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Aproximação entre o pensamento de Paul Ricoeur com as propostas da BNCC

RC: 145760
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/paul-ricoeur

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

SILVA, Joana D’arc Araújo [1]

SILVA, Joana D’arc Araújo.  Aproximação entre o pensamento de Paul Ricoeur com as propostas da BNCC. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 08, Ed. 06, Vol. 02, pp. 191-203. Junho de 2023. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/paul-ricoeur, DOI:10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/paul-ricoeur

RESUMO

O artigo averigua a relação entre o conceito de laicidade, em Paul Ricoeur, com a BNCC, no intuito de pensar uma proposta pedagógica para o Ensino Religioso com desdobramentos para a cidadania e o respeito à diversidade religiosa. Pergunta-se pela importância da BNCC com esse aspecto, reafirmando a referencialidade da Ciência da Religião no processo de formação de professores e no fornecimento de conteúdos e abordagens essências para o Ensino Religioso, especialmente pelo fato de tentar compreender o fenômeno religioso de forma holística sem preferenciar uma tradição religiosa em detrimento de outras. Depreende-se, pois, que esse tipo de entendimento eleva o Ensino Religioso ao status de componente curricular indispensável para uma formação direcionada para os valores democráticos e civilizatórios.

Palavras-chave: Ciência da Religião, Ensino Religioso, Laicidade.

1. INTRODUÇÃO

Na academia e na sociedade brasileira predominou a lógica do ideal iluminista que relegava a religião à dimensão privada, e à sociedade moderna se impôs uma organização democrática a partir de outros ideais humanistas. As linguagens religiosas constituintes das teias sociais foram desprezadas, e o centro das atenções foram as expressões religiosas exóticas, numa atitude curiosa e interessante em relação à estética em detrimento dos aspectos políticos e comportamentais do campo religioso (ALVES, 1984). Nota-se uma tentativa de regulação das questões que ultrapassam os limites dos locais sociais e tempos estritamente religiosos, a partir da inserção dos movimentos religiosos na esfera político-partidária.

Martins (2020) observa inúmeros casos de intolerância religiosa no cenário brasileiro e uma tensão crescente para o resgate dos valores cristãos conservadores ou fundamentalistas. Esse fato desvela o conflito entre os sistemas normativos com a necessidade de aprofundar o compromisso acadêmico anti-cientificista de negar certa neutralidade na pesquisa e postular outros compromissos humanistas, democráticos e civilizatórios com mais empenho, para reconhecer a necessidade de uma sociedade ideal.

Na academia, ainda existem muitas conquistas possíveis que envolvem o debate público e a reflexão da sociedade como um todo. O Ensino Religioso (ER) emerge como um espaço privilegiado para prosseguir com essa discussão, exigindo uma educação voltada para as sensibilidades dos alunos para que eles compreendam a religião do outro como um elemento constitutivo da experiência humana e cotidiana. Isso possibilitaria uma reflexão propositiva de valores civilizatórios universais.

Numa sociedade democrática e laica, fecham-se os espaços para um ensino catequético e doutrinário nas escolas públicas. Mas, os modelos de ER variaram muito diante das transformações sociais e políticas em cada época. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o ER foi regulamentado com certas especificidades, para não ser proselitista e garantir o respeito à diversidade religiosa e cultural brasileira (BRASIL, 1997).

O tema da laicidade e da separação entre a igreja e o Estado se insere no âmbito das discussões sobre o ER. No Brasil, estabeleceu-se o modelo de “laicidade de reconhecimento”, em distinção dos modelos dos Estados Unidos e da França, por exemplo, porque o Estado reconhece a existência da religião – em suas múltiplas manifestações –, atribuindo deveres e direitos a elas, porém, não deve tomar partido por nenhuma (PORTIER, 2011). No modelo francês de laicidade, em que se separa a religião, ou no modelo norte-americano, que admite plenamente a liberdade religiosa, nota-se a diferença em relação ao Brasil, cuja “separação poderia ser considerada flexível, porque reconhece o fato religioso” (LAGES, 2016, p. 157-158).

