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Psicanálise e literatura: uma análise psicanalítica sobre a importância das histórias infantis

RC: 73125
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/psicanalise-e-literatura

CONTEÚDO

ARTIGO ORIGINAL

NOGUEIRA, Ana Greice Alves Teixeira [1], CARVALHO, Roberta Cristina [2]

NOGUEIRA, Ana Greice Alves Teixeira. CARVALHO,  Roberta Cristina. Psicanálise e literatura: uma análise psicanalítica sobre a importância das histórias infantis. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 01, Vol. 02, pp. 105-124. Janeiro de 2021. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/psicanalise-e-literatura, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/psicanalise-e-literatura

RESUMO

Durante muitos anos, as histórias infantis vêm sendo contadas as crianças, como forma de se exprimir os conceitos que regem a moral, a ética e a socialização. Muito mais do que conter a magia, as histórias infantis têm o poder de trazer a criança, exemplos de vitória, e dar a elas respostas sobre sua origem sem confrontá-las com a rudeza da questão, que já nos pressupostos de Freud eram observados, como por exemplo, a sexualidade e a origem, tal como ele, bem explicita ao trazer a nós as questões que norteiam a sexualidade infantil e exemplificar-nos com o Complexo de Édipo, desse modo questiona-se: Qual a importância da literatura enquanto ferramenta que contribua com os enfrentamentos naturais do crescimento do indivíduo e se esta assume de fato, a função terapêutica, enquanto fornecedora de exemplos de enfrentamentos sob o ângulo da fantasia e ainda, as semelhanças observáveis entre as ferramentas fornecidas no processo terapêutico e as que são oferecidas pela literatura. Objetivou-se descrever a importância da literatura como ferramenta que contribua para o desenvolvimento infantil, verificando a importância das histórias infantis, na formação moral da criança, apontando as semelhanças do processo de elaboração por meio da literatura infantil e no processo terapêutico, exemplificando com uma breve análise sob a ótica psicanalítica da saga Harry Potter. Este estudo teve por metodologia a revisão sistemática de literatura de teor qualitativo-descritivo. Concluiu-se portanto que as histórias infantis são importantes no sentido de que permitem a criança ter uma percepção mais otimista sobre o final de suas lutas e conflitos, mas a despeito de suas potencialidades, ainda se faz necessário a realização de mais pesquisas que possam contribuir com o fortalecimento e a disseminação da literatura infantil.

Palavras-Chaves: Psicanálise, literatura, infância, histórias, Harry Potter.

1. INTRODUÇÃO

A literatura ao longo do tempo, tem-nos servido como uma forma de escapar, contornar a realidade ou ainda incrementá-la, realçando eventos cotidianos, e as situações diversas a que nossa humanidade é ou poderia ser submetida, e ainda, nossos sintomas, encobrindo-os ou não, segundo o zeitgeist da época. Inventar, criar, sublimar são eventos natos do ser humano, que nos acompanham desde a mais tenra idade. E o fazemos, não apenas na arte, mas também no dia a dia, para fugir ou para melhorar determinadas situações, escapar a dura realidade, e, também no processo terapêutico, onde podemos perpassar o real e o imaginário por meio de novos significados, enquanto “passeamos” pelas instâncias do aparelho psíquico.

Observamos no entanto, que, se hoje as histórias infantis têm um lugar na vida cotidiana das crianças em idade escolar ou não, entendemos ao ler na história da infância, que isso nem sempre foi assim, pois às próprias crianças, era negado um lugar claro na sociedade, sendo elas, em muitos momentos tratadas como pequenos adultos e em outros, esquecidas e privadas dos assuntos que não lhes era apropriado. Mais tarde, na história, com estudos que demonstram a importância de respeitar e localizar a criança na sociedade, a arte começa a voltar-se para essa faixa etária, ora para retratá-la artisticamente, como em pinturas, ora para afortuná-la com a literatura, em histórias que eram reescritas em versões mais inocentes, com protagonistas infantis, heróis, bruxas, e animais, que não só podiam falar nas histórias, mas também assumir comportamentos tipicamente humanos.

Muito tendo feito, para que as histórias infantis hoje tivessem o status que tem e ainda manterem, na atualidade, o encanto, não apenas dos infantes, mas também adolescentes e adultos, sendo reescritas na literatura e no cinema. Fato é que, se na psicoterapia somos levados a relatar e reelaborar nossos dilemas, através das histórias, contamos os dilemas vivenciados desde a primeira infância que fazem parte da construção do ser, em relatos que narram a nossa busca por um lugar, ou na busca por si mesmo. Diante disso esse trabalho surge na expectativa de responder, qual a importância da literatura enquanto ferramenta que contribua com os enfrentamentos naturais do crescimento do indivíduo e se esta assume de fato, a função terapêutica, enquanto fornecedora de exemplos de enfrentamentos sob o ângulo da fantasia e ainda, as semelhanças observáveis entre as ferramentas fornecidas no processo terapêutico e as que são oferecidas pela literatura (CORSO; CORSO, 2007).

Dessa forma, objetiva-se aqui, descrever a importância da literatura como ferramenta que contribua para o desenvolvimento infantil, verificando a importância das histórias infantis, na formação moral da criança, apontando as semelhanças do processo de elaboração por meio da literatura infantil e no processo terapêutico, exemplificando com uma breve análise sob a ótica psicanalítica da saga Harry Potter. Sabemos que a sublimação nos auxilia na descoberta de muitas respostas, ou na introdução das regras na nossa sociedade. As histórias infantis, por exemplo, abordam a fantasia para explicar uma moral e difundi-la no real.

De certo que, usar histórias para responder nossos questionamentos é algo que nos acompanha desde os primórdios e não é singular a uma única comunidade, embora não tenha por função garantir a plena felicidade, mas sim de nos ofertar ferramentas que nos auxiliem no nosso crescimento diário. Para Corso e Corso (2007, p. 303):

Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas, na qual sempre temos um instrumento certo para a operação necessária, pois determinados concertos ou instalações só poderão ser realizados se tivermos a broca, o alicate ou a chave de fenda adequados. Além disso, podemos também criar, construir e transformar os objetos e os lugares.

