilíbrio em que se encontra a virtude.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos, o princípio da vedação à tributação com efeito de confisco não comporta uma delimitação legislativa de seu conceito, sendo muito mais adequada a apreensão de seu sentido e conteúdo a partir do caso concreto, sempre tendo por base as concepções de justiça e de harmonia.

Isso é reflexo da insuficiência da concepção positivista do direito, baseada na ideia de validade formal e hierárquica das normas, dissociada dos aspectos morais e da própria concepção de justiça, de onde emergiu a maior importância dada à questão dos princípios e da própria noção de justiça.

Tomando por base as concepções de justiça de Platão e de Aristóteles, temos que ambos a encaram como a principal das virtudes, associando-a a uma noção de harmonia e razoabilidade. Por outro lado, enquanto a concepção aristotélica é empírica, a concepção platônica toma como referência o campo das ideias, dadas as deformações existentes no mundo real.

Essa diferença em nada reduz a utilidade dos dois filósofos para a análise do princípio constitucional da vedação à tributação confiscatória.

Como vimos, esse princípio não se presta a ter seu conteúdo restringido por definições legais estanques e, sendo um princípio dinâmico, é na dimensão prática e concreta que ele opera.

Aqui, vê-se que o princípio em tela é muito próximo da ideia aristotélica de equidade, na medida em que ele opera (e deve operar) onde a legislação não consegue atuar.

Ele também possui diversos pontos de contato com as ideias de harmonia e de temperança, bem como de razoabilidade e de equilíbrio, o que aproxima sua aplicação prática da concepção aristotélica de virtude.

Finalmente, o princípio da vedação à tributação não confiscatória é um dos vetores da função extrafiscal do tributo, atuando no sentido negativo da exacerbação da tributação com finalidade indutora de condutas, e aqui ele serve como meio para se alcançar o funcionamento harmonioso da cidade.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo, Malheiros, 2008.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Edson Bini. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2018.

AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2002

BECHO, Renato Lopes. Filosofia do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, AP 3.673, Rel. Min. Edmundo Lins, 19.05.1923.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, RE 18.331/SP, Rel. Min. Orozimbo Nonato, 1951. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur68527/false. Acesso em: 8 dez. 2021.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 21. reimp. Coimbra: Almedina, 2003.

CARRAZZA, Elizabeth Nazar. IPTU e progressividade: igualdade e capacidade contributiva. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2015.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DÓRIA, Antônio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e “due process of law”: ensaio sobre o controle judicial da razoabilidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PLATÃO. A República: ou sobre a justiça, diálogo político. Tradução Anna Lia Amaral de Almeida Prado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

RECASENS SICHES, Luís. Tratado general de filosofía del derecho. 4. ed. México: Porrúa, 1970. 

APÊNDICE – REFERÊNCIA NOTA DE RODAPÉ

2. Sobre esse aspecto da filosofia de Platão, vale citar as lições Recasens Siches (1970, p. 426), que explica: “Para Platón, el ser en sí, plenario, autosuficiente, no se halla em los objetos de la experiencia, pues éstos son tan sólo a medias lo que son, se nos presentan como evanescentes, como contradictorios muchas veces, como turbios, confusos e imperfectos, mezclados con otros, deficientes. Sólo las ideas son plenariamente lo que son, do modo perfecto, auténtico, firme, evidente. Las cosas de la experiencia son copias imperfectas y fragmentarias de las ideas, como trasuntos indecisos, como sombras grises, como proyecciones deficientes de los seres plenos y genuinos de las ideas”.

3. Vide, entre outros, o RE 18.331, em que o Min. Orozimbo Nonato assentou o entendimento de que “o poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquêle pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio, de indústria e com o Direito de propriedade” (BRASIL, 1951).

4. Podemos citar, entre outros: (i) a ADIn-MC 2.010/DF, em que o STF declarou expressamente que a tributação confiscatória é vedada pela Constituição e que o confisco em matéria tributária deve levar em consideração a análise da carga global exigida por um mesmo ente tributante; (ii) a ADIn-MC 1.075/DF, em que foi apresentada uma conceituação para o princípio da tributação não confiscatória e se reconheceu a possibilidade de que o controle de constitucionalidade se dê tanto em controle difuso quanto em controle concentrado; (iii) o RE 213.396/SP, em que decidiu que não configuram confisco os tributos indiretos; (iv) a ADIn-MC-QO 2.551-1/MG e o RE 239.397/MG, que reconheceram a aplicação do princípio às diversas espécies tributárias; (vi) o AgR no RE 448.432, no sentido de que o isolado aumento de tributo não é suficiente para a caracterização do confisco, requerendo análise do quadro fático, entre inúmeros outros julgados que trataram de temas como pena de perdimento e multas confiscatórias.

5. Outra forma de utilização do tributo com funções extrafiscais se dá por meio da concessão de incentivos positivos ao contribuinte (benefícios fiscais), como ocorre, por exemplo, na possibilidade de que a pessoa física deduza do seu imposto de renda os aportes realizados a planos de previdência complementar (o benefício, nesse caso, é o diferimento da tributação). Contudo, como este trabalho trata da tributação da hipótese de confisco tributário, deixaremos de abordar a extrafiscalidade sob a perspectiva da concessão de benefícios.

[1] Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários; Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORCID: 0000-0002-8863-3691.

Enviado: Dezembro, 2021.

Aprovado: Janeiro, 2022.

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Jhonatas Ribeiro da Silva

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