A partir da modernidade:

A religião foi relegada ao foro íntimo dos indivíduos e deixou de ser uma questão central para e na sociedade. Entretanto, a religião não se contentou com esse lugar e, constantemente, o tem extrapolado rumo às diversas áreas que compõem a sociedade. Isso ocorre, pois, a religião molda o sentido de vida das pessoas e interpela todas as áreas da vida dos sujeitos, religiosos ou não. Considera-se a religião como uma visão de mundo que dá a direção e conduz a forma como o indivíduo religioso vê as coisas e age sobre elas. A religião se torna uma verdade para o religioso que enxerga o mundo através das lentes religiosas (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 139).

No Brasil, o fenômeno religioso se manifesta na escola, através dos sujeitos religiosos. A religião se manifesta nas vestes, comportamentos e falas, por vezes eivadas de preconceito e intolerância. Depreende-se que as crenças religiosas precisam ser tomadas em sua potencialidade de apresentar impulso vital para as ações desses sujeitos, ou seja, para além daquelas consideras práticas religiosas.

Diante dessas considerações iniciais, procura-se responder a seguinte questão-problema: que tipo de pedagogia o ER precisa seguir para ser legal, laico e significativo para a promoção da cidadania e respeito à diversidade religiosa, sem perder de vista como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) lida com essas questões? O conceito de laicidade, segundo Ricoeur (1997), emerge como categoria analítica, em paralelo a uma pesquisa documental que se debruça sobre a BNCC, em especial no que toca o ER. A pesquisa documental, segundo Fonseca (2002), recorre às fontes diversas que não tiveram tratamento analítico, por exemplo, a BNCC, que é um documento importante que pode ser considerado como fonte primária para esta pesquisa. O objetivo corolário consiste em perscrutar um modelo pedagógico aplicável ao ER. De modo incipiente, considera-se que a BNCC propõe a Ciência da Religião (CR) como referência para o ER, para compreender a religião numa ótica holística, sem preferenciar uma tradição religiosa, mas, provocar o diálogo sobre o papel da religião na sociedade.

2. LAICIDADE E ER

Ricoeur (1997) concede as bases para justificar a presença do ER nas escolas públicas brasileiras. Ele pontua duas práticas tomadas à luz de um ideal normativo, a laicidade. Para ele, tem-se a laicidade do Estado e a laicidade da Sociedade Civil. A primeira define-se pela abstenção do texto constitucional francês, que assevera a não subvenção estatal a nenhuma forma de culto e um agnosticismo institucional, resultando na separação entre a igreja o Estado e delimitando rigorosamente seus papéis. A segunda é compreendida na dinâmica implícita no convívio entre as diferenças insolúveis, como também na carência de discussões públicas sobre as convicções e as profissões de fé.

A escola estaria no limiar das duas práticas, por ser um serviço do Estado e com impedimentos para subvencionar cultos, porém, torna-se palco para mediação das disputas e dos desacordos da sociedade civil, que consiste numa das tarefas da educação. Ricoeur analisa o cenário francês e suplanta alegações que desaprovam o ER a partir das concepções de laicidade do Estado e desprezam o aspecto social.

Como Freire (1996) critica a “educação bancária”, Ricoeur entende que a escola não representa apenas uma fonte de informações. Pelo contrário, sua tarefa pedagógica essencial é “ensinar a discutir”. Os alunos deveriam ter “acesso ao seu próprio passado, ao seu próprio patrimônio cultural, o qual o comporta, além da herança grega, as origens judaica e cristã” (RICOEUR, 1997, p. 178). Isso se aplicaria na educação nacional, pois o valor da religião é parte integrante da história de constituição do Estado brasileiro. Segundo Passos (2007, p. 65):

Trata-se de reconhecer, sim, a religiosidade e a religião como dados antropológicos e socioculturais que devem ser abordados no conjunto das demais disciplinas escolares por razões cognitivas e pedagógicas. O conhecimento da religião faz parte da educação geral e contribui com a formação completa do cidadão, devendo estar sob a responsabilidade dos sistemas de ensino e submetido às mesmas exigências das demais áreas de conhecimento que compõem os currículos escolares.