Assim, entendemos que durante a infância, as histórias contadas por nossos pais, avós ou cuidadores, contribuem com a estruturação da nossa personalidade, a compreensão de regras, a instalação do medo de uma forma saudável. Embora não seja apenas na infância que a literatura ganhe espaço na nossa vida, pois atualmente nos deparamos com um retorno cada vez mais frequente das pessoas aos livros, em busca de respostas, ajuda, um pouco de fantasia, etc., como no caso dos leitores assíduos da saga do bruxo “Harry Potter”, que perpassou mais de sete anos e que pelo grande sucesso ganhou os cinemas de todo o mundo.

Mas o que isso significa para nós, psicoterapeutas? O que há por trás da escrita literária, que possa nos interessar como profissionais que estudam e trabalham com ferramentas, por vezes, tão abstratas? Segundo Bettelheim (2007) o conto de fadas, por exemplo, “oferece materiais fantasiosos que sugerem sob forma simbólica à criança o significado de toda batalha para conseguir uma auto realização e garante um final feliz”. Contribuindo assim, para o desenvolvimento psicossocial do indivíduo. Entendemos então, que o conto de fadas é um recurso eficaz na construção do ser e na inserção da moral para que assim, o indivíduo posso se “encaixar” mais adequadamente à sociedade.

Mas, até onde poderemos, como terapeutas inserir esse recurso para que enriqueça ainda mais o processo terapêutico e a compreensão das formas de enfrentamento da criança diante do sucesso e do fracasso, analisando a importância da fantasia na superação e elaboração de eventos angustiantes para o indivíduo não apenas na infância, mas também na fase adulta além de entender a importância da arte literária para o bem-estar psíquico do indivíduo, caminhando pelos campos da psicologia, mais propriamente da psicanálise.

A partir disso esse trabalho tem sua justificativa respaldada nas contribuições sociais, pois apresenta ferramentas de trabalho e amplia o campo de atuação dos profissionais e indiretamente as crianças e ainda academicamente, por auxiliar alunos de graduação e pós-graduação como fonte de pesquisa, além de gerar possibilidades de novas pesquisas sobre a relação literatura e psicanálise.  Assim, nesse trabalho, pretende-se fazer uma breve análise psicanalítica, utilizando-se da pesquisa bibliográfica para apresentar aspectos relevantes sobre as histórias infantis, como ferramentas que contribuem para a formação do indivíduo, apresentando características dos conflitos próprios do desenvolvimento infantil até a fase adulta, com questões da sociedade atual, em uma breve análise da saga “Harry Potter”.

2. BREVE HISTÓRIA DA INFÂNCIA E O APARECIMENTO DAS HISTÓRIAS INFANTIS

As histórias infantis, mas propriamente a literatura infantil, surgem na Europa da Idade Moderna transmitidas as crianças via oral, contadas de um adulto para uma criança inscrevendo lições, experiências, em que quase sempre os heróis venciam os obstáculos que apareciam ao longo da jornada, por meio de algum ser mágico ou por meio da própria magia em sua essência propriamente dita (BETTELHEIM, 2007).

Seu desenrolar, se dava quase sempre em um mundo mágico, inventado para conter a magia da história e assim, permitir ao narrador e ao ouvinte a oportunidade de não crerem tão fielmente a realidade da história além de poderem fantasiar e traduzir as necessidades de uma forma menos agressiva em uma linguagem simbólica, que por conseguinte, é a mesma do inconsciente.

Segundo Fregonesi e Emídio (2013, p. 602):

Os contos de fadas apresentam uma linguagem simbólica, ou seja, a mesma linguagem do inconsciente. Assim, possibilitando que o leitor entre em contato com seus medos e desejos, se identifique com os personagens e com isso possa pensar em suas questões internas e encontrar soluções simbólicas para essas. Dessa forma, pode-se dizer que os contos de fadas são regidos pelos mesmos processos do funcionamento psíquico. O que nos permite pensar também que esses textos despertam a capacidade de fantasiar em seus leitores, sendo a arte de sonhar e fantasiar necessária para o desenvolvimento psíquico e emocional e também para o processo de aprendizagem.

Assim, tendo em vista as semelhanças da linguagem utilizada nos contos de fadas e a linguagem própria do inconsciente, pode-se observar os aspectos das histórias infantis que contribuem para a formação moral do indivíduo, sempre explicitando que a história da criança na sociedade e seu lugar nesta, acompanham também o despertar da literatura para a mesma. Sabemos, que a literatura infantil teve boa aceitação durante muito tempo na história e contribuiu para a imposição do “[…] predomínio do lúdico sobre o instrutivo” e também para “[…] a definição de um gênero especificamente voltado para as crianças”, conforme Mesquita (2010, p. 1) ressalta.

Mas com as novidades trazidas pela psicanálise e também da psicologia infantil, receberam duras críticas por muito tempo, isso porque segundo Bettelheim (2007, p. 132):

[…] elas revelaram o quanto a imaginação da criança é violenta, ansiosa destrutiva e até mesmo sádica. Uma criancinha ama os pais com um sentimento incrivelmente intenso, mas as vezes os odeia. Partindo deste conhecimento, deveria ser fácil reconhecer que os contos de fadas falam a vida mental interior da criança. Mas, em vez disso, os céticos proclamaram que estás estórias criavam, ou pelo menos encorajavam muito, estes pensamentos conturbados.

Mais tarde, porém, descobriu-se que na verdade, o que as histórias infantis, mas propriamente os contos de fada faziam pelas crianças era auxiliar para que não reprimissem os sentimentos, mas muito pelo contrário moldavam e “aliviavam” a criança. Em suma, a fantasia emerge como recurso que auxilia a criança na estruturação de sua personalidade. E embora não se saiba com exatidão em que idade, forma ou circunstâncias, a imaginação “aparece” na criança, para muitos teóricos, ela é a forma mais elevada de intelectualidade, pois cabe ao exercício de inventar e reinventar uma mesma ideia para adequá-la ao real ou até, melhorá-lo segundo a necessidade do contexto.

