REVISTACIENTIFICAMULTIDISCIPLINARNUCLEODOCONHECIMENTO
Livros Acadêmicos

1. Interdisciplinaridade no ensino de física: conceitos, perspectivas e desafios

4.9/5 - (86 votos)

Thales Alves Faraco [1]

Aruã Menezes de Aguiar [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1794

Ao longo de nossa vida, o conhecimento por nós adquirido é construído e reconstruído inúmeras vezes. A educação, força motriz transformadora da sociedade, deve acompanhar a esse dinamismo.

A Física é uma ciência dinâmica que se faz presente na vida das pessoas desde os tempos mais remotos. Suas investigações vão desde os fenômenos que ocorrem em escala atômica – tal como a fusão de dois átomos de hélio – até a origem e evolução do Universo. No entanto, mesmo com a sua vasta aplicabilidade e relevância, o ensino da Física, na maioria das escolas brasileiras, é predominantemente teórico, com aulas expositivas, pautadas na reprodução dos conteúdos apresentados nos livros didáticos. Esse tipo de ensino tradicional, no qual o estudante memoriza teorias, fórmulas e conceitos para tirar boas notas nas provas, tem se mostrado defasado e desmotivador, fazendo com que a Física seja vista como uma mera disciplina difícil, tediosa, sem sentido e sem utilidade para os alunos e até mesmo para os professores que a lecionam.

Em síntese, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96) nos diz que a educação deveria promover a construção de indivíduos críticos, conscientes, atuantes e capazes de compreender e intervir nos problemas e situações encontrados em seu dia a dia. Entretanto, o método tradicional de ensino tem falhado nesses quesitos, pois os alunos não conseguem utilizar os conceitos estudados em sala de aula e aplicá-los às situações mais simples de seu cotidiano.

Com o intuito de melhorar tal cenário educacional, diferentes práticas pedagógicas têm sido apresentadas, analisadas e discutidas nos últimos anos. Dentre elas, pode-se citar a interdisciplinaridade, a qual busca proporcionar um ensino baseado na interação entre as disciplinas ou áreas do saber, visando uma educação de qualidade mais integradora e contextualizada. Essa prática pedagógica tem se mostrado promissora para o ensino de Física nas escolas e também tem sido debatida por professores de outras áreas de conhecimento.

A interdisciplinaridade no ensino influenciou na elaboração de documentos oficiais promulgados pelo MEC a partir da nova LDB 9394/96, tais como os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Os PCNs são diretrizes que visam nortear os educadores em cada disciplina. Já a BNCC é um conjunto de normas obrigatórias que definem um currículo comum a todas as escolas e localidades. Os PCNs, por exemplo, destacam que as práticas interdisciplinares não têm a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes, mas sim utilizar os conhecimentos de várias disciplinas de forma integradora e contextualizá-los para resolver um problema ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista.

Um exemplo mais atual de tentativa de aperfeiçoamento do ensino é o chamado Novo Ensino Médio, que é uma proposta de reforma da educação que entrou em vigor em 2022 para os alunos do primeiro ano do ensino médio. A interdisciplinaridade é uma das práticas pedagógicas presentes no Novo Ensino Médio.

O Novo Ensino Médio surgiu a partir da Lei n° 13.415/2017 que alterou a LDB e estabeleceu uma mudança na estrutura do ensino médio, havendo uma ampliação do tempo mínimo do estudante na escola de 800 horas para 1.000 horas e também uma flexibilização da organização curricular, contemplando a BNCC e ofertando diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes, os chamados itinerários formativos. Esses itinerários são um conjunto de disciplinas e projetos interdisciplinares que poderão ser escolhidos pelos estudantes do ensino médio para que possam se aprofundar em uma determinada área de conhecimento.

Desde a chegada da interdisciplinaridade no Brasil, no final dos anos 60, diversos autores têm apresentado suas concepções acerca do tema. Dentre esses autores, destacam-se as obras de Hilton Japiassu (1976) e Ivani Fazenda (1979), cujas obras são consideradas referências centrais sobre a temática interdisciplinar. Do ponto de vista de Japiassu, a interdisciplinaridade pode ser entendida como um movimento realizado no interior das disciplinas por meio da prática pedagógica entre elas, visando integração. Para Fazenda, a interdisciplinaridade pode ser compreendida como a relação entre as diferentes áreas do conhecimento, devendo abranger um objeto de estudo em comum e que contemple características específicas de ambas.

De modo geral, o que os documentos oficiais e autores sugerem com a interdisciplinaridade no ensino é aproximar as disciplinas ou áreas dos saberes, permitindo uma educação mais ativa, integrada, contextualizada, que faça parte da vivência dos alunos e sentido para eles, superando a fragmentação dos saberes. Isso promove, sobretudo, uma maior compreensão dos conceitos e torna as aulas mais interessantes, motivadoras e efetivas.