Contudo, o fenômeno religioso precisa ser um conteúdo observável na tarefa escolar de “ensinar a discutir”. A religião traz para o âmbito da educação o elemento da laicidade expresso na sociedade civil. Com efeito, a escola deveria introduzir os alunos na “problemática pluralista das sociedades contemporâneas, talvez ouvindo argumentações contrárias conduzidas por pessoas competentes” (RICOEUR, 1997, p. 178).

A escola pode eximir em sua agenda os assuntos do cotidiano dos alunos, preponderantes na cultura brasileira. Para Mouffe (2006), a religião não pode ser extinta do debate público meramente porque mobiliza sentimentos antagônicos entre as pessoas, pois, a democracia se estabelece na tensão entre a lógica da identidade e equivalência e a lógica do pluralismo e da diversidade. Por isso, sua proposta consiste num pluralismo agonístico que evoca as paixões individuais para o debate público, na mediação das regras constitucionais, reconhecendo que a razão não tem proeminência enquanto atributo de identificação coletiva, e sim de valores, crenças e paixões.

Rodrigues (2013, p. 224) entende esse processo como uma educação para a formação cidadã:

Mas a noção de cidadania tem sentido político e visa à formação de sujeitos autônomos, preparados para exercer suas liberdades, cumprir suas obrigações e “participar” no debate público tanto pela escolha de representações legítimas e pelo voto, quanto pela atuação engajada nas arenas de discussão do projeto coletivo que objetiva melhores condições de existência para todos e todas.

De acordo com Connolly (2011), no contexto de um regime ideal de pluralismo multidimensional, as crenças e as demandas das pessoas são explanadas no espaço público e, simultaneamente, elas são capazes de recuar relacionalmente em suas posições, de modo a reconhecer contestabilidade legítima no que diz respeito aos seus credos têm para os demais. Essa atitude, ao invés de isolar minorias, proporciona a negociação de acordos e respeito entre as pessoas. Por isso, pensar a escola e o ER como locus privilegiado para a realização desses movimentos de exposição de credos e recuar face ao outro, segundo o pensamento de Connolly, aponta para o reconhecimento de que tal prática precisa ser ensinada para atingir uma formação adequada para os cidadãos.

Segundo Pieper (2014, p. 144), “toda dificuldade do tema do ER em escolas públicas existe em razão do lugar em que ela se insere: na encruzilhada entre Estado e Sociedade”. Segundo Ricoeur, a delimitação do debate sobre o fenômeno religioso nas escolas e a utilização do espaço escolar para práticas proselitistas negligenciam o ideal basilar da laicidade para a construção de uma sociedade justa e democrática.

Logo, o Estado laico não deve subvencionar o culto religioso no interior das escolas. A alternativa secularista que defende a abstenção total da religião gera certa ignorância quanto à religião, produzindo medo, superstição, fanatismo, subserviência, entre outras coisas. Há a “necessidade de se conhecer a cultura, a religião ou a ausência da religião do outro: conhecer para conviver, alteridade e solidariedade” (LAGES, 2016, p. 293).

Defende-se aqui que tal objetivo só pode ser concretizado a partir do ER intermediado por uma ciência de referência, capaz de enxergar a religião de modo amplo e não subvencionada por tradições religiosas. Nesse caso, a CR emerge como uma ciência que compreende os símbolos e os sentidos gestados no interior das tradições religiosas. Para Pieper (2018, p. 8), “além de oferecer conhecimentos sobre religião, intenção é resgatar as experiências humanas resguardadas nas religiões e mostrar sua relevância para a atualidade, promovendo a superação de intolerâncias religiosas e respeito à diversidade”. A CR não tem a ver com uma abordagem confessional ou proselitista da religião, mas, “por meio da promoção da compreensão da religião a partir de valores humanistas, intenta-se ampliar o horizonte cognitivo e prático do estudante” (PIEPER, 2018, p. 8).

3. CR, ER e BNCC

A BNCC compreende a CR como uma referência para o ER, assim como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Licenciatura em CR. As competências específicas para o ER, segundo a BNCC, são:

Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos. Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios. Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida. Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver. Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente. Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz (BRASIL, 2017, p. 435).