2.1 SOBRE A IMPORTÂNCIA DE SE CONTAR HISTÓRIAS

O exercício de contar histórias para as crianças na infância é um exercício de reedição da realidade, que por muitas vezes nos é dura demais, se analisarmos o contexto do qual vimos, o útero, onde tínhamos tudo, estávamos aquecidos éramos saciados em todos os sentidos, para uma realidade onde temos que buscar por nossas satisfações, podendo assim, contribuir para a superação dos conflitos existenciais, próprios do crescimento humano e estimulá-la na luta diária pelas suas conquistas (MESQUITA, 2010).

De acordo com Mesquita (2010, p. 01):

Ao mesmo tempo que os contos podem auxiliar a criança a superar conflitos, que são inerentes ao seu processo de desenvolvimento, constroem um sistema metafórico e simbólico. Através do tempo, os contos de fadas mantêm seu poder transformador e a sua magia. Magia que se revela não só na sua narrativa, como também nas transformações que desencadeia naquele que escuta ou naquele que narra o conto. Aliás, a magia de um conto encontra-se no seu ato de contar.

Para esse autor, o prazeroso da leitura das histórias infantis a uma criança é o que ele chama de “eliminação de fronteiras” entre o que é lícito, e o que é ilícito, tornando possível a aproximação entre o real e o imaginário. Isso acontece pela familiaridade que se reconhece no personagem de uma história, embora a criança se sinta, em verdade atraída mais pela condição de herói do que pela condição de bondade do herói.

Ainda de acordo com Mesquita (2010, p. 02):

[…] a criança não se identifica com o herói bom pela sua bondade, mas porque a sua condição de herói a atrai muito. Aliás, o que mais lhe interessa não é a bondade ou a maldade dos intervenientes da história, mas a inteligência do herói que, geralmente é o ser pequeno e mais frágil (tal como a criança) e que, graças ao seu engenho, consegue vencer o inimigo (com características bem mais fortes que as suas).

É verdade também, que para cada criança, a história ganhará uma interpretação e um significado diferente um do outro. Isso se dá não apenas por causa da idade, mas também pela pessoalidade e situação contextual de uma criança. Bettelheim (2007), apresenta-nos bem essa ideia, quando fala a respeito da visão que a criança tem sobre histórias de conquista de um reino. Segundo Bettelheim (2007, p. 140):

A forma específica da criança imaginar o “reinado” depende de sua idade e estado de desenvolvimento, mas ela nunca toma isso literalmente. Para a criança mais nova, pode significar simplesmente que então ninguém mandará nela, que todos os seus desejos serão satisfeitos. Para a criança mais velha, também incluirá a obrigação de governar – isto é, viver e agir sabiamente. Mas em qualquer idade uma criança interpreta o fato de tornar-se rei ou rainha como tendo conseguido a maturidade.

Por isso, se pode dizer que as histórias infantis, não apenas acompanham o crescimento e o desenvolvimento da criança, mas contribuem para que ele ocorra de forma saudável, mesmo que esse não seja a única e exclusiva forma de que isso ocorra, acabam se destacando porque a fantasia, particularmente, faz parte e reconhecida das crianças de um modo muito particular, como parte da sua formação e autoconhecimento. Além disso, em seus estudos, Freud já observava a importância da fantasia para a criança, na superação dos traumas e na elaboração de respostas a respeito da sexualidade, cujo conteúdo ela ainda não é capaz de assimilar, tal como um adulto.

Conforme Weitere (1986, p. 528-529) elucida:

Entretanto, a importante consequência dessa percepção foi que Freud se conscientizou do papel desempenhado pela fantasia nos eventos mentais, o que abriu as portas para a descoberta da sexualidade infantil e do Complexo de Édipo. […] Aliás, o problema de como a lembrança de um trauma infantil podia ter um efeito tão maior do que a experiência real dele na época – problemas repetidamente discutido por Freud nesse período e cuidadosamente tratado em sua longa nota de rodapé – perdeu sentido graças à descoberta da sexualidade infantil e ao reconhecimento da persistência dos movimentos inconscientes.

Assim, as fantasias já eram observadas por Freud, como aquelas que amenizam o impacto das informações almejadas pelas crianças na tentativa de responder as questões que diz respeitam a sua origem e as questões que a norteiam. Segundo Silva, Silva e Júnior (2012), quando a criança ouve uma história infantil, seu psiquismo se desenvolve, porque ela tem a capacidade integral e o desafio intelectual para compreender a narrativa, de forma que estas por sua vez, sejam capazes de ajudar a criança ouvinte a superar obstáculos e assim vencer os conflitos internos, como a morte, o envelhecimento, a luta entre o bem e o mal, a inveja, a sexualidade e a própria origem, pois as histórias possuem desfechos mais otimistas, embora o significado de uma história infantil seja diferente para cada indivíduo e esteja aberto a interpretações diversas.

Além do mais, observa-se que nas histórias infantis, há uma realização dos desejos de uma forma aceitável a consciência, que gera menos sofrimento psíquico ao indivíduo, apresentando processos semelhantes ao da terapia psicanalítica, como a condensação e o deslocamento.

3. PSICANÁLISE E LITERATURA

Segundo Bettelheim (2007), a psicanálise e a literatura se aproximam porque objetivam transcender as questões de origem e construção do ser. De certo que, as histórias infantis, assim como a associação livre da Psicanálise são capazes de fornecer pistas adicionais para o que um detalhe possa significar e dependem das associações da criança para ganhar sua importância pessoal e integral. Ainda segundo esse autor, por meio das histórias, nossos processos internos são externalizados e ganham compreensão, de modo que ao contemplar uma determinada história, seja possível parear e encontrar nossas próprias soluções.