É notório que a interdisciplinaridade tem conquistado um papel de destaque no cenário educacional, o que pode ser confirmado pela grande variedade de livros e artigos científicos, resultados das pesquisas nas últimas décadas, e também pelos debates cada vez mais frequentes sobre o tema. Essa conquista evidencia uma mudança de paradigmas no cenário educacional, um maior esforço dos educadores em buscar novas estratégias de ensino e uma maior pressão aos órgãos públicos por leis e condições que permitam o desbravamento da educação. Apesar da interdisciplinaridade no ensino ainda não fazer parte da realidade da grande maioria das escolas brasileiras, todos esses esforços contribuem para que novas práticas educacionais se fortaleçam e possam se tornar uma realidade mais concreta nos próximos anos.

Para viabilizar as práticas interdisciplinares, os projetos são de suma importância, os quais devem ser desenvolvidos pelos professores das disciplinas envolvidas, levando em consideração as contribuições e particularidades de cada área, bem como serem pertinentes com a realidade da escola e dos alunos. É importante ressaltar que é necessário um objetivo bem definido para que os alunos não se percam em divagações. Devemos também, tomar cuidado para que essa prática não vire um modismo, perdendo a sua principal função que é o ensino de qualidade. Além disso, como ferramentas de apoio, é possível utilizar a internet e os dispositivos eletrônicos disponíveis.

Os docentes também devem estar conscientes da necessidade de novas práticas pedagógicas e dispostos a dividirem o protagonismo com os alunos, os quais deixam de ser meros espectadores. Isso exige disposição, dedicação e coragem. Assim sendo, o diálogo entre eles deve ser constante, os questionamentos debatidos, as curiosidades incentivadas e os conhecimentos prévios valorizados, pois servem de ponto de partida para os novos conhecimentos.

Dentre as muitas dificuldades encontradas para a realização das práticas interdisciplinares, podem-se destacar principalmente: (1) o pouco preparo dos professores, que muitas vezes apresentam defasagem de conhecimento com pouca ou nenhuma capacitação; (2) resistência ao trabalho coletivo, o que é um empecilho para se colocar em prática projetos que requeiram um envolvimento mais direto com outros professores; (3) resistência à mudança, o que é muito comum, principalmente para os professores com mais anos de serviço, exigindo que eles saiam de sua zona de conforto; (4) reduzida carga horária para a disciplina, o que representa uma dificuldade de colocar em prática esses projetos; (5) falta de estrutura das escolas, que muitas vezes não contam com uma infraestrutura adequada e têm pouco ou nenhum apoio financeiro que fomente as propostas experimentais (equipando laboratórios, bibliotecas e salas de informática), (6) a dificuldade de desenvolver atividades interdisciplinares para determinados conteúdos, o que exige uma maior dedicação e empenho por parte dos professores e, por fim, mas não menos importante, (7) a falta de valorização do professor, naquilo que tange à remuneração e ao plano de carreira, desestimulando os educadores a se especializar, capacitar e atualizar.

Nenhum assunto a ser estudado é naturalmente mais adequado do que outros para que possamos realizar a interdisciplinaridade no ensino. No entanto, alguns conteúdos, por serem tradicionalmente lecionados por mais de uma disciplina, representam uma possibilidade mais imediata, como é o caso da grande maioria dos assuntos trabalhados pela Física e Química. No entanto, com o método tradicional de ensino, esses assuntos têm sido estudados de forma isolada, fragmentada e bem dividida. A Termodinâmica, por exemplo, é comumente estudada por ambas as disciplinas. A Física foca nos processos que envolvem trocas de calor e trabalho, enquanto a Química destina seu estudo às quantidades de calor (energia) absorvidas ou liberadas durante as reações químicas. Estudar a Termodinâmica sob uma perspectiva interdisciplinar, permitiria a construção de um conhecimento mais amplo, integrado e contextualizado, fazendo mais sentido para o aluno. Além disso, essa união favorece a discussão de aspectos que apurem o senso crítico dos alunos, tal como a viabilidade de combustíveis sustentáveis para o uso em motores de veículos.

A Física e a Matemática são também grandes aliadas, uma vez que a Matemática garante de forma direta e objetiva a descrição quantitativa dos fenômenos físicos através de suas formulações. Podemos tomar como exemplo a Cinemática, área da Física que é formalizada em equações horárias para a posição e velocidade das partículas. Essas equações são funções de primeiro e segundo grau. No entanto, os alunos, na maioria das vezes, não conseguem fazer essa assimilação, resultando em um aprendizado superficial. Estudar a Matemática com a Física sobre uma ótica interdisciplinar, possibilitaria a construção de habilidades múltiplas, pois os alunos passam a aprender a identificar as ferramentas matemáticas necessárias para entender os fenômenos físicos.

A Física também está fortemente aliada à Biologia, pois grande parte dos processos biológicos estão intimamente relacionados a conteúdos trabalhados na Física. Podemos citar, por exemplo, a circulação sanguínea (Hidrodinâmica), a formação da imagem na retina (Óptica), a audição (Acústica), os movimentos do corpo (Mecânica) e as atividades neurais (Eletricidade).