A primeira competência pressupõe que o ER se debruça sobre os fundamentos da religião, sobre os quais ela produz seus discursos, que são expressos através dos mitos, símbolos, teologias, ritos, cultos, enfim, em todos os aspectos que envolvem a experiência religiosa. O foco consiste numa investigação para conhecer mais acerca dos saberes que as religiões produzem, suas práticas, mas não para reproduzi-las nas escolas, pelo contrário, para compreendê-las melhor.

O ER não quer conduzir os alunos para serem sujeitos religiosos, o que se configuraria numa prática proselitista completamente contrária às legislações vigentes que regem o ensino nas escolas. Mas, compreender os significados do discurso religioso e como eles fundamentam as práticas religiosas parece ser uma forma plausível para esclarecer as relações que a religião estabelece com as distintas esferas da vida social e cultural dos alunos e da escola como um todo.

No ER, o conhecimento das tradições e dos movimentos religiosos e filosofias de vida poderá ocorrer a partir dos seguintes pressupostos: científicos, que envolvem a sociologia, a antropologia, a história e a psicologia para oferecer descrições mais específicas sobre a religião; filosóficos, que tentam oferecer definições mais normativas, interpretações sobre a existência de acordo com os símbolos e as doutrinas das tradições religiosas; estéticos, que envolvem aspectos sobre como o fenômeno religioso se manifesta; éticos, que investigam as normas de conduta que guiam as pessoas.

A segunda competência da BNCC quer compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios. As tradições religiosas e filosofias de vida, em geral, foram elaboradas e transmitidas para determinados grupos sociais, épocas e intencionalidades. Por isso, existe a necessidade de traduzir, interpretar e contextualizar esses conteúdos para serem aplicados na atualidade. Ou seja, assim como os espaços considerados sagrados são significativos para as tradições religiosas – locais repletos de símbolos, rituais, entre outros –, os significados ligam-se às leituras e hermenêuticas oriundas de tradições religiosas orais e escritas. O ER, além de promover o conhecimento acerca das tradições religiosas e filosofias de vida, pode compreender como esses conjuntos de orientações se conectam com as noções de tempo e espaço, para promover o respeito em relação às manifestações religiosas que ocorrem nos territórios tidos como sagrados para as religiões.

Os alunos que estudam as múltiplas manifestações do fenômeno religioso e filosofias de vida que perpassam seu cotidiano, poderão, de igual modo, reconhecer e identificar não apenas sua própria religião, mas, também, a do outro, o que introduz a quarta competência: reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida.

As experiências religiosas dos alunos podem ser tomadas como fator relevante. Observe:

Mesmo que não professe uma fé específica, o sujeito, por causa das relações que contrai com seu meio, em alguma medida, tem conhecimento sobre o religioso ou sobre o dado religioso. Portanto, cabe ao docente a tarefa de mapear quais as tradições religiosas presentes em sua comunidade de alunos e alunas, a fim de ensinar sobre religião tendo como base as referências mais próximas do grupo. Nesse sentido os conhecimentos derivados do cotidiano dos discentes são considerados como essenciais, visto que espelham algo que deriva da própria vida de cada sujeito, portanto, são conhecimentos formulados a partir do concreto, da realidade sociocultural de cada um. Ensinar a partir do concreto implica reconhecer a historicidade do outro e, com isso, promover oportunidades de aprendizado a respeito de conteúdos significativos (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 145).

A terceira e a quarta competência se intercruzam nesse exato momento, pois, em termos didáticos, as experiências dos alunos não podem ser desprezadas na sala de aula, mas precisa ser unida aos temas e discussões que localizam na realidade social deles as imagens e as representações por eles conhecidas. Ou seja, “mapear o campo religioso da escola constitui um instrumento valioso de ensino” (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 145). Isso abre espaço para fazer perguntas no intuito de impulsionar uma prática docente do ER que objetiva reconstruir o conhecimento sobre as questões religiosas no contexto escolar, a saber: “quais são as religiões representadas no ambiente escolar? Quais são os espaços religiosos (sagrados) ao redor da unidade escolar? Existem lideranças religiosas proeminentes e reconhecidas pela comunidade escolar?” (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 146).

Com efeito, quando se trata sobre a variedade religiosa, concretizam-se a quinta e a sexta competência para o ER na BNCC, a saber:

Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente e debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante ao exercício da cidadania e da cultura de paz (BRASIL, 2017, p. 435).

O aspecto da formação cidadã é importante aqui, pois, ao aprenderem acerca da diversidade religiosa, os alunos poderão adquirir:

A capacidade de formular e manifestar opiniões sobre suas preferências, participação na vida política e econômica do Estado brasileiro, participação nos debates articulados no âmbito da esfera pública, o conhecimento dos seus direitos e deveres e, o reconhecimento da alteridade e da diversidade (cultural e religiosa) para a convivência social respeitosa (RODRIGUES, 2013, p. 226-227).

Na BNCC, o ER está dividido em três unidades temáticas que envolvem a materialidade do fenômeno religioso, observe:

Identidades e alteridades. Nessa unidade pretende-se que os estudantes reconheçam, valorizem e acolham o caráter singular e diverso do ser humano, por meio da identificação e do respeito às semelhanças e diferenças entre o eu (subjetividade) e os outros (alteridades), da compreensão dos símbolos e significados e da relação entre imanência e transcendência […]. O conjunto de elementos (símbolos, ritos, espaços, territórios e lideranças) integra a unidade temática Manifestações religiosas, em que se pretende proporcionar o conhecimento, a valorização e o respeito às distintas experiências e manifestações religiosas, e a compreensão das relações estabelecidas entre as lideranças e denominações religiosas e as distintas esferas sociais […]. Na unidade temática Crenças religiosas e filosofas de vida, são tratados aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofas de vida, particularmente sobre mitos, ideia (s) de divindade (s), crenças e doutrinas religiosas, tradições orais e escritas, ideias de imortalidade, princípios e valores éticos (BRASIL, 2017, p. 436-437).

Em relação a essas três unidades, Wach (1990) ajuda a entender a realidade do ER nas escolas públicas nacionais. Com Wach, pode-se elaborar possibilidades de ensinar a religião à luz de uma divisão implícita: dimensão teórico-sistemática e dimensão empírica, que permitem estruturar os conteúdos em conformidade com os currículos.

A unidade crenças religiosas e filosofias de vida pode ser inserida na dimensão teórico-sistemática, porque ela aborda os elementos normativos do fenômeno religioso, bem como os elementos de pensamento e doutrina, ou seja, “declarações teóricas mais ou menos definidas e coerentes” (WACH, 1990, p. 32). As unidades identidades e alteridades e manifestações religiosas são compatíveis com a dimensão empírica da religião, referindo-se ao prático, que “se realiza em atos inspirados religiosamente” (WACH, 1990, p. 38-39).

Para Sousa Martins e Rodrigues (2018, p. 147), “o planejamento das aulas e das práticas de ER pode ser realizado conforme sugere a classificação parte teórico-sistemática e parte empírica”. Mas, existe um terceiro aspecto didático do ER direcionado ao aprimoramento dessa divisão: “o que é teológico” e “o que é a vivência da religião”, no quadro amplo do currículo para o Ensino Fundamental (EF). Entretanto, “tal separação tem fins didáticos, visto que no campo da vivência assim como experienciada pelo sujeito religioso, tal classificação não existe”, (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 147).

Cabe ressaltar as fases de desenvolvimento cognitivo e psicológico dos alunos. O ER, segundo a LDB, atua no EF e contempla o público-alvo de crianças e adolescentes na faixa etária de 6 a 14 anos. Por isso, a BNCC articula a ideia de uma educação integral:

Que se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea. Isso supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir (BRASIL, 2017, p. 14).

Espera-se que, nos Anos Iniciais, as crianças consigam:

Fazer perguntas e de avaliar resposta, de argumentar, de interagir com diversas produções culturais, de fazer uso de tecnologias de informação e comunicação. Demandam trabalho no ambiente escolar que se organize em torno dos interesses manifestados pelas crianças, de suas vivências imediatas para que, com base nessas vivências, elas possam, progressivamente, ampliar essa compreensão, o que se dá pela mobilização de operações cognitivas cada vez mais complexas e pela sensibilidade para apreender o mundo, expressar-se sobre ele e nele atuar (BRASIL, 2017, p. 56, 57).

O texto da BNCC insere uma aprendizagem significativa, em que o aprendizado, independentemente da idade, depende da estrutura cognitiva precedente e vincula-se às novas informações (AUSUBEL, 1980). Para Sousa Martins e Rodrigues (2018), a aprendizagem significativa ocorre no momento em que o universo de conhecimentos dos sujeitos transformam-se à luz de novos dados, informações e novas formas de interpretar o conhecimento prévio: “pode-se dizer que há aprendizagem significativa quando o conjunto de experiências, noções e conhecimentos prévios dos sujeitos da aprendizagem tem contato e dialogam novos horizontes de conhecimento” (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 148).

Para Fowler (1992), existem sete estágios que as pessoas vivenciam no decorrer da vida de apreensão e interação com o fenômeno religioso. Nessa ótica, as crianças e adolescentes do EF estariam inseridas no terceiro estágio, fé mítico-literal, de 7 a 12 anos, em que:

A fé é corporativa, pois o grupo tem grande influência, produzindo o sentimento de que pertence a um grupo de fé, caso o meio o proporcione. Com isso aprende a linguagem das lendas da comunidade específica. Nesse estágio, a criança começa a estabelecer diferenças entre os conceitos de natural e sobrenatural. Contudo, a ideia de deus continua a ser entendida ne maneira antropomórfica.

Com base no pressuposto didático-pedagógico:

Pode-se dizer que a tematização do fenômeno religioso em sala de aula deve iniciar-se pelo concreto, isto é, pelo conteúdo relativo às imagens, aos símbolos, as indumentárias, as comidas, aos ritos, as performances religiosas, dentre outros. Paisagens religiosas, construções de templos e espaços sagrados, nomes de ruas e de monumentos públicos, filmes religiosos e outros exemplos do cotidiano dos educandos e educandas, nesse sentido, podem ser considerados um material didático rico para a prática escolar. O recurso a essa materialidade da religião deve ser requisitado especialmente nos anos iniciais, dos 6 aos 10 anos de idade, aproximadamente (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 148).

Na medida em que esse conjunto de imagens é inserido na sala de aula, os sentidos vão sendo descobertos. Nos Anos Finais, pode-se discutir sobre os significados de modo mais refinado, pois a criança-adolescente, em sua dimensão psico-cognitiva, “já adquiriu as estruturas apropriadas para a discussão criativa e o debate crítico sobre os discursos religiosos e o que implicam para as relações entre religiosos, sociedade, direitos, deveres, cultura, costumes, política, entre outros temas relativos às esferas da vida social” (SOUSA MARTINS, RODRIGUES, 2018, p. 149). Nessa fase, percebe-se a transição infância-adolescência, “marcada por intensas mudanças decorrentes de transformações biológicas, psicológicas, sociais e emocionais”, seguidas pela ampliação dos vínculos sociais e dos laços afetivos, bem como as possibilidades intelectuais ao lado da capacidade de raciocinar de modo mais abstrato (BRASIL, 2017, p. 58).

Nos Anos Finais, o aluno desenvolve as faculdades psico-cognitivas que permitem a compreensão da religião, na ótica discursivo-teológica. Nessa fase, “é possível introduzir o debate sobre a questão da liberdade religiosa, o reconhecimento e o respeito pela diversidade do fenômeno religioso, ou a influência da religião nos diferentes campos da esfera pública” (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 149).

A CR não quer verificar a veracidade da fé ou das experiências religiosas. O ER não pretende afirmar uma religião em detrimento de outras, e sim “construir um conhecimento sobre as tradições religiosas constitutivas do campo religioso conhecido pela comunidade escolar [que] resulte na formação para cidadania em que haja respeito pelas alteridades, diferentes pontos de vista e distintas formas de ser-no-mundo” (SOUSA MARTINS; RODRIGUES, 2018, p. 149).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante reforçar que a CR se insere como referência para lidar com questões pedagógicas, didáticas e educacionais relativas ao ER. Para Ricoeur, a escola representa um lugar entre o Estado e a sociedade civil. Por um lado, não se deve negar aos alunos o acesso à religião, mesmo que não sejam sujeitos religiosos, por outro lado, deve-se fornecer esse ensino de modo não proselitista.

A BNCC reconhece a CR como referência para o ER, por oferecer uma compreensão holística da religião sem preferenciar qualquer tradição religiosa em detrimento de outras. As competências específicas e as unidades temáticas do ER apresentam muitos pontos de conexão, mostrando que esse modelo de ER promove uma formação cidadã que insere os alunos no diálogo, discussão e respeito à diversidade religiosa.

A despeito do reconhecimento das justificativas para o ER a partir dos avanços teóricos e legislativos atingidos, a CR ainda precisa aprofundar métodos para tornar o ER relevante e eficiente, sobretudo nos embates políticos que envolvem as instituições religiosas no espaço público. É necessário ainda divulgar os resultados obtidos a partir das pesquisas desenvolvidas nas ciências humanas, em especial no que diz respeito aos problemas em torno das propostas de dissolução completa do ER da educação pública no Brasil. Portanto, esse texto emerge como um convite para um aperfeiçoamento e aprofundamento desse debate, demonstrando que o debate sobre a religião e o espaço público também é uma preocupação educacional de transformação da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS 

ALVES, Rubem. O suspiro dos oprimidos. São Paulo: Paulinas, 1984.

AUSUBEL, David P. Psicologia educacional. 2.ed. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980.

BRASIL. Casa Civil. Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997. [Dá nova redação ao art. 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional]. Brasília: Presidência da República.

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CONNOLLY, Willian E. Some theses on secularismo. Cultural Anthropology, v. 26, n. 4, p. 648-656, 2011.

FONSECA, João José S. Methodological da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

FOWLER, James. Estágios da fé: a psicologia do desenvolvimento humano e a busca do sentido. São Leopoldo: Sinodal, 1992.

LAGES, José Antonio C. De uma laicidade de incompetência a uma laicidade de inteligência: o caso do ensino religioso na escola pública. Interações, Cultura e Comunidade, Belo Horizonte, v. 8, n. 14, p. 242-260, 2013.

MARTINS, Gustavo C. A presença da ausência: contribuições de Rubem Alves para uma Ciência da Religião. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2020.

MOUFFE, Chantal. Religião, democracia liberal e cidadania. In: BURITY, Joanildo A.; MACHADO, Maria das Dores C. (orgs.). Os votos de Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006. p. 15-27.

PASSOS, João D. Ensino Religioso: construção de uma proposta. São Paulo: Paulinas, 2007.

PIEPER, Frederico. Ciência (s) da (s) Religião (ões): relação entre modelos e métodos. Juiz de Fora: PPGCR, 2018.

PORTIER, Philippe. A regulação estatal da crença nos países da Europa Ocidental. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 2, p. 11-28, 2011.

RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 1997.

RODRIGUES, Elisa. A formação do Estado secular brasileiro: notas sobre a relação entre religião, laicidade e esfera pública. Horizonte, Belo Horizonte, v. 11, n. 29, p. 149-174, 2013.

SOUSA MARTINS, Nathália F.; RODRIGUES, Elisa. Aspectos teóricos e didáticos da formação do professor de ensino religioso: perspectivas à luz da (s) Ciência (s) da (s) Religião (ões) e da Base Nacional Comum Curricular. Revista Caminhando, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 137-150, 2018.

WACH, Joachim. Sociologia da religião. São Paulo: Paulinas, 1990.

[1] Doutoranda e Mestre em Ciências das Religiões/Faculdades Unida de Vitória/ES; Especialização: Mídias na Educação/UFOP, Gestão de Políticas Públicas/UFOP; Graduação: Pedagogia. ORCID: 0000-0002-2142-7981. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/8466145827373642.

Enviado: 10 de maio, 2023.

Aprovado: 07 de junho, 2023.

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Joana D’arc Araújo Silva

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