Freud (1901 – 1905), em seus três ensaios sobre a sexualidade e outros trabalhos, apontou semelhanças dessa relação, ao trazer para a psicanálise o Enigma da Esfinge e o mito de Édipo Rei, para exemplificar os conflitos experimentados na primeira infância que surgem quando nos questionamos sobre nossa própria origem.

Freud (1901 – 1905, p. 183):

O primeiro problema de que ela [a criança] se ocupa, em consonância com essa história do despertar da pulsão de saber, não é a questão da diferença sexual, e sim o enigma; de onde vem os bebês? Numa distorção facilmente anulável, esse é também o enigma proposto pela Esfinge de Tebas.

É então, a partir desse primeiro “problema” vivenciado pela criança, que as questões a respeito da sexualidade são levantadas, e então, buscando dar significados coerentes as diferenças que vai percebendo ao longo de sua investigação, a criança se depara com uma fronteira, entre o “saber” e o “não-saber”, que consequentemente a ajudará a descobrir seu lugar entre os seus e a resguardará contra os medos iminentes a respeito de sua castração.

Ainda a respeito desse fato, Zornig (2008), aponta-nos que, muito mais do que a resposta dada pelos pais a criança a respeito das questões de sua origem, a maior relevância está ainda, no inconsciente dos pais, manifestado no sentido, que estes, por sua vez, darão a questão. Dessa forma Zornig (2008, p. 42) explica:

Assim, no nível da auto conservação ou adaptação, a comunicação se dá no sentido criança-pais, enquanto no domínio sexual se dá no sentido inverso, de forma que se a criança evolui da adaptação para a sexualidade, a situação originária é o confronto entre a criança e o mundo adulto. Não um mundo de aprendizagem, mas um mundo de mensagens, ou como Ferenczi denomina, de uma “confusão de línguas”, mensagens que interrogam a criança antes que ela as compreenda e as quais deve dar sentido e resposta. Para Laplanche, é preciso ir além de Ferenczi e ressaltar que a linguagem do adulto só é traumatizante à medida que veicula um sentido dele mesmo ignorado, ou seja, em que manifesta a presença dos pais.

Para tanto, como ainda é muito imatura para de fato compreender os significados de sua origem e a relação sexual experimentada pelos adultos “[…] para a qual ela não tem reação adequada.” (ZORNIG, 2008, p. 41), ela fará uso da ferramenta fantasia, que lhe proporcionará respostas suficientes até que tenha condições adequadas para entender a relação que teria lhe dado origem.

Segundo Garcia-Roza (1984), Freud, em seus estudos sobre a teoria e a terapia da histeria apontava a relação entre conteúdo sexual e trauma psíquico, revelando-nos que, a estrutura neurótica teria sido resultado de uma sedução sexual de caráter traumática, dada a imaturidade da criança em compreender a sexualidade adulta e que teria sido recalcada e/ou transformada em uma patogênese, que só poderia ser removida partindo de sua reação e a elaboração psíquica dessa experiência traumática, cuja a superação, levantava questões a respeito do papel da fantasia e a da sexualidade infantil, resultando no Complexo de Édipo.

Desse modo Garcia- Roza (1984, p. 93-94), explica que:

A teoria do trauma sustentava é que o neurótico, em sua infância, teria sido vítima de uma sedução sexual real e que esse fato, pelo seu caráter traumático, teria sido recalcado e se transformado em núcleo patogênico cuja remoção só seria obtida com a ab-reação e a elaboração psíquica da experiência traumática. […] A superação da teoria do trauma implicava duas descobertas: a do papel da fantasia e a da sexualidade infantil. Essas duas descobertas podem ser concentradas numa só: a descoberta do Édipo.

Sobre esse aspecto, Bettelheim (2007), observa a importância da fantasia na superação do trauma e assinala a importância do uso das histórias infantis como recurso que contribua para a reelaboração da experiência traumática, se observarmos que as histórias, permitem a criança a satisfação da resposta almejada a respeito da sexualidade sem que o confronto seja muito brusco.

Ainda de acordo com Bettelheim (2007, p. 125):

Assim, tanto as meninas como os meninos edípicos, graças ao conto de fadas, podem ter o melhor dos dois mundos: podem gozar plenamente as satisfações edípicas na fantasia e na realidade, manter boas relações com os dois pais.

Segundo esse autor, a importância das histórias infantis, estão nas ferramentas que fornecem para a superação do trauma,  que tanto para a menina quanto para o menino, encontram nas personagens de uma história um pouco de remissão sobre a culpa que sentem em relação ao verdadeiro desejo sentido pelos pais (destruição, sedução, etc..), porque ela acaba por projetar esse desejo em um lugar que existe apenas no imaginário,  e que portanto permite a criança ter ainda consigo, os pais, tal como sempre teve, bons, amparadores, refúgio nos momentos necessários, pessoas de confiança, que embora tenham detento o saber, um dia, enfim poderão entregar-lhe a resposta buscada.

Ainda segundo Bettelheim (2007), a história infantil contribui dentro da fantasia da criança, para que o comportamento dos pais, também seja saudável, de forma que a resolução do Complexo de Édipo, seja satisfatória, pois os pais não devem ceder ao desejo dos filhos, mas também não podem suprimir a coragem que emerge deles no que diz-respeito as conquistas, a luta, a braveza para se alcançar os méritos de herói ou heroína. Conforme Bettelheim (2007, p. 126) elucida:

A estória de fadas tem outros valores inigualáveis para ajudar a criança a enfrentar conflitos edípicos. As mães não podem aceitar os desejos dos menininhos de acabar com papai e casar-se com mamãe; mas pode participar com prazer da situação em que seu filho se imagina o matador de dragões que obtém a linda princesa. A mãe também pode encorajar integralmente as fantasias da filha acerca do lindo príncipe com o qual se casará, e assim ajudá-la a crer numa solução feliz apesar de sua decepção atual.

Dessa forma, as histórias proporcionam uma nova oportunidade a criança de reescrever sua fantasia, dando a ela um nova olhar sobre o amor recém perdido, que embora não seja seu da forma como havia desejado, ainda lhe pertence em uma outra história, cuja escrita, um dia, será de sua própria autoria e por conseguinte, lhe dá esperanças do lugar e da resposta que busca a respeito de si mesma e de sua origem, ao perceber que não apenas os pais (quando saudáveis), aprovam seus desejos disfarçados, mas também torcem para que se realizem da melhor forma possível, quando houver maturidade e com um príncipe ou princesa, que tal como os pais conquistaram, um dia também lhe será possível conquistar.

Assim, embora as histórias não tenham por fim, garantir a plena felicidade, elas permitem a criança ter uma coletânea de exemplos nos quais poderá sempre buscar auxilio para renovar suas esperanças a respeito de seus traumas. Como vai nos dizer Corso e Corso (2007, p. 303):

Elas são como exemplos, metáforas que ilustram diferentes modos de pensar e ver a realidade e, quanto mais variadas e extraordinárias forem as situações  que elas contam, mais se ampliará a gama de abordagens possíveis para os problemas que nos afligem.

Ainda segundo esse autor, essa coletânea, permite a criança, criar, construir e transformar objetos e lugares, e ainda, com uma mente enriquecida por essa coletânea, pode proporcionar ao indivíduo uma maior flexibilidade emocional e ainda uma capacidade de reagir mais adequadamente a situações difíceis, além de criar soluções para os impasses recorrentes da vida.

4. HARRY POTTER: CRESCER E ENFRENTAR NA FANTASIA E NA REALIDADE

Foram oito anos acompanhando a história do menino que ficara órfão ao enfrentar ainda na primeira infância o mal. Harry Potter, encantou a juventude do mundo inteiro, ao ser trazido por J. K. Rowling, ao mundo dos, “trouxas” e ao nos levar a Hogwarts, uma escola de bruxaria, para iniciar seus estudos.

Harry é filho de Tiago, descrito como gentil, porém arrogante, amostrado e também muito bonito e Lilian Potter, que por sua vez é dita como sendo, uma pessoa extremamente bondosa e que buscava proteger os mais fracos. Na trama, eles morrem na tentativa de proteger o filho, quando são confrontados por Lorde Voldemort, um tirano, sedento por poder e também, o vilão de toda a trama, que busca poder absoluto sobre o reino dos bruxos e dos trouxas.

As características descritas a respeito dos pais de Harry, são quase sempre comparadas as características individuais de Harry, de forma, que sempre que alguém novo surge na história para conhecer Harry, lhe é dito, que este se parece com o pai, mas os olhos, lembram os olhos da mãe. O olhar materno, em Harry Potter, parece também dissolver os pensamentos que o levam a dúvida, ao medo, pois por mais que a mãe não esteja fisicamente ali, a idealização e a fala persistente dos outros a respeito dela, colaboram em grande parte para que este consiga encontrar o afeto necessário para não se deixar levar para a sua inclinação para a maldade.

Ainda assim, a semelhança de Harry com o pai e a mãe, embora não tenha convivido muito tempo com eles, é muitas vezes centralizada por Harry, na busca de si mesmo e das respostas que norteiam sua origem, envolvendo suas escolhas, de forma que ele não se torne uma cópia fiel dos pais, mas a partir das características que ele possui deles, e das informações que recebe a respeito destes, possa escolher que tipo de indivíduo deseje se tornar, o que também acontece na nossa realidade, pois se na primeira infância somos levados a enxergar as características de nossos pais e agrega-la a nós, também escolhemos aquelas que de fato somaram e farão com que cresçamos e nos tornemos quem somos.

Segundo Corso e Corso (2007, p.265):

Harry é movido pela busca de compreender sua origem e de encontrar um lugar numa linhagem. […] é um herói melancólico, a perda dos pais é incontornável, e ele de tanto em tanto, se abate pelo peso do passado e dos acontecimentos sofridos.

A perda dos pais é irreversível e para Harry, embora o mundo da magia seja a esperança de encontrar-se e encontrar os seus, isso não pode ser solucionado, ele terá que aprender a lidar com a perda, mais uma vez, já que desde o início de sua história, lhe era dito que seus pais haviam falecido em um acidente (ROWLING, 2000, p. 44), tendo escondido dele também a guerra que teria acontecido onze anos atrás e que teria culminado na morte de seus pais, por causa de uma profecia, revelada por uma vidente, que dizia que um bebê nascido ao final do mês de junho acabaria com o Lorde Voldemort.

Aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas se aproxima (…) nascido dos que o desafiaram três vezes, nascido ao terminar o sétimo mês (…) e o Lorde das Trevas o marcará como seu igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece (…) e um dos dois deverá morrer na mão do outro pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver (…) aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas nascerá quando o sétimo mês terminar (…) (ROWLING, Harry Potter e a Ordem da Fênix, 2000, p. 680).

No entanto, ao tentar matar Harry, Lorde Voldemort se depara com o amor incondicional de Lilian Potter, sua mãe, o que faz com que o feitiço ricocheteie, fazendo com que ele sucumba e acabe deixando em Harry apenas uma marca na testa, um trauma, que ele levaria por toda a sua vida e que em muitos momentos da trama serve como um sinal do que havia acontecido e também para alertar a presença de Lorde Voldemort ou de suas horcrux, que é um feitiço proibido que ativa-se assim que o bruxo mata alguém e insere a sua alma em um objeto, impedindo assim, a morte de seu dono, no caso, Lorde Voldemort, enquanto o objeto existir. O amor incondicional de Lilian, ajuda-o a se proteger e em muitos momentos da história o incentiva a buscar a bondade em si mesmo e superar a maldade gerada nele, por causa do feitiço da horcrux gerado no momento que Lorde Voldemort tentou matá-lo.

O feitiço da horcrux, norteia toda a história e o conhecimento de Tom Riddle (Lorde Voldemort), deste é revelado no sexto livro da série, pelo professor de Defesa contra as Artes das Trevas, Horácio Slughorn, em uma conversa aparentemente trivial.

– Bem – falou Slughorn sem olhar para Riddle, mas brincando com a fita da caixa de abacaxis cristalizados – , bem, é claro que não pode haver mal algum em lhe dar uma ideia geral. Só para você entender o termo. Horcrux é a palavra usada para um objeto em que a pessoa ocultou parte da própria alma (ROWLING, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, 2000, p. 360).

Durante a trama, alguns objetos são revelados como as horcruxes de Lorde Voldemort, sendo elas, o Diário de Tom Marvolo Riddle; O anel de Marvolo Gaunt; O Medalhão de Sonserina; A Taça de Helga Lufa-Lufa; A Diadema de Ravenclaw; A Cobra Nagini; e por fim, o próprio Harry Potter (ROWLING, 2000), sendo este último, transformado de forma involuntária pelo Lorde das Trevas e provocando um conexão mental entre os dois, que provoca em quase toda a história momentos de notória semelhança entre Harry e Voldemort, que é questionada muitas vezes no desenrolar da trama.

As semelhanças entre o mocinho e o vilão, se dão não apenas em seus poderes, mas pela própria personalidade dos dois, que são descritos muitas vezes como no momento em que Harry, entra em Hogwarts e é levado ao chapéu seletor, para escolher em qual das casas ele ficaria.

A última coisa que Harry viu antes de o chapéu lhe cair sobre os olhos foi um salão de gente se espichando para lhe dar uma boa olhada. Em seguida só viu a escuridão dentro do chapéu.

– Difícil. Muito difícil. Bastante coragem, vejo. Uma mente nada má. Há talento, ah, minha nossa, uma sede razoável de se provar, ora isso é interessante… Então, onde vou colocá-lo?

Harry apertou as bordas do banquinho e pensou “Sonserina, não, Sonserina, não”.

– Sonserina, não, hein? – disse a vozinha. – Tem certeza? Você poderia ser grande, sabe, está tudo aqui na sua cabeça, e a Sonserina lhe ajudaria a alcançar essa grandeza, sem dúvida nenhuma, não? Bem, se você tem certeza ficará melhor na Grifinória! (ROWLING, Harry Potter e a Pedra Filosofal, 2000, p. 92).

Longe das características de um herói convencional, Harry Potter é apenas um órfão, que desde o final da primeira guerra dos bruxos, morava com os tios, “[…] Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, nº 4, e se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado.” (ROWLING, 2000, p. 7), além de um primo chamado Duda, filho do casal, de quem Harry não dispunha de empatia, consequência de um comportamento narcisista do primo, que sempre lhe batia, só pensava em comer e ganhar presentes, os quais sempre eram caros e não ousava dividi-los com ninguém, muito menos com Harry (ROWLING, 2000).

O confronto entre Harry e Lorde Voldemort, se inicia quando ele ainda é pequeno e antes mesmo de que Harry nasça. Na verdade, Harry, experimenta um confronto, herança dos conflitos políticos e culturais vividos pelos pais, em uma época antes de seus nascimento e que é reafirmada por uma profecia que dizia que para que um vivesse (Harry ou Voldemort), o outro teria de morrer.

Esse conflito, impregnado em Harry e ainda adjunto ao amor que ele experimenta pelos pais, além da dívida pela coragem de terem-no defendido a ponto de darem a própria vida, o incentiva a assumir e assim lutar para que conquiste sua sobrevivência e é esse último somada a coragem e ao desejo de assumir suas próprias decisões, que em muitos momentos da trama o diferencia do vilão, pois embora possua poderes muito semelhantes aos de Lorde Voldemort, Harry, escolhe ser diferente e assim salvar-se e salvar os seus.

Lorde Voldemort se caracteriza como um indivíduo perverso, sedento do poder absoluto, também órfão recebeu as mesmas oportunidades que Harry, tendo estudado em Hogwarts e sendo reconhecido desde cedo como um bruxo talentoso e cheio de prodígios, foi alvo de muitos elogios, mas escolheu o lado sombrio da magia e por isso assombrou a todos os bruxos.

Por outro lado, Harry, apesar de muito talentoso, não fazia ideia de seu poder e ao mesmo tempo que o descobre é confrontado com o medo de se tornar tão odioso quanto aquele que havia sentenciado seus pais, o que torna a saga muito interessante para nós, pois embora seja órfão, as representações paternas que vão sendo apresentadas a Harry durante o desenrolar da história, acabam se destacando embora não sejam as únicas ferramentas ou evidências da bondade em Harry, pois para que essa se destacasse foi preciso que Potter escolhesse ser bom.

As figuras paternas em Harry Potter (Tio Dursley, Dumbledore, Arthur Weasley, Sirius Black, Severo Snape, Tiago Potter) são extremamente distintas entre si, de forma que a discrição na literatura, tanto da aparência quanto da personalidade acabam por se tornar discrepantes demais, quando postas lado a lado, porém somadas forneceram a Harry ferramentas que o auxiliaram para que ele vencesse a si mesmo e as suas pulsões de morte. São elas: Tio Dursley, um homem medíocre, rabugento e perfeccionista; Alvo Dumbledore é descrito como o maior de todos os bruxos, e sua sabedoria é quase sempre ressaltada como inquestionável, embora nos livros cinco e seis da saga, Harry, o questione bastante sobre sua integridade; Severo Snape, o professor de poções, quase sempre visto por Harry como carrancudo, mal, frio e rancoroso, porém fiel ao que se descobre no último livro da saga; Sirius Black, que embora muito explosivo, é engenhoso, fiel e muito corajoso; e Arthur Weasley, um pai de família extremamente justo e caloroso, honesto e a quem Harry admira muito pela simplicidade (ROWLING, 2000; 2001; 2002; 2003; 2004; 2005 e 2006).

O interessante dessas figuras paternas é que mesmo que em muitos momentos da saga tenham sido ressaltadas suas qualidades, a autora parece sempre nos levar a ver seus defeitos, suas fraquezas e limitações. Então, se a figura paterna é apresentada a Harry de diferentes formas, dele, não ficaram ocultas, as limitações. E é assim, que ele se dá com a figura paterna real, podendo extrair o melhor de cada personalidade para somar a sua e assim vencer o vilão e a si mesmo.

A verdade é que a figura de Harry Potter e as personagens secundárias da história, além dos objetos de magia, encantam porque se assemelham muito a nós na realidade e as pessoas com quem vamos nos relacionando ao longo da vida, além das metáforas que criamos como significantes.

Sobre esse aspecto Corso e Corso (2007, p. 264), nos dizem que:

Quando o mestre Dumbledore descobriu os meninos fascinados com as imagens que o espelho lhes oferecia, esclareceu: ele “mostra-nos nada menos do que os desejos mais íntimos, mais desesperados de nossos corações”. É nesses detalhes que a riqueza do texto de Rowling se mostra, nesse caso, oferece as crianças um objeto mágico para apresentar o que se oculta de forma mais enigmática na nossa alma, os nossos desejos.

Assim, embora esteja em uma escola de bruxaria em um mundo paralelo com objetos e personagens estranhas, os conflitos com as figuras paternas que vão sendo apresentadas a ele e seu conflito com Lorde Voldemort se configuram bastante aos conflitos internos experimentados por nós, em um Complexo de Édipo, mas, enriquecido por elementos da magia, que culminam e tem seu amadurecimento, com a morte de si mesmo e dos desejos de morte e ainda do controle do poder total do ID impetuoso, simbolicamente representado na trama, ora pela própria personagem Lorde Voldemort, ora pelos próprios desejos de Harry , que embora mostre muitas vezes inclinação para a maldade (semelhanças com Lorde Voldemort), sempre acaba vencendo esse desejo com um gesto de encerrar a maldade em si mesmo e orgulhar aqueles que lutaram pela sua sobrevivência, como seus pais, seu padrinho, o professor Dumbledore e tantos outros que vão se apresentando ao longo da história e que ganham importância na vida de Harry.

No último livro da saga, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, em que Harry, depois de sete anos, lutando contra o vilão, Harry é levado a própria morte para que mais à frente no mesmo livro possa conseguir matar o vilão, utilizando a mesma magia, com a qual este teria ferido a Harry e tirado a vida de seus pais, numa perfeita metáfora sobre a morte, esse real incontornável do qual sempre fugimos, pois é preciso matar-se a si mesmo, vencer os próprios desejos, olhar-se no espelho e enxergar a face desfigurado que temos em nós, o lado escuro que volta e meia nos atravessa, para amadurecer e crescer como pessoas e encontrarmo-nos em nós mesmos, verdadeiro lugar de nossa origem.

A busca de si mesmo, é um confronto com a nossa própria imagem e um convite a ver além do que a cultura e a sociedade nos ensina a ver desde que somos postos neste mundo. É parte do nosso amadurecimento e da compreensão que teremos na vida adulta de nossa própria existência. Assim, segundo Bettelheim (2007, p. 03),

Uma compreensão do significado da própria vida não é subitamente adquirida numa certa idade, nem mesmo quando se alcança a maturidade psicológica. E esta realização é o resultado final de um longo desenvolvimento: a cada idade buscamos e devemos ser capazes de achar alguma quantidade módica de significado congruente com o “quanto” nossa mente e compreensão já se desenvolveram.

Por isso, ao buscar sua origem, Harry, tendo em seu caminho figuras paternas das quais pode extrair bons exemplos, pode enfrentar-se a si mesmo, e ao seu lado sombrio, devastando-o para finalmente descobrir-se e ao somar todos os exemplos, novamente originar-se, sabendo, de fato, quem era, muito além de apenas, “o menino que sobreviveu”, “o filho dos Potter”, “o menino que morava no armário embaixo das escadas”, “o menino que se parecia com o pai, mas tinha os olhos da mãe”. Todas as semelhanças foram úteis, para que no fim, Harry se descobrisse como figura única, muito mais do que o seu talento ou prodígios.

A saga Harry Potter é interessante para o universo infantil, porque apesar de toda a magia que sobressalta das páginas da história, Harry, precisou viver, buscar e enfrentar as situações, crescendo e observando que embora tivesse o domínio de sua varinha, teria de lutar e encarar as situações, como por exemplo, a perda dos pais, a morte de Sirius, a morte de Dumbledore, para o que, mágica alguma pode reverter e que também no mundo real, não há contorno ou remédio.

Harry, é na verdade uma representação da realidade, pois embora o mundo em que vive esteja repleto de ornamentos e mágica, sua história é a repetição de diferentes histórias de adolescentes no mundo inteiro, que assim como ele experimentam os enfrentamentos diários, na busca por sua origem e por um lugar em meio a tantas descobertas que a vida proporciona durante o crescimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim como a história da infância e o lugar da criança na sociedade, as histórias infantis durante muito tempo encontraram obstáculos até serem conhecidas no mundo tal como as conhecemos hoje.

Muitos autores como Bettelheim (2007), Corso e Corso (2007), Mesquita (2010), Fregonesi e Emídio (2013), Mattar (2007) e Machado (2000), discutem a relevância das histórias infantis para a formação psíquica do indivíduo como ferramenta que possa auxiliar no crescimento e desenvolvimento infantil, não apenas nas escolas, mas como possível recurso terapêutico.

Ainda assim, respeito da fantasia, teóricos da psicanálise como Garcia-Roza (1984), Zornig (2008) e o próprio Freud (1901-1905), já discutiam o recurso da fantasia e do imaginário como recurso que auxilia a criança na resolução do complexo de édipo, dada a complexidade e rigidez do tema e a sua incapacidade de compreender as questões que norteiam a sua origem, fazendo-se, portanto o uso do recurso da fantasia para responder essas questões.

As questões que norteiam a origem, não são respondidos de uma única vez, mas ao longo da nossa vida, com os confrontos que somos levados a enfrentar e superar, por isso, as histórias infantis podem e conseguem atingir diferentes faixas etárias e conseguem ser repassadas de geração a geração.

Isso se dá, porque o universo da fantasia conhecidamente e prontamente ligado ao universo da literatura infantil são muito bem reconhecidas pela criança, porque sua fala é simbólica e lúdica, como a fala dos infantes. Além de se observar que o rico discurso das histórias, permite a criança alcançar as respostas que almeja sem que seu psiquismo seja ou se sinta abalado pelas informações, cujo teor, ainda não são apropriados para a sua compreensão, que deverá vir mais tarde, com o amadurecimento e o enfrentamentos naturais da vida.

Muitas histórias, tem cumprido bem esse papel, auxiliando tanto nas respostas que norteiam a sexualidade, quanto as questões de origem, ambas propostas na resolução do Complexo de Édipo. Um exemplo atual de enfrentamento e amadurecimento, é a saga Harry Potter, onde a personagem central, por meio das representações paternas ao longo de sua história consegue descobrir sua origem e tornar-se a si mesmo, à medida que soma as qualidades dos “pais” que ganha durante a saga e à medida que faz suas escolhas.

Tendo surgido nos últimos anos, arrastando milhares de leitores mirins, adolescentes e adultos, pela graciosidade com que trata esses temas, envolvendo a magia e embora tendo está a seu favor, não a usa como única ferramenta, mas como auxilio, pois seu amadurecimento e suas conquistas também ainda mais de suas escolhas, do que dos feitiços e da mágica que ele pode realizar (CORSO; CORSO, 2007).

A saga Harry Potter é um exemplo atual de como as histórias infantis são representações dos acontecimentos próprios do desenvolvimento humano, que vão desde a primeira infância até a fase adulta, na busca de uma identidade, tentando responder as questões que norteiam sua origem, embora não tenha convivido por muito tempo com seus pais, ele é capaz de por meio da identificação com pessoas muito próximas como professores, seu padrinho, o pai de um amigo e diferentes figuras paternas que vão aparecendo ao longo da trama, encontrar as respostas que busca e sobreviver aos conflitos internos e externos até seu amadurecimento.

Assim, entendemos que as histórias infantis são importantes no sentido de que permitem a criança ter uma percepção mais otimista sobre o final de suas lutas e conflitos, mas a despeito de suas potencialidades, ainda se faz necessário a realização de mais pesquisas que possam contribuir com o fortalecimento e a disseminação da literatura infantil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTELHEIM, B., A Psicanálise dos Contos de Fadas. 16º Edição. Paz e Terra, 2002.

CORSO, D. L; CORSO, M. Fadas no Divã – Psicanálise nas Histórias Infantis. Porto Alegre. Ed. Artmed 2007.

FREGONESI, C. T., EMÍDIO, T.S., Como contos de fadas e fantasia contribuem no desenvolvimento psíquico e emocional e na inserção da criança no mundo letrado. Presidente Prudente, Outubro de 2013. Disponível em: http://www.unoeste.br/site/enepe/2013/suplementos/area/Humanarum/Psicologia/Como%20contos%20de%20fadas%20e%20fantasia%20contribuem%20no%20desenvolvimento%20ps%C3%ADquico%20e%20emocional%20e%20na%20inser%C3%A7%C3%A3o%20da%20crian%C3%A7a%20no%20mundo%20letrado.pdf. Acesso em: Abril de 2014.

FREUD, Sigmund, Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud: edição Standart brasileira / Sigmund Freud;Vol. VII. Com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; Traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. – Rio de Janeiro; Imago, 1996.

GARCIA – ROZA, L. A., Freud e o Inconsciente. 24º Impressão da 2º Edição, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1984.

MATTAR, R. R., Os contos de fadas e suas implicações na infância. UEP, 2007. Disponível em: http://www.fc.unesp.br/upload/pedagogia/TCC%20Regina%20-%20Final.pdf. Acesso em: Maio de 2014.

MACHADO, S. P., Sobre fantasia e os contos de fadas. Fundação Liberato, 2000. Disponível em: http://www.liberato.com.br/upload/arquivos/0131010716060516.pdf. Acesso em: Maio de 2014.

MESQUITA, Armindo. A Sabedoria dos Contos de Fadas. Cervantes. 2010. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=799284053417031&set=a.426567770688663.107907.312868818725226&type=1&theater. Acesso em: Abril de 2014.

ROWLING, J. K., Harry Potter e a Pedra Filosofal, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume I, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e a Câmara Secreta, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume II, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume III, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e o Cálice de Fogo, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume IV, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e a Ordem da Fênix, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume V, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e o Enigma do Príncipe, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume VI, Edição de coleção.

ROWLING, J. K., Harry Potter e as Relíquias da Morte, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2000, Volume VII, Edição de coleção.

WEITERE, B. Ü. D., Trad. BRILL, Observações Adicionais Sobre as Neuropsicoses de Defesa, 1896, p. 528 e 529.

ZORNIG, Silvia Abu – Jamra, A criança e o infantil em Psicanálise. São Paulo. Ed. Escuta, 2008, 2º impressão.

[1] Especialização em andamento em Psicologia Escolar. Especialização em andamento em Psicologia Jurídica. Especialização em andamento em Psicologia de Trânsito. Especialização em Psicopatologia e Psicodiagnóstico Infantil. Especialização em Docência e Gestão do Ensino Superior. Graduação em andamento em Pedagogia. Graduação em Psicologia.

[2] Orientadora. Mestrado em andamento em Psicologia clínica e da saúde. Especialização em Psicanálise com crianças. Especialização em Teoria e Técnica da Clínica Psicanalista Infantil. Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior. Graduação em Psicologia.

Enviado: Maio, 2020.

Aprovado: Janeiro, 2021.

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Ana Greice Alves Teixeira Nogueira

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