Cabe salientar também que, embora não pareça tão óbvio, é possível aplicar a interdisciplinaridade entre a Física e as disciplinas das Ciências Humanas. As Ciências Exatas surgiram a partir de ideias filosóficas sobre a natureza e esse é um aspecto que tem sido deixado de lado com o método tradicional de ensino. Estudar Física e Filosofia sob uma perspectiva interdisciplinar é enriquecedor, pois permitiria abordar, por exemplo, os fatos que levaram ao desenvolvimento das teorias, princípios e leis da Física. Além disso, é possível conectar a Física com a História e a Geografia. Por exemplo, as máquinas térmicas que deram início a Revolução Industrial no século XVIII, operavam baseadas na Termodinâmica; as bombas nucleares lançadas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki durante a Segunda Guerra Mundial (1945) foram desenvolvidas a partir de princípios da Física Atômica; assim como a Globalização somente se tornou possível graças ao avanço tecnológico e científico alcançado nas últimas décadas.

Com tudo isso, fica claro que é preciso aprimorar a metodologia utilizada, atualmente, para o ensino da Física e buscar novos caminhos que garantam um ensino de qualidade, dinâmico e motivador, que promova a construção de indivíduos críticos, conscientes e atuantes. Para tal, faz-se necessário o engajamento e dedicação dos professores e dos alunos, lapidar os meios, contornar os problemas, estar aberto a mudanças e usufruir de novos recursos tecnológicos disponíveis. Além disso, os órgãos públicos devem investir cada vez mais na educação para que novas propostas possam ser colocadas em prática de forma adequada.

Portanto, os novos tempos, caracterizados pelas grandes mudanças em todos os setores da sociedade, sobretudo agora em época de pós-pandemia, exigem que os professores se reinventem e que os alunos ganhem protagonismo nesse processo de ensino aprendizagem.

O que foi abordado nesse texto, está longe de cobrir todos os assuntos referentes ao tema. No entanto, o objetivo foi apresentar alguns aspectos sobre a interdisciplinaridade no ensino de Física, que visa uma maior aproximação entre a teoria e prática, possibilitando o desenvolvimento de novas habilidades e competências nos alunos. É necessário mudar a maneira de pensar, de aprender e de ensinar.

REFERÊNCIAS

BRASILEIRO, Bereneuza Tavares Ramos Valente, CAVALCANTI, Edjane dos Santos Oliveira, RAMOS, Flávia Tavares da Costa, SOUZA José Edson Gomes de, NASCIMENTO, Raphael Fonseca do. Caminhos do ensino interdisciplinar. Recife: Saber Fazer, 2021.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia. São Paulo: Loyola, 1979.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes.  Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 11 ed. São Paulo: Papirus, 1994.

FAZENDA, Ivani Catarina Arantes. Didática e Interdisciplinaridade. São Paulo: Papirus, 1998.

JAPIASSÚ, Hilton. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LÜCK, Heloísa. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teórico-metodológicos. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.

PHILIPPI JÚNIOR, Arlindo., FERNANDES, Valdir. Práticas da interdisciplinaridade no ensino e pesquisa. Barueri: Manole, 2016.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. Globalização e Interdisciplinaridade: o currículo integrado. Porto Alegre: Artmed, 1998.

[1] Doutor em Física Pela Universidade Federal de Juiz De Fora (UFJF). ORCID: 0000-0003-2957-6006. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3626879924675488.

[2] Doutor em Física Pela Universidade Federal de Juiz De Fora (UFJF). ORCID: 0000-0003-0816-2250. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5247916402765611.

Thales Alves Faraco

Thales Alves Faraco

Doutor em Física Pela Universidade Federal de Juiz De Fora (UFJF). ORCID: 0000-0003-2957-6006. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3626879924675488.

7 respostas

  1. Achei esse capítulo de livro excelente. Ele apresenta e discute muito bem a importância e os desafios da interdisciplinaridade no ensino de Física. Eu sou Químico e gostei demais da abordagem feita pelos autores.

  2. Os exemplos dados de interdisciplinaridade no ensino de Física, em conjunto com outras áreas do conhecimento, são muito bons e vale a pena tentar aplicá-los em sala de aula… Faço mestrado em ensino de Física e estudo esse tema..

  3. É uma pena aqui no Brasil a gente não conseguir colocar em prática a interdisciplinaridade no ensino. Sou pedagoga e acho que nunca consegui aprender Física por causa do ensino ser tão desconectado com a realidade, e olha que eu me formei há quase 35 anos atrás

  4. Sou professor de Geografia há mais de 20 anos e concordo com o comentário da Suzana. Talvez se o ensino das ciências exatas fosse mais interdisciplinar, eu teria aprendido Física.

  5. O livro do Japiassú (1976) é incrível e vale muito a pena ser lido. RECOMENDO À VOCÊS!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Capa do Livro

DOI do Capítulo:

10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1794

DOI do Livro:

10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/

1607

Capítulos do Livro

Livros Acadêmicos

Promova o conhecimento para milhões de leitores, publique seu livro acadêmico ou um capítulo de